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Clarice Nunes
Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense
Universidade Estácio de Sá, Mestrado em Educação
nal. É o sentido que dela fazemos, as representações que tura humanista cristã que lhe permitiu a entrada na dis-
dela construímos e aonde palpitam os valores que abra- cussão dos mais diversos temas sociais, culturais, polí-
çamos. Se a obra é o efeito de uma ação, o que me ticos e literários. Capaz de manejar a retórica como ins-
provoca é o que a move. O que me instiga é essa palpi- trumento de poder, invenção e cultura. Formado
tação delicada que convida a nossa inteligência e a nos- advogado à contragosto. Congregado mariano, ávido pe-
sa sensibilidade a se empenharem uma vez mais, levan- las leituras filosóficas e piedosas: Santo Inácio, Anto-
tando perguntas sobre a atualidade desse educador e nio Vieira, São Tomás de Aquino. Admirador da monar-
sobre a inspiração que sua contribuição pode ter para os quia. Filiado à tradição da restauração da Igreja católica.
educadores brasileiros contemporâneos. Alguém que interiorizou uma visão hierarquizada dos
homens e considerava a família como instituição mode-
Anísio: sua vida é sua obra lar da sociedade. Defensor de uma concepção elitista e
seletiva do ensino.
Anísio não nasceu educador. Tornou-se educador Militante do movimento católico no início da déca-
num processo laboriosamente construído, lapidado no da de vinte, Anísio Teixeira estava, nesse momento, ideo-
diálogo com os diversos educadores que dentro dele tran- logicamente próximo de Jackson de Figueiredo, Alceu
sitaram, na intensa experiência dos exercícios espirituais Amoroso Lima e Plínio Salgado. Ao assumir o comando
realizados na juventude, nas reflexões suscitadas pelas da Inspetoria Geral do Ensino, em 1924, na cidade de
viagens internacionais, nas fiéis amizades, como a que Salvador, Anísio viveu o cargo com fervor oligárquico e
manteve com Monteiro Lobato e Fernando de Azevedo, como um instrumento que tentava ampliar a área de in-
na experiência da gestão pública da educação. Nesse fluência da Igreja dentro do Estado. Espremido entre as
sítio de vivências, povoado de lembranças pessoais, de aspirações da autoridade religiosa e as da autoridade
forças vivas, quero lançar luz sobre as sombras e sur- paterna resistiu ao sacerdócio e à carreira de político
preender... os momentos de ruptura. profissional. Viajou para a Europa e Estados Unidos.
Os momentos de ruptura são constelações de senti- Por força do cargo que ocupava entrou, pela primeira
do, repuxadas pelo elástico da tensão que, habitando o vez, em contato com uma literatura pedagógica e um
sujeito, se alonga no seu arco máximo, e obriga à opção sistema público de educação que não conhecia. Em opo-
entre render-se ao mundo ou afirmar-se em sua diferen- sição à cultura, à organização, à competência docente
ça no mundo. Identifico três momentos de ruptura na dos colégios nos quais estudara, deparou – em sua cida-
trajetória de Anísio Teixeira. Momentos de indecisão e de e em seu estado natal – com a pobreza de recursos
dúvida. Momentos de crise que revelam um educador humanos e materiais, a dispersão e a desarticulação dos
mais precário e perdido, menos crente e, por isso mes- serviços educativos, o despreparo do professor, a imo-
mo, muito menos preciso e mais apaixonado do que a ralidade, a corrupção e a acomodação dos poderes pú-
literatura pedagógica nos fez acreditar. Momentos em blicos, alimentando a ineficiência da máquina estatal.
que se descobre, que o homem apesar de não saber ne- Foi um impacto para a sua sensibilidade! Essa vida,
cessariamente ser feliz, pode apropriar-se do seu desti- que acolhemos em nossas palavras, foi sacudida nos seus
no e olhar os seus problemas de frente. Momentos em fundamentos. Não podemos dar conta do rodamoinho de
que, sem resposta à angústia existencial, Anísio busca emoções, provocado pelo contato com a civilização
amparo no coração de outros homens. moderna e também pelos pequenos acontecimentos do
cotidiano que solaparam a sua confiança na Igreja e o
A primeira ruptura levaram a abdicar do sacerdócio, pelo qual se sentia pre-
destinado. Anísio Teixeira fez a travessia do seu pri-
Anísio em sua juventude. Um rosto inaciano, olhan- meiro deserto: o deserto da fé, quando abdicou de uma
do o mundo e vendo nele os sinais de Deus. Vinte anos religião que lhe dava segurança, mas que também não
de idade, tendo em suas mãos o passaporte de uma cul- dava resposta às suas mais vivas inquietações.
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Anísio Teixeira: a poesia da ação
A passagem pelo Teachers College de Colúmbia, supunha” (Atc 29.11.01, doc.15, CPDOC/FGV). Na
no final dos anos vinte, foi vivida com uma intensa car- volta da sua segunda viagem aos Estados Unidos, Aní-
ga afetiva, uma experiência de conversão pelo avesso. sio enfrentou o problema da coerência: ou modificava
Numa dimensão laica Anísio reviveu situações que co- sua realidade ou mudava as relações com ela mantidas.
nhecera no “mundo dos colégios jesuítas”, o que o em- Separou-se física, afetiva e mentalmente daqueles que
purrou a reinterpretar a realidade e produziu aos seus com ele coabitaram o universo simbólico anterior. Sai
olhos e aos olhos dos outros uma ruptura biográfica que da Bahia e refaz a vida na capital da República. Certas
acentua o antes e o depois da estadia nos Estados Uni- amizades cederam lugar a outras: encontrou Monteiro
dos. Adotou Dewey como sua plataforma de lançamen- Lobato e Fernando de Azevedo. Ampliou suas leitu-
to para o mundo, como viga mestra para compreender o ras: William James, Bertrand Russel, Wells. Também
que se passava na sociedade norte-americana. Escolhe- Baudelaire, Proust, Dostoyewski e outros grandes ta-
ra um crítico contundente dos impasses da democracia lentos literários universais. Referindo-se ao ano de
norte-americana, um colaborador direto de instituições 1929, numa carta a Fernando de Azevedo, do início
instaladas no meio da população pobre e imigrante com dos anos sessenta, afirmava: “Tenho a impressão que
objetivos filantrópicos e educativos, um pensador que foi nesse ano que me encontrei comigo mesmo” (Vidal,
denunciava, aos Estados Unidos, que a ameaça da de- 2000, p. 132).
mocracia não estava fora do país, mas dentro dele, nas O rompimento com a Igreja não significou a libe-
atitudes pessoais e nas instituições. ração das marcas da pedagogia inaciana na sua perso-
Escolher John Dewey, de quem seria o primeiro tra- nalidade. Às vésperas da sua morte, já no ano de 1971,
dutor no Brasil, era optar por uma alternativa que subs- comentava com Fernando de Azevedo: “Com religião,
tituiu os velhos valores inspirados na religião católica e ou sem religião, a realidade é todo esse impenetrável
abraçados com sofreguidão. Era apostar na possibilida- mistério, de que não há saída se não por essas peque-
de de integrar o que, nele, estava cindido: o corpo e a nas frestas abertas ao espírito humano” (Vidal, 2000,
mente, o sentimento e o pensamento, o sagrado e o secu- p. 155). “Guardei de minha formação religiosa o sen-
lar. Era abrir o seu coração para o pensamento científi- timento de que viver é servir e nada mais esperar do
co, apostando na crença de que o enraizamento e as di- que o conforto desse possível serviço” (Vidal, 2000,
reções da mudança social a favor da democracia estão p. 152). Ao final dos anos vinte esse serviço ganharia
postas na infância. O pragmatismo deweyano forneceu- uma direção nova. Dentro dele separaram-se definiti-
lhe um guia teórico que combateu a improvisação e o vamente a Igreja e o Estado. Emergia, na luta dolorosa
autodidatismo, permitiu-lhe operacionalizar uma políti- entre seus antigos sentimentos de fidelidade ao divino
ca e criar a pesquisa educacional no país. e às autoridades constituídas, a liberdade de pensamento
As marcas dessa ruptura se evidenciaram nos des- e de expressão de si mesmo no mundo. Essa defesa
locamentos que operaram na sua vida e nas novas idéias pauta a sua conduta, pelo árido caminho da tolerância.
que horrorizaram alguns dos seus amigos mais íntimos Motiva seu desejo de exercer a pedagogia como bem
que passaram a vê-lo então como um baiano america- de convivência, que não constrange ninguém a optar
nizado. Mas essa imagem não era só dos seus amigos por uma idéia sobre a qual não tem clareza. É a ques-
baianos. Alguns rapazes de São Paulo, que viriam a tão de fundo de um projeto de recriação da cultura que
ser seus colaboradores nos anos trinta, no Distrito Fe- atravessa todas as classes sociais. É a realocação da
deral, também construíram dele essa imagem que re- fidelidade, não mais aos dogmas de qualquer espécie,
conheceriam, um pouco envergonhados, ser equivoca- sejam eles religiosos ou científicos, mas à dança da
da. Ao visitar a Universidade de Colúmbia, em 1935, própria vida. A fé incorporava a dúvida. A liberdade
Lourenço Filho, refazia a imagem do amigo e dizia, de pensamento acarretou a liberdade de opinar, de crer.
em carta: “verifico que (em aspectos sociais e do pen- Permitiu-lhe revolver vários aspectos contraditórios de
samento) você é menos americano do que eu próprio si mesmo. Dialético, sem ser marxista!
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Anísio Teixeira: a poesia da ação
diam o controle brando das crianças, ou ainda, aplica- cia na educação. É pelo seu amor a ambas que, mesmo
vam-se, nas escolas primárias, apesar das suas discor- tendo escrito um programa partidário no momento em
dâncias, os testes classificatórios de alunos. que sua obra estava ameaçada, se afasta dos partidos.
Anísio Teixeira participava da mentalidade da sua Ele recusava a noção de ordem, lealdade, hierarquia e o
época e acabou endossando o papel disciplinador da es- desprezo pela discussão teórica, comuns nas hostes par-
cola sobre a cidade, ao lidar com a heterogeneidade das tidárias de então. Esses aspectos criavam, em Anísio,
classes populares e de suas crianças dentro delas, mas uma antipatia por qualquer filiação, mas não impediram
não o fez, como alguns de seus colaboradores, de forma que ele convidasse homens de partido, comunistas como
a identificar a heterogeneidade como carência de atri- Leônidas Rezende e Edgardo Castro Rebelo, para in-
butos intrínsecos do sujeito pobre. Ele deslocou a ca- gressarem nos quadros da Universidade Federal. Essa
rência do indivíduo para a omissão dos governos na di- atitude de Anísio não era isolada. Nesse caso, ele se
reção da reconstrução das condições sociais e escolares. aproximava de artistas e escritores que defendiam ex-
Não considerou as classes populares urbanas como obs- plicitamente sua independência de criação e a usavam
táculos sociais e políticos e por esse motivo defendeu a para justificar a sua não-adesão a partidos políticos de
educação como instrumento de superação de uma ca- qualquer espécie. Essa não adesão convivia com uma certa
rência que não é do indivíduo, mas da cultura erudita simpatia militante por algumas idéias comunistas, da qual
que lhe faz falta. Pode perceber que a desigualdade entre partilhavam Carlos Drummond de Andrade e Paschoal
as pessoas não estava dada. Era feita. Lemme (Andrade, 1983, p. 9). Jorge Amado, eleito depu-
A obra comum da equipe de Anísio não impediu as tado do Partido Comunista Brasileiro, por São Paulo em
divergências e as críticas aos seus colaboradores e até 1945, dedicaria a Anísio Teixeira, a quem considerava o
mesmo aos amigos mais queridos. Críticas que despon- amigo das crianças, o seu livro Capitães da Areia.
tam pelas margens ou, como ele preferia dizer, em pon- À medida que, em meados dos anos de1930, a mo-
tos menos exatos. Ao comentar, no começo dos anos trin- dernização autoritária se firmou, Anísio Teixeira catali-
ta, o bem-sucedido livro de Lourenço Filho Introdução zou a perseguição de católicos e pensadores autoritá-
ao estudo da Escola Nova, Anísio apontou a sua visão rios. Sua gestão foi avaliada como uma estratégia de
rígida da técnica pelo esvaziamento de aspectos subs- oposição dentro da estratégia oficial e, como tal, foi com-
tantivos do pensamento filosófico. Ao considerar a ava- batida e interrompida. Os católicos invadiram a prefei-
liação da aprendizagem como uma atitude inerente a tura e controlaram os serviços educativos. Vencera o
qualquer iniciativa escolar, ele abriu espaço para projeto repartido de educação: para o povo, uma edu-
recolocar a avaliação enquanto prática suscetível de crí- cação destinada ao trabalho e para as elites, uma edu-
tica no seu processo mediante os seus resultados, cação para usufruir e exercer a cultura. Anísio opuse-
relativizando o valor dos testes tão defendidos por Lou- ra ao nacional, o democrático entendido menos como
renço Filho e Isaías Alves. Já nos anos quarenta, ao co- conjunto de mecanismos de participação dos indivíduos
mentar, a obra Sociologia Educacional, de autoria de na sociedade política e mais como mecanismos de de-
Fernando de Azevedo, afirmava numa belíssima carta mocratização da sociedade civil (Warde, 1984, p. 105-
que “a educação é sobretudo um sentido”. Perguntava- 139). A reforma por ele conduzida empurrou a escola
se: “e este sentido é arbitrário ou imposto pelas institui- para fora de si mesma, ampliando sua área de influência
ções? (...)”. Afirmava: “Creio que em educação sempre na cidade. Atravessou o espelho da cultura européia e
haverá mais necessidade de filosofia do que de ciência norte-americana, articulando o saber popular ao acadêmi-
(...) a educação é, sobretudo, uma arte que progride como co. Retirou o problema da educação da tutela da Igreja e
progride a música” (Vidal, 2000, p. 43). Anísio nunca do governo federal. Todos esses aspectos marcam o cará-
abandonou a concepção da educação como uma prática ter polêmico da sua gestão, graças à sucessão de conflitos
atravessada pela ciência e, ao mesmo tempo, pela arte. que se criaram em vários níveis: no nível governamental,
É pela filosofia e pela arte que relativiza o peso da ciên- no nível ideológico e no interior das próprias escolas.
Anísio Teixeira atravessou o seu segundo deser- varguista não seria a única. De onde vinha a força para
to: o da solidão. Como afirma Renato Janine Ribeiro, enfrentar a hostilidade contra a realização da educação
no posfácio ao livro de Carlo Ginzburg, O queijo e os popular e realizar o sonho de um país cidadão, humano
vermes, “nem toda confissão é uma vitória da tortura; e solidário? De todo o período de realizações dos anos
porque às vezes a pior tortura é ter a voz silenciada” trinta e o posterior silêncio a que foi submetido, Anísio
(1987, p. 241). A opressão política calou a voz de Aní- carregou uma convicção, a de que as questões sociais
sio, dos seus colaboradores, dos seus admiradores. A eram manifestações da cultura e de que era preciso com-
memória da formidável obra pública que ele e sua equi- bater os problemas que a industrialização trazia. Afir-
pe de trabalho empreenderam foi apagada. Escrevendo mava:
a Anísio, em meados dos anos quarenta, Monteiro Lobato
[...] com a industrialização desapareceu a integração entre o
rememora:
homem e o seu trabalho, que dividido e superdividido passou
Lembro-me quanto te vi no Rio de Janeiro, (perseguido) a ser esforço coletivo e impessoal. Depois, com o desenvolvi-
pela polícia, escondido pelos amigos como um grande crimi- mento do saber, também este passou a ser especializado e não
noso – e naquela ocasião também chorei. To whom the bells oferecer senão algo muito reduzido de saber realmente comum.
toll? Todos estávamos implicitamente perseguidos, foragidos, Com isso desfez-se a integração entre o homem e o saber. Com
escondidos com você (...) Dez anos passou você caminhando a democracia, por fim, entendida como processo de maior par-
como minhoca por baixo da terra escondido da Reação Triun- ticipação de cada indivíduo nos bens da vida, esses bens pas-
fante, mas caminhando sem o saber. (Vianna & Fraiz, 1986, saram a ser concebidos como bens materiais, únicos que eram
p. 101) possíveis ao acesso de cada indivíduo. E a democracia fez-se
uma democracia de consumo, o homem se sentindo tanto mais
Na mesma mesa em que Anísio escrevera o Pro-
importante quanto mais pudesse consumir (Teixeira, 00.00.00/
grama do Partido Autonomista do Distrito Federal, Fran-
17, CPDOC/FGV).
cisco Campos escreveria a Constituição do Estado Novo.
O volume e o teor das cartas recebidas por Felinto Müller, Para ele a civilização da abundância estava exage-
em meados dos anos de 1930, ávidas pelo combate e rando a importância dos bens de consumo e não era ne-
repressão ao comunismo, revelam que Anísio tinha ra- les que residia a felicidade humana. Essa tão acalentada
zão quando escrevia à Hermes Lima mostrando a im- felicidade só se concretizaria com a integração do ho-
portância da formação da opinião pública no combate mem ao trabalho e à cultura. Caberia ao Estado ser o
aos dogmas, aos medos, aos preconceitos e aos fanatis- principal promotor da escolarização e difusor da cul-
mos de qualquer espécie (Nunes, 2000, p. 511). Torna- tura junto às classes populares. Ao lado dessa convicção
ra-se um trabalhador gasto e desmoralizado pelo fascis- carregava também, na sua valise de peregrino, a incô-
mo brasileiro. Acusado de tapeador público por Everardo moda questão que o acompanhou desde a juventude e
Backeuser. Denunciado nos subterrâneos do Serviço que, já na maturidade, vislumbrava no seu ponto mais
Secreto da Polícia varguista ao lado de estupradores, agudo: Qual a magnitude da pobreza brasileira? Apren-
estelionatários e mandantes de homicídio. Viria a dera, na primeira metade da sua vida, que a pobreza não
revanche? Mais traduções aconteceram. A família au- é só a destituição dos bens materiais. É também a re-
mentou com os novos filhos que chegaram. Mineirou pressão do acesso às vantagens sociais. Não é só fome!
manganês no Amapá e vendeu carros em Salvador. Os É também segregação, degradação, subserviência, acei-
tocos da sua obra, como profetizara Lobato, ficaram tação de um Estado avassalador e prepotente. A pobre-
enterrados para brotar de novo. Em meados dos anos za brasileira era também, e no mesmo grau de impor-
quarenta finalmente era reconhecido pela UNESCO, que tância da pobreza material, a pobreza política. O seu
o convidava para sua inserção na entidade como conse- contrário emergia no horizonte dos direitos humanos e
lheiro do ensino superior. civis: a cidadania organizada.
Sua dura experiência nos anos da ditadura
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Anísio Teixeira: a poesia da ação
A capacidade de suportar a avalanche de críticas Lobato, em janeiro de 1947, ele afirma: “[...] Os sonhos
que recebeu, tanto nos anos trinta quanto nos anos cin- não se realizam sem que primeiro se armem os andai-
qüenta, e que impressionava seus colaboradores dire- mes. E uma construção em andaimes pede imaginação e
tos, era resultado visível da pedagogia da Companhia de amor para ser compreendida (Vianna & Fraiz, 1986,
Jesus. A arte de governo da Companhia talhou, nele, a p. 104). Uma escola pública com um ensino básico de
indiferença inaciana, uma formidável resistência psico- qualidade para todos, onde a pesquisa é assumida como
lógica construída no embate dos exercícios espirituais, componente do ensino, e em que os espaços e os tempos
quando a alma atravessa suas noites escuras, e constrói da educação sejam significativos para cada sujeito den-
uma profunda adesão aos valores sagrados. A educação tro dela. Uma escola bonita, moderna, integral em que o
para ele foi um valor sagrado. A indiferença inaciana, trabalho pedagógico apaixona e compromete professo-
extremamente ativa e vigorosa nele, foi colocada a ser- res e alunos. Uma escola que construa um solidário des-
viço da causa pública à qual se dedicou e que o levou tino humano, histórico e social foi o grande sonho de
não só a enfrentar lutas duras, mas também incluiu uma Anísio Teixeira, para o qual procurou construir os an-
das mas belas realizações da educação popular no país, daimes.
já no final dos anos quarenta: a conhecida Escola-Par- A violência barrou suas iniciativas, mas não ven-
que, ao lado das classes comuns de ensino, no bairro ceu a sua implacável denúncia de que a privação da edu-
operário da Liberdade. De novo, uma escola feliz, que cação torna impossível até a simples sobrevivência.
reunia às classes comuns de ensino as práticas de traba- Anísio estava convencido de que sem a qualidade
lho, artes, recreação, socialização e extensão cultural. cognitiva e psicossocial das experiências de conhecimen-
Nos anos de 1960, no entanto, sua trajetória foi no- to não existem vivências da esperança. E a escola, tal
vamente colocada à prova. A ditadura militar constran- como ele e seus colaboradores pensaram, e concreta-
geu a Universidade de Brasília e quebrou, como dizia mente criaram, pretendia instituir-se como organizado-
Darcy Ribeiro, uma das coisas mais importantes que ra da esperança em vidas humanas concretas. Mas a or-
Anísio fizera no país: o centro brasileiro e os centros ganização da esperança assusta, porque desestabiliza
regionais de pesquisa. De novo se frustrava a tentativa privilégios. Porque exige, sobretudo, a paciência dos
de tornar a educação uma área de investigação acadê- recomeços.
mica. O INEP foi desativado como agência de produção Em toda a produção de Anísio Teixeira, nos seus
da pesquisa educacional, tornando-se, primeiramente, um quarenta anos de vida pública, o tema da democracia no
órgão burocrático e depois uma agência financiadora de âmbito da escola e fora dela foi decisivo e se impôs so-
estudos e pesquisas na área. Algumas das suas publica- bre outros temas, ganhando na sua obra, mas principal-
ções como Educação e Ciências Sociais foram mente com a sua vida, uma entonação própria, distinta
suspensas e outras, como a Revista Brasileira de Estu- mesmo de outros intelectuais que colaboraram com os
dos Pedagógicos, passaram a ter edição irregular. Os seus projetos ou se opuseram a eles. Do ângulo da edu-
acervos documentais e bibliográficos, laboriosamente cação popular, as construções escolares que edificou,
organizados pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Edu- tanto no Rio de Janeiro, quanto em Salvador, foram pal-
cacionais, foram dilapidados. co de uma expansão regulada tanto das atividades dos
Anísio Teixeira atravessou o seu terceiro deserto: estudantis, quanto da sua comunicação interativa. Os
o do ceticismo. Banido, suspeito, excluído. Respondeu espaços de aprendizagem na escola se ampliaram e di-
à violência com o seu trabalho, o trabalho possível, como versificaram. Mas, e os alunos? Como os alunos perce-
professor visitante em universidades estrangeiras, tra- biam essas novidades?
dutor, conferencista, membro integrante do Conselho As escolas criadas por Anísio e a geração de edu-
Nacional de Educação, idealizador do Instituto de Estu- cadores à qual pertenceu, tanto nos anos 30 quanto nos
dos Avançados em Educação (IESAE) no Rio de Janei- anos 50 e 60, não foram vistas pelos alunos que as fre-
ro. Numa carta que Anísio Teixeira escreve a Monteiro qüentaram como locais de confinamento. Pelo contrá-
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Anísio Teixeira: a poesia da ação
rio, constituíram a possibilidade de reapropriação de cento eu, também no Rio de Janeiro, em Curitiba, Porto Ale-
espaços de sociabilidade crescentemente sonegados às gre, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Natal e tantas outras
classes trabalhadoras pelas reformas urbanas que lhes cidades brasileiras), deram seguimento ao projeto, mesmo que
empurravam para a periferia da cidade. Para muitos des- tenham cometido muitos erros, eu certamente não estaria aqui.
ses alunos, essas escolas foram a única abertura para E um sentimento de ter feito parte de algo grande, de um pro-
uma vida melhor. Num belo depoimento registrado em jeto de país, de um sonho. E não apenas alguém que se esfor-
Sous-venir de classe (memórias do curso de Política çou para fugir da fábrica. E entendi (continua ela), porque [...]
de Formação de Professores) uma ex-aluna discorre não me convencia com o discurso crítico da esquerda contra a
sobre a importância que o projeto de Anísio e seus com- escola pública daquela época. A crítica estava torta. A escola
panheiros de geração tiveram na sua vida de adolescen- pública entortou depois (idem, p. 18-19).
te, na década de 60. Diz ela:
Do ângulo da formação dos intelectuais, a trajetó-
Se para o país a fábrica era a base do avanço, se dela ria de Anísio Teixeira em defesa da universidade pública
vinha o sustento da família, na hora do jantar e da fiscalização e de instituições públicas de pesquisa ou de financia-
de cadernos e boletins a fábrica era o dragão devorador de mento à ela, como a CAPES – Campanha de Aperfei-
criancinhas que trocassem os livros pela brincadeira, pelos çoamento do Pessoal do Ensino Superior, que sob a sua
namoricos ou festas. Ninguém era obrigado a estudar. Mas se condução se transformou em órgão, tem implícita a con-
não estudasse, fábrica. E fábrica significava levantar ainda vicção de que não há país capaz de sobrevivência digna
noite, embrulhar em jornal a marmita que passara a noite aberta sem instituições, sobretudo como a universidade, capa-
para não azedar, coar o café, colocar na garrafa de guaraná zes de produzir conhecimentos e propor soluções pró-
com rolha de cortiça, enfiar-se numa pesada e puida roupa de prias às questões que o afligem. Mas o que gostaria de
frio, pendurar-se tiritando num trem e depois num ônibus, fi- enfatizar, na sua defesa do ensino e da pesquisa, e que
car oito horas de pé na frente de uma máquina, suportar o geralmente não tem merecido suficiente destaque, é a
(chefe), ganhar pouco, não ter feriados nem férias, trabalhar liberdade de criação. Graças à uma interlocução ativa
35 anos e morrer. Com sorte, casar com o colega do lado. Ou, dentro do pensamento social brasileiro, com os nomes
a sorte grande, com o padeiro e ir para o tanque, cinco filhos, mais destacados da intelectualidade, Anísio colocou a
fogão e vassoura. Silvio Santos na TV, macarronada no do- educação em sintonia com os avanços das demais ciên-
mingo. E morrer. Sempre morrer. Talvez por isso meus poe- cias humanas e sociais. Colocou-a também em perma-
mas de adolescente falem tanto em morte. Progresso ou mor- nente diálogo com a arte, concebida no sentido antropo-
te. Era esse o lema lá em casa. Uma casa de operários procu- lógico, como defendia Mário de Andrade e não no sentido
rando dar o salto que o país = nação prometia. E todos nós monumental que lhe conferiu, por exemplo, o virtuosis-
acreditamos nisso. Sinceramente. Dedicadamente, cada minu- mo de Villa Lobos. Em Salvador, no final dos anos qua-
to da vida daquelas décadas. Podia-se não ter carne ou leite, renta, elaborou o Projeto Educação pela Arte e fez cons-
mas tinha livro e tinha que ler, nem que fosse com vela. Tínha- truir, sob a liderança de Alcides da Rocha Miranda, um
mos que nos apropriar desse capital-saber que nos daria o pas- Centro Educativo de Arte Teatral, destinado à dança e à
saporte para o progresso (Lagoa, 1995, p. 4). música (Salmeron, 1999, p. 45) No Rio de Janeiro man-
teve constante interlocução com Augusto Rodrigues e
Ainda narrando suas lembranças, escritas em mea-
seus companheiros da famosa Escolinha de Arte do Bra-
dos dos anos noventa, ela acrescenta:
sil, que constituía, como afirmou em meados de 1970,
[...] a fábrica ficou lá atrás, mas o que ela representou na mi- uma das poucas e importantes inovações pedagógicas
nha vida está sempre presente. Descobertas, aumentando meu do país (Costa, 1994, p. 3).
respeito pela Escola Nova, sobretudo por Anísio Teixeira e pelos O que se manifesta por trás e por dentro das ruptu-
professores que se dispuseram a educar para o Brasil grande. ras apresentadas, dessas constelações de sentido presen-
Sem ele, sem eles, sem os que depois, em São Paulo (e, acres- tes na obra de Anísio é a atualíssima questão da relação
dos intelectuais com o poder, a tensão entre a competên- tro de nós, em maior ou menor grau também impregna-
cia e o compromisso assumido, o pretendido e o viável, dos pela cultura do consumismo, pela atitude de nega-
a tradição e a invenção, a desagregação e a construção ção ou resignação diante do sofrimento alheio, banali-
social. zando-o, apreendendo-o de forma dissociada da injustiça
que o acarreta.
A obra de Anísio Teixeira como provocação A crise do presente na educação contemporânea não
é apenas problema dos outros, que não a possuem, mas
Hoje, quando celebramos a presença viva de Aní- de todos, sobretudo dos próprios educadores. “A peda-
sio Teixeira na nossa memória, eu me pergunto se real- gogia atua apenas sobre o humano. A ela interessa cons-
mente podemos alcançar o significado de sua obra. A tituir aquele grupo humano com o qual qualquer projeto
prudência me impele pelo menos a destacar a apropria- futuro pode contar” (Gonzaga Teixeira, 2000, p.106).
ção que podemos fazer das suas concepções no momen- Aqueles que realmente se dedicam e acreditam. A uto-
to atual, o que pode sugerir alguns caminhos. Distinguia pia está justamente aí, nesse sentir-se. Nessa perspecti-
ele em Educação no Brasil, obra de 1969, presentes va, a utopia não tem alvo externo. Enraíza-se nesse fa-
efervescentes e presentes estagnados. Nos primeiros o zer parte, nessa companhia, na socialização das nossas
passado estaria vivo, entreabrindo o futuro. Nos outros experiências mais íntimas tanto na escola quanto no tra-
o presente seria depreciado em nome de passado trans- balho (idem, p. 105-107 e 128). Nessa socialização de
formado em objeto de culto nostálgico e paralisante. Com experiências, a negação e a recusa ao reconhecimento
lucidez, continuava: “Toda verdadeira crise humana é do nosso sofrimento no trabalho e na escola constitui
uma crise de compreensão do presente, (...) Cabe-nos importante obstáculo ao reconhecimento do sofrimento
(...) tornar o presente compreensível, a despeito das con- dos que estão sem trabalho e sem escola (Dejours, 1999,
tradições, por intermédio do que chamamos cultura” p. 46). É possível que se alegue que esse sofrimento não
(Teixeira, 1969, p. 367-385). é algo novo. Sempre existiu. De fato, o novo não está na
O centro da nossa crise atual é a violência encarna- iniqüidade, na injustiça ou no sofrimento imposto ao
da nas instituições, com todas as suas múltiplas faces e outro. Está no fato de que hoje essa imposição pareça
perigos: na família, onde muitas situações revelam a razoável, justificada. A novidade está, como denuncia
desproteção de crianças, mulheres e idosos; na escola, Christophe Dejours, na banalização das condutas injus-
espaço de discriminação, de exclusão de classe, etnia e tas que constituem a trama (Dejours, 1999, p. 139).
gênero. No trabalho, urbano ou rural: a presença preco- Como pertencer, sem dialogar com o mundo que nos cer-
ce da criança, os índices alarmantes de acidentes, o es- ca? Como dialogar, sem realizar a crítica ao nosso pró-
vaziamento das organizações sindicais, a violação dos prio modo de pensar? Anísio dizia, e cito de memória,
direitos e a desumanidade das relações, condições e pro- que o pensamento é o ato mais vigiado de todos.
cessos de trabalho. Na política: a hegemonia da globali- A violência internalizada, mas velada, de confi-
zação financeira que reduziu o papel dos estados nacio- narmos idéias ou pessoas a julgamentos e rótulos ante-
nais e o controle social democrático sobre o rumo do cipados e definitivos, vítimas de nossos preconceitos e
atendimento às necessidades fundamentais da pessoa de avaliações equivocadas e parciais sobre as ações
humana, a recolonização latino-americana, a corrupção humanas precisa ser combatida. “A utopia não aceita
no trato da coisa pública. seres humilhados, diminuídos, amputados. A pedagogia
A globalização econômica tem revelado a tirania mais próxima da utopia é a que coloca à disposição de
do dinheiro e também da informação, o crescimento da cada ser humano toda a cultura humana” (Teixeira, 2000,
miséria, a crise de identidades e a manutenção da injus- p. 137). “É pela pedagogia que a utopia atua sobre a
tiça social. Se o centro da crise atual é a violência que política e a economia” (Teixeira, 2000, p. 6). Nessa di-
cresce, diante da ausência de sentido para se estar no reção, a obra de Anísio Teixeira é um convite para que
mundo, o mais grave é o quanto ela está instalada den- resgatemos o sentido da qualidade da educação no que
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Anísio Teixeira: a poesia da ação
tem de substantivo, ou seja, enquanto conjunto de trans- que avalia as alegações de conhecimento e que se trans-
formações sociais que visam eliminar privilégios, hie- forma, no plano da política, num dispositivo prático, mas
rarquias e desigualdades, o que se faz decisivo e urgen- não estreito, de solução de problemas e de neutraliza-
te, na medida em que a face menos explícita da autonomia ção da ação perniciosa dos maus governantes. Cabe à
que a escola brasileira hoje goza quanto ao seu projeto pedagogia da pesquisa recusar o monopólio do pensa-
pedagógico, garantida pela atual Lei de Diretrizes e mento crítico em qualquer instância e difundir atitude
Bases (1996), é a que institui os estabelecimentos de crítica para toda a vida social. Assim entendo a militância
ensino como alvo de concorrência e escolha dos pais. do pesquisador.
Essa escolha, no entanto, está condicionada pela desi- Resgatemos de Anísio, nesse momento, o diálogo
gualdade no acesso aos recursos materiais e simbólicos, entre a ciência e a arte, que é também o diálogo entre a
provocando diferentes escolarizações. A afirmação neo- demonstração e a transfiguração, a intuição poética e o
liberal de uma educação de qualidade oculta o fato de discernimento crítico, as emoções e o pensamento. Que
que a alguns está destinada uma educação de maior qua- é também a possibilidade de percepção do mundo em
lidade que a outros (Silva, 1996, p. 83). sua gloriosa novidade. Que desperta o entusiasmo cria-
Apenas o senso de futuro permite uma apreciação tivo e ajuda a elevar o homem a um nível mais alto de
mais refinada do real com o intuito de descortinar as existência. Endosso a perspectiva de que a união da cul-
possibilidades. Nossas dificuldades se instalam no lar- tura artística e da cultura científica, num mundo de de-
go caminho das mediações. O discurso neoliberal é, sem gradação ambiental, social e psíquica, é o eixo de uma
dúvida, um processo poderoso, mas não podemos esque- nova educação.(Costa, 1994, p. 17) É um diálogo que
cer que as políticas globalizadoras, presentes num mes- não tenta a derrota do oponente, mas a expansão do seu
mo quadro discursivo e mediante projetos semelhantes próprio ponto de vista. É um diálogo que amplia a expe-
em vários países, não são propriamente idênticas, pois riência estética e que coloca em destaque a nossa genuí-
inexiste – e a análise histórica mostra isso – correspon- na capacidade criativa, não só no nível do resgate da
dência perfeita entre as reformas pretendidas e as exe- beleza, que faz parte da existência humana, mas tam-
cutadas, mesmo quando as opções políticas se encon- bém nas suas “implicações ético-políticas, porque quem
tram subordinadas à orientação global. O peso das fala em criação, fala em responsabilidade da instância
tradições culturais nacionais, os constrangimentos pró- criadora em relação à coisa criada (...) Essa escolha éti-
prios de cada contexto de escolarização, o trabalho de ca não emana de uma enunciação transcendente, de um
reinterpretação dos atores no campo escolar em cada código de lei, mas do próprio movimento de criação”
nível, desde o mais alto centro de decisão até a sala de (Costa, 1994, p. 13), que precisa ser cultivado, respeitado.
aula não podem ser menosprezados. Talvez fosse opor- Como é atual, assim me parece, a defesa que desde
tuno considerar não propriamente a globalização das os anos trinta Anísio faz do diálogo da ciência com a
políticas educacionais, mas a sua hibridização (Zanten, arte! Tanto a liberdade de pensamento quanto a liberda-
2000). de de criação apontam para uma escola que desestabili-
O que se espera da pesquisa em educação nesse zada no seu papel de agência de controle e punição so-
momento é que transforme em problema o que é tomado cial se torne um ateliê de todos os talentos humanos.
como fato estabelecido, distinguindo expectativas de Um ateliê no qual se pratique uma disciplina na qual
comportamentos (políticos, sociais, culturais e pedagó- ocorra, como dizia Augusto Rodrigues, “(...) a junção
gicos) de desempenhos efetivos, sacudindo a atitude aco- de todas as forças no sentido de ordená-las. Portanto,
modada, pouco ou nada crítica, dedicada exclusivamen- disciplina em função (...) da obra feita. Não é só olho. É
te a aprimorar o que já existe, identificando em nossa mão, é tudo. Até os poros do corpo em função, em equi-
prática compartilhada os consensos que entravam o avan- líbrio (...) uma disciplina em que a gente esteja com tal
ço da produção do conhecimento daqueles que o facili- acuidade que não atente contra o material que estamos
tam. Espera-se da pesquisa a crítica como dispositivo trabalhando, e que o material nos diga também o que
podemos fazer” (1983, p. 48-49). Confesso que essa que de formas diferentes e variadas acolheram o que
forma de entender a disciplina me agrada quando penso pensou, escreveu e concretizou em obras que se apre-
no pesquisador. Não prescindimos do rigor teórico, mas sentam, ainda, à frente do nosso próprio tempo. O Aní-
ousamos com a nossa imaginação. Comprometemos a sio que se torna referência está entre nós! Ele joga luz
nossa fidelidade exclusivamente à construção dos nos- na sombra de uma geração que o sucedeu e que ainda se
sos objetos e à sua necessidade social. Assim compre- debate num país subdesenvolvido, mas o que é impor-
endo, com Anísio, a pesquisa como apreensão criativa tante, ainda num país em construção. E, como vociferou
do mundo, a pesquisa como modo de educar e de edu- Celso Furtado, em entrevista recente, um país em cons-
car-se. trução não pode ser entregue ao mercado (Furtado,
Nesse ponto, o pensamento de Anísio antecipa e se 2000, p. 7). O Anísio que está, nesse momento, entre
aproxima da tematização do diálogo em Paulo Freire. A nós não pretende cicatrizar feridas, mas reabri-las quan-
meta ainda é a maioridade do povo brasileiro, não só do um falso conforto vem mascarar a nossa dor. Este
pela valorização da cultura popular, mas também pela estar entre revela o trânsito em que todos estamos, via-
sua transformação em instrumento efetivo de constru- jantes do mundo, ambíguos e incompletos, enfrentando
ção da sua autonomia, entendida como um valor da edu- a ausência de projetos, a carência de utopias, a constan-
cação. te necessidade de relativização da tarefa pedagógica e
Celebrar Anísio Teixeira, nesta oportunidade, é do exercício do humano. Este estar entre costura e des-
advertir para quem estiver atento e exercitando uma es- costura os fragmentos que vivemos e somos.
cuta sensível, que os homens capazes de manter o dese- Anísio já não é mais árvore, como pretendia, quan-
jo pela educação por toda uma vida, como ele o fez, ape- do escreveu a Monteiro Lobato falando da secura feliz
sar das rupturas que as circunstâncias lhe impuseram, de apenas existir, sem mais nada desejar (Vianna & Fraiz,
são imprescindíveis e, hoje, cada vez mais raros. O prin- 1986, p. 87). Anísio é rizoma. Espalha-se numa simul-
cipal é o motivo e o principal, como diz Clarice taneidade de rostos inventados a cada decisão que o aco-
Lispector, está sempre escondido. lhe. Ao mesmo tempo, escapa. Sempre: escolanovista,
A obra de Anísio Teixeira é resultado da eleição da tecnicista, americanista, liberal, conservador, pioneiro,
educação como foco de trabalho. Sua motivação em tor- visionário, romântico, iluminista, comunista, reacioná-
no desse foco torna-se um campo de significados justa- rio.
mente pela sua persistência. Um homem apaixonado, Escapa Anísio, que és somente miragem, fragrân-
como afiança Augusto Rodrigues, “não está doente, ape- cia, estremecimento!
nas acelera o seu processo interno” (Idem, ibidem). A Volta Anísio! Volta: na poesia que reaparece como
paixão não se explica. Vive-se! A obra de Anísio Teixeira esperança após cada fracasso; na exigência de uma fra-
é a defesa apaixonada da educação. Mas não apenas ternidade que não se debruce no vazio, mas eleja como
isso. É, como afirma Florestan Fernandes, uma defesa alvo nossas relações concretas no cotidiano; no resgate
polida por uma filosofia da educação e uma compreen- da memória e da história da nossa sociedade e da nossa
são aguda da história da nossa sociedade. Uma defesa educação; na generosa militância da cultura e no exercí-
iluminada pela sua imaginação pedagógica (1992). A cio digno da política; no diálogo da ciência com a arte;
obra de Anísio e de seus companheiros, como nos ensi- em projetos de educação que integrem a cultura e o tra-
nou Antonio Candido (1980) não foi revolucionária, mas balho. Volta na força que nos move na defesa de que a
expressão de um pensamento radical, que operou um sig- educação não é privilégio!
nificativo deslocamento para a frente, na direção da so- A obra de Anísio Teixeira é a sua própria vida.
lidariedade e da justiça social. E isto precisa ser reco- Para além dos elogios e das celebrações, o convívio com
nhecido e valorizado. ela me ensina que, ao procurar desvendá-la, acabamos
Entre o passado de Anísio e o nosso presente há falando um pouco de nós mesmos. Corremos o risco de
sucessivas camadas de pensamento que se interpõem e sucumbir à presunção e à arrogância, reduzindo e
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Anísio Teixeira: a poesia da ação
engessando o processo que vai da intimidade do sujeito 29.11.01, documento n. 15, Carta de Lourenço Filho a Anísio
à construção da ordem social. É necessário um laborio- Teixeira em 31/1/1935, CPDOV, FGV.
so investimento para nos libertarmos da couraça acadê-
. Parecer Crítico. Introdução ao estudo da escola nova.
mica que nós próprios construímos, tornando a existên-
Arquivo Lourenço Filho, série Produção Intelectual, LF/S Ass. Pi
cia sem brilho. O saber ilumina, mas a vida é tato.
30/32.00.00, CPDOC/FGV.
Anísio Teixeira está entre nós! Não exatamente nas
minhas palavras, ou nas nossas palavras, mas em algum FURTADO, Celso, (2000). O Brasil em ruínas. Valor, p. 7, jun.
ponto secreto e ignorado das nossas próprias consciên- GONZAGA TEIXEIRA, Luiz, (2000). O discurso que faz o elogio
cias, na vibração sutil que nos move. Provavelmente no da pedagogia. São Roque-SP, mimeo.
silêncio fecundo que em nós habita e que irradia dos
LAGOA, Ana Mascia, (1995). Sous-venir de classe (memórias do
nossos corações de educadores.
curso Política de Formação de Professores). Rio de Janeiro,
CLARICE NUNES doutorou-se em Ciências Humanas/Educa- mimeo.
ção pela PUC-Rio. Professora titular em História da Educação, na
Faculdade de Educação da UFF (aposentada). Atualmente vincula-se LEMME, Paschoal, (1988). Memórias. São Paulo: Cortez/INEP, v. 2
escola nova. Arquivo Anísio Teixeira, série Produção Intelectual, Lobato. Cartas entre Monteiro Lobato e Anísio Teixeira, em 19/7/
AT Teixeira A pi 20/30.00.00/1, CPDOC, FGV 1941; 1/1/1947 e 29/1/1947. Salvador, FC do Estado da Bahia;
Rio de Janeiro: FGV/CEPDOC.
. Manuscrito de um programa de partido político. Ar-
quivo Anísio Teixeira, série Produção Intelectual, AT [Teixeira, VIDAL, Diana Gonçalves, (org.), (2000). Na batalha da educação:
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