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Prisão especial e diploma de ensino superior: uma aproximação crítica

Espaço Aberto

Prisão especial e diploma de ensino superior:


uma aproximação crítica

Carlos Roberto Jamil Cury


Mestrado em Educação, Pontíficia Universidade Católica de Minas Gerais

Maria Alice Nogueira


Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais

A liberdade de ir e vir, um dos direitos civis mais Não é nosso objetivo tratar esta questão do ponto
fundamentais do ser humano e garantido em nossa Cons- de vista estritamente jurídico, ainda que nos socorramos
tituição, quando perdida representa uma das penas mais deste para evidenciar mecanismos específicos de dife-
duras a que uma pessoa pode ser submetida. Afinal, como renciação/classificação entre cidadãos. Tais mecanismos
diz Bobbio (1996), a liberdade é uma qualidade ou pro- constituem uma forma a mais de legitimação de diferen-
priedade da pessoa, valor do indivíduo. Perdê-la é sem- ças sociais, tendo como pano de fundo a manutenção de
pre ser privado de algo de si, ainda que esta perda seja hierarquias na sociedade brasileira e seu cruzamento com
temporária. Entretanto, a quebra da lei, a depender da as desigualdades sociais e as discriminações existentes.
natureza e grau de infração, pode conduzir alguém ao Isto implica em não ignorar a atual situação carce-
recolhimento em alguma modalidade de instituição pe- rária no país, objeto de denúncia da parte dos mais dife-
nal. A isto chamamos prisão, cárcere ou mais especifi- rentes organismos de defesa dos direitos humanos. É o
camente penitenciária. caso da superlotação, da qual resulta um alto índice de
Os jornais, o rádio e a televisão, vez por outra, in- presos por vaga e até por metro quadrado. Pessoas
formam que certos incriminados e/ou em processo de detentas e já condenadas, ao invés de penitenciárias,
julgamento, ao invés de serem recolhidos a estabeleci- como estipula a lei, ficam em distritos ou delegacias
mentos penais comuns, usufruem de “prisões especiais” policiais por mais tempo do que deveriam. E as condi-
ou, na ausência dessas, desfrutam ao menos do benefí- ções gerais deploráveis do sistema carcerário são
cio de “celas especiais” em prisões comuns. potenciadas, muitas vezes, pela convivência entre con-
Esta situação já envolveu figuras como o advoga- denados por delitos leves e por chefes de quadrilhas de
do Paulo César Farias, o piloto Jorge Bandeira, o en- drogas. A despeito de dispositivos claros da Constitui-
genheiro Sérgio Naya, o deputado Hildebrando Pascoal ção no art. 5º que determinam a individualização da pena
e o jornalista Marco Antonio Pimenta Neves, entre (inciso XLVI), a existência de estabelecimentos dife-
outros. renciados de acordo com o delito, a idade e o sexo do

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apenado (inciso XLVIII), a existência de uma sentença educação. Ele pode ensejar um conjunto de aportes dife-
penal condenatória transitada em julgado para efeito de renciados, complementares ou contrários que possam
detenção (inciso LVII) e a admissão de liberdade provi- ampliar o debate e aprofundar a análise.
sória, sem prisão, quando definida em lei (inciso LXV),
a prática vem revelando realidades ainda muito distan- Prisão especial e “pessoa de qualidade”
tes da lei.1
Nossa tentativa de análise versará sobre um deter- Para efeito destas considerações, procuraremos
minado dispositivo da legislação penal brasileira: a que partir de algumas indicações extraídas do campo do Di-
possibilita a determinadas pessoas incriminadas, perten- reito, já que este está intimamente imbricado com o ob-
centes a carreiras ou categorias sociais específicas, quan- jeto que pretendemos analisar.
do ainda não definitivamente julgadas, não ficarem Nossa Constituição reconhece, no art. 5º, que todos
detentas em prisões comuns ou nas celas comuns destas são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natu-
mesmas prisões. Trata-se de uma norma específica e que, reza... Por sua vez, o Direito Penal define a prisão legal
segundo toda a competente interpretação, não pode ser como o “ato pelo qual alguém é privado de sua liberda-
analisada fora do ordenamento jurídico e do contexto de de locomoção por autoridade pública, que tenha com-
socioistórico de um país (cf. Bobbio, 1994). petência para tal, ou por sua ordem” (Naufel, 1988,
Assinalaremos os principais documentos legais que p. 756).
versam sobre este dispositivo. Para tentar elucidá-los e Entretanto, é comum empregar-se o termo “prisão”
a situação da qual eles derivam, parece-nos que a ver- também para designar o locus onde se mantêm os pre-
tente culturalista das teorias da reprodução ou, para ser- sos. Nesse último sentido a prisão é assim definida:
mos mais precisos, a teoria da violência simbólica, traz “Também é a denominação atribuída aos locais, que ser-
alguns elementos capazes de torná-los mais inteligíveis vem de prisão, não sujeitos a regulamentos especiais ou
e de esclarecer melhor a significação e a função da pri- simplesmente usados para cumprimento de penas de pri-
são especial. sões simples (Silva, 1991, p. 449).
É bem verdade que se torna muito difícil hoje em Vê-se, pela definição, que a noção de prisão, além
dia, dado o avanço das pesquisas no campo das relações de encerrar a idéia de “lugar”, comporta uma distinção
entre as Ciências Sociais e a Educação, discordar de entre aquela simples e/ou comum e aquela outra indicada
certas críticas endereçadas aos trabalhos clássicos da como prisão especial. Essa última, objeto de nosso inte-
Sociologia da Educação dos anos 1960 - 1970, basica- resse, define-se como aquela “[...] em que é dispensado
mente fundados no modelo teórico da reprodução, por um tratamento especial ao preso, antes de condenação
seu viés determinista, sua desconsideração do movimento definitiva, em virtude de privilégios decorrentes do car-
histórico, sua perspectiva macroscópica de análise. go que ocupa, das funções que exerce e de algumas cir-
Entretanto, tão arriscado quanto não reconhecer cunstâncias de caráter especial, como o fato de ser
algumas de suas distorções, seria abrir mão de alguns diplomado por qualquer das faculdades superiores da
de seus maiores aportes, na forma do desnudamento de República” (Naufel, 1988, p. 757, grifos nossos).
certos mecanismos de perpetuação da estrutura das re- Nesta definição, o autor correlaciona claramente a
lações sociais desiguais que se estabelecem entre os di- ocupação de cargos e funções e os “privilégios” que
ferentes grupos sociais. decorrem para um sujeito acusado. Situação destacada
O ponto de vista aqui adotado não esgota o objeto é a relativa ao portador de diploma de ensino superior.
em questão, mas não deixa de contribuir com um olhar Evidentemente, se a definição de “especial” tem
sobre um assunto pouco estudado na sua relação com a alguma efetividade, ela deverá consistir em elementos
diferenciadores da prisão “comum”, já que entre os sig-
nificados de “especial” está o de ser “fora do comum”,
1
Para uma visão crítico-literária, ver Varella (1999). “próprio” e também “peculiar” e “distinto”. Obviamen-

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te a procedência de uma “espécie” na lei deve ser a par- vel a aplicação de penas da legislação militar, segundo
tir de uma discriminação justificada (e, no caso, seria o art. 172, § 1º Ficou célebre a defesa de Luiz Carlos
justa) a fim de não ofender o princípio da isonomia. Uma Prestes e de Harry Berger feita pelo jurista Sobral Pinto
discriminação não justificada acarreta injustiça e uma através do art. 14 da Lei de Proteção dos Animais...2
forma odiosa de privilégio. A prisão especial foi confirmada, em nosso país,
pelo art. 295 do Código de Processo Penal (CPP), se-
A prisão especial no Brasil gundo o Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941,
durante a vigência do Estado Novo.3 E lá pode-se ler o
As Constituições Brasileiras, desde a Imperial de seguinte:
1824, reconhecem que ninguém pode ser preso sem cul-
Serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à dispo-
pa formada, excetuado o flagrante delito ou em casos
sição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão, an-
prescritos em lei mediante ordem escrita da autoridade.
tes da condenação definitiva: I. os ministros de Estado; II. os
A Constituição Imperial dizia que as cadeias serão se-
governadores ou interventores de Estados e Territórios, o pre-
guras, limpas, bem arejadas, havendo diversas casas para
feito do Distrito Federal, seus respectivos secretários, os pre-
a separação dos réus, conforme suas circunstâncias e
feitos municipais, os vereadores e chefes de polícia; III. Os
natureza de seus crimes (art. 179, inciso 21). Nesse sen-
membros do Parlamento Nacional, do Conselho de Economia
tido, a separação de prisões comuns entre homens e mu-
Nacional e das Assembléias Legislativas dos Estados; IV. os
lheres é justificada, bem como a separação entre conde-
cidadãos inscritos no “Livro do Mérito”; V. os oficiais das For-
nados por delitos graves, hediondos e os condenados por
ças Armadas e do Corpo de Bombeiros; VI. os magistrados;
outros crimes. Outro caso apontado é o de prisões espe-
VII. os diplomados por qualquer das faculdades superiores
cíficas para os crimes ligados aos tempos de guerra ou
da República; VIII. os ministros de confissão religiosa; IX. os
para condenação de militares nos casos de delitos mili-
ministros do Tribunal de Contas;X. os cidadãos que já tiverem
tares como estava no art. 84 da Constituição de 1934.
exercido efetivamente a função de jurado, salvo quando ex-
Nesta Constituição, o art. 113, inciso 25 não admite fôro
cluídas da lista por motivo de incapacidade para o exercício
privilegiado, mas aceita juízos especiais em razão da
daquela função; XI. os delegados de polícia e os guarda-civis
natureza das causas.
dos Estados e Territórios, ativos e inativos. (CPP, art. 295,
A especificidade diferenciadora da prisão especial
grifos nossos)
foi concedida, no Brasil, aos portadores de diplomas de
ensino superior, já em 5 de julho de 1937 pela Lei n. 425, O regime constitucional de 1946 repõe os direitos
isto é, às vésperas do golpe que determinou o fim do e garantias individuais no art. 141, proibindo foros pri-
regime constitucional. Mas sua efetividade não seria vilegiados, tribunais de exceção e admitindo a indivi-
universal. Poderiam gozar de tal benefício somente os dualização da pena (inciso 29). Neste quadro de rede-
diplomados por cursos cujas instituições houvessem sido mocratização política, a prisão especial teve seu âmbito
oficialmente reconhecidas pelo Ministério da Educação. de aplicabilidade aumentado. A prisão especial não so-
Mas é preciso considerar que, desde o Decreto Legisla- freu uma crítica que lhe questionasse seus pressupostos.
tivo n. 6 de 18 de dezembro de 1935, o Estado de Direi-
to começa a ser questionado quando da ocorrência de
2
O espaço carcerário do Estado Novo foi ficcionalizado na
finalidades subversivas o que poderia propiciar a sus-
obra memorialística de Graciliano Ramos Memórias do Cárcere.
pensão das garantias constitucionais. Estamos já próxi- 3
Desta data até hoje, além de acréscimos de categorias ao art.
mos da instauração do Estado Novo em 10 de dezembro
295 do CPP, muitas outras indicações de prisão especial foram cria-
de 1937. das, em leis próprias, abrangendo a Marinha Mercante, dirigentes
A decretação da Constituição (sic) de 1937 incluiu sindicais, policiais civis, professores de ensino fundamental e médio,
a pena de morte, passou a condicionar autoritariamente juizes de paz, magistrados e membros do ministério público, cf.
o exercício das garantias individuais e tornou-se possí- Mirabete (1997, p. 364-365).

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“A regalia concedida pelo art. 295 do Código de dizer de Chauí (2000), é autoritária e hierarquizada, além
Processo Penal”, como diz o art. 1º da Lei n. 799 de de injusta. A sociedade brasileira, segundo ela,
1949, foi estendida aos oficiais da Marinha Mercante
[...] é marcada pela estrutura hierárquica do espaço social que
Nacional, aos dirigentes de entidades sindicais, ao em-
determina a forma de uma sociedade fortemente verticalizada
pregado no exercício da representação profissional ou
em todos os seus aspectos... As diferenças e assimetrias são
no cargo de administração sindical, aos jornalistas pro-
sempre transformadas em desigualdades que reforçam a rela-
fissionais e aos servidores do Departamento Federal de
ção mando – obediência. O outro jamais é reconhecido como
Segurança Pública com exercício em atividades estrita-
sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como
mente policiais.
subjetividade nem como alteridade. As relações entre os que
O Decreto n. 38.016, de 05 de outubro de 1955, ao
se julgam iguais são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade
listar deveres e “regalias” dos detidos em “prisão espe-
ou de compadrio; e entre os que são vistos como desiguais o
cial”, regula alojamentos, roupas, visitas, assistência
relacionamento assume a forma do favor, da clientela, da tute-
religiosa e médica e transporte diferenciados.
la ou da cooptação. Enfim, quando a desigualdade é muito
Este tratamento especial, por outro lado, proíbe a
marcada, a relação social assume a forma nua da opressão
imposição de algemas, de número, de uniforme ou de
física e/ou psíquica. (p. 89)
qualquer outro sinal em uso nos estabelecimentos pe-
nais comuns. Além disso, a prisão especial deveria ser E é sobre este caso específico da “prisão especial”
um estabelecimento à parte e não uma secção especial que se pretende traçar algumas considerações de modo
de uma prisão simples. O decreto acima referido, segun- a evidenciar seu caráter “distintivo” e de classe.
do o inciso I do seu art. 2.º, supõe inclusive a possibili-
dade de cela não coletiva para os beneficiários desta van- Comentaristas e prisão especial
tagem.
Os professores de 1.º e 2.º Graus, mercê da lei Não se pretende, com estas indicações prelimina-
n. 7.172 de 14 de dezembro de 1983, também passam a res, proceder a um estudo exaustivo do assunto. Nosso
ser abrangidos por esta “regalia”. Os anos de 1980 foram propósito é apenas o de focalizar o dispositivo da lei
bastante combativos da parte dos setores inconformados n. 425 de 5/7/1935 e o inciso VII do decreto-lei n. 3.689,
com o regime militar e nestes movimentos a presença das de 1941, que dizem respeito à prerrogativa concedida
associações docentes foi particularmente importante seja aos diplomados do ensino superior.
na recomposição salarial, seja na valorização do magis- Anote-se que o privilégio se refere às “pessoas de
tério, seja na crítica ao autoritarismo e à desigualdade qualidade, ainda não condenadas definitivamente”, isto
promovida pelo modelo de crescimento econômico. é: antes do julgamento final, já que o Direito Penal faz a
Tal âmbito de aplicabilidade estende-se ainda aos distinção entre o acusado e o condenado.4
comandantes de aeronaves. Os comentaristas, ao tentarem analisar esta situa-
Como diz a Enciclopédia Saraiva de Direito ção legal, farão um esforço para explicar ou mesmo jus-
(França, 1977), não sem certa ironia: “A lista é gran- tificar o que nem sempre é sustentável do ponto de vista
de; se continuar aumentando poderá chegar a aconte- da igualdade perante a lei. Eles insistem que, apesar das
cer que o recolhimento à prisão comum é que vai cons- “qualificações pessoais” do detido ou de suas “prerro-
tituir exceção...” (p. 156). A observação procede, pois, gativas”, nem por ser “especial” a prisão deixa de ser
ao lado do aumento das categorias incluídas, é notável prisão. Em geral, buscam explicar que o “especial” só o
o crescimento de escolas de ensino superior autoriza- é temporariamente, pois caso haja condenação, perde-
das e reconhecidas as quais, ano após ano, diplomam
milhares de pessoas.
Pode-se dizer que a prisão especial e as categorias 4
Impossível não se reportar ao famoso capítulo de Da Matta
que dela usufruem explicitam uma sociedade que, no (1990): “Você sabe com quem está falando?”

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se o privilégio e a “pessoa de qualidade” vai cumprir a pelo qual, no Brasil, todos são iguais, mas uns são mais
pena dentro das prisões simples. iguais do que outros..... A prisão especial se volta, pois,
De outro lado, é importante reproduzir as justifica- para “pessoas de qualidade” ainda não julgadas, cuja
tivas utilizadas para os privilégios da prisão especial. diferenciação “natural” dos “outros” deve ser preserva-
Diz a Enciclopédia Saraiva de Direito (1977), no ver- da evitando-se o contato com a “promiscuidade com
bete elaborado por França: “[...] não parece justo que outros detentos”, pertencentes à “ralé”...
pessoas que se distinguem por certas qualificações (po- Mas será que tal regalia não fere o princípio de
sições ocupadas, funções exercidas, serviços prestados igualdade de todos perante a lei? A igualdade não é uma
sejam recolhidas, quando tiverem de ser presas proviso- propriedade da pessoa (como a liberdade). Ela é uma
riamente, a prisões comuns” (p. 155-156). relação. Como diz Bobbio (1996):
Uma hipótese para esta explicação parece ser a su-
[...] enquanto a liberdade é uma qualidade ou propriedade da
posição que tais pessoas, pelas sua “qualidades”, são
pessoa (não importa se física ou moral) e, portanto, seus diver-
menos suspeitas de haver cometido crimes do que os
sos significados dependem do fato de que esta qualidade ou
cidadãos comuns, enquanto estes últimos são suspeitos
propriedade pode ser referida a diversos aspectos da pessoa,
até prova em contrário...
sobretudo à vontade ou sobretudo à ação, a igualdade é pura e
O reconhecido comentarista do Código de Proces-
simplesmente um tipo de relação formal, que pode ser preen-
so Penal, Eduardo Espínola Filho, diz que tal privilégio
chida pelos mais diversos conteúdos. Tanto é verdade que, en-
decorre de várias razões (já citadas), a partir da reco-
quanto X é livre é uma proposição dotada de sentido, X é igual
mendação do próprio Código, no art. n. 300, o qual pro-
é uma proposição sem sentido, que, aliás, para adquirir sentido,
põe que se evite o contato entre os provisoriamente pre-
remete à resposta à seguinte questão: igual a quem? Disso de-
sos e os definitivamente condenados. Esta recomendação,
corre o efeito irresistivelmente cômico (e, na intenção do autor,
se cumprida, deve valer para todos.5 No interior de seu
satírico) da célebre frase de Orwell: todos são iguais, porém,
comentário, o autor reproduz um parecer de Lemos
alguns são mais iguais do que os outros. Ao contrário, seria
Britto, também especialista em Direito Penal, que diz:
perfeitamente legítimo dizer que, em determinada sociedade,
[...] é natural que se conceda o privilégio de ficar em estabele- todos são livres, mas alguns são mais livres, já que isso simples-
cimento diverso do cárcere comum, livres do contacto com a mente significaria que todos gozam de certas liberdades, en-
ralé dos criminosos, as pessoas de qualidade, pelas funções que quanto um grupo mais restrito de privilegiados goza, além dis-
ocupam, pela sua educação e instrução, pelos relevantes servi- so, de algumas liberdades particulares. Por outro lado, enquan-
ços públicos que prestem ou tenham prestado. (p. 316-317) to é sem sentido a proposição X é igual, é sensata – e, aliás,
muito usada, embora extremamente genérica – a proposição
Veja-se como para Lemos de Britto é natural que...
todos os homens são iguais, precisamente porque, neste con-
ou seja faz parte da “ordem natural” (não necessitando,
texto, o atributo da igualdade se refere não a uma qualidade do
pois, de explicação ou justificativa fundamentada) que
homem enquanto tal, como é ou pode ser a liberdade em certos
haja o privilégio dos cidadãos de qualidade se verem
contextos, mas a um determinado tipo de relação entre os entes
livres da ralé. Neste sentido se confirma o dito irônico
que fazem parte da categoria abstrata humanidade. (p. 12)

Após ver nesta formulação a dignidade própria de


toda a pessoa humana, ante a qual não pode haver dis-
5
Acusar é imputar uma pessoa por crime ou delito cometido.
criminações, Bobbio passa a considerar a igualdade pe-
Quando o acusado se acha no âmbito da alçada penal, cabe ao pro-
rante a lei como conceito clássico e universal relativo ao
motor público atuar profissionalmente através de um libelo acusatório.
Já o condenado designa a pessoa acusada da responsabilidade de um
princípio de isonomia. Ao invés de acentuar o que seria
crime ou delito e que teve uma sentença decisória contra si. O efeito a dimensão afirmativa deste princípio, o autor prefere
da condenação, na alçada penal, é uma sanção como reparação ao dizer contra quê este princípio se insurge. Ou seja qual
mal praticado. é o alvo contrário a que esta afirmação se dirige?

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O alvo principal da afirmação de que todos são iguais víduos, vemos as exceções do art. 295 multiplicarem-se, en-
perante a lei é o Estado de ordens ou de estamentos, aquele volvendo outras categorias de indivíduos, a tal ponto que se
Estado no qual os cidadãos são divididos em categorias jurídi- não houver uma parada, aliás dificílima à invocação dos pre-
cas diversas e distintas, dispostas numa rígida ordem hierár- cedentes, os que fazem jus, quando acusados de crime ou con-
quica, onde os superiores têm privilégios que os inferiores não travenção, ao regime da prisão especial, serão mais numero-
têm, e, ao contrário, estes últimos têm ônus dos quais aqueles sos que os destinados ao da prisão comum [...]. (p. 374-375)
são isentos... (p. 27)
Percebe-se que o comentarista põe bem o proble-
Embora com diferenciações, muitos são os autores ma: a prisão especial é justificável perante o princípio
(alguns já assinalados neste texto) que apontam carac- de igualdade ? Segundo o autor, a individualização da
terísticas da sociedade brasileira muito próximas como pena, quando acompanhada de justificação procedente
as que Bobbio assinala na crítica jusnaturalista à socie- e garantida em lei, é um princípio de equidade que não
dade organicista. ofende o outro princípio: o de igualdade perante a lei.
A fim de se analisar como alguns comentaristas do Mas abrir o rol das garantias e direitos por razões de
direito penal abordam esta questão, uma citação, ainda distinção ou privilégio de classe ou de cultura, sem uma
que longa, é necessária. São os termos e a argumenta- cabal justificativa, acaba por diluir o caráter peculiar e
ção do comentário de Eduardo Spínola Filho: excepcional que deve presidir a “prisão especial” fa-
zendo com que os avantajados com a prisão especial
Conceito de prisão especial: I. Como justificam os ju-
sejam mais numerosos que os destinados ao (regime)
ristas essa distinção ou privilégio. Antes de abordarmos os
da prisão comum.6
problemas da prisão especial permita-se-nos indagar se ela se
O mesmo comentarista, porém, ao se deparar com
justifica, à luz do princípio constitucional da igualdade de to-
a argumentação de Lemos de Britto, vai lentamente sen-
dos perante a lei, como uma distinção ou privilégio conferido
do conduzido à argumentação deste último. Assim, aceita
a determinadas categorias de pessoas acusadas de crime ou
que
contravenção. Como salta à vista, o privilégio é incompatível
com a igualdade de que cogita o estatuto básico da nação. Não [...] ser “natural que, rendendo uma homenagem a pessoas de
se pode, todavia, esquecer que se “todos são iguais perante a qualidade, pelas funções que ocupam, por sua educação e ins-
lei”, cabe à lei decidir, limitar, afeiçoar o exercício o gôzo des- trução, pelos relevantes serviços públicos, que prestem ou te-
sa liberdade, não escapando a esta regra o direito penal e o nham prestado, se lhes dê o privilégio de ficar em estabeleci-
processual penal. A exceção aberta pelos Códigos Penal e do mento que não seja o cárcere comum, em contato com a ralé
Processo Penal é, no caso, a da individualização da pena e do dos criminosos” [...]. (p. 374-375)
tratamento penitenciário, através de classificação dos senten-
Vê-se que o autor vai buscando, não sem consciên-
ciados. Quando, porém, o privilégio não se explica por essa
cia das dificuldades, uma justificativa para essa “distin-
imposição legal, mas decorre de situações sociais, econômi-
ção ou privilégio”. E, ao invocar relevantes serviços
cas, políticas, de classe ou de cultura, pode-se admitir que a
públicos os quais não seriam privilégio de ninguém e
diferenciação constante do art. 295 do Código de Processo
de nenhum grupo social, esta exceção seria universal.
Penal, se bem explicável por outros aspectos, (é) tão séria e
Assim:
fundamental que abre o rol das garantias e direitos cuja
inviolabilidade ela assegura, como estruturais de cidadania. A
verdade é que ‘o mínimo de disciplina social’, a que alude
Sady de Gusmão, continua nas democracias modernas, a esta- 6
Os dados existentes sobre o perfil dos presos comuns permi-
belecer ou manter certas diferenças que o conceito abstrato de tem afirmar que eles pertencem às classes populares mais pobres,
democracia repele. E o da prisão especial é, indubitavelmente, menos escolarizadas, com maior índice de desemprego e com presen-
um deles. Enquanto o princípio da ‘igualdade de todos peran- ça significativa da etnia afro-brasileira. É sobre este perfil que se aba-
te a lei’ opera em tôda sua fôrça no sentido de nivelar os indi- te a designação de ralé, laia e outros pejorativos.

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Prisão especial e diploma de ensino superior: uma aproximação crítica

Não há, portanto, para o legislador penal como para os A secção ou divisão especial no estabelecimento comum,
comentaristas, privilégio propriamente dito, de vez que a exce- tem por sua vez, um grave inconveniente: – o da existência, ao
ção atinge elementos de todas as classes sociais, sem distinção lado da população de indiciados ou processados, dêsses prote-
de raça, riqueza, religião ou côr, e não passa da fase proces- gidos da lei. Os juristas e os sociólogos compreendem a razão
sual [...]. (p. 375) de ser dêsse regime assegurado a determinados presos; os pre-
sos comuns, não, por verem nisso um regime de privilégio,
Outro argumento enfatizado será o da provisorie-
incompatível com a igualdade perante a lei, de que fala a Cons-
dade da situação, pois sendo a vítima da acusação pro-
tituição. (p. 393)
cessado e condenado, perde a “justificativa” dos rele-
vantes serviços públicos uma vez que a exceção não Para o comentarista, os presos comuns (certamente
passa da fase processual. devido à sua “ignorância”), não compreendem a razão
A oscilação entre a exceção, tida como aberta a das distinções entre as duas categorias de presos. Só os
todos, e o privilégio como afronta à igualdade perante a “doutos” conseguem fazer esta distinção entre regra e
lei, se resolve na noção de “hierarquia social” sobretu- exceção. Buscando apoio em outro autor, o comentaris-
do se legitimada pelo diploma de ensino superior. ta prossegue:

Sente-se, aí, a compreensão do legislador penal, de pre- Como escreve Sady Cardoso de Gusmão, em suas Bre-
servar a hierarquia social e a pessoa dos que exerçam ou te- ves anotações ao Código de Processo Penal, “tais regalias
nham exercido funções de alta relevância, nos diversos setores não são infringentes do princípio de igualdade, mas decorrem
da administração, da política, da judicatura e das forças arma- de um mínimo de disciplina social admissível, uma vez que a
das. Assegurando a prerrogativa da prisão especial aos diplo- regalia se refere ao período anterior à condenação definitiva”.
mados nos cursos superiores, não careceria, por exemplo, o Infelizmente, as centenas de presos comuns não pensam dessa
Código de especificar aquelas categorias de pessoas que delas maneira e por isso haverá sempre reação perigosa da maioria
não podem participar sem terem um desses diplomas: – haja em face das pessoas postas na chave da exceção. É um perma-
vista os membros do Poder Judiciário, que só podem integrá- nente acicate a exacerbar-lhes o espírito, sobretudo para os
lo sendo bacharéis em direito. (p. 378) inconformados, os irritadiços, os que, sendo de categoria se-
melhante aos beneficiados, ali estão em pé de igualdade com
A invocação de excepcionalidade para pessoas que
os demais, por omissão da lei. Tudo aconselha, pois, a cons-
ocuparam determinados cargos civis ou militares cujas
truir-se um estabelecimento especial para todos os objetivos
funções deram acesso a segredos de Estado se justifica
da prisão especial. (p. 393)
antes e depois do processo, pois tais segredos seriam
uma forma de não dizer verdades de Estado a um con- A disciplina social citada por Gusmão não é só a
corrente ou, no caso de guerra, a um inimigo.7 correção de rumos de quem se afastou da obediência a
A separação entre “processados” e “indiciados” é uma norma, mas também uma certa composição social
vista de novo como exceção não infringidora da lei por- baseada em uma concepção hierárquica pressuposta e
que, além de passageira, garante um mínimo de “disci- não diretamente manifesta que discrimina “superiores”
plina social”. Para o comentarista, a prisão especial gera e “inferiores”. Os “superiores”, quando incriminados e
menos problemas internos numa penitenciária8 do que classificados dentro da prisão especial são “recompen-
celas especiais no mesmo local. Esta última situação, sados” com este privilégio devido a um passado ordeiro
segundo o autor, é problemática pelo modo como os pre-
sos comuns olham os presos especiais:

penas da privação do direito de ir e vir no espaço social. Não se deve


7
Sobre este assunto, ver Lafer (1992). confundir cadeias de distritos policiais, que são lugar de aguardo do
8
Penitenciária vem de penitência e é um estabelecimento ao julgamento do processo, onde as pessoas não poderiam ficar mais de
qual, sob a lei, se recolhem pessoas acusadas e condenadas a cumprir 81 dias.

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supostamente incompatível com a acusação de delito. sociedade”, de cujo “contato (contágio) promíscuo” os
Nesse sentido, pode-se compreender a interpretação pe- distinguidos pela educação esmerada (superior) deve-
culiar de dispositivos legais expressos através de ter- riam ser poupados e, em certas circunstâncias, separa-
mos como “especial”, “regalia”, “qualidade” versus dos.
“comum”, “ralé”. Os comentaristas, até por função, Na medida em que se invoca o ensino superior como
impulsionados a sinonimizar ou mesmo especificar a um elemento a se considerar legítimo face ao privilégio
generalidade dos dispositivos, são mais pródigos em da prisão especial; na medida em que o ensino superior
adjetivos ou em expressões esclarecedoras do “espíri- é, tecnicamente, um nível de ensino dentro da estrutura
to” da lei. Assim se utilizam de expressões tais como: e funcionamento do sistema de educação nacional, será
privilégio, distinção, qualificações, diferenças, relevân- que o adjetivo “superior” poderá estar também signifi-
cia, regalia9 e exceção, a fim de destacar os sinais tidos cando um “estar acima do outro” dentro de uma concep-
como positivos que diferenciam os usufruidores de “pri- ção hierárquica de sociedade ?
sões especiais”. Contrariamente, quando dirigidas aos A resposta a esta questão nos conduz ao próximo
presos comuns, as expressões são escassas e pesadas: tópico deste texto.
“promiscuidade”, “ralé” e “contato”.
Ainda que se deva considerar o princípio da “indi- Prisão especial:
vidualização da pena” e por aí uma adequada diferen- uma reflexão sociocultural
ciação dos sentenciados por conta da gravidade de um
crime ou contravenção e o caráter legal do dispositivo, o Há que se ressaltar que, na visão do legislador e de
que este conjunto de termos nos indica é algo que pode seus comentaristas, o conceito de classe social parece se
ser indicado como “privilégio”. reduzir ao aspecto econômico (abastados ou despossuí-
Privilégio vem de lex (lei) e de privus, a, um (pri- dos), o que fica evidenciado na afirmação de Eduardo
vado/a) e sinaliza uma condição especial de benefício Espínola Filho – acima reproduzida – de que a exceção
ou vantagem desfrutados por indivíduos ou categorias “atinge todas as classes sociais”. Desconsidera-se, por-
de indivíduos e não compartilhados pelo outros indiví- tanto, o papel do status (no sentido weberiano de “pres-
duos tidos como comuns. Ele pode significar uma isen- tígio”) na definição da posição social ocupada por um
ção, uma imunidade ou o usufruto de uma vantagem es- indivíduo no interior das estruturas (hierarquias) sociais.
pecífica. No Direito, a existência de um privilégio legal Ora, no quadro das sociedades complexas em que
deve vir acompanhada de uma norma jurídica que o jus- vivemos, a redução da definição das classes sociais a
tifique face ao princípio da igualdade perante a lei. O sua dimensão econômica, não mais se sustenta, de vez
uso corrente tende a assumir privilégio como tratar me- que a determinação do lugar ocupado nas hierarquias
nos duramente “os mais iguais” da “hierarquia social”, sociais resulta de uma combinação complexa de fatores
encarada esta como “natural”. Privilégio, define Naufel materiais com elementos de ordem mais propriamente
(1988), é “vantagem concedida a alguém com exclusão simbólica, tais como a natureza da ocupação exercida,
de outros, em virtude de certos princípios de direito es- o nível de instrução e o estilo de vida (entendido como
pecial, contrários ao direito comum [...]” (p. 757). maneira de ver o mundo e de se ver no mundo) que lhes
Por outro lado, o que é a “ralé”? A ralée (do fran- são associados. Mas estes últimos elementos, pelo vis-
cês) era o substantivo coletivo com que se designavam to, não configuram, aos olhos do legislador e comenta-
os serviçais (os “menos iguais”) encarregados pelos ristas, desigualdades de caráter social.
nobres de lançar ao vôo as aves de rapina em busca de Numa tentativa de superar as limitações que cer-
caça. A partir daí, o termo se estendeu à “parte pior da cam as abordagens tradicionais do fenômeno da estrati-
ficação social, o sociólogo francês Pierre Bourdieu leva
em conta outras espécies de capital (além do econômi-
9
O termo regalia significa um direito próprio de um rei. co) que essas abordagens não consideram, e, com essa

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Prisão especial e diploma de ensino superior: uma aproximação crítica

finalidade, cria os conceitos de capital cultural10 e de É nessa perspectiva que Pierre Bourdieu14 concebe
capital social11 para dar conta de outros princípios de o sistema escolar como um operador institucionalizado
divisão social além do econômico, o qual, evidentemen- de classificações sociais que recria incessantemente – a
te, subjaz a estes, mas nem por isso deve ser confundido partir das divisões existentes fora da escola – novas for-
com eles. mas de classificação entre os indivíduos, segundo suas
Não se satisfazendo portanto com a noção de uma próprias hierarquias internas (níveis de ensino, tipos de
“luta de classes” que se reduz à oposição objetiva entre conhecimento, de estabelecimentos, de cursos etc.15).
os grupos sociais segundo sua condição de classe, esse Essa função social desempenhada pelos sistemas de en-
autor abre espaço para uma “luta de classificações” (lutte sino se institucionaliza graças aos mecanismos de
des classements) que consiste nas lutas simbólicas tra- titulação escolar, isto é, aos diplomas que – ao substi-
vadas pelos agentes sociais, para impor uma (di)visão tuírem os antigos títulos de nobreza – conferem a seus
de mundo segundo a qual se é classificado e se classifi- portadores privilégios culturais e sociais que os distin-
ca. De acordo com este autor, daí resulta todo um siste- guem daqueles a quem a escola não elegeu. Como pro-
ma de classificações sociais que a língua exprime atra- va, basta tomar o caso do autodidata que, por não ter
vés de uma taxonomia dominante que organiza o mundo adquirido seus conhecimentos através da forma legíti-
social em torno de um sistema de oposições representa- ma da certificação escolar, é drasticamente diferencia-
do por pares de adjetivos tais como: alto/baixo, supe- do do diplomado no tratamento que recebe por suas com-
rior/inferior, fino/grosso, direita/esquerda, brilhante/ petências culturais. Assim, todo o modo de análise de
medíocre, masculino/feminino, para citar apenas alguns.12 Bourdieu o leva a insistir na definição do capital escolar
Essa luta pela apropriação dos bens simbólicos, que certificado como um “princípio altamente distintivo de
no plano cultural é uma luta pelo monopólio da compe- classificação social”, nas sociedades contemporâneas.
tência cultural, toma a forma da dialética da pretensão Acontece que essa transmutação das hierarquias so-
e da distinção que opõe as propriedades vulgares às pro- ciais em hierarquias escolares não é percebida pelos in-
priedades distintas e distintivas (isto é, reconhecidas divíduos como parcial (e interessada) mas sim como to-
como “vulgares” ou “distintas”13). Mas que não deixa tal, isto é, como “fundada na natureza, levando assim a
de ser uma forma irreconhecível de luta de classes identificar o valor social com o valor ‘pessoal’, as dig-
(Bourdieu, 1983), definida nesses termos pelo autor por- nidades escolares com a dignidade humana” (Bourdieu,
que – diferentemente das lutas econômicas – dificilmente 1979, p. 451).
se deixa ver como tal. Entretanto, é somente em referên- Ocorre que nas sociedades ocidentais contemporâ-
cia a ela que se pode compreender a lógica das relações neas, a ideologia dominante faz do processo de aquisi-
que se estabelecem entre cada classe (e fração de clas- ção da cultura legítima – que é também, e inseparavel-
se) e os sistemas de ensino. mente, o processo de distribuição de bens culturais que
se dá no mercado escolar – um dos ingredientes essen-
ciais para que um ser humano seja considerado como
10
Remetemos o leitor a Bourdieu (1998a) para uma detalhada integralmente (ou plenamente) desenvolvido, de tal modo
explanação da noção de capital cultural sob as suas três formas de
manifestação: incorporado, objetivado e institucionalizado.
11 14
Para uma definição do conceito de capital social, consultar O raciocínio que desenvolvemos aqui se baseia, em particu-
Bourdieu (1998b). lar, nas idéias expostas por Bourdieu (1979) no capítulo 7, intitulado
12
No caso presente, uma manifestação concreta desse proces- Le choix du nécessaire.
15
so pode ser encontrada na operação de classificação dos agentes em O que parece encontrar confirmação na distinção entre os
pessoas de qualidade [...] por sua educação e instrução, num caso, e níveis de ensino e o valor dos estabelecimentos operada pela legisla-
ralé dos criminosos, no outro. (cf. Espínola, 1976, p. 374-375) ção, ao limitar o benefício da prisão especial aos portadores de diplo-
13
No mesmo sentido em que, na linguagem corrente, falamos, mas de ensino superior obtidos em instituições oficialmente autoriza-
por exemplo, num “senhor distinto” ou numa “senhora distinta”. das e reconhecidas pelo Ministério da Educação.

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Carlos Roberto Jamil Cury e Maria Alice Nogueira

que sua “privação é percebida como uma mutilação es- social, aquela que distingue (e opõe) seu detentores (os
sencial, que atinge a pessoa humana em sua identidade e instruídos) dos outros (os ignorantes).
sua dignidade de homem” (Bourdieu, 1979, p. 452), con- Para finalizar, gostaríamos apenas de reafirmar que,
denando – no caso do dispositivo penal aqui analisado – se na opinião do comentarista, “os juristas e os sociólo-
todo ser inculto à sua “promiscuidade” das celas e pri- gos compreendem a razão de ser desse regime assegura-
sões coletivas que coloca “pessoas de qualidade” em do a determinados presos” – conforme se leu acima – no
contacto com a ralé dos criminosos, conforme as pala- que nos concerne, enquanto cientistas sociais, estamos
vras de Espínola Filho (1976, p. 316-317), comentaris- justamente, neste texto, tentando um esforço de explica-
ta do Código de Processo Penal. E, o que é ainda mais ção dos mecanismos de manutenção desse privilégio, os
grave, condenando-o também, por um efeito de “reco- quais – a nosso ver – obedecem fundamentalmente àquela
nhecimento”, a perceber-se a si mesmo como desquali- necessidade “de um mínimo de disciplina social” – a
ficado e, portanto, indigno.16 que se refere Sady C. de Gusmão no texto acima repro-
Através de um efeito de “amnésia da gênese” que duzido – ou, em outras palavras, à lógica de se resguar-
desconhece os determinantes sociais que pesam sobre dar as diferenças entre as classes de indivíduos, e as
as oportunidades escolares,17 a ideologia dominante pos- necessárias distâncias entre eles, na base do “cada um
sibilita que o certificado escolar se revista, aos olhos da no seu devido lugar”. Neste caso, é de um funcionamen-
maioria, do valor de um direito natural, outorgando a to segregador do sistema escolar que advém o efeito de
alguns uma espécie de superioridade natural em relação persuadir cada um a ficar no “seu devido lugar”, no lu-
àqueles que, não tendo tido oportunidades educacionais, gar que lhe cabe, “por natureza”.
não puderam se tornar “pessoas de qualidade”, dignas, Mas recusar-se a naturalizar esse fenômeno que se
portanto, de tratamento especial, no caso, de uma prisão poderia chamar – na esteira do autor que vimos utilizan-
especial. do – de “fetichismo cultural”, e, ao invés disso, questio-
É que graças a uma poderosa (e renitente) alquimia nar-se a respeito de sua gênese e função social, não re-
ideológica, privilégios sociais são convertidos em privi- presentaria o primeiro passo para tentar desvendá-lo,
légios naturais, obnubilando, no caso em questão, o pa- compreendê-lo e fazer a sua crítica?
pel das condições sociais na obtenção de um capital cul-
tural que está na origem de uma das formas de divisão Nota dos editores: Em 15 de maio de 2001, o Diário Oficial da
União publicou a seguinte lei do Congresso Nacional:
Art. 1º. O art. 295 do Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 –

16
Código de Processo Penal, passa a vigorar acrescido dos seguintes
Lembre-se que, para Bourdieu, a dominação simbólica as-
parágrafos:
senta-se na cumplicidade daqueles que lhe são assujeitados, e que a
§ 1º. A prisão especial, prevista neste Código ou em outras
reconhecem porque ignoram seu caráter arbitrário. O reconhecimen-
lei, consiste exclusivamente no recolhimento em local distin-
to da cultura legítima, por parte daqueles que dela estão privados
to da prisão comum.
(mesmo quando reconhecem essa privação), é pois condição essen-
§ 2º. Não havendo estabelecimento específico para o preso
cial de manutenção da dominação cultural. É todo um estoque de
especial, este será recolhido em cela distinta do mesmo esta-
pesquisas empíricas sobre as práticas culturais dos franceses que esse belecimento.
sociólogo vem realizando, desde os anos 1960, que lhe permite con- § 3º. A cela especial poderá consistir em alojamento coletivo,
cluir que “As diferentes classes sociais se distinguem menos pelo grau atendidos os requisitos de salubridade do ambiente, pela con-
em que reconhecem a cultura legítima do que pelo grau em que elas a corrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento
conhecem” (Bourdieu, 1983, p. 94). térmico adequados à existência humana.
17
É desnecessário lembrar que foi em torno da problemática da § 4º. O preso especial não será transportado juntamente com
desigualdade de oportunidades escolares entre os grupos sociais, que o comum.
girou quase toda a pesquisa em Sociologia da Educação que se de- § 5º. Os demais direitos e deveres do preso especial serão os mesmos
senvolveu a partir de fins dos anos 1950. Para uma excelente revisão do preso comum.
dessa literatura, remetemos o leitor a Forquin (1995). Art. 2º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

114 Jan/Fev/Mar/Abr 2001 Nº 16


Prisão especial e diploma de ensino superior: uma aproximação crítica

CARLOS ROBERTO JAMIL CURY fez seu mestrado e douto- , (1998b). O capital social: notas provisórias.In:

rado na PUC-SP e realizou estudos de pós-doutorado em Paris, na BORDIEU, P. Escritos de educação (Maria Alice Nogueira e Afrâ-

René Descartes e na École des Hautes Études. É professor titular nio Cattani, orgs.) Petrópolis : Vozes.
aposentado da Faculdade de Educação da UFMG e professor do
, (1983). Gostos de classe estilos de vida. In: ORTIZ, R.
Mestrado em Educação da PUC-MG. Tem muitos artigos e ensaios
(org.). Pierre Bourdieu. São Paulo : Ática.
publicados, além dos seguintes livros: Ideologia e educação brasi-
leira: católicos e liberais (Cortez & Moraes, 1978); Eduação e con- CHAUÍ, Marilena, (2000). Brasil: mito fundador e sociedade auto-
tradição; elementos metodológicos para uma teoria crítica do fenô- ritária. São Paulo : Editora Perseu Abramo.
meno educativo (Cortez & Autores Associados, 1985); Legislação
DA MATTA, Roberto, (1990). Carnavais, malandros e heróis. Rio
educacional brasileira (DP&A, 2000).
de Janeiro : Guanabara.

ESPÍNOLA FILHO, Eduardo, (1976). Código de Processo Penal


MARIA ALICE NOGUEIRA doutorou-se em Ciências da Edu-
Brasileiro anotado. Rio de Janeiro : Borsói.
cação pela Universidade de Paris V e realizou estudos de pós-douto-
rado no Laboratório de Sociologia da Educação do CNRS/Universi- LAFER, Celso, (1992). A Mentira: um capítulo das relações entre a
dade de Paris V. É professora da Faculdade deEducação da UFMG. ética e a política. In: NOVAES, Adauto (org.) Ética. São Paulo :
Publicou Educação, saber e produção em Marx e Engels (Cortez & Cia das Letras & Secretaria Municipal de Cultura.
Autores Associados, 1990); Pierre Bourdieu: escritos sobre educa-
FORQUIN, Jean-Claude (org.), (1995). Sociologia da educação; dez
ção (Vozes, 1998); com Nadir Zago e Geraldo Romanelli, organizou
Família & escola (Vozes, 2000) e, com Lea Pinheiro Paixão, dirige a anos de pesquisa. Petrópolis : Vozes.

coleção “Ciências Sociais e Educação”, na Editora Vozes. FRANÇA, R. Limongi, (1977). Enciclopédia Saraiva de Direito. Vol.
61. São Paulo : Saraiva.

MIRABETE, Júlio Fabrinni. (1997). Processo Penal. São Paulo :


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Afrânio Cattani, orgs.) Petrópolis : Vozes. Letras.

Revista Brasileira de Educação 115

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