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Quinto volume
Nicola A bbagnano
DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO:
ÂNGELO MIGUEL ABRANTES.
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
VOLUME V
TRADUÇÃO DE:
NUNO VALADAS
ANTÓNIO RAMOS ROSA
CAPA DE: J. C.
COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO
TIPOGRAFIA NUNES R. José Falcão, 57-Porto
EDITORIAL PRESENÇA - Lisboa 1970
QUARTA PARTE
A FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
RENASCIMENTO E HUMANISMO
§ 332. RENASCIMENTO E HUMANISMO: O PROBLEMA
HISTORIOGRáFICO
Escritores, historiadores, moralistas e políticos, todos estão de
acordo em
que se teria verificado na Itália, a partir da segunda metade do
século XIV,
uma mudança radical na atitude dos homens perante o mundo e a
vida.
Convencidos como estão do início de uma época nova, constituindo
uma
ruptura radical com o mundo medieval, procuram explicar a si
mesmos o
significado dessa mudança. Esse significado, atribuem-no então à
renascença
de um espírito que já fora próprio do homem na época clássica e se
perdera durante a Idade Média: um espírito de liberdade,
pelo qual o homem reivindica a sua autonomia de ser racional e se
reconhece
como intimamente ligado à natureza e à história, apresentando-se
resolvido a
fazer de
§ 333. O HUMANISMO
A primeira destas polémicas, travada entre a sabedoria clássica e a
ciência,
é às vezes apresentada como a antítese entre humanismo e
renascimento. Uma
vez que a irrupção do Renascimento é marcada pelo aparecimento
das novas
ciências naturais, a polémica contra a ciência, iniciada por Petrarca,
tem
sido interpretada como constituindo a defesa da transcendência
religiosa e da
sabedoria revelada contra a liberdade de investigação científica.
Acontece
porém que a defesa da sabedoria clássica, inspirada na convicção
(que é uma
herança deixada pela Patrística) da existência de um perfeito
acordo da mesma
com a verdade revelada do cristianismo é muito mais antiga do que
o
Renascimento e nunca chegou a ser totalmente abandonada pela
Escolástica; o
humanismo seria assim a
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força que combate e retarda o advento do verdadeiro espírito
renascentista,
o qual, como reivindicação da liberdade de investigação, seria par
sua
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uma nova e mais genuína acepção das relações do homem com Deus,
longo de ser
excluída desta renovação, é até considerada como a sua condição
primordial,
embora não fique assim esgotado o sentido da renascença, pois esta
reporta-se
ao mundo do homem na sua totalidade: à sua actividade prática, à
sua arte, à
sua poesia e à sua vida em sociedade. A renascença do homem não é
o
nascimento para uma vida diferente e super-humana, mas sim o
nascimento para
uma vida verdadeiramente humana porque baseada naquilo que o
homem tem de
mais seu: as artes, a instrução e a investigação, que fazem dele um
ser
diferente de todos os outros que existem na natureza e o tomam na
verdade
semelhante a Deus, restituindo-o assim à condição de que decaíra.
O
significado religioso de renascença identifica-se com o mundano: o
fim último
da renascença é o próprio homem. O seu instrumento essencial é o
retorno aos
antigos que é também entendido como um regresso ao princípio, ou
seja, como um retorno ao que dá vida e força a
todas as coisas e de que depende a conservação e o
aperfeiçoamento de todos
os seres. O regresso ao princípio ora um conceito neoplatónico e por
isso não
admira que tenha sido sobretudo teorizado pelos Platónicos do
Renascimento
(Ficino, Pico). Foi todavia expressamente defendido também por
certos
filósofos naturalistas (Bruno, Campanella) e
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seu próprio e não existe doutrina que não responda a uma sua
própria
exigência pessoal (§ 156), é o que se apresenta mais próximo do seu
espírito
e a ele pensa recorrer continuamente. Este processo é o adoptado
por si na
obra (composta entro
1347 e 1353) De contemptu mundi à qual chamou também Secretum
e que em alguns
manuscritos se apresenta com o título "0 conflito secreto das suas
preocupações" (De secreto conflictu curarum sua-
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anulado pela morte que é assim para ele o mal pior. Por conseguinte,
o facto
de o homem nada poder fazer perante a morte, aumenta e agrava a
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fim. As artes liberais, como por exemplo, as que têm por objectivo
satisfazer as exigências necessárias à vida, a medicina, a
jurisprudência, a
poesia e a oratória, têm todas como fim o prazer, ou pelo menos a
utilidade,
que é o que conduz ao prazer (11, 39). A virtude não é senão a
escolha dos
prazeres: procederá bem aquele que preferir a maior à menor
vantagem e a
menor à maior desvantageM (11, 40). Até mesmo o cristão só age
pelo prazer
que todavia para ele é, não o terreno e sim o coles- -. Porém e
diversamente
dos restantes glorificadores do prazer, Lourenço Valla não
considera este
como idêntico à virtude. Não é verdade que só o
eterno ou se inclina para este e renuncia àquele (111, 9). Mas quem
espera os
bens eternos não deve gemer, nem sofrer ou acusar Deus porque
lhe faltam os
terrenos. A renúncia do cristão deve ser confiante e jovial, para ser
verdadeiramente sincera e total
(111, 11).
Para Lourenço Valla é a aceitação desta condição que é própria do
homem no mundo, consistindo na consciência da alternativa que esta
condição apresenta.
"Compreendo", diz-nos, "de que te lamentas: de não teres nascido
imortal,
como se a natureza estivesse em dívida para contigo. Se ela não
pode dar-te
mais, e é certo que nem mesmo os
pais podem dar tudo a seus filhos, não lhe estás reconhecido pelo
que
recebeste? Preferirias, certamente, não estar exposto ao risco
quotidiano de
feridas, mordeduras, venenos e contágios. Mas quem assim fosse,
seria imortal
e igual à natureza e a
Deus, ora isto não devemos pedi-lo nem é possível à natureza
concedê-lo".
Glorificador da língua latina, na qual via o sinal da persistente
soberania
espiritual da Roma antiga após a ruína da sua soberania política
(Elegantiarum linguae latinae libri, 1444), Valla provou com
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§ 341. BOVELO
Em França, o iniciador dos estudos humanísticos mediante o
regresso ao
aristotelismo original foi Jaime Faber (Jacques Lefèvre, 1455-
1537). O
discípulo de Faber, Carlos Bovi,.Uus (Charles Bouillé,
1470 ou 75-1553, aproximadamente) é uma das personalidades mais
notáveis da
filosofia humanista, cujos temas apreende e expõe com grande
liberdade
especulativa. A sua obra mais significativa é De sapiente, no qual
reconhece
ao homem aquela posição central de árbitro e síntese de todo o
mundo natural
que igualmente lhe reconheciam Cusano (§§349 e segs.), Ficino
(§§354 e
scgs.), Pico (§§357 e segs.) e Pomponazzi "§§362 e segs.). "Ao
homem",
escreve, "nada é próprio nem peculiar mas são-lhe comuns todas as
coisas
próprias dos outros seres. Tudo o que é próprio deste ou daquele
ser ou é
mesmo próprio dos seres individualmente considerados, pertence
também ao homem.
O homem transfere para si a natureza de todas as coisas, reflecte
tudo e
imita a natureza inteira. Ao atingir e absorver tudo quanto está na
natureza,
torna-se ele próprio tudo isso. Por conseguinte ele não é este ou
aquele ser
particular nem lhe pertence
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ali roubar o fogo e dá-lo aos homens, também o sábio que abandona
o mundo sensível e penetra no espaço celestial, leva ao homem o
lume da sabedoria, deste modo o fortalecendo e reanimando. Com
efeito, o homem, por virtude deste lume "conquista-se a si próprio,
possui-se e permanece seu, ao passo que o ignorante se conserva
devedor à natureza, oprimido pelo homem essencial e sem
pertencer jamais a si próprio". (De sap., 8). Prometeu simboliza
portanto o homem que por si se forma e se possui. Bovilo exprimiu
com grande energia e profundidade o resultado para o qual tende
toda a especulação humanista.
§ 342. humANISTAS FRANCESES, ESPANHóIS E ALEMÃES
A Jaime Lefèvre junta-se em França Podro Ramus (de Ia Ramée,
1515-1572),
autor de numerosas obras nas quais aparecem novamente expostas
a física, a
metafísica e a lógica aristotélicas. Nas suas Dialecticae
institutiones
(1543), procura formular uma lógica ou uma dialéctica diferente da
aristotélica e mais conforme ao funcionamento natural do
pensamento. D3fine a
dialéctica como doetrina disserendi, ou seja, ciência que ensina a
arte de
discutir, a qual deve acompanhar, no seu método e nas suas divisões,
o
comportamento natural do homem quando discute consigo próprio e
com os outros acerca de um qualquer objecto. Este comportamento
natural é o seguinte:
primeiramente
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base para a solução das questões; na segunda parte será o guia para
a expressão desta solução de maneira a poder responder às
possíveis perguntas. Por outras palavras, os momentos da dialéctica
serão dois: a elaboração mental de um problema e a sua expressão
verbal apta a enfrentar a discussão.
Ramus constrói sobre estas bases uma exposição minuciosa e
pedante que
conheceu grande êxito nas escolas lógicas da época mas que tem
hoje reduzido
interesse. O que há nele de importante é apenas a exigência de que
parte: a
recondução da forma lógica do discurso à sua forma natural e o
consequente
amoldar da dialéctica ao método próprio de qualquer homem que
pense e
raciocine. Nisto se revela o espírito humanístico da sua dialéctica
que
assina-Ia também, embora a seu
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§ 343. MONTAIGNE
O regresso do homem a si mesmo, que constitui a essência do
movimento de renovação renascentista, encontra a sua expressão
culminante na obra de Montaigne.
Miguel de Montaigne nasceu em 23 de Fevereiro de 1533 no castelo
de Montaigne
no Périgord, em França. Educado pelo pai com um método que
excluía todo e
qualquer constrangimento ou severidade, aprendeu o latim como
língua materna
através de um perceptor que não sabia francês. Estudou direito e
tornou-se
conselheiro no parla-
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mento de Bordéus (1557). o seu primeiro trabalho literário foi a
tradução de
uma obra do teólogo cataIão Raimundo Sabunde (falecido em
Toulouse em
1436) intitulada Liber creaturarwn ou Theologia naturalis, livro de
apologética que procurava demonstrar a verdade da fé católica mais
pelo
estudo das criaturas e do homem, do que com o apoio dos textos
sagrados e dos
doutores da igreja. Em 1571 retirou-se para o seu castelo com o fim
de se
dedicar aos seus estudos. Os primeiros frutos do seu trabalho
(Ensaios, 1, 2-
20, 32-38, 40-48) são simples compilações de factos e sentenças,
obtidas a
partir de diversos escritores antigos e modernos e nas quais não
surge ainda
a personalidade do autor. Seguidamente, porém, essa mesma
personalidade
começa a ser o verdadeiro objecto central da meditação de
Montaigne, a qual
assume o carácter de "pintura do eu" (1, 26, 31; H, 7, 10, 17, 37).
Naquele
mesmo ano, deixou a França e viajou pela Suíça, Alemanha e Itália
onde, em
Roma, passou o inverno de 1580-81. Tendo sido nomeado prefeito
de Bordéus,
regressou à pátria, mas as preocupações do cargo não o impediram
de se
dedicar ao estudo e à meditação. Em 1582 publicou uma segunda
edição dos
Ensaios enriquecida com algumas adendas, publicou outra em 1588,
contendo
numerosas adendas aos primeiros dois livros e ainda um terceiro
livro. Neste
último, a pintura do eu constituia a parte predominante. Montaigne
trabalhava
numa nova edição da sua obra, com ulteriores aperfeiçoamentos
quando em 13 de
Setembro de 1592 faleceu no seu castelo. O título da obra de
Montaigne indica
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MONTAIGNE
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no Renascimento, à exaltação da sua situação privilegiada, o
aprofundamento
desta consciência, no
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RENASCIMENTO E POLÍTICA
§ 345. MAQUIAVEL
O humanismo renascentista encontra-se estreitamente ligado a uma
exigência de
renovação política. Pretende-se renovar o homem, não apenas na
sua individualidade mas também na sua vida em sociedade; por esse
motivo,
empreende-se uma análise da comunidade política, c~ o fim de lhe
descobrir o
fundamento e de -reportar a este as formas históricas daquela. O
regresso às
origens, que até mesmo neste campo constitui a palavra de ordem
da renovação,
é por um lado entendido como o regresso de uma comunidade
histórica
determinada, povo ou nação, às suas origens históricas, às quais
poderá ir
buscar nova força e novo vigor, e por outro, como regresso à base
estável e
universal de toda e qualquer comunidade,
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80
MAQUIAVEL
e reorganizador da nação italiana. Deriva daí o esboço da figura do
príncipe.
Se uma comunidade não tem outra maneira de se libertar da
desordem e da
servidão política, senão a de se organizar em principado, a
realização deste
principado, torna-se uma tarefa que encontra a sua regra e a sua
justificação
em si própria. Pesa sobre esta tarefa o risco de se perder, caindo
na
tirania. Pode muito bem acontecer que aquele que a assumir "se
deixe enganar
por um falso bem" ou "se deixe ir voluntária ou ignorantemente"
pela via
aparentemente fácil mas funesta da tirania. Renunciará nesse caso
à glória, à
certeza, à serenidade e à satisfação interior e irá ao encontro da
infância,
do vitupério, do perigo e da inquietação. A aceitação daquela tarefa
implica
pois uma alternativa e uma escolha: ou seguir a via que conduz a uma
vida
segura e à glória após a morte, ou seguir aquela que conduz a uma
vida de
permanente angústia e à infâmia depois de morto (Disc., 1, 9). É
porém
impossível que a segunda alternativa seja escolhida por aquele que,
por sorte ou por virtude, de particular que era se torna príncipe de
uma república, se conhecer verdadeiramente a história e tirar
partido dos seus ensinamentos (Ib., 1, 10).
Mas uma vez aceite o reconhecida, como própria a tarefa política, é
impossível a paragem a meio caminho. Tem ela as suas exigências
derivadas da natureza humana. Não se pode contar corri a boa
vontade dos homens. O homem não é
por natureza nem bom nem mau, mas pode ser efectivamente
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uma e outra coisa. O político, se quiser ser bem sucedido nos seus
planos,
deverá sempre contar com o pior o que quer dizer que deverá partir
do
princípio de que todos os homens são maus e de que aproveitarão a
primeira
ocasião para lhe manifestar a sua malignidade (Ib., 1, 3). O político
não
pode pois fazer "profissão de bondade"; deve aprender "a poder
não ser bom, e
a usar ou não de bondade, conforme for preciso." (0 Princ.,
15). Se puder, não deve afastar-se do bem; deve p~ saber usar do
mal quando
necessário (Ib.,
19). Há certamente meios extremamente cruéis, contrários a todo o
viver, não
só cristão como humano e de tal maneira que todo e qualquer homem
deve evitá-los. Nesse caso "torna-se necessário -preferir viver
como particular do que
como roi com tamanha ruína dos homens". Todavia, se não se quiser
ou não se puder enveredar por esta renúncia, é necessário entrar
resolutamente no caminho do mal, evitando o meio termo que para
nada serve (Disc., 1, 26).
Maquiavel põe assim duramente o político em face das cruéis e
tristes exigências da sua tarefa. Aflora-lhe certamente ao espírito
a dúvida sobre se o
combater o mal com o mal, a fraude com a fraude, a violência com a
violência
e a traição com a traição tornará possível a recondução da
comunidade à
verdadeira ordem da sua forma política. Responde porém a
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por Deus de maneira que os homens não possam nem corrigi-las nem
remediá-las;
porém, embora a hipótese o tente, pela extrema mobilidade dos
acontecimentos
contemporâneos, acaba por rejeitá-la porque nesse caso a liberdade
seria nula
o a única atitude possível seria o "deixar-se comandar pela sorte".
Sustenta
como mais provável que a sorte seja o árbitro de metade das acções
humanas,
deixando aos homens o comando da outra metade ou pouco menos. A
sorte é como
um rio que, quando se encoleriza, transborda e arrasta tudo, de tal
modo que
o homem não consegue de maneira nenhuma detê-lo ou impedir a sua
marcha mas
cujo ímpeto porém, não se torna daninho ou se toma menos
prejudicial se o
homem providenciar a tempo pela construção de defesas e diques
que impeçam e
disciplinem as cheias. A sorte mostra o seu poder onde não depara
com a
resistência da "virtude ordenada" e dirige os seus ímpetos para
onde não
houver diques nem defesas a contê-la (0 Prínc., 25).
O homem só poderá dirigir a sorte se se conformar historicamente,
reportando-se ao passado; ligando o passado ao futuro, evitará as
transformações bruscas
e inconcludentes e conseguirá dirigir a sorte de modo a não ter
motivo para
mostrar o seu poder a cada volta do sol (Disc., 11, 30). Existe
tensão entre
a sorte e a liberdade. A acção do homem insere-se nos
acontecimentos e é
portanto condicionada por eles. Mas quanto mais se apresentar
historicamente
fundamentada, tanto melhor conseguirá dominá-los, uma vez que a
metade que
no decurso dos
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homem. "Não se deve dizer: Deus ajudou aquele porque era bom;
àquele
correram-lhe as coisas mal porque era mau; pois o que
frequentemente se
observa é o contrário. Nem por isso de=os dizer que a justiça de
Deus não
existe, uma vez que os seus conselhos são tão profundos que são,
mere-
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filósofo de nome Rafael, que conta o que lhe teria sido dado
observar numa
ilha ignota chamada precisamente Utopia, durante uma das viagens
de Américo
Vespúcio. O ponto de partida de Moro é a
crítica das condições sociais na Inglaterra do seu tempo. A
aristocracia
proprietária de terras empenhava-se então em substituir o cultivo
de cereais
pela criação de carneiros de cuja lã retirava maior
rendimento. Os camponeses eram expulsos de casas e quintas e não
tinham
outra saída senão a mendicidade (para a qual a rainha Isabel
veio a
instituir penas severas) e a rapinagem. A análise desta situação
levou Moro
a almejar uma reforma radical da ordem social. Na ilha da
Utopia a
propriedade privada encontra-se abolida. A terra é cultivada
segundo um
sistema de turnos pelos habitantes que estão todos adestrados na
agricultura e se substituem nos campos uns aos outros, de dois em
dois anos. O ouro e a prata não têm qualquer valor e são utilizados
nos mais humildes utensílios.
Todos têm além disso o seu ofício próprio e há uma categoria de
magistrados
denominados sifograntes que
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velam por que ninguém permaneça ocioso e por que todos exerçam
com diligência
a sua arte. Os cidadãos da ilha trabalham apenas seis horas e
dedicam o resto
do tempo às letras ou aos divertimentos. A cultura daquele povo é
inteiramente dirigida para a utilidade comum à qual os utopes
subordinam
todos os interesses particulares. Preocupam-se pouco com a lógica
mas
cultivam as ciências positivas e
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TOMAS MORO
único corpo que é o mundo e estão por isso ligados entre si por um
amor
recíproco. É nesta sua
pode admitir sem pecar, ou seja, que Deus não existe ou que não se
preocupa
com as coisas huma-
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nas" (Ib., § 11). Na medida em que provém por legítima dedução dos
próprios princípios da natureza, o direito natural distingue-se do
direito das gentes (jus gentium), o qual provém, não da natureza
mas do consenso de todos os povos ou de alguns deles, tendo como
objectivo a utilidade de todas as nações.
Precisamente pela sua origem, o direito natural é próprio do homem,
que é o
único ser racional, mesmo quando se refere a acções (como a
criação dos
filhos) comuns a todos os animais (Ib., 1, 1, 11). É definido por
Grócio como
"o comando da recta razão que aponta a fealdade moral ou a
necessidade moral
inerente a uma acção qualquer, mediante o acordo ou o desacordo
desta com a própria natureza racional". As
acções sobre as quais incide o comando são por si obrigatórias ou
ilícitas e
consideram-se portanto necessariamente prescritas ou
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vel. Não podem porém ser punidos aqueles que não aceitem noções
não
igualmente evidentes, como, por exemplo, que é impossível a
existência de
mais de um único Deus, que Deus não é nem o céu, nem a terra, nem
o sol, nem
o ar, nem nada daquilo que vemos, ou que o mundo não existe ab
aeterno pois a
própria matéria que o constitui foi criada por Deus. Estas noções
tomaram-se
obscuras em
HI
RENASCIMENTO E PLATONISMO
§ 349. NICOLAU DE CUSA: A DOUTA IGNORÂNCIA
O platonismo e o aristotelismo, que tinham sido as duas correntes
básicas da
Escolástica, reaparecem igualmente no Renascimento, mas agora já
reconduzidas
às suas fontes originais e aceites, na sua autenticidade histórica,
como
meios de renovação do homem e do seu mundo. As disputas em
torno da
superioridade de uma ou de outra orientação, pressupõem a
exigência comum de
restituir ambas ao seu sentido histórico original, libertando-as das
deformações e incrustações sofridas por obra da Escolástica. O
antagonismo
entre Platónicos e
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verdade como tal mas que precisamente por essa razão está em
relação com a própria verdade, dela participando. Aqui, a
diferente natureza do conhecimento relativamente à verdade serve
para
fundamentar o valor do conhecimento que, precisamente pela sua
diferente
natureza se põe em contacto com a verdade. Contanto que
reconheça os seus
limites e neles se baseie, o conhecimento humano será pois, válido;
deixará
de o ser quando não for ignorância douta, ou seja, quando esquecer
a sua
natureza diferente da verdade que é a sua única participação
possível na
mesma verdade.
para a realidade absoluta, isto é, para Deus: também essa pode ser.
Porém,
nessa, o poder ser não precede o ser actual; o poder ser, a
realidade
absoluta e a relação entre um e outro, são na realidade absoluta
igualmente
eternos. Em De venatione sapientiae Nicolau de Cusa distingue o
poder fazer (posse facere), o
poder transformar-se (posse fieri) e o poder ser feito (posse
factum). O
poder transformar-se precede o poder ser feito, mas o
mundo e o homem, do outro, relação esta que lhe permite uma nova
avaliação do homem.
§ 351. NICOLAU DE CUSA: A DOUTRINA DO HOMEM
A doutrina da douta ignorância implica a ideia de que o homem não
pode
aventurar-se ao conhecimento de Deus sem ter em conta os seus
limites.
Implica todavia também a ideia de que nesses mesmos limites pode
ele obter um conhecimento de Deus cuja. validade é garantida
pela íntima relação que subsiste entre o homem e Deus. A velha
doutrina da
semelhança entre a mente divina e a mente humana é reafirmada
por Nicolau de
Cusa no
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135
como instrumento mas sem lhes sofrer os efeitos (lb., XIII). A sua
verdadeira
escolha é portanto a
Liberdade (lb., IX, 4). Também para Ficino, tal como para Nicolau
de Cusa, o homem não deve procurar ser senão ele próprio.
§ 355. FICINO: A DOUTRINA DO AMOR
Ao carácter medianeiro da alma está ligado o
amor que é justamente a actividade pela qual a
alma desempenha a sua função medianeira. Ficino parte duma
descrição mítica
das origens do amor na qual se revela já a sua ideia dominante. Os
três
mundos criados por Deus, o da mente angélica, o da alma e o das
coisas
sensíveis, provêm todos do caos. Em primeiro lugar, Deus cria a
substância ou essência da mente angélica a qual, nos primeiros
momentos, é obscura e informe. Porém, uma vez que nasceu de
Deus, volta a Deus pelo desejo. Movida pelo desejo e iluminada pelo
raio divino, determina-se e forma-se, e nela se determinam e
formam as ideias modelos da criação. Este processa que vai do caos
à determinação consumada das ideias arquétipos da criação é o
processo do amor.
136
MARSILIO FICINO
o primeiro regresso da mente a Deus é o nascimento do amor; a
infusão do raio
divino é a nutrição do amor, a inflamação da mente é o incremento
do amor, o
aproximar-se a mente de Deus é o arrebatamento do amor; a
formação da mente
é a perfeição do amor. Assim pois, foi a criação guiada pelo amor,
do caos
até ao cosmos; e a característica do cosmos como tal é a beleza.
Por via da
beleza, o amor conduziu a mente primeiramente disforme até à
formação acabada (In Conv. Plat. de am. comm., 1, 3). Porém o que
faz do amor a actividade medianeira do universo é a natureza
recíproca das relações que estabelece entre Deus e o mundo. Não é
apenas o mundo que tende para Deus e se forma nesta sua
tendência, mas é o próprio Deus que ama o mundo. O homem não
poderia amar Deus se este mesmo o não amasse. Deus volta-se para
o mundo num acto livre de amor, toma-o a seu cuidado e torna-o vivo
e activo. O amor explica a liberdade de acção tanto divina como
humana, uma vez que é livre e nasce espontaneamente da livre
vontade (lb., V, 8).
Deus forma e governa livremente o mundo e livremente o homem se
eleva até Deus.
O amor é o vínculo do mundo e é ele que abole a indignidade da
natureza
corpórea, a qual é resgatada pela solicitude de Deus (Theol. plat.,
XVI, 7). "São três", afirma
Ficino, "os benefícios do amor: reconduzindo-nos à integridade, de
divididos
que estávamos, reconduz-nos ao céu; coloca cada um
no seu lugar e faz com que, nesta distribuição, todos ~ satisfeitos,
extingue
todos os aborreci-
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147
149
IV
RENASCIMENTO E ARISTOTELISMO
§ 360. O PRIMEIRO ARISTOTELISMO
Unidos, no campo da historicidade, pelo esforço de regressar às
doutrinas
autênticas de Platão e
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159
possível conciliar. Este ponto de vista nada tem que ver com o de
Averróis.
ao afirmar que a religíão tinha por objecto as mesmas verdades que
a
filosofia mas revestia-as de uma forma que as tornava mais aptas a
servirem
de guia e salvação das multidões. É antes, pelo menos na aparência,
o
registo de um conflito entre filosofia e religião, entre razão e fé; o
uma vez
que se exclui a possibilidado de solução do conflito e se admite ora
a
verdade de um, ora a de outro, dos dois termos em contradição
pode designar-se esta posição poi "doutrina da dupla verdade". É
óbvio que nada sabemos da
sinceridade em que cada pensador reconhecia a "verdade" da
religião: as condenações, as retratações e os arrependimentos
tornam impossível qualquer investigação sobre este ponto que aliás
seria estranha a um estudo histórico da filosofia. Tudo o que nesta
matéria se pode fazer, consiste em precisar a posição explícita dos
filósofos e em expor as bases teóricas da mesma.
A figura de Nicoletto Vernia. (1420-99), que ensinou em Pádua
desde 1465 até morrer, pode ter-se como típica do averroísmo
paduano do século XV.
Conhecido pelo seu feitio desabusado e faceto, Vernia sustentou as
teses típicas do averroísmo, provocando a intervenção do bispo de
Pádua que em 1489 proibiu as discussões sobre a unidade do
intelecto sob pena de excomunhão.
Vemia pagou bem os seus erros. Enquanto que as suas obras se
perderam,
ficaram-nos dele alguns escritos menores, nos quais a sua
orientação
naturalista se torna evidente através da superioridade
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corpo e sofre a mesma sorte deste (De imm. an., 91). S. Tomás
admitira a
possibilidade de um outro
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acção humana com base na sua causa que é a natureza humana, quer
dizer, ele
sabe que o homem pode atingir desta ou daquela maneira e que pode
executar ou
não determinaida acção e sabe-o em virtude do conhecimento que
tem da
natureza humana. Porém, esta presciência divina é ènicamente
previsão da
possibilidade de uma acção e não da sua efectiva execução; não
elimina
portanto a liberdade de acção. Em segundo lugar, Deus conhece a
acção futura, não na sua causa mas sim na sua efectiva realização,
isto é, sabe com certeza qual das muitas acções possíveis será na
verdade executada pelo homem.
Todavia, Deus conhece isto na medida em que conhece tudo o que
existe e
por conseguinte até mesmo o futuro; tão-pouco esta presciência
tolhe, pois, a
liberdade humana e explica-&e pelo facto de que Deus, na sua
eternidade,
compreende todos os tempos (Ib., 111, 12). Considerações
semelhantes valem
para a predestinação. Deus quer que todos os homens sejam felizes,
com
aquela beatítude que se alcança por meios naturais e mediante a
pura razão.
Predestina porém, alguns homens à beatitude eterna, a qual não é
alcmçada por
vias puramente naturais. Esses homens, se cooperarem com a graça
divina,
al=çarão aquela beatitude, mas, se a recusarem, ~erão a própria
alma. A
predestinação deixa pois subsistir a liber-
173
182
RENASCIMENTO E REFORMA
366. O RETORNO ÀS ORIGENS CRISTÃS
O Renascimento, como retorno do homem às
9~ possibilMades origináfias é ~bém renovação da vida religiosa. O
homem
procura entrar de posse daquelas possibilidades que con,3hituíam a
força e a
va1idade do mundoanfigo: daí que procure reconhecê-las paralá dia
dispersão e
do enfraquecimento que elas têm sofrido ao longo dos séculos da
História e
de novo se firmar nelas para ~mar o caminho interrompido. Perante
a
decadência da vida religiosa, o homem retorna às fontes da
religiosidade:
quer redescobri-las na sua pureza, entendê~las no seu
186
potência salvadora.
Tal foi a tarefa da reforma religiosa, à.qual se
liga necessàriamiente, tal como no Humam, %no, um momento
filológwo:
restabelecer na sua pureza e genuidade o texto bíblico. Mas,
~samente como
no Humanismo,,o momento filológico é o instrumento de uma
exigência más - profunda, a de regressar ao significado verdadeiro
e originário da palavra divina paira a fazer valer oomtoda a eficácia
do seu poder de renovação. O momento füol¥co-humanístico da
Reforma é representado por Erasmo.
§ 367. ERASMO
Desidério Erasmo nasceu em Roterdão, em
1466. Foi educado num claustro agustinilano, onde pronunciou votos
e, em
1492, se ordenou de padre. Fez-se no entanto dispensar das
obrigações do seu
ofício e deixou até de usar o hábito. Espírito independente e cioso
da sua
independência, não quis aceitar nenhum encargo ou ensino e
rejeitou, no
período da sua máxima celebridade, a9 ofertas mais fisonjeiras.
Vagabundeou
por toda a Europa. Em
1506, na Uníversidade de Turim, tomou-se mestre e doutor de
teologia: mas a
~a que ele tomou a peito foi a de escritor e fálólogo. [Pode
oonsiderar-se o
fundador da patrologia pelas suas edições de
187
ERASMO
§ 368. LUTERO
O retorno às fontes cústãs, como via de renovação da consciência
religiosa,
encontra o defensor mais resoluto em Martinho Lutero (10 de
Novembro de 1843
* 18 Fevereiro de 1546). A exigência, que Erasmo apresentara mas
quisera
restringir ao
mundo dos doutos, é assumida por Lutero como o instrumento de
uma revolução
que devia desligar a
Europa germânica da Igreja católica. Partindo dk=tamente do
Evangelho, Lutero
impugna o valor de toda a tradiição eclesiástica e chega à negação
da obra e
da função da Igreja. Na sua doutrina e nos
~, tados históricos que dela derivaram parece evidente o valor
revolucionário
daquele retorno aos
princípios que o Renascimento procurara realizar em todas as
manifestações da
vida. No domínio reLgioso este princípio levava a negar o valor da
tradição e
portanto da Igreja, que durante os séculos acumulara o património
das
verdades fundamentais do catolicismo. O retomo aos princípios
significava
aqui o retomo ao ensinamento fundamental de Cristo, à palavra do
Evangelho, e
por isso o repúdio de tudo o que a tradição eclesiástica acrescentar
a a esta
palavra. No seu escrito Contra Henrique VIII de Inglaterra (1522),
Lutero
contrapõe à tradição eclesiástica o Evangelho. Ele polenuiza contra
os
197
a confiança pda qual o homem crê que os poeudos. lhe são rernidos
gratuitamente por Cristo; e é por isso a própria justificação por
parte de
Deus. O homem que tem fé é o homem cujos ~os flor= remidos, o
homern justificwdo, o homem, wdvo. A jushi~ pella fé imphca
arenúncia atoda a tentativa por parte do homem, o confiante
abandono a Deus, a certeza interior da salvação.
É evidente que, deste ponto de visita, o esforço, que dominara toda
a
filosofla escolástica, de justi,fkw pela razão a fé, devia parcoer
repugnante
e
200
LUTERO
202
§ 369. ZWINGLI
204
206
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218
221
§ 373. A CONTRA-REFORMA
Costurna-se dar o nome de Contra-Reforma à reacção da Igreja
católica,
reacção que se @nich com o Concilio de Trento (1545-63). Na
realidade, a
Contra-Mbrma é a reforma que a igreja, sob o
impulso das circunstâ"s lustóvicas, faz de si
223
224
N
226
diatamente de Deus, o poder temporal, deriva apenas do pwo. De
facto, todos
os homens nascem, livres e o corpo político resulta da livre reunião
dos
indivíduos, os quais, explícita ou tàoitamente, reconhecern o dever
de se
ocuparem do bem comum. Daí que a soberania resida apenas no
povo, que é
superior ao rei, ao qual ele a confia e a quem pode retirá-la desde
que o red
a exerça de uma maneira impodifica, isto é, não no @niteresse
comum mas
acto livre da vontade. Mas há ainda uma ciência média, que concerne
às acções
humanas, pela qual Deus sabe infalivelmente que acção entre as
múltiplas
possibilidades o homem realizará efectivamente, embora deixando o
homem livre
para realizar a acção oposita. Trata-se, como se vê, de uma
~posição das
teses, tonústas. Mas a obra de Molina devia ricacender no próprio
seio da
igreja católica a
NOTA BIBLIOGRÃFICA
§ 368. Uma primeira ed. completa das obras de Lutero faí dada à
estampa em Wittenberg, 1539-58. A última é a ed. erítica em 60
vol. publicada em Weimar, de 1883 em diante.
O testemunho autobiográfico de Lutero é-nos dado em KROKER,
Luther8
Tischreden in der Matheig-
231
vi
RENASCIMENTO E NATURALISMO
374. RENASCIMENTO E NATURALISMO: MAGIA, FILOSOFIA
NATURAL; CIÊNCIA
O renascer do homem, que é o anúncio o a esperança do
Renascimento, é o
renascer do homem no mundo. A -relação com o mundo é
reconhecida como parte
integrante, constitutiva do homem. A elareza que o homem alcança
no
Renascimento no que respeita à natureza própria é também ao
mesmo tempo
clareza no que Tespeita à solidariedade que o lága ao mundo: o
homem
compreende-se como parte do mundo, distingue-se dele por
reivindicax a
originalidade própria, mas ao mesmo tempo radica-se nele e
reconhece-o como o
seu próprio domínio. O tema do homem como natureza média, tema
comum aos
humanistas, platónicos, aristoté-
235
236
237
239
através dele pela força desse nome miraculoso (Ib., I, foi. 22).
240
culativa e a prática não é senão a teoria apE cada (De nwrb. caduc.,
1, p.
616). Não se pode fazer fé num
242
243
246
249
outros sentidos, po@s. que é o único modo por que se pode verificar
uma
modificação do mpírito, em consequência da acção das coisas
externas (De
254
rer. nat., VII, 8). Todavia, a sensação não se reduz nem à acção das
coisas
externas nem à modificação que ela produz no espírito: implica
também a
percepção (perceptio) que o espírito tem de uma e de outra. Que o
espírito seja modificado pelas coisas não é facto que determine a
sensação, se de -tal modificação não se tiver consciência. O
sensualismo de Telésio não é de modo algum um matenalismo. A
percepção é consciência, provocada decerto pela acção da coisa e
pela modificação que ela produz, mas não redutivel a tais faotores
materiais. (Ib., VII, 3).
À sensibilidade assim entendida se reduz a inteligência. Esta
integra e substitui a sensibilidade, que tem sempre um campo de
acção limitado. Uma vez que nem sempre todas as qualidades de
uma coisa são presentes à sensibilidade, e que, pelo contrário,
muitas ~es alguma delas p=anece, oculta ou desconhecida, o
perceber esta última, afirmando a sua presença, embora no
momento ela não se revele, é o acto específico da inteligência (lb.,
VII, 3).
Este acto é um acto de valoração ou de remeinoração e é por isso,
também ele,
sensibilidade, embora imperfe;ta e analógica. A inteligência não é,
segundo
Telésio, senão o substituto mais ou menos adequado da
sensiNlidade. Todos os
pnncípios da ciência não são mais do que generailizações de
percepções
sensíveis. Definindo o circulo o o triângulo, a geometria não faz
senão
atribuir-lhes, a eles e à sua espé cie, aquilo que o sentido percebe
como
próprio do círculo, do triângulo e da espécie a que p ~em. Outras
255
qualídades são, a3 invés, postuladas porque não são diversas das que
se
percepcionam nem lhes repugnam e são, pelo contrário, similares e
quase
idênticas a elas. Outros princípios, os axiomas, derivam, pois,
directamente
dos sentidos, os quais, por exemplo, nos testemunham que o todo é
maior do
que qualquer das partes e que duas coisas iguais a uma terceira são
iguais
entre si (Ib., VIII, 4). A validade das matemáticas é assim
inteiramente
fundada na experiência sensível. Telésio afirma, todavia, a
superioridade das
ciências que mais directamente se ligam à experiência. A
matemática procede
por meio de sinais e indícios, mas, por exemplo, a evaporação da
água pela
acção do calor não se faz notar por um sinal qualquer mas
259
261
263
como ise conquista um ser animado; daí a renúncia à paciente e
laboriosa
investigação naturalística que Telésio prospectara. Daí, ainda, a sua
predilecção pela mnemotéctúca ou arte luliana, que tem a pretensão
de tomar de assalto o saber e a ciência, de se assenhorear do saber
com artifícios ranemónicos e de fazer progredir a ciência com uma
técnica inventiva rápida o miraculosa que se adiante a passos largos
à metódica e lenta investigação científica.
O naturalismo de Bruno é, na r~ ade, uma religião da natureza:
ímipeto
lírico, raptus nrentis, contractio mentis, exaltação e furor
heróico. Por
isso se dá melhor com o simbolismo numérico dos N"itagóricos
do que
com a matemática cientifica, e melhor com as invenções miraculosas
e
charlatanescas de um Fabrício Mordente do que com as fórmulas
rigorosas de
Copérnico. A obra de Bruno marca uma paragem no desenvolvimento
do
naturalismo científico, mas exprime, na forma mais apaixonada e
potente,
aquele amor da natureza que foi, indubitávelmente, um dos aspectos
fundamentai,s do Renascimento.
GIORDANO BRUNO
265
Perfeito, diz ele (De inunenso, in Opp. lat., 1, 1, 309), não é aquilo
que é
completo e fechado em proporções determinadas (certis numeris),
mas sim o que
compreendo inúmeros mundos e por isso todos os géneros e todas
as espécies,
todas as medidas, todas as ordens e todos os poderes. Em De
l'ffifinito (lb.,
298) distingui,ra uma dupla infinidade: a de Deus que é tudo em
tudo, mas não
em cada parte. Correspondentemente, distingue em De immenso um
dupla
perfeição, uma na essência, a outra em imagem A primeira é a de
Deus como
intelecto do mundo
* que pertence a primeira infinidade; a segunda é
* do imenso simulacro corl)óreo de Deus que é o mundo, ao qual
pertence a segunda infinidade (Opp. lat., 1, 1, 312). De modo que a
mais alta perfeição é a infinidade do intelecto, isto é, da alma e da
vida, a qual Bruno afirma que se estende para lá de todos os limites
definildos, em todos os
inumeráveis mundos. Aqui está, sem dúvida, o acento novo que
transforma a infinita grandeza espacial numa infinita potência de
vida e de inteligência: e aqui está o fundamento daquela religião do
infinito em que vêm a fundir-se para Bruno o amor da vida e o
interesse pela natureza.
§ 381. Bruno: A TEORIA DO MíNIMO E DA MóNADA
A esta consciência rigidamente monística, para a qual tudo se reduz
a um
Deus-Natureza, que tem em comum os atributos do ser de
Parrnénides e do
271
276
278
na sua gonitura que lhe é semelhante, que é a sua
279
281
284
285
CAMPANELLA
de observações particulares e desordenadas, Campanella não tarda
em afastar-se para procurar integrações mágicas e metafísicas que
são completamente
estranhas ao espírito do seu fundador. Assim o Del senso delle cose
e della
magia retoma os (princípios da física telesiana só com o objectivo
de
demonstrar aquela universal animação das coisas que é o
fundamento da teoria
e da prática da magia. E o Epilogo magno refaz toda a trama do De
rerum
natura de Telésio transformando-se numa espécie de cosmogonia
teológica, que
já não tem como escopo pôr a claro os princípios autónomos da
natureza, mas
sim o de roportar tais princípios a proposições teológicas. A
despeito do seu
juvenil entusiasmo por Telésio e da sua constante fidelidade à letra
da
física deste último, Campanella move-se numa esfera de interesses
que já não
têm relação com os que animavam a obra de Telésio. Telésio repele
toda a
força mágica, metafísica e teológica nas suas explicações
naturalísticas: o
seu objectivo é o de entender a natureza na ordem que lhe é
própria, e em
Deus só vê o garante desta ordem. Campanella vê na natureza a
estátua e a
imagem de Deus e nas forças que a agitam o campo de acção dos
encantamentos e
dos milagres dos magos. O seu interesse científico é nulo. Ele não
quer
compreender a natureza, mas tomá-la de assalto e subjugá-la. Crê
na
astrologia à qual dedica uma obra e da qual tira a confirmação do
seu
vaticínio do iminente retorno do mundo à unidade religiosa e política
(Ath.
triumph., 14, 27; Quod, remin., 1, 2, a. 3). E se defende a otwa de C
~,
289
subtil que anima a massa corpórea e é ele mesmo corpérco (lb., 11,
4). Mas
como o homem, além da alma corpó rea, possui também uma alma
infundida por
Deus e pela qual efectua as operações mais excelentes, seja
embora servindo-se, como de um eficaz instrumento, do espírito
corpóreo (lb., H, 27; Epil.,
111, 14), assim o mundo tem, na sua totalidade, uma alma que é o
instrumento
directo de Deus e que dirige todas as operações (Ib., II,
32). A alma do mundo determina o con3enso que
290
294
mas também de não-ser (Ib., IV, 3, a. 1). Assim como existem três
primados do
ser, assim existem três primados do não-ser: a impotência, a
incipiência e o
ódio. São estes três primados que constituem a essência das coisas
finitas,
que portanto não podem tudo o que é possível, não conhecem tudo o
que é
cognoscível e não amam apenas, mas odeiam também: e
precisamente por isso são
finitas (lb., VI, proem.). Mas a finidade das coisas compostas de ser
e não-ser pressupõem a infinidade de um ser que exclua o não-ser
e seja puro
ser. Aquilo que se restringe a uma essência limitada e determinada
e exclui
todos os outros seres dos seus limites, não é o ser primo, mas
antes
depende do ser primo. Primo é o ser que exclui toda a limitação, que
é
ilimitado e infinito e não conhece nem princípio nem fim. Tal ser é
Deus Ub., VI, 2, a. 1).
A Deus não se chega apenas através das considerações
demonstrativas deste
género. Ele é também imediatamente testemunhado por aquele
conhe-
299
cimento i-nato e oculto ~a el abdita) pelo qual cada ente sabe ser e
ama o
seu ser e o seu autor. Se Deus não é de per si conhecido pelo
conhecimento
adquirido, é todavia sempre conhecido e amado em virtude do
conhecimento
inato. O conhecimento adquirido só pode chegar a Deus através do
raciocínio,
partindo das coisas sensíveis, mas o conhecimento inato
testemunha-o
imediatamente e para lá de toda a dúvida (Theo., 1, 2, a. 1).
Testemunha-o
outrossim na sua essência, dado que, assim =o revela os três
primados das
coisas, também revela os três primados de Deus. Como qualquer
outro ente,
Deus é potência, sabedoria e
amor (Met., 11, a. 4). Mas nele a potência não impláca nenhuma
impotência, a
sabedoría nenhuma incipiência e o arnor nenhum desvio do bem. Os
três
primados são nele infinitos como infinito é o
ser pelo qual é constituído (Ib., VI, ptroem.). Nem em Deus nem
n&,,, criaturas eles permanecem separados e diversos nem tãopouco
se confundem ou se unificam. Can"neUa admite em relação a eles
aquela distinção formal de que falava Duns Escoto (§ 305) que não é
distinção de razão nem distinção real, exclui a pluralidade numérica
e garante a unidade do ser (Theol., 1, 3, a.
12).
Deus cria as coisas do nada o o nada passa a
constituir as coisas não por obra efectiva de Deus, mas em virtude
da
autor@zação de Deus. Criando o homem, Deus não lhe nega
positivamente o ser
da pedra ou do burro, mas permite ou consente que ele não seja
contemporâneamente pedra -burro e assim permite de certo modo
que o não
300
303
307
NOTA BIBLIOGRMCA
311
Firpo, Turim, 1941; Monarchia del messia, Iesia, 1633 ,(t~ lat.);
Discorso
della libertà e della felice suggest"e dello stato ecelesiastico, Iesi,
1633;
Discorsi aí principi d'Italia, ed. Firpo, Turim, 1945; Antivenefi, ao
cuidado
de Firpo, Florença, 1945; Apoloffla pro Galileo, Franeoforte, 1622;
Poesie, ed. Gentile, ed. Vindguerra, Bari, 1938; Lettere, ao cuidado
de Spampanato, Bari, 1927; Syntagma di libris propriis, ed.
Spampanato, Florença, 1937.
§ 384. Sobre as doutrinas filosóficas: FELICI; Le dotrine
filosofico-religioso di T. Campanella, Lanciano, 1895; CORSANO, T.
Campanella, Milão, 1944; 2., ed. Bari, 1961.
§ 385. A interpretação idealística do princípio da autoconsciência
foi
apresentada por GENTILE, Studi sul rinascimento, Florença, 1936,
p. 189
segs.; ID:, Il pensiero italiano del r@nwcimento, Florença, 1940, p.
357
segs.; e é validada como único critério hist6rico-critico por
DENTICE di
ACCADIA, T. C., Florença, 1921.
312
ND1CE
QUARTA PARTE
A FILOSOFIA DO RENASCIMENTO
I-RENASCIMENTO E HUM-ANISMO ... 9
n,etti, Alberti, Palmieri, Sacchi, Nizolio .. . ... ... ... ... ...
47
§341. Bovilo ... ... ... ... ... ... ... 50 §342. Humanistas
franceses, espanhóis e
aJemães ... ... ... ... ... ... 54 §343. Montaigne ...
... ... ... ... ... 57 §344. Charron, Sanchez, Lipsio ...
... 66
315
§ 349. Nícolau de Cusa a douta ignorância ... ... ... ... ... ... ...
111 § 350. Nicolau de Cusa: o
mundo da conjectura ... ... ... ... ... ... 116 § 351. Nicolau de
Cusa:
a doutxIna do
homem ... ... ... ... ... ... 121 § 352. Nicollau de Cusa:
a nova cosmologia ... ... ... ... ... ... ... 124 § 353. O
Platonismo
italiano ... ... ... 127 § 354. Ficino: a alma, cópula do
mundo 131 § 355. Ficino: a doutrina doamor ... ... 136
316
§ 356. Leão Hebreu ... ... ... ... ... 139 § 357. Pico de
Mirândola: a paz regeneradora ... ... ... ... ... ... 140 § 358.
Pico de Mirãndola:
Cabala, Magia
e Astrologia ... ... ... ... ... 145 § 359. Francisco Patrizzi
... ... ... ... 149
aãma ... ... ... ... ... ... ... 169 §.364. Pomponazzi:
liberdade e necessídade ... ... ... ... ... ... ... 172 §365.
Outros aristotélicos ... ... ... ... 175
317
319
na Tipografia Nunes
Porto