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Hoje, passados trinta anos, ao se ler os registros daquele acontecimento, parece que Ey
subestimou os efeitos do “paroxismo apaixonado” que dominava os analistas naquela
ocasião. Parece também que, ao “civilizador da Psiquiatria” — era a maneira como Lacan
se referia a Ey — passou desapercebido que lá ocorreu um dos mais importantes
momentos da psicanálise, talvez mesmo seu moderno “divisor de águas”, de cujas
conseqüências ainda se nutrem quase todas as correntes atuais da mesma.
Estiveram presentes neste evento, tanto os defensores de uma psicanálise que ainda
vivia da esperança de uma psicobiologia, bem como seus opositores mais radicais, os
alunos de Lacan. E claro, estavam lá também os que procuravam uma posição
intermediária, que pudesse agradar a todos.
Mas, já naquele início de década, era tarde demais para contemporizações. Há oito anos
Lacan inaugurara seu ensino, onde fundamentava a noção de inconsciente que, ao ser
definido através do axioma “estruturado como uma linguagem” não dava mais margens a
ambigüidades nem a ecletismos quanto ao seu uso. Precisão conceitual que na sua
essência, além do avanço que a referência a Saussure continha, produziu um retorno ao
sentido da obra de Freud, muito mais que a sua letra.
No primeiro dia, Ey abriu o colóquio com uma abordagem do inconsciente, algo ingênua,
aproximando-se da questão pelo fato de ser “desconhecido” da consciência, reduzindo
com isso o inconsciente ao “fora do conhecimento”.
Dando seqüência às exposições que retratavam as várias acepções que esta noção
recebia na época, Ey foi seguido na sua fala por A. Green que, dentro do tema dedicado
às “pulsões e o inconsciente”, habilmente recortou a relação, candente então, do
inconsciente com a neurobiologia.
Fora o irônico deste título (que outro estudo sobre o inconsciente se esperaria naquele
âmbito de debates, que não o psicanalítico?), por se tratar de um aluno de Lacan, e por
ser o dia dedicado à relação do inconsciente com a linguagem, esperava-se desta
exposição, posicionada desde o “retomo a Freud” pregado pelo ensino de Lacan, que se
enterrasse de uma vez por todas o resquício da compreensão biologizante do
inconsciente, pretendida por alguns dos analistas presentes.
Talvez poucas vezes antes na história da psicanálise tenha havido uma oportunidade tão
propícia de se discutir, profundamente, os vários sentidos que, na obra de Freud, pode
adquirir o seu conceito mór.
Pois para eles, na posição que defendiam naquele momento, seria o sistema pré-
consciente que se relacionaria com a linguagem, sendo, por isto, caracterizada pelo
processo secundário. Eles acrescentariam ainda que, mesmo que se leia em Freud uma
linguagem que funcionaria segundo o processo primário, por exemplo a linguagem da
psicose, esta seria apenas uma linguagem particular, e não “A” linguagem. Pois o
psicótico não consideraria as palavras como palavras, mas as palavras como coisas.
Mais tarde, quando escreveu esta sua intervenção, deixou claro, primeiro, respondendo
aos que assim pensavam, aquilo que o inconsciente não é: “0 inconsciente não é uma
espécie que defina na realidade psíquica o círculo do que tem atributo da consciência” [3].
Para depois afirmar o que ele é: “o inconsciente é um conceito forjado sobre o rastro
daquilo que opera para constituir o sujeito” [4]. Afirmação que deslocava a definição de
inconsciente da sua relação com a consciência, para situá-lo em relação à causação do
sujeito.
Disso se deduz que “os analistas formam parte do conceito de inconsciente, porque são
seus destinatários” [5]; dentro de uma estrutura, o inconsciente depende da relação que
existe entre o sujeito e o Outro, assim expressa:
“Entre o sujeito e o Outro, o inconsciente é seu corte, sua ruptura em ato” [6].
Lacan já havia formulado essas mesmas idéias, embora com outras palavras, em outros
textos, como por exemplo: “0 inconsciente é essa parte do discurso concreto, em tanto
que transindividual, que falta a disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de
seu discurso consciente” [8]. Também no mesmo lugar havia definido o inconsciente
como: “esse capítulo da minha história que está assinalado por um branco ou ocupado
por uma mentira: é o capítulo censurado” [9]. Havia assim, desde muito tempo uma
insistência na função e campo da palavra e da linguagem. Faltava talvez precisá-las. A
crítica de Laplanche apontava este fato.
Talvez por isto, quatro anos mais tarde, ao escrever a sua intervenção em Bonneval,
Lacan assim o definiu: “0 inconsciente, apartir de Freud, é uma cadeia de significantes
que em alguma outra parte se repete e insiste em interferir nos cortes que lhe brinda o
discurso efetivo e a cogitação que ele informa” [10]. A diferença desta formulação das
outras é que nela a linguagem, passa a estar sustentada por uma cadeia significante, o
que era um avanço em relação às posições anteriores, pois dessa maneira passa a ser
pensada dentro de uma lógica própria, e não mais apenas como uma sucessão de
palavras.
Ao voltar, três anos depois, ainda mais uma vez sobre o mesmo argumento contido no
artigo de Laplanche, que sem dúvida o deixou mobilizado, desta vez na introdução que
escreveu em 1969 para a tese universitária elaborada por Anika Rifflet-Lemaire [11], (mais
tarde publicada como um dos tantos livros de “introdução a Lacan”), ao explicitamente
criticar a posição de seu então à ex-discípulo, afirmou mais uma vez: “0 inconsciente é um
saber posto em situação de verdade, o que não se concebe senão numa estrutura de
discurso” [12]. No entanto, embora reafirmasse continuamente sua tese da estrutura de
linguagem do inconsciente, se tornava necessário explicitar psicanaliticamente os termos
importados da lingüística, e demonstrar a especificidade do uso que fazia deles.
Quanto a isso, Lacan nunca conseguiu ser tão claro, como foi numa conversação relatada
por Anika Riffet-Lemaire [13] onde, condensando toda a polêmica causada por sua
concepção, assim rebateu: “Meu enunciado, isto é, que o inconsciente tem uma estrutura
de linguagem, não pode de nenhum outro modo entender-se de outra forma, a não ser
segundo o que afirmava faz um momento, isto é, QUE A LINGUAGEM É A CONDIÇÃO
DO INCONSCIENTE” [14].
Fórmula esta que retomaria em 1970: “Para o analista, pelo contrário, se não participa nos
acontecimentos nos quais se veste o engajamento universitário, não erra seu Homem e o
arroja a um engano como é dizer que o inconsciente é condição da linguagem: aí se trata
de fazer-se autor a custa do que eu falei, inclusive insistido, aos interessados, a saber,
que a linguagem é a condição do inconsciente” [15].
De fato, talvez esta confusão fosse possível, porém só para os que não entendiam a
posição deste termo no ensino lacaniano. Daí o esforço em precisá-la no texto que
registrou sua intervenção em Bonneval, ao qual deu por título: “Posição do Inconsciente”,
texto fundamental, que seria ainda mais uma vez mais reescrito, em 1966, e incluido nos
Escritos.
A evolução do ensino de Lacan a partir deste marco, paradoxalmenteo último texto dos
Escritos, mostrava um esforço em formalizar uma materialidade para o inconsciente, e da
causa do sujeito, o que operaria, por fim, como uma subversão no uso que fazia do termo
linguagem. Este esforço se concretizaria mais tarde com o recurso a noção de “letra”,
entendida como um significante fora do simbólico.
Esta nova posição, a partir dos anos setenta, impôs a idéia de que o que constitui o
inconsciente seria a letra, e não o significante. Então, ao se dizer que o inconsciente está
estruturado como uma linguagem, isto quer dizer que esta não remeteria a uma
lingüística. Pois, de fato, o inconsciente estaria estruturado como uma linguagem, cuja
estrutura, porém, só se revela pelo escrito.
Esta maneira de raciocinar só seria possível após demonstrar que a letra produz no Real
a dissociação do Imaginário e do Simbólico. A letra seria este algo “que vai mais longe
que o inconsciente” [18].
Por que esta nova concepção afetaria a própria doutrina do inconsciente? Porque, se o
que constitui a instância é a letra e não o significante, dizê-lo estruturado como uma
linguagem passa a requerer uma precisão: o inconsciente está estruturado como uma
linguagem, “cuja estrutura só se revela pelo escrito” [19].
Concebida assim, a série significante que sustenta a fala é infinita, e ela suporá sempre a
possibilidade de um recomeço. Porém, ao tomar a linguagem como fundada na escrita,
marca da letra, transforma-se a prática da análise em leitura, e o analista já não opera
mais no lugar onde o significante adquire valor de verdade, lugar do Grande Outro, lugar
da mestria do sentido, da interpretação por acréscimo de sentido. Nesta outra posição,
seu único lugar possível passará a ser o de objeto, um resto fora do significante.
Com isso a prática da análise como uma intervenção do analista que produziria um S3,
por acréscimo de sentido, se deslocou para a intervenção do analista apontando para o
intervalo da cadeia, ou seja, o que acontece entre S1 e S2, intervalo que se repete,
intervalo de pura diferença. Núcleo da noção de significante, morada do objeto pequeno
a.
Opõe-se, desta forma, efeito de sentido e encontro do desejo, pois o que o intervalo da
cadeia impõe é da ordem do sem-sentido. 0 analista não está mais no lugar de S2, mas
sim no de S1, S1 insensato. Pela formalização dos discursos, no discurso do analista, se
apresentaria como o que se produz a partir dos efeitos de um saber colocado no lugar da
verdade.
Isto quer dizer que a partir daí se operou uma mudança radical na direção do tratamento.
Este fato decorreu da passagem da estrutura da linguagem definida como simbólica, para
uma outra, definida desde o estatuto do Real. 0 golpe final do primado do Simbólico sobre
o Imaginário, foi dado quando se demonstrou a incompletude do Simbólico, que foi escrito
S(A barrado). Este “buraco” no Outro, decorre do objeto a, impondo uma prevalência do
Real sobre o Simbólico. Assim, em 1973, Lacan já afirmava: “no discurso analítico só se
trata disso, o que se lê” [24].
Nos próximos anos do seu ensino, acontecerão algumas modificações importantes, todas
elas referentes a relação do Real com o Simbólico, o que o levaria a uma reformulação da
noção de sintoma, culminando em 1974, ao dizer “o sintoma é efeito do Simbólico no
Real..., o que se produz no campo do Real” [25].
0 que o analista escuta na dimensão do dito, na dimensão da escrita, naquilo que Lacan
chamou “Um do Real”, tornará possível a superação do sentido como sendo apenas efeito
da combinatória dos significantes, tornando assim possível um fim na análise. Estas
considerações foram ditas como a possibilidade de haver o “Um”, o que depois ele veio a
chamar de “Um do Real”, ou de “Um-todo-só”. A decorrência disto é que havendo o Um,
implicaria em que não há relação binária, entre os elementos da cadeia significante, mas
sim, efeito de corte entre estes elementos. 0 analista, na posição de objeto, escuta na
dimensão do dito, que é a dimensão do “Um dizer”, do “Um da não relação”. Lacan
encontrou na formula “Y a de 1’Un” a maneira de mostrar o que se precipita no dizer como
escrita.
Lacan introduziu com essas reformulações, uma “substância”, não prevista pela filosofia
nas suas elocubrações sobre o sujeito. Esta substância, essencial ao homem, não seria
nem material, nem pensante, como no critério cartesiano, mas “gozante”, “corporificando-
se de maneira significante” [26].
A linguagem, articulada ao gozo, impõe a metáfora da sua origem, que é a Mãe, e o seu
referente discursivo, a “língua materna”. Assim, para o futuro falante, existem línguas das
quais se abstrai uma, porém, uma única língua, marcada por este gozo, A Língua, ou na
escrita de Lacan: “ALíNGUA”.
A citação completa é como segue: “Se eu disse que a linguagem é isso como o
inconsciente está estruturado, é certamente porque a linguagem, em primeiro lugar, não
existe. A linguagem é isso de que se trata de saber a respeito da função da alíngua... A
linguagem está feita da alíngua, sem dúvidas. É uma elocubração sobre alíngua. Mas o
inconsciente é um saber, um saber fazer com a alíngua. E isso que se sabe fazer com
alíngua supera em muito aquilo que se pode dar conta debaixo a rúbrica de linguagem””
[29].
Lacan ainda mudou este pensamento, no seminário sobre Joyce, ao afirmar que este
autor levaria a alíngua à potência da linguagem, quer dizer, fez de S2 da alíngua o S1 da
linguagem, carente de todo sentido, puro gozo. No Seminário 20, ainda estava se
referindo à operação lingüística, que conseguiria criar um saber sobre o significante, a
partir da alíngua. Em Joyce, ao contrário, seria a partir da alíngua que se extrai uni
significante que não é lingüístico, esse desenvolve a potência da linguagem até a sua
própria destruição.
Para substituir o que antes cabia na designação da lingüística, mas que pela alíngua fica
subvertido, Lacan criou o termo “lingüisteria” que “permitiria abordar a questão da
significação em diferença ao sentido”. A lingüisteria seria a afirmação da relação
necessária que o analista tem com a linguagem, e que é irredutível à lingüística. A
lingüisteria estaria relacionada com a realidade contigente da linguagem em tanto
fundante do sujeito, porém, ela mesma, dependendo da alíngua.
Com isto ficou encerrada uma das possibilidades da acepção do Simbólico em Lacan, um
Simbólico que recobriria o imaginariamente Simbólico, que seriam as pregnâncias do pré-
consciente. Lacan formalizou, para sustentar a consistência da linguagem, condição do
inconsciente, um Simbólico que traduz a lógica do significante, subditado ao Real. Com
esta nova acepção, Lacan inaugurou uma “clivagem” [34], uma “zona de fronteira” entre
saber e gozo. Nesta última tendência do seu ensino, a interpretação não aponta mais ao
significado, mas ela está fora do sentido, ela é algo que se busca na própria natureza do
Real.