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A construção da paisagem urbana em Tarsila do Amaral

Raphael Fonseca1

E eu me divirto esteticamente com a vitalidade, a coragem de certo mau-gosto


nacional que Tarsila impôs aos seus quadros (...) tudo expressões de uma
‘ignorância’ superior de quem soube ultrapassar a falsa cultura do aprendido da
cor.i

Lidar com a produção artística no Brasil pós-Semana de 22 é como pisar


sobre ovos. Devemos inicialmente nos perguntar sobre o significado do termo
“arte moderna”; tarefa árdua e ingrata, que visa mais o levantamento de questões,
do que a resolução definitiva de problemas para o campo da arte.
O termo “moderno”, dentro da história da arte (ou melhor, literatura
artística), há muito é utilizado. Exemplo disso é o escritor e pintor Giorgio Vasari,
italiano, ativo durante o século XVI, visto por alguns autores como “o pai
fundador”ii do campo. Em sua célebre obra, “Vidas dos mais excelentes arquitetos,
pintores e escultores italianos”, cria um sistema de narração dos fenômenos
artísticos, baseado numa compreensão teleológica da arte. As produções dos
séculos XIV, XV e XVI, para Vasari, seriam formalmente distinguíveis, sendo o
período como um todo batizado por “Renascimento”, por ter recuperado questões
da produção greco-romana, indo em oposição à maldita “arte dos godos”. Ele é
um dos maiores responsáveis pela coroação da tríade do Alto Renascimento (a
“tríade vasariana”): Leonardo da Vinci, Rafael Sanzio e Michelangelo Buonarroti.
Estes, junto aos demais artistas ativos no século XVI, seriam os mais modernos
renascentistas. Porém, qual o enfoque da utilização deste termo, nesse recorte
proposto por Vasari?
Temos aqui uma utilização do conceito semelhante à seu primeiro sentido,
como proposto por Campagnon. Segundo o autor, a palavra “moderno” surge no
século V, em latim vulgar, se relacionando temporalmente ao presente:

Modernus designa não o que é novo, mas o que é presente, atual, contemporâneo
daquele que fala. O moderno se distingue, assim, do velho e do antigo, isto é, do
passado totalmente acabado da cultura grega e romana. Os modernii contra os
antiqui, eis a oposição inicial, do presente contra o passado.iii

1
Bacharel em História da Arte pela UERJ. Mestrando em História da Arte pela UNICAMP.
Giorgio Vasari, portanto, ao se utilizar de “moderno”, afirma que os artistas
quinhentistas seriam os mais “atuais” de seu tempo. Esta atualidade se daria
através duma clara problematização do “antigo”: trata-se, obviamente de um re-
nascimento – não se parte do nada. Contudo, no caso de Michelangelo, suas
obras seriam tão potentes, que conseguiriam superar tanto os antigos, quanto à
própria Naturezaiv.
Giulio Carlo Argan inicia sua narração da arte moderna pela produção tida
como neoclássica, a contrapondo ao romantismo. A história da arte tende a
reutilizar essa abordagem. “Arte moderna” seria aquela produção que tem uma
relação intrínseca com o presente. Se no Renascimento vasariano, moderno era
aquele que se espelhava no antigo, e inclusive o superava, no século XIX este
será aquele capaz de problematizar diretamente o presente (ou então aquele
capaz de recodificar a Antiguidade, como Jacques-Louis David, a fim de um
engrandecimento de um regime político contemporâneo às obras). O presente
como tema e problema da arte.
Dentro desse entendimento, provavelmente, o pintor da “vida moderna” por
excelência seria Édouard Manet, consagrado tanto por Baudelaire, quanto por
Campagnon. O pintor francês não estava preocupado com uma ruptura radical
para com a tradição artística; ele propunha uma resignificação de problemas
constantes à pintura, tais como o nu feminino e as interações sociais entre
diferentes sexos. Só que, ao passo que no Renascimento italiano as figuras
humanas tendem a uma transcendência temática, em Manet elas estão
permeadas pela entropia intrínseca às novas possibilidades de apreensão do
mundo, dadas pela “vida moderna”.
Mais para o final do século XIX, alguns artistas iniciam por apresentar
propostas de rupturas claras com a tradição. Inicia-se a chamada “tradição do
novo”. Neste momento, moderno é aquele artista que nega o produzido (e, nas
entrelinhas, nega o próprio conceito de arte), e define novas diretrizes para a
produção estética – geralmente objetivando revoluções no campo social. É a
chamada “era das vanguardas”.

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No caso Brasil nos deparamos rapidamente com o problema da importação
artística. Diferentemente do território europeu, cujas tradições foram construídas a
partir de um longo processo de tecelagem artística, em nossas terras sempre
fomos permeados pela pretensão da instauração de modelos europeus – seja no
dito “barroco mineiro”, seja na vinda da Missão Artística Francesa, ou no caso aqui
a ser analisado mais detalhadamente, da dita “arte moderna brasileira”. Para
refletir sobre esta me basearei na análise de algumas obras da célebre pintora
Tarsila do Amaral, cuja fortuna crítica aponta para o início de uma tentativa de
modernização da arte.
Não-participante da Semana de Arte Moderna de 1922, a artista teve uma
educação artística que mesclava aulas com acadêmicos brasileiros, como Pedro
Alexandrino, e viagens ao pólo cultural daquela época, Paris, capital francesa.
Após passar um curto período no Brasil, entre os anos de 1922 e 1923, Tarsila
conhece seu grande parceiro Oswald de Andrade, retornando a França no mesmo
ano. Desta vez ela se dedica ao chamado “serviço militar do Cubismo”, tendo
aulas com figuras notáveis, como André Lhote, Albert Gleizes e, principalmente,
Fernand Léger.
Uma vez distante de sua terra natal, por um longo período de tempo,
rodeada por parte da nata da consagrada “arte moderna européia” (cubista,
expressionista, surrealista e adjacências), Tarsila como que pela primeira vez se
depara com um grande problema, que permeará sua poética: e o Brasil? Como
ser ao mesmo tempo moderna, ou seja, antiacadêmica, e brasileira? Como negar
um passado experimentado por ela mesma, nas suas primeiras aulas de pintura?
Pensemos nessa questão junto à análise de três de suas obras, pintadas entre
1920 e 1925, durante suas idas-e-vindas. O que faz com que elas formem um
conjunto é a construção pictórica da paisagem urbana, precisamente da cidade de
São Paulo, recém-potencializada devido ao seu sucesso no comércio cafeeiro.
Pensando novamente a questão da terminologia, numa acepção clássica de
“moderno”, ou seja, que se refere ao presente, podemos afirmar que Tarsila é uma
artista moderna, por eternizar com essas obras aspectos da mudança econômica,
social e visual de São Paulov. Porém, seria a construção formal destas pinturas

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moderna? Se as compararmos com outras pinturas do mesmo período, realizadas
no território europeu, com que contrastes nos depararemos?
Fernand Léger, um dos professores de Tarsila, era um apaixonado pela dita
“vida moderna”. Escreveu textos em homenagem a Nova Iorque, e afirmava
categoricamente que um dos grandes atrativos da modernidade era a presença
dos outdoors, que quebravam com a paisagem habitual das cidades. Como afirma
muito bem Jodi Hauptman:

... [the billboards] brutally cuts across the landscape, rupturing the
even spacing of the city and annoucing its messages for all to hear
and see. (…) the billboard ‘shouting in a timid landscape’, and the
signs that ‘flash’, enlivening the ‘interminable walls’ and the ‘saddest
and most sinister surfaces’ of buildings, awaken the eye, the ear, and
also desire and the pocketlook.vi

Refletindo sobre as paisagens que Léger construía, nos deparamos com


imagens em que o espaço encontra-se deveras fragmentado, numa difusão de
cores e formas. A figura humana não é negada, mas esta é apenas rascunhada e
diminuída em relação à profusão de pequenos elementos captados da visualidade
urbana. O francês constrói sua pintura como se tivesse amassado, em diversos
pequenos pedaços, a cidade de Paris, e depois tentasse reproduzi-la sobre a tela.
Fica clara nesta obra a utilização dele dos contornos pretos, que passam a ganhar
vida própria, além do valor positivo que ele atribuía a uma variada pesquisa
cromática. Porém, o que mais me chama a atenção é um elemento com o qual
Tarsila dialoga diretamente: a letra R que Léger solta, quase que aleatoriamente
dentre seus sólidos coloridos. Parece, devido à sua tipografia, ter saído
diretamente de um cartaz. O pintor é fiel aos seus escritos: “O belo está em toda a
parte, na ordem que você põe em suas panelas, na parede branca de sua
cozinha, mais talvez que no seu salão século XVIII ou nos museus oficiais”.vii
Quando nos deparamos com “Gazo”, de Tarsila (imagem 2), podemos lê-la
como uma tentativa de seguir os passos do mestre francês; em sua pintura a
artista não consegue, de forma alguma, tornar seus signos plásticos arbitrários ou
pseudo-arbitrários. Sua pintura é uma janela sim, por mais que as formas tentem

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alcançar uma abstração geométrica e orgânica. Além disso, a perspectiva que
Léger e outros cubistas tanto se esforçaram em problematizar, na poética de
Tarsila permanece intacta: as chaminés ao fundo estão realmente ao fundo,
porque estão atrás das construções que estão à sua frente. A escritura pictórica da
artista nunca será fragmentada; há a necessidade da construção de sentido:
Gazo, relativo à gasolina, quase que panfletariamente relativo à indústria e “vida
moderna”. Em outro exemplo, Tarsila precisa criar literalmente um outdoor dentro
da paisagem urbana para poder justificar a seqüência de números que propõe
mostrar (imagem 3).
Por outro lado, devemos reconhecer nas obras da brasileira uma pesquisa
cromática igualmente potente a de Léger, e ao mesmo tempo com sutis
diferenças: ela parece preferir os tons pastéis (imagem 1) e “caipiras” (mesmo
antes da famosa viagem pelo interior de Minas Gerais), ao passo que o francês
foca nos tons metálicos e em uma utilização do claro-escuro anti-impressionista.
Também poderíamos argumentar que a brasileira nunca conseguiria ou
nunca ousaria fragmentar tanto o espaço de suas obras devido a uma vivência de
urbanismo diferente da encontrada na Europa. Ao passo que Léger estava
rodeado pela tradição artística secular e francesa, em nossas terras Tarsila se
deparava com uma província que tentava (e eu diria que até hoje se esforça) ser
moderna. Logo, não haveria como Tarsila não apresentar “formas tímidas” em sua
obra. Duras linhas negras, rodeadas de tons pastéis e de singelas palmeiras;
trilhos que mais parecem barras de chocolate do que pesquisa de linguagem
pseudo-abstrata.
Os ditos “modernistas brasileiros” possuíam uma carga de responsabilidade
que os artistas europeus não conheciam. Eles se enxergavam como a salvação do
academicismo que permeava nosso território. Para triunfarem, sentiram a
necessidade de buscar no Velho Mundo a bagagem cultural necessária para
modernizar nosso ambiente artístico, inserindo, às vezes nas entrelinhas, às vezes
explicitamente, a temática nacional. Como diria a própria Tarsila:

Sou profundamente brasileira e vou estudar o gosto e a arte dos


nossos caipiras. Espero, no interior, aprender com os que ainda não

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forram corrompidos pelas academias. Pintar paisagens e caboclos
do Brasil não é ser artista brasileiro, como não é artista moderno
aquele que realistamente pinta máquinas e deforma figuras.viii

Julgo que se Léger admirava os cartazes que permeavam as cidades


francesas, poderíamos afirmar que ele admiraria as obras de Tarsila por seu
caráter também panfletário; são outdoors de São Paulo. Um anseio por uma
modernidade, um tanto quanto pacífica e bem distante da que efetivamente foi
realizada. Aracy Amaral muito bem a define:

... vemos refletida em sua obra um subdesenvolvimento humano


nosso, com todo o encantamento, no sentido de ‘exotismo’ para o
estrangeiro, também nele implícito. Sem crítica nem sátiras. É a
apresentação do Brasil. (...) Ela pertence ao sistema, não o critica,
mas sua denúncia persiste, inscrita em sua obra.ix

Contanto, não devemos extrair da obra de Tarsila seu valor positivo, como
pontapé inicial de uma pesquisa formal que tentava problematizar a linguagem
plástica acadêmica, além de ter consciência da importância da renovação artística
num território tão peculiar quanto o nosso Brasil. Também é importante sempre
problematizarmos a utilização desenfreada do termo “arte moderna”, seja para o
próprio lugar de onde ele veio, a Europa, em que dá conta de uma infinitude de
manifestações culturais, quanto e principalmente para o caso Brasil, em que a
utilização de qualquer palavra que vise homogeneizar as obras se transforma num
grande problema para os historiadores da arte – seja “barroco”, seja “acadêmico”,
ou seja “moderno”.

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Bibliografia

AMARAL, Aracy. Tarsila: sua obra e seu tempo. São Paulo: Edusp, 1975.
_____________. Textos do Trópico de Capricórnio. Volume 1: Modernismo, arte
moderna e o compromisso com o lugar. São Paulo: Editora 34, 2006.
_____________. (Org.) Correspondência: Mário de Andrade e Tarsila do Amaral.
Edusp: São Paulo, 2001.
ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BAZIN, Germain. História da História da Arte: de Vasari a nossos dias. São Paulo:
Martins Fontes, 1989.
CAMPAGNON, Antoine. Cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1999.
CHIPP, Herschel B. (Org.). Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins e Fontes,
1993.
GOTLIB, Nádia Battella. Tarsila do Amaral. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
LANCHNER, Carolyn, HAUPTMAN, Jodi, AFFRON, Matthew, HANDLER, Beth e
ERICKSON, Kristen. Fernand Léger. Nova Iorque: MoMA, 1998.
LÉGER, Fernand. Funções da pintura. São Paulo: Editora Nobel, 1989.

7
i AMARAL, Aracy. (Org.) Correspondência: Mário de Andrade & Tarsila do Amaral. Edusp: São Paulo, 2001, pág. 134.

ii BAZIN, Germain. História da História da Arte: de Vasari a nossos dias. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
iii CAMPAGNON, Antoine. Cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999, pág. 17.

iv “But the man whose work transcends and eclipses that of every other artist, living or dead, is the inspired Michelangelo Buonarroti, who is supreme not in one art alone but in all three. He
surpasses not only all those whose work can be said to be superior to nature but also the artists of the ancient world, whose superiority is beyond doubt. Michelangelo has triumphed over late
artists, over the artists of the ancient world, over nature itself, which has produced nothing, however challenging or extraordinary, that his inspired genius, with its great powers of application,
design, artistry, judgement, and grace, has not been able to surpass with ease”. In: FERNIE, Eric. Art history and its methods. Londres: Phaidon, 1999, pág. 42.
v Assis Chateaubriand exagerava ao analisar estas obras: “... ela [Tarsila] vibra é diante da cidade moderna, com os arranha-céus (...) Ela procura na sua arte oferecer uma representação

plástica da época em que foi chamada a agir. O São Paulo novo, que está crescendo, a força do industrialismo triunfante, era um assunto à espera do pintor. Tarsila está sendo a artista da
civilização mecânica, dos homens-máquina, em que vemos entrando aqui em São Paulo. Há muita coisa a dizer neste sentido, e ela o dirá com audácia e a insolência que a caracteriza”. In:
AMARAL, Aracy. Tarsila: sua obra e seu tempo. São Paulo: Edusp, 1975, pág. 11.

vi LANCHNER, Carolyn, HAUPTMAN, Jodi, AFFRON, Matthew, HANDLER, Beth e ERICKSON, Kristen. Fernand Léger. Nova Iorque: MoMA, 1998, pág. 75.
vii LÉGER, Fernand. “A estética da máquina”. In: CHIPP, Herschel B. (Org.) Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins e Fontes, 1993, pág. 281
viii AMARAL, Aracy. Textos do Trópico de Capricórnio. Volume 1: Modernismo, arte moderna e o compromisso com o lugar. São Paulo: Editora 34, pág. 50.

ix _________. Tarsila: sua obra e seu tempo. São Paulo: Edusp, 1975, pág. 24.

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