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CAFÉ COM DAMAS

CAFÉ EXPRESSO 1

Naquele momento, o rapaz pediu um café expresso. Dava para ver a sua pressa. Mãos
inquietas no interior da bolsa azul, catando moedas para pagar 1,80 à moca do balcão.
Pronto. Tão logo entregou os trocados como pagamento, já foi correndo para uma mesinha
de canto. Agora sentado, tirou da bolsa um livro amarelo, repartiu-o em duas partes quase
iguais. Pagina 127. A leitura foi rápida. A xícara já estava vazia e o pires sujo de café com
açúcar cristal, quando ele voltou a abrir a bolsa, agora sacando um lápis e um caderno
verde.

Imagem, autoimagem, ficção, persuasão, verossimilhança, repetição, reflexão, aparência,


narrativa, intimidade, ironia, enigma, invasão, indiscrição, mentira foram palavras listadas
após o café, e soltas numa das paginas do caderno verde que insinuava soltar-se das demais.

DOCUMENTÁRIO SOBRE O ESQUECIMENTO DE UMA RAINHA NA TV

Sentada em frente à máquina de escrever ela relia aqueles textos. Não eram muitos e os
seus conteúdos eram fragmentados como riscos que tendiam a rasgar as folhas. Mas não
que fosse necessário controlar as palavras ou dominar as idéias de modo a não riscar o
espaço. Ela simplesmente não desejava um objetivo especifico. Ok. Ela desejava mesmo
era mentir. E o que distinguiria os seus objetivos da verdade e da mentira?

No programa de tv que ela não assistia (o último cantinho da lateral do seu ângulo de visão
direito não percebia que se tratava de um programa de tv) passava um desses
documentários retrospectivos...

Uma rainha tinha sido esquecida pelos súditos. Ela sumiu durante muitos anos e ninguém
havia dado pela sua falta. Simplesmente esqueceram. As imagens dela pareciam com as de
uma rainha hipotética. Um esquema. Então não havia personalidade e diferença. Ninguém
havia notado o esquecimento da lembrança da sua existência, como conseqüência de uma
falta de atenção coletiva. Durante anos ela tentou enviar notícias suas através de códigos
cifrados e retratos do seu retorno hipotético. Nenhuma notícia foi percebida. Porém posso
dizer que enquanto ela escrevia (não a rainha, a outra sentada) também não via que tinham
encontrado algumas roupas e itens do seu quarto (da rainha), como partes de uma exposição
artística inaugurada num castelo-banco da Espanha. Mas sobre a rainha mesma ninguém
lembrava ao certo. Sendo assim como sabiam que aquelas imagens expostas pertenceram a
ela?
De fato não entendi como a outra continuava a riscar frases à deriva sem ver a notícia da
rainha de soslaio. Ela teve vontade de fazer café, levantou-se da cadeira e viu finalmente
que a televisão estava ligada. Sua atenção não viu que nada havia sido provado a respeito
do esquecimento daquela rainha que ela lembrava somente em trapos. Mas aquelas imagens
encontradas na exposição bancária não provavam nada. Ilusão. Outro dado veiculado no
programa que a mulher poderia ter visto, mas desligou antes do final, foi uma entrevista do
artista descrevendo as obras vestigiais da dama: um colar de perolas, manuscritos, perfume,
espelho, vestido, imagens de tv...

PALAVRAS SOLTAS

No trânsito das ideias que se seguiam, não tive como distinguir os destroços que se
perderam ao longo do caminho: imagem, autoimagem, ficção, persuasão, verossimilhança,
repetição, reflexão, aparência, narrativa, intimidade, ironia, enigma, invasão, indiscrição e
mentira. 15 idéias fixadas ao todo. Todas de mentira. De certo modo estavam no meu
imaginário de artista. No desejo de inventar e de mentir. Organizar para desorganizar e
reorganizar o desorganizado.

Rever o que tinha sido visto. Interpretar um significado antigo. Trazer à tona coisas
esquecidas. Usar as imagens como uma prova de invenção. Mimetizar o imaginário.
Figurar o sentido de uma figura transformada em óbvio pela falta de percepção. Atrair o
pensamento de quem atenta para um mundo de perguntas e inquietações.

REARRANJO DE IDÉIAS OU PERGUNTAS-PULGA

I
Imagem de autoimagem. Ficção e persuasão. Verossimilhança feita de repetição e de
reflexão. Aparência narrativa. Intimidade sem ironia com enigma de invasão, de indiscrição
e mentira?

II
Ficção da imagem. Verossimilhança com ironia. Indiscrição através de persuasão e de
invasão. Intimidade da autoimagem, que aparência! Enigma ou mentira? Narrativa da
reflexão da repetição?

III
Enigma da reflexão. Imagem da mentira. Narrativa ou ficção? Verossimilhança: persuasão
da intimidade através da autoimagem? A repetição da aparência. Indiscrição! Narrativa de
ficção: invasão.

*
CAFÉ EXPRESSO 2

Abri a bolsa azul para buscar moedas para pagar o café expresso que havia pedido no
balcão. Lembro que estava calmo e tinha recém saído de uma aula de arte com Arte. E com
a ingenuidade de um aluno de infância, fiquei bastante envolvido pelos assuntos tratados.
Acho que todos os alunos que se envolvem nos assuntos de suas disciplinas apresentam
alguma concessão romanticamente institucionalizada. No caso de estudantes de arte, como
eu, lícitos devaneios.

Quando peguei o cafezinho, procurei o canto mais reservado para reler com calma algumas
páginas de um livro. Pronto. Abri minha bolsa novamente, saquei o livro em busca dos
comentários da professora Maria Ozomar Ramos Squeff sobre a obra Le Revers du Reveur
da artista Vera Chaves Barcellos.

UMA BREVE HISTÓRIA DO MEU CONTATO COM “LE REVERS DU RÊVEUR” DA


ARTISTA VERA CHAVES BARCELLOS

Em 2003, seguindo recomendações da artista e professora Marilice Corona, comprei o livro


“Fronteiras: arte, crítica e outros ensaios”, organizado por Mônica Zielinski. Na ocasião
Marilice orientava meus estudos de pintura para além dos cavaletes. E no ensaio chamado
“Mimeses na arte: os limites da critica”, a professora Maria Ozomar Ramos Squeff
problematizava a falta de limites da crítica quando não há mimese na obra de arte, em geral,
segundo ela, boa parte da obra da arte contemporânea. E em particular a obra de Vera
Chaves Barcellos, “Lê Rever du Rêveur”.

Lembro ainda naquele ano, grosso modo, que fiquei abalado com a teoria adorniana
revisitada por Squeff, uma vez que, motivado pelas questões de Marilice, “abandonei”
tentativas de representação mimética nos meus processos pictóricos.

Bem, enquanto tomava o cafezinho expresso 2, a tarefa da aula seria eleger uma obra em
exposição na cidade.

Enfim a escolha pela obra “Le Revers du Rêveur”

O problema da representação como provocação era nítido na obra de Vera Chaves


Barcellos. E naquela manhã de segunda, depois do segundo café, fui vê-la instalada no
recinto de uma instituição cultural. Coisa que no tempo da primeira leitura de
“Fronteiras...”, não tive chance. Tocou-me o fato de que agora podia refletir sobre uma obra
citada como exemplo de “obra de arte contemporânea” criticada pela professora Maria
Ozomar Ramos Squeff.

Em geral, seguindo recomendações de aula, listei 15 palavras e 5 perguntas que percebi


durante um olhar atento daquela obra. As imagens da obra de Barcellos são representações
de objetos pessoais e apropriações de imagens de filmes televisivos. São verossímeis,
porque sugerem sentidos que identificamos, e somos convencidos de que o grupo de coisas
dispostas na instalação é de algum modo familiar (embora sejam utensílios ficcionais). A
artista sabia de antemão que conheceríamos os códigos envolvidos, tais como roupas,
vestes e filmes na tv. Revemos então imagens do nosso próprio imaginário cultural. Todas
compõem um repertorio comum: nosso hábito de assistir.

Nítidos elementos fúnebres são percebidos na obra e dispensáveis a meu ver, para o gosto
de uma significação maior. São signos fúnebres percebidos: placa de mármore contendo o
título da obra, sepulcros de vidro dispondo vestes e outros assessórios femininos dispostos
sobre uma superfície com terra. Um eco de lamento e de perda pode ser ouvido à distância
através destes adornos, que conferem ar de melancolia à obra. Restrinjo-me a destacar o
terreno mais potente de Le Revers du Rêveur: uma sugestão de representação do nosso
modo de olhar, da nossa cultura frágil e modelada que assiste a ficção como realidade.

Jorge Soledar / verão de 2007.

***
PEQUENA NOTA SOBRE UMA DESATENÇÃO

Terminado o café expresso e a redação de algumas palavras soltas como pulgas, recolho as coisas da mesa.
Alguém toca o meu braço esquerdo. É uma senhora vendendo poesias. Passo os olhos em algumas linhas e
noto que foram datilografadas. A mulher agradece a minha atenção, e também recolhe as suas coisas,
seguindo em direção à escadaria (sem nunca ter percebido que, num grande backlight vermelho, havia uma
NOTA a respeito de uma hipótese de lembrança sobre uma falta de atenção àquela rainha).

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