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ANPEd/ Carta de Caxambu


Ao Povo e às Autoridades Constituídas

Em resposta a todas as iniciativas que determinam, posições, os interesses e as mais firmes convicções do
atualmente, o aviltamento e a deterioração da educação coletivo que a ANPEd representa. Assim, a Associação
no país, considerando os princípios e compromissos que conclama todos aqueles para quem a educação, mais do
orientam historicamente sua prática, a ANPEd – Asso- que um privilégio de poucos, constitui-se em direito de
ciação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Edu- cada um, a denunciar o autoritarismo expresso:
cação vem a público: • pelas atuais políticas de avaliação centralizadas
• denunciar as graves circunstâncias que ameaçam nos resultados em todos os níveis de ensino e
a construção desse projeto coletivo e democráti- sua utilização como instrumento do Estado de
co de educação pública, gratuita e de qualidade; Regulação Social;
• reafirmar seu irrestrito compromisso com a ins- • pelo descomprometimento com a educação in-
tituição do direito à educação, como sentido e fantil e de jovens e adultos;
como prática; • pela ausência de políticas concretas para a edu-
• rejeitar a submissão da política educacional às cação de todos os grupos étnicos constituintes
orientações de organismos financeiros interna- da nação brasileira, assim como dos portadores
cionais; de necessidades especiais;
• conclamar a sociedade brasileira a compartilhar • pelas políticas de exclusão relativas à educação
de suas preocupações e reivindicações. no campo;
A desmedida centralização na condução dos desti- • pelo desvirtuamento do sentido de autonomia uni-
nos da educação pública, o sistemático desprezo pelos versitária que obriga as IES a buscar fontes al-
pronunciamentos dos fóruns e instâncias de deliberação ternativas de recursos para garantir a concreti-
colegiada, bem como o recurso, cada vez mais freqüen- zação das finalidades de ensino, pesquisa,
te, a procedimentos burocráticos impositivos estão entre extensão e práticas culturais.
as tendências de gestão governamental que ferem as dis- • pela introdução de um novo modelo de pós-gra-

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duação stricto sensu que induz à descaracteri- rantir a regularidade, expansão e autonomia na-
zação da formação à pesquisa, mediante a im- cional da pesquisa e da formação de pesquisa-
plantação de mestrados profissionalizantes – su- dores;
postamente capazes de substituir, em alguns • participação efetiva da sociedade nos processos
casos, o mestrado acadêmico; de concepção, implementação e avaliação da
• pelo progressivo aligeiramento da formação de educação pública brasileira;
professores, em cursos que visam apenas à • processos de avaliação dos programas de pós-
certificação formal daqueles que se deveriam graduação que contemplem plenamente o exer-
qualificar para o exercício da profissão; cício da liberdade acadêmica e científica;
• pela adoção de procedimentos que, fazendo uso • apoio aos projetos educacionais dos movimen-
indevido de instrumentos da democracia, previs- tos sociais do campo;
tos constitucionalmente, como as «audiências • implementação de mecanismos que divulguem e
públicas», acabam por dissimular práticas que que incorporem as contribuições que o avanço
legitimam decisões unilaterais e restritivas. da pesquisa educacional, em seus diversos cam-
• na concentração de tecnologia em favor de poucos, pos, vem oferecendo à sociedade brasileira;
em detrimento do amplo acesso da população; • democratização do acesso e do uso criativo e crí-
Eis porque, reunidos em Caxambu, os associados tico das novas tecnologias, bem como a imple-
da ANPEd reafirmam suas históricas posições quanto à mentação de políticas de ciência e tecnologia
exigência de: voltadas para o atendimento das necessidades da
• efetiva universalização da educação básica para população brasileira.
crianças, jovens e adultos; Assim, esperam os três mil pesquisadores e pes-
• garantia de uma universidade pública, gratuita e quisadoras, docentes e estudantes signatários dessa car-
de qualidade social; ta expressar sua contribuição ao movimento mais amplo
• condições dignas de trabalho, remuneração, car- que, delineado em todo o mundo e, em especial, na Amé-
reira, formação inicial e continuada dos profis- rica Latina, realiza a criação de alternativas democráti-
sionais de todos os níveis e modalidades da edu- cas para os países desse continente.
cação;
• recursos que possibilitem a garantia de atendimen-
to público e de qualidade das necessidades edu- Caxambu, 28 de setembro de 2000, no centenário de
cacionais em todos seus níveis e modalidades; nascimento do educador Anísio Teixeira, defensor da
• recursos compatíveis com a necessidade de ga- democracia educacional brasileira.

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Contribuição Apresentada pela ANPEd nas


Audiências Públicas sobre as “Diretrizes
para a Formação Inicial de Professores da
Educação Básica Em Curso de Nível
Superior”, Promovidas pelo Conselho
Nacional de Educação *

Iria Brzezinski
Secretária Geral da ANPEd
Professora Titular da UCG
Pesquisadora Associada da UnB

Primeiras considerações pública, sobre as Diretrizes Curriculares para a Forma-


ção de Professores para a Educação Básica.
Venho à presença dos senhores Conselheiros, em A ANPEd, neste ano, comemora 25 anos de exis-
nome da Presidente da Associação Nacional de Pós- tência. Na verdade, ela foi institucionalizada como as-
Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), Prof.ª sociação em 1978, porém a idéia de sua fundação re-
Nilda Alves, a quem represento neste momento, reiterar monta a 1976, logo, neste ano festeja-se seu jubileu de
meus cumprimentos ao Conselho Nacional de Educação prata. Quero lembrar que a ANPEd constitui uma socie-
(CNE) pela iniciativa de convidar diversas entidades da dade civil, que congrega programas de pós-graduação
sociedade civil, para se pronunciarem, em audiência stricto sensu em Educação, professores e estudantes vin-
culados a estes programas e demais pesquisadores da
área. Seu quadro social é composto por sócios, das se-
* A ANPEd esteve presente em todas as audiências regionais
guintes categorias: sócios institucionais, que somam 51
realizadas para discutir a Proposta de diretrizes para a formação
Programas, e sócios individuais, que se reúnem em 19
inicial de professores da educação básica, em cursos de nível supe-
Grupos de Trabalho (GT).
rior, a saber: Porto Alegre, 19.03.2001, representada por Alfredo
A identidade dos GT é consubstanciada, sobretu-
Veiga Netto, (Vice-Presidente); São Paulo, em 20.03.2001, represen-
tada por Elsa Garrido (Vice-Presidente); Goiânia, em 21.03.2001,
do, pelas pesquisas voltadas para temáticas educacio-
representada por Iria Brzezinski (Secretária Geral); Recife, em
nais específicas. Dos GT, cito o de “Formação de Pro-
21.03.2001, representada por Janete Faria Lins de Azevedo; e Belém fessores”, organizado em 1983, com a denominação
do Pará, em 23.03.2001, representada por Nilda Alves (Presidente). “Licenciaturas” e que vem se dedicando, historicamen-
O texto acima contempla as intervenções feitas nas audiências regio- te, aos estudos e pesquisas a respeito da formação de
nais pelos diversos representantes e especificamente na audiência professores para a educação básica, embora essa ques-
nacional, realizada em Brasília, em 12.04.2001, na qual a ANPEd foi tão interpenetre as temáticas de outros GT.
representada por Iria Brzezinski (Secretária Geral). Lembro ainda que a Associação vem participando

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de diversos fóruns em que são discutidos os desdobra- vivenciado pelos envolvidos na questão das diretrizes
mentos legais decorrentes da LDB – Lei n. 9394/96, entre curriculares para a formação de professores da educa-
eles as Diretrizes Curriculares. ção básica, em curso de nível superior. Negando a afir-
A trajetória de pesquisa da ANPEd sobre a política mação de Veyne (1982) de que “a história fala daquilo
de formação de professores e sua articulação com ou- que jamais se verá duas vezes”, vê-se nos dias atuais,
tras entidades, compartilhando princípios, permitiu não por mais de duas vezes, a repetição de um fato histórico,
só acumular um acervo substantivo referente às propos- porém agora marcado pelo ineditismo dos tempos, dos
tas de diretrizes, mas também estabelecer amplos diálo- espaços e dos atores. Refiro-me ao fato que se repete
gos sobre o assunto, chegando a um pensamento comum. continuamente no jogo das interações que se apresen-
Esse pensamento está registrado em um documen- tam nas sociedades modernas, o da existência de dois
to, do qual a ANPEd é signatária, que será apresentado mundos bem definidos: um mundo do sistema – o ofi-
ao CNE, nesta audiência, pelo Fórum Nacional em De- cial – e outro, o vivido – o real.3
fesa da Formação do Professor.1 Esse Fórum é o repre- No processo de construção das diretrizes curricu-
sentante legítimo das associações científicas e sindicais lares, a cisão entre esses mundos da sociedade brasi-
que não se vergaram às arbitrariedades do Decreto leira mostra-se com muita nitidez. De um lado, o mun-
n. 3.276/99, que “dispõe sobre a formação de professo- do do sistema que, aportado nas políticas de princípios
res para atuar na educação básica”. As entidades que neoliberais, saúda a globalização excludente como si-
integram o Fórum engendraram uma luta nacional, a fim nal inquestionável de progresso e de pós-modernida-
de assegurar a formação de professores em âmbito uni- de, reafirmando parcerias com organismos internacio-
versitário. Com essa luta já se obteve algum êxito com o nais. De outro, o mundo vivido, construído na luta
que preceitua o § 2º, do artigo 1º, do Decreto n. 3.554/ travada desde 1980 pelo Movimento Nacional de Edu-
2000. cadores, que propõe a adoção de uma política global
Diante de circunstâncias tão adversas das políticas de formação e de profissionalização docente. Essa po-
educacionais do atual governo que investem contra a lítica precisa considerar a Universidade como locus de
formação de professores na Universidade, garantida des- formação inicial e promover a valorização do profis-
de 1931 pelo Estatuto das Universidades Brasileiras, sional da educação por mecanismos adequados de for-
deve-se admitir que o Decreto n. 3.554/2000 “foi uma mação continuada, de melhoria das condições de tra-
meia-vitória, mas foi uma vitória”.2 Essa vitória se efe- balho, de uma carreira do magistério estimulante e de
tivou pela ação política imediata de denúncia feita pela salários dignos.
sociedade civil organizada em entidades educacionais A defesa da política global de formação e profis-
de representatividade democrática. A meia-vitória diz sionalização do magistério pelo mundo vivido parte da
respeito da substituição do termo “exclusivamente” im- concepção de que o professor é o profissional que domi-
posto pelo Decreto n. 3.276/99 por “preferencialmen- na o conhecimento específico de sua área e os saberes
te”. Tal como se apresentava, o texto legal constituía pedagógicos, em uma perspectiva de totalidade. Isso lhe
uma afronta à autonomia acadêmica da Universidade por permite perceber as relações existentes entre as ativida-
designar somente aos Cursos Normais Superiores a for- des docentes e a globalidade das relações sociais, políti-
mação de professores para atuação multidisciplinar, des- cas e culturais em que o processo educacional ocorre e
tinada ao magistério na educação infantil e nos anos ini- atuar como agente de transformação da realidade.
ciais do ensino fundamental. Com essa identidade, o professor é o profissional
Neste momento, gostaria de analisar o contexto dotado das capacidades, entre tantas outras, de produzir
conhecimento sobre seu trabalho, de tomar decisões em

1
Fórum (2001)
2 3
Expressão usada por Anísio Teixeira, cf. Lima (1974). Dicotomia inspirada em Teixeira (1962).

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favor da qualidade cognitiva das aprendizagens escola- É preciso mencionar que alguns atores, hoje atuantes
res e, fundamentalmente, de atuar no processo no mundo oficial, até há pouco representantes do mun-
constitutivo da cidadania do “aprendente”,4 seja ele crian- do vivido e esperança dos educadores para a transfor-
ça, jovem ou adulto. mação desse modelo de formação imposto, surpreenden-
A identidade do professor como profissional do en- temente, neste processo de construção das diretrizes
sino, tal como foi definida, constrói-se como parte de curriculares, postaram-se do lado do mundo oficial.
um projeto de sociedade que se fundamenta na concep- Quero acreditar que, atualmente, vive-se um pro-
ção histórico-social e tem como paradigma educacional cesso de mudanças e com certas aproximações entre o
as relações entre cultura, sociedade e educação. Esse mundo oficial e o real. Quero acreditar, também, que as
paradigma leva em conta as transformações sociais, das várias audiências regionais e esta audiência nacional
forças produtivas e do mundo do trabalho, transforma- sobre diretrizes curriculares estão sendo realizadas jus-
ções que, dialeticamente, provocam mudanças no papel tamente com o intuito de acatar as sugestões advindas
social do professor. do mundo real e não para dissimular práticas, a fim de
Diante da adoção desse paradigma, com o qual se legitimar decisões previamente acordadas com os “man-
busca a superação das desigualdades educacionais, a datários” do sistema e que vão ao encontro dos interes-
formação do profissional da educação para atuar na edu- ses dos educadores.5
cação básica é entendida como um processo marcado Esclareço que o mundo vivido, do qual tenho a honra
pela complexidade do conhecimento, pela crítica, pela de representar uma pequena parcela, não se coloca em
reflexão-ação e pela criatividade. uma radical posição maniqueísta, segundo a qual tudo o
O mundo oficial, por sua vez, diante da dependên- que vem do mundo oficial é totalmente negativo. Ao con-
cia para com os organismos estrangeiros, financiadores trário, o Movimento Nacional de Educadores reconhece
das políticas educacionais brasileiras, submete-se ao que o modelo atual de formação feita na Universidade
modelo de formação de profissionais da educação implan- precisa ser redimensionado para corresponder às exi-
tado em outros países. Esse modelo institucionaliza pre- gências da sociedade do conhecimento e do alicerce do
ferencialmente a formação fora da Universidade e preo- sistema educacional – a educação básica. O mundo real
cupa-se muito mais em conceder uma certificação do que reconhece também a importância da diversidade de locus
conferir uma boa qualificação aos futuros professores do de formação de professores em nosso país de muitos
sistema educacional e aos leigos que nele atuam. “brasis”; adverte, porém, que reconhece essa diversida-
Decorrente desse modelo, o preparo do professor de como solução transitória, com tempo de duração de-
centra-se no desenvolvimento de competências para o finido e avaliada institucional e externamente.
exercício técnico-profissional, consistindo, pois, em uma O que o mundo vivido não pode aceitar é a multi-
formação prática, simplista e prescritiva, baseada no plicidade de locus e de modalidades de formação pro-
saber fazer para o aprendizado do que vai ensinar. Infe- postas pelo sistema, acopladas à defesa da livre iniciati-
lizmente esta é a concepção de formação de professores va, que poderá instalar qualquer tipo de instituição e
predominante no documento do CNE sobre as diretrizes cursos presenciais e a distância, sem que, por um lado,
curriculares para a formação inicial de formação de pro- se assegure a necessária qualidade de ensino e, por ou-
fessores da educação básica em nível superior. tro, estabeleça-se como horizonte, em um futuro próxi-
mo, um único ponto de chegada: a formação inicial de
4
Termo utilizado por Shulman (1986) para designar aquele profissionais da educação na Universidade.
“ser que aprende” como autor de sua própria aprendizagem, em um Gostaria, neste momento, de destacar que houve um
trabalho coletivo e participado. Neste sentido, esse conceito é dife- esforço da Comissão Bicameral do CNE para fazer al-
rente do significado dado tanto ao estudante que se isola para estudar
5
como ao atribuído ao aluno (do grego – sem luz) que ouve passiva- Ver ANPEd. Carta de Caxambu: Ao povo brasileiro e às
mente preleções nas aulas. autoridades constituídas, publicado nesta mesma seção.

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terações na Versão Preliminar da Proposta de Diretrizes Ao desqualificar a pesquisa como princípio


(MEC/CNE, fev. 2001), dando mostras de sua sensibi- formativo da docência, a proposta de diretrizes curricu-
lidade para com as contribuições oferecidas pelo mundo lares desvincula a pesquisa do ensino e não leva em conta
real durante as audiências públicas regionais realizadas um compromisso histórico, assumido pela Universidade
em março de 2001, no tocante às questões polêmicas e para a formação de professores, que é o de incentivar a
não consensuais, contidas na proposta de diretrizes cur- pesquisa desde a graduação, com a iniciação científica,
riculares do mundo oficial. até a pós-graduação stricto sensu. Conseqüentemente,
Mesmo assim, julgo necessário retornar a alguns a proposta de diretrizes curriculares deixa explícito que
pontos polêmicos, porque ainda estão presentes na últi- a formação de professores deve ser técnico-profissiona-
ma versão (MEC/CNE, abr. 2001). Peço desculpas por lizante e, sendo assim, distancia-se do entendimento de
tornar o assunto repetitivo, uma vez que muitos pontos que o professor deve ser um profissional culto, crítico e
já foram destacados pela ANPEd nas citadas audiências comprometido com a construção do saber. Fica claro que
regionais e reafirmados também no documento aqui re- a lógica da proposta é a do aligeiramento e da simplifi-
ferido, a ser apresentado pelo Fórum Nacional em De- cação com visível “economia” de conteúdos essenciais
fesa da Formação do Professor, porta-voz do pensamen- para a formação do magistério.
to comum das associações e entidades do mundo vivido.
Organização institucional das escolas
Pontos polêmicos de formação inicial
Saliento o substantivo avanço, na última versão das
Concepção de pesquisa
Diretrizes, quando os elaboradores da proposta apresen-
Reconheço que a última versão das Diretrizes Cur- tam uma nova redação e advogam que: a) a formação de
riculares modificou em parte a enviesada concepção de professores deve ser realizada como um processo autô-
pesquisa quando retirou do texto anterior “que a pes- nomo, em curso de licenciatura plena, numa estrutura
quisa (ou investigação) que se desenvolve no âmbito do com identidade própria; b) os cursos de formação de pro-
trabalho do professor não pode ser confundida com a fessores devem manter estreita parceria com institutos,
pesquisa acadêmica ou científica”(MEC/CNE, fev. 2001, departamentos e cursos de áreas específicas (p. 50).
p. 35). Porém, o grande equívoco suscitado por essa afir- Essa nova redação eliminou da versão preliminar o
mação constante da versão preliminar requer que seja que aparece destacado a seguir “a formação de profes-
melhor explicitada a nova concepção de pesquisa ex- sores deve ser realizada como um processo autônomo,
pressa nas páginas 35 a 37 da versão em vigor. numa estrutura com identidade própria, distinta dos cur-
Com o propósito de contribuir com a necessária sos de bacharelado e dos programas ou cursos de forma-
reflexão sobre a concepção de pesquisa retomo alguns ção de especialistas em educação e mantendo estreita
questionamentos já feitos pela ANPEd. Volto, então, a parceria entre institutos, departamentos e cursos de áreas
perguntar: Existe pesquisa não-científica? Estariam os específicas” (p. 45).
elaboradores do documento tão impregnados da concep- Na opinião da ANPEd, a nova versão ultrapassa a
ção prática do saber-fazer que desconsideram quão cien- concepção existente na versão preliminar de uma escola
tífica é a investigação sobre o cotidiano da realidade de formação de professores que apontava para uma rup-
escolar? Estariam, então, negando o caráter científico tura entre o local de formação e o local onde também se
da pesquisa-ação, da pesquisa participante, da investi- constrói conhecimento sobre cada área específica do
gação sobre o fazer pedagógico? Desse modo, os currículo da escola básica – o bacharelado. A garantia
elaboradores desqualificam a pesquisa como princípio desse forte vínculo orgânico – entre onde se processa a
formativo e cognitivo da docência e se descuidam do formação de professores e onde também se produz co-
vínculo da investigação com os demais componentes do nhecimento sobre as especificidades – deverá favorecer
ato educativo. o intercâmbio entre os saberes próprios de cada campo

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de conhecimento e promover a tão almejada interdisci- universitária. O documento apenas sinalizava que a
plinaridade entre os conteúdos disciplinares e os sabe- Universidade e os Centros Universitários poderiam for-
res pedagógicos. mar esses professores em “outros cursos” que, necessa-
Enfatizo ainda que a nova versão, deixando de se- riamente, não precisavam se denominar Curso Normal
parar os cursos que formam professores dos que for- Superior, curso que a proposta de Diretrizes destina à
mam “especialistas” da educação, passa a reconhecer a formar professores da educação infantil e das séries
trajetória do Movimento Nacional de Educadores que iniciais no contexto dos Institutos Superiores de Edu-
defende a docência como a base da identidade da forma- cação (ISE). Em nenhum instante propunha que pro-
ção dos profissionais da educação, ou seja, que todo pro- fissionais do ensino pudessem ser formados no curso
fissional da educação é um professor. de Pedagogia.
A base comum nacional necessária à formação do- A versão atual passou a reconhecer a existência do
cente, sustentada por esse Movimento, possibilita uma curso de Pedagogia quando, ao se reportar a alguns pon-
formação teórica sólida, bem como a apropriação do co- tos dignos de nota no Decreto n. 3.276/99, alterado pelo
nhecimento sobre o campo de trabalho onde o profissio- Decreto n. 3.554/2000, propõe “a manutenção, no caso
nal deverá atuar, a escola. Desse modo, tal formação ofe- das Universidades e de Centros Universitários, dada sua
rece condições para que o professor que domina a base autonomia, da alternativa de que a formação de profes-
comum nacional como base docente busque as mais di- sores se processe em cursos com outra denominação,
ferentes especializações como forma de aperfeiçoar seu como os de Pedagogia, desde que observadas estas Di-
preparo, tanto na formação inicial como na continuada. retrizes” (p. 16).
Muitos, então, são os avanços. Todavia, na contra- Apesar desse reconhecimento, o mundo vivido jul-
mão da história que vem sendo escrita na luta dos edu- ga que ainda é indispensável avançar no que concerne à
cadores pela valorização dos profissionais da educação, organização institucional e curricular da formação ini-
a última versão da proposta das Diretrizes não reconhe- cial de profissionais para a educação básica, visando
ce que as Faculdades de Educação, com o Curso de Pe- diminuir os dissensos e solicita:
dagogia atualmente ressignificado, já têm dado mostras a) a recomendação explícita da adoção da base co-
de que constituem locus próprio para formar o professor mum nacional, com enfoque na docência, para
da educação infantil e o professor multidisciplinar para todos os cursos que formam profissionais para a
atuar nas séries iniciais do ensino fundamental. No en- Educação, para que se garanta unidade para a
tendimento do Movimento Nacional de Educadores, par- multiplicidade de experiências curriculares, sem
tilhado pela Comissão de Especialistas da Pedagogia da as limitações de um currículo mínimo e sem pre-
SESU/MEC, essa é a organização institucional, já exis- juízo do reconhecimento das instituições de en-
tente, adequada à formação necessária e comprovada sino superior e dos currículos dos estudantes;
pelos 458 cursos no país,6 que formam o pedagogo, que b) a explicitação de que as diretrizes nacionais so-
têm como base a docência no preparo do profissional bre formação do professor para educação básica
para atuar na educação infantil e nas séries iniciais do são aplicáveis à formação de professores que
ensino fundamental. ocorre no curso de Pedagogia;
A proposta de Diretrizes curriculares, na versão de c) o estabelecimento de diretrizes específicas para
fevereiro de 2001, revelava desprezo para com o curso o curso de Pedagogia, como licenciatura plena,
de Pedagogia, pois sequer o citava como lugar de for- com base na proposta da Comissão de Especia-
mação do professor da educação infantil e do professor listas em Pedagogia, de 06.06.1999;
multidisciplinar do ensino fundamental na instituição d) a indicação de diretrizes curriculares específi-
cas para a formação de formadores, isto é, para
6
Dado apresentado por Merion Bordaz (2001), membro da formação de professores do ensino superior que
Comissão de Especialistas em Pedagogia. formam professores;

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e) o fortalecimento da concepção de que os cursos cotidianos, como objeto das pesquisas para solucionar
de formação de professores são cursos de licen- problemas práticos e imediatos.
ciatura plena, com duração mínima de 3.200 Além de conferir ao trabalho do professor um cará-
horas e não habilitações de outros cursos agre- ter muito próximo ao artesanal, a proposta focaliza o
gados a outra graduação; ensino, especialmente, na aprendizagem, com um forte
f) a eliminação da licenciatura de curtíssima dura- destaque para a prática, o que se contrapõe à idéia de
ção em nível superior, com 1.600 horas, legali- formação que se fundamenta na produção de conheci-
zada pela dispensa para os futuros professores mento teórico, mediante a inserção em realidades con-
não só de 800 horas pela prática anterior, mas cretas.
também de 800 horas para aqueles que foram Neste sentido, o mundo vivido solicita: a ressigni-
habilitados em cursos de Magistério, em nível ficação do conceito de competência para ultrapassar o
médio. Na opinião da ANPEd, o aproveitamen- caráter reducionista de um saber prático, assegurando a
to de 800 horas da “prática anterior” como cum- indissociabilidade da teoria e a prática nesse conceito,
primento da prática de ensino exigida pela LDB ou seja, garantindo o entendimento de que a competên-
para todos os cursos que formam professores para cia é centrada na práxis.
a Educação Básica (art. 65) surge na proposta
de diretrizes curriculares como um mecanismo Finalizando
que poderá dissociar na formação do professor o
que, pela natureza conceitual, é indissociável: a Para finalizar, destaco o profundo significado do
teoria da prática; diálogo que audiências públicas, como esta, permitem
g) a aplicação dos mesmos requisitos mínimos exi- que se estabeleça entre o CNE e os representantes da
gidos para a formação de professores feita no sociedade civil interessados na questão educacional. A
âmbito universitário para as instituições não uni- ANPEd mantém-se comprometida com a participação e
versitárias, enquanto a realidade de muitos se coloca à disposição do CNE, neste momento decisório,
“brasis” necessitar dessas instituições, mas que para eticamente firmar uma parceria entre o mundo vi-
elas sejam consideradas como locais transitórios vido e o mundo oficial, com o intuito de que sejam aten-
e não permanentes de formação; didas as solicitações aqui feitas em relação às diretrizes
h) estabelecimento de rigorosos mecanismos de ava- curriculares para a formação de profissionais da educa-
liação externa e de auto-avaliação de todas as ção básica.
instituições e modalidades de formação presen- O desafio que impulsiona tal parceria fundamenta-
cias e não presenciais, a fim de impedir as formas se na certeza de que a composição entre contrários re-
aligeiradas de certificação de professores; sulta uma reflexão mais profunda acerca da verdade e
i) a definição de políticas educacionais e destina- de que, como afirmou Henfil, “não é o desafio com que
ção de recursos de tal ordem que a formação ini- nos deparamos que determina quem somos e o que esta-
cial de todos os profissionais da educação seja mos nos tornando, mas a maneira como respondemos ao
feita na universidade, preferencialmente pública. desafio”.

Caráter iminentemente prático emprestado ao


Referências bibliográficas
modelo de formação de professores.
A maior expressão desse caráter está na concepção
BRASIL. PODER EXECUTIVO, (1932). Decreto n. 19.851, de
de competência adotada, que enfatiza o fazer na prática
11.04.1931, do chefe do Governo Provisório da República dos
pedagógica. Como está definida na proposta, competên-
Estados Unidos do Brasil. Dispõe que o ensino superior do Brasil
cia se restringe a um saber prático que vai se consoli-
obedecerá, de preferência, ao systema universitário. Lei da Repú-
dando na situação de ensino e na vivência de problemas

Revista Brasileira de Educação 123


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124 Jan/Fev/Mar/Abr 2001 Nº 16

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