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Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões

metodológicas do relato oral e produção de narrativas


em estudo sobre a profissão médica*
Qualitative research in health studies: methodological reflections on the oral
account and narrative technique in a study on the medical profession

Lilia Blima Schraiber


Departamento de Medicina Preventina da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo - Brasil

Foi realizada pesquisa qualitativa aplicada à saúde coletiva e medicina social, baseando-se em estudo acerca das
transformações históricas da autonomia profissional dos médicos na passagem da medicina liberal para a atual
medicina tecnológica. A pesquisa de campo valeu-se de entrevistas abertas e gravadas para colher depoimentos
pessoais sobre histórias da vida profissional de médicos formados entre 1930-1955. Caracterizados tecnicamente
como "relato oral", os depoimentos foram registrados na forma de narrativas livres. Os relatos são considerados
quanto à capacidade de expressarem a auto-representação dos médicos sobre seus cotidianos de trabalho, bem
como registrarem a história da prática médica. Avalia-se a entrevista aberta como instrumento de produção de
narrativas livres e relatos de vida.

Pesquisa, métodos. Prática profissional, história. Medicina social.

Introdução de relatos acerca do trabalho cotidiano. Esses


relatos referem-se a momentos históricos de
O presente texto traz reflexões de natureza importantes transformações na autonomia dos
metológica e operacional acerca da pesquisa médicos, eqüivalendo para a sociedade brasilei-
qualitativa em saúde, tomando por base a inves- ra aos últimos 50 anos.
tigação realizada em um estudo sobre o médico O objetivo do estudo foi o de alcançar
e seu trabalho 22,23 . Motivado por questões rela- informações sobre o trabalho médico no Brasil,
tivas à organização dos serviços de saúde não só para obter a história da passagem da
quanto à inserção dos médicos em ações medicina liberal para a medicina especializada
integradas com a saúde pública, ou relativas à e "armada" dos dias atuais -à qual se denominou
interdependência das ações médicas medicina tecnológica-, como também obter as
especializadas, o referido estudo constituiu a representações dos médicos acerca desse pro-
autonomia profissional desses trabalhadores, cesso e de si mesmos enquanto agentes técnicos
seu objeto de investigação. e sujeitos históricos.
A medicina foi examinada enquanto traba- Do ponto de vista da produção dos dados, o
lho social e os dados empíricos foram extraídos estudo primeiramente recorreu ao dado já

*Pesquisa subvencionada pela Financiadora de Estudos o Projetos/FINEP (Processo n° 4.2.88.0228.00) e Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq (Processo n° 303696/85-MP). Trabalho baseado na Tese de Doutorado do
autor - "Medicina liberal e tecnologia: as transformações históricas da autonomia profissional dos médicos em São Paulo",
apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 1988. Apresentado ao I Encontro Nacional de Antropologia
Médica, Salvador, 3 a 6 de novembro de 1993.
Saparatas/Reprints: Lilia Blima Schraiber - Av. Dr. Arnaldo, 455 - 2° andar - 01246-903 - São Paulo, SP - Brasil
Edição subvencionada pela FAPESP. Processo 94/0500-0.
Recebido em 13.7.1994. Aprovado em 3.1.1995.
registrado, valendo-se de três tipos de fontes: Técnica e Arte do Trabalho de Campo
textos da história da medicina no Brasil, textos
de debate acerca do exercício profissional pu- Escolhendo Modo e Técnica para a Coleta dos
blicados no período histórico em pauta e, por Dados
fim, textos biográficos. Essas fontes, contudo,
não foram apropriadas para evidenciar o cotidi- Como todo processo de trabalho 15 , a produ-
ano da prática profissional. ção de dados empíricos na pesquisa também
Em razão do singular desenvolvimento coloca um ardil: encontrar a melhor construção
social brasileiro, no entanto, houve a possibili- operatória pela qual, a partir das hipóteses cien-
dade de acesso direto a personagens partícipes tíficas, evidenciam-se provas, ou seja, respostas
do mencionado processo histórico. Isto porque, produzidas pelo cientista, com base em méto-
como mostra o estudo, a transição de um a dos, técnicas e instrumentos de investigação. A
outro modo de produzir os serviços médicos no prova, pois, o cientista capta do real, não só por
Brasil ocupou cerca de 40 a 50 anos, possibili- razões de técnica, mas por ter sido capaz de, ao
tando que esta passagem fosse vivenciada por eleger e exercitar técnicas em seu trabalho de
poucas gerações de sujeitos, alguns dos quais campo, fazer renascer o objeto de seu estudo5.
ainda vivos por ocasião da pesquisa. Assim, a No presente caso, tratava-se de escolher a
investigação de campo buscou entrevistá-los modalidade de pesquisa capaz de percorrer a
para a produção de narrativas com a qualidade dimensão técnica da prática médica, caminhan-
de testemunhos pessoais. do pelo interior desse trabalho. Mas, simulta-
Todos os critérios acima traduziram-se na neamente, tratava-se de visualizar, no técnico,
seleção de médicos cujo início da profissão a dimensão social. Vale dizer, evidenciar a
deu-se entre 1930 e 1955, buscando-se um intervenção médica em sua estruturação técni-
resgate das "histórias da vida de trabalho", o ca, por ser parte da vida em sociedade. Tratava-
que foi orientado por um roteiro de questões se, ainda, de captar nesse percurso as relações
muito amplas e um estímulo à livre narração. entre o médico e sua prática, permitindo ver na
Os entrevistados foram levados a refletir sobre base material desse trabalho a inscrição do
seu dia-a-dia profissional, trabalhando a "hipó- agente e vice-versa, estudando-se, assim, a di-
tese" central do estudo: a formulação de que a mensão subjetiva das práticas e a concreta cons-
autonomia profissional, perdendo espaço na tituição dos sujeitos nas ações.
esfera mercantil, busca centrar-se na dimensão Por referência à autonomia profissional, a
técnica interna ao processo de trabalho, em um abordagem proposta demandava evindenciá-la
movimento que corresponde à sua transforma- como técnica e como representação do traba-
ção, para preservar-se enquanto possibilidade lho médico, qualificações em que a autonomia
objetiva na profissão. se estabelece, quanto às condições objetivas
Tratando-se de testemunho acerca de seu desse trabalho, como ferramenta adequada e
próprio trabalho e estimulando um pensamento necessária, e, quanto ao imaginário profissio-
sobre questões tão caras à medicina, tais como, nal, como ideal de trabalho.
a tecnologia, a qualidade da intervenção técni- Considerando que se tratava também de
ca, o papel social da prática médica ou o signi- um estudo em que todas essas dimensões deve-
ficado do desenvolvimento científico e profis- riam expressar-se no movimento histórico da
sional, esta produção de narrativas por médicos prática médica, dentre as possibilidades de pes-
constituiu rica experiência da perspectiva da quisa qualitativa 13,18,21 , a escolha recaiu sobre a
pesquisa científica. Não se poderia, por isso modalidade orientada para produzir relatos em
mesmo, deixar de refletir a esse respeito. um misto de lembranças das histórias pessoais
Assim, tomando-a como ponto de partida, da vida de trabalho com reflexões mais gerais
mas também valendo-se de bibliografia especí- sobre o trabalho médico e sobre o movimento
fica sobre a pesquisa qualitativa nas Ciências de suas transformações.
Humanas, desenvolveu-se no presente texto No pólo empírico da pesquisa, a técnica
algumas considerações acerca dessa metodolo- que lhe foi mais adequada é a da entrevista e,
gia de pesquisa e da técnica do relato oral por entre seus diversos tipos6,17,19, o estudo desen-
entrevista aberta, tal como utilizadas pelo estu- volveu uma abordagem que estimulasse narra-
do em questão. tivas mais livres do entrevistado. Impôs-se,
contudo, limites de temáticas, tentando-se, ao É esse processo de re-produção que valida
mesmo tempo, garantir que as questões estipula- o trabalho com representações e situações sin-
das pelo roteiro prévio fossem todas recobertas. gulares para se examinar acontecimentos
Com base na modalidade de relação coletivos e fatos sociais. Sendo cada relato a
estabelecida entre o pesquisador e o entrevista- forma pessoal de expressar o grupo ou o social,
do, Queiroz19 delimita dois tipos de relatos, o que cada pessoa relata, e o modo como relata,
considerando a forma mais ou menos espontâ- são construções que se determinam na vida em
nea com que o entrevistado produz sua fala, sociedade. Por um lado, sendo construções,
Assim, mesmo no interior das entrevistas correspondem a um modo de relatar e, por isso,
mais abertas foram encontradas situações em a entrevista produz sempre uma interpretação
que é o pesquisador que define os temas e daquele que relata, trabalhando na própria sub-
conduz sua abordagem; controla o entrevistado jetividade a objetividade do real. Mas, por ou-
mais prolixo e impõe limites, definindo cortes tro lado, seu conteúdo, seja relatando o presen-
e a própria conclusão do trabalho. Há, porém, te ou como recordação, não é exatamente úni-
entrevistas em que o tema sugerido é, por si co, senão a experiência pessoal no interior de
só, amplo, e o entrevistado terá uma narrativa possíveis históricos bem determinados, experi-
totalmente livre, conduzindo-a a seu ritmo ência que dependerá da forma pela qual o
e suficiência. Esta última constitui as histórias narrador posiciona-se socialmente e que lhe
de vida, enquanto que a primeira forma, mesmo produz as concepções acerca do real das quais
tratando da experiência vivida, contitui, con- lançará mão em seu relato14,24.
forme a autora, os depoimentos pessoais. Esta Os médicos entrevistados falam, pois, so-
modalidade é a que melhor expressa a escolha bre a medicina liberal, sobre as tensões dessa
técnica da pesquisa ora examinada. prática ao crescer o modo tecnológico de pro-
Mas basear a investigação na produção de dução dos serviços e sobre as repercussões
um pensamento sobre a experiência vivida dessas tensões na dimensão técnica do traba-
significa centrá-la nas representações dos lho, mostrando formas historicamente encon-
sujeitos, o que, de um lado, constitui a opção tradas para a preservação do exercício autôno-
de se estudar uma realidade social e coletiva mo. Simultaneamente, expressam concepções
por meio de narrativas individuais e vividos acerca do movimento de mudanças que experi-
singulares, e de outro, pretender verificar mentaram. Tudo isso, ao relatarem, porém, o
não apenas o que esses sujeitos percebem que cada um individualmente viveu.
dos diferentes modos de produzir serviços Em segundo lugar, o que se relata, mesmo
médicos, mas a própria existência objetiva des- sendo pensamento e pensamento individual,
ses modos. Essa metodologia introduz relativa- não se reduz a uma impressão subjetiva. É
mente à aproximação do objeto em estudo, produto de uma elaboração intelectual especí-
pois, duas ordens articuladas de questões: o fica, porque é produto de um pensar que é
social e o coletivo por referência ao individual- trabalho, trabalho de refletir e recordar. Por
singular que o apreende; e o real objetivo isso não é apenas sentimento, mas a reconstru-
por referência à dimensão subjetiva que o ção do vivido em nova objetivação: toda refle-
evidencia. Essas são questões que a grande xão é trabalho da memória*.
maioria dos textos de referência para esta O que foi experimentado no passado e
modalidade de investigação, termina por mesmo o que se concebe do presente, é externado
trabalhar 1,2,3,4,9,11,12,19,20 . enquanto trabalho de reflexão próprio, distan-
A este respeito observou-se, em primeiro ciando-se dos juízos do senso-comum: o relato
lugar, que da perspectiva de se buscar o acon- é um pensamento especialmente produzido. A
tecido através de sua representação no relato entrevista que o suscita deve ser vista como
individual, esses textos exortam a grande van- uma experiência particular e não como uma a
tagem da técnica de expressar o coletivo, o qual mais do cotidiano. A entrevista recorta o coti-
pode-se recuperar nas narrativas obtidas, por diano no objeto que propõe à reflexão e o
meio de uma riqueza ímpar: o coletivo explora- interrompe por meio desta reflexão, ou como
do pela reconstrução pessoal. Trata-se da * O conceito é extraído de H. Lefebvre16 e significa: o
re-produção* do fato social na experiência repetitivo que gera diferenças. Daí, inclusive, o modo de
pessoalmente vivida e na reflexão que a relata. grafá-lo (re-produção).
diz Caldeira 7 , a entrevista produz "... uma in- seu efetivo constituinte 10,19 *.
terpretação que é, em geral, uma ordenação Por todas essas observações, tal como se-
original de coisas velhas, de pedaços de ima- rão consideradas adiante, a pesquisa exigiu
gens, experiências, opiniões, etc., que a memó- certos cuidados na produção e no processamento
ria guardou. Esta interpretação (...) é uma visão intelectual do material obtido, impondo-se a
mais global do que se pode ter no cotidiano". adoção de determinados princípios gerais que
No presente estudo, também se observam orientaram todo o trabalho com o empírico.
cotidianos e se examina a vida de homens-
comuns; mais precisamente, a prática profissi- Princípios Técnicos e Cotidiano da Pesquisa
onal dos médicos-comuns, cujo registro nem
sempre ocorre. Esta prática expressa o modo de A produção das narrativas deve delimitar
produzir os serviços médicos nas condições do alguns procedimentos próprios, tais como defi-
dia-a-dia, em que o ato médico uniforme e nir quem, até quando e quantos sujeitos serão
único enquanto modo genérico de medicina, é entrevitados. Além disso há que se lembrar que
re-produzido nas desiguais situações de traba- a técnica ora discutida produz grande volume
lho concretamente existentes na sociedade; re- de material coletado.
produção que, na particular situação de traba- Selecionar sujeitos, no presente caso, le-
lho experimentada individualmente pelo médi- vou em consideração alguns pressupostos: in-
co, significa reelaboração dos pressupostos e serção na produção de serviços na forma predo-
expectativas homogêneas dos médicos, enquan- minante ou exclusiva da medicina de mercado
to pensamento coletivo acerca do trabalho mé- e, pois, médicos-comuns; pertencer ao coletivo
dico ideal. de agentes de trabalho "liberal"**, exercendo
Ao mesmo tempo, o estudo buscou uma práticas de intervenção clínica e cirúgica, em
recuperação de acontecimentos passados, mas suas modalidades mais gerais; e, como critério
que se faz no presente: o entrevistado não só primeiro dado no recorte inicial do objeto de
trabalha a experiência vivida no momento atual, estudo, praticar a medicina em São Paulo, com
como é levado a recuperar seu passado pelas a graduação profissional entre 1930-1955.
questões do presente, questões problematizadas Essas características indicam qual a posi-
diretamente por ele, assim como pelas proble- ção que os entrevistados ocupam na medicina,
máticas que o pesquisador lhe coloca. delimitando quais representações e memória
Por tudo isto o relato sempre será uma grupal inscrevem-se, portanto, nas narrativas.
lembrança individual, "um ponto de vista sobre Também a procura dos sujeitos foi orien-
a memória coletiva" 4 , formas ricas na amplia- tada pelo critério de maior facilidade de con-
ção, na profundidade e na diferenciação com tacto, no sentido de serem "médicos bastante
que se trabalha o coletivo. Mas também, por acessíveis", tendo em vista a dificuldade na
isso mesmo, cada momento de entrevista e cada obtenção de relatos em investigações dessa
relato completado formam subtotalidades que natureza, sobretudo considerando a categoria
se deve respeitar. A constituição de um todo a profissional em pauta. Trata-se aqui da pergun-
partir dos singulares, na reconstituição do acon- ta que o entrevistado se coloca e coloca ao
tecimento social, deve considerar que os depo- pesquisador: "por que eu fui o escolhido?". As
imentos podem se orientar em direções diferen-
tes e até contraditórias. Trata-se da autonomia * A bibliografia pertinente situa no exame interpretativo do
relativa da parte ou do singular; autonomia que, material coletado os cuidados relativos à sua aproximação no
de fato, ocorre, mas não é capaz de anular a sentido de captar o plano do coletivo. Aponta, também, possível
inscrição simutânea do coletivo naquilo que é suporte nesta tarefa: a complementação das narrativas com
outras formas de investigação ou com dados de outra natureza,
relatado. Esta inscrição poderá ser resgatada produzidos em obsrvações diretas ou como material já
desde que se tome o coletivo como tendo quali- registrado.
dade própria por referência a seus constituintes * * O termo liberal grafa-se sob aspas pelo fato de que no Brasil
parcelares, o que significa tanto eleger o ponto esse período, usualmente reconhecido como medicina liberal,
de vista interpretativo pelo qual se reconstrói a não exibe as mesmas condições de outros países quanto a essa
modalidade de trabalho, uma vez que a medicina do pequeno
totalidade em estudo, quanto admitir que cada produtor privado e isolado, em boa parte de seu tempo,
parte individualizada não precisa repetir tudo o conviveu com o trabalho assalariado, a medicina dos Institutos
que se passa no plano do coletivo para que seja ou previdênciária 23 .
razões da escolha são mais facilmente aceitas permitiu sempre boa recepção e disponibilida-
quando referidas a situações dos extremos só- de do entrevistado para com a pesquisa, refor-
cias: elite e homem-comum do povo. Nelas, por çando a manutenção desse princípio. Mesmo as-
motivos opostos, o entrevistado reconhece a sim, em 19 contactos, registraram-se 5 recusas.
importância de seu relato. De todos os médicos que aceitaram parti-
Para o indivíduo que é tido e se vê como cipar, a primeira "geração" de indicados (2
representante de grupo, isto é, que adquire uma médicos) foi objeto de pré-teste (16 horas e 30
identidade de elite, a importância de seu depoi- minutos de gravação) e outros 3, mesmo cons-
mento é socialmente difundida e ele próprio a tituindo "gerações" posteriores, foram abando-
reconhece; para aquele, no extremo oposto, cuja nados logo após o primeiro contato, em razão
oportunidade da fala constitui rara situação, é o de erro involuntário na indicação. Foram obti-
fato de ser então valorizado, que conta para sua das 9 entrevistas. Gravadas, elas produziram,
aceitação em participar da entrevista. no total, 38 horas de material registrado.
É mais difícil explicitar razões quando es- Esse número de situações seguiu o critério
tas não coincidem com nada especial, senão com de "exaustão" ou "saturação" 3 , segundo o qual
seu contrário: o grande conjunto de pessoas que o pesquisador verifica a formação de um todo e
constituem grupos quaisquer na sociedade e que reconhece a reconstituição do objeto no con-
podem ser destacadas de seu interior para repre- junto do material. Porém esse não é, de forma
sentar o seu grupo, mas não exatamente por ser alguma, critério obrigatório.
ele indivíduo específico, senão "comum" -um A eleição de critérios que balizam a técni-
qualquer dentre os do mesmo grupo. ca de coleta dos depoimentos depende do objeto
Os médicos, em geral, não são concebidos e em estudo e do específico campo empírico de
não se autoconcebem exatamente na categoria de investigação. Essa característica de critérios
homens-comuns, mas como grupo muito especial móveis contrasta com outras técnicas de inves-
de sujeitos sociais, cujo trabalho, além disso, tigação, cujas normas são fixas e bem mais
funda-se na concepção do segredo profissional. independentes por referência aos objetos parti-
Assim, se por um lado, podem entender a necessi- culares de estudo. Mas vale aqui lembrar que a
dade do relato ou a relevância da pesquisa, por adoção de critérios implica perspectivas
outro, detêm a noção de que seus procedimentos, interpretativas do material pertinentes.
principalmente os da dimensão técnica, não devem Ademais, o rigor nos critérios de seleção
ser do conhecimento público. Estão dispostos, dos entrevistados, como também seu número,
pois, a falar sobre a medicina, talvez até sobre a liga-se a questões de controle sobre dados fal-
prática de outros, preferencialmente anônimos... sos ou comportamentos "desviantes"13,19. É a
Porém, usualmente, a não ser entre pares (médi- situação em que o pesquisador tenta assegurar-
cos), não falam de si ou de seus cotidianos. Além se de que colherá o dado pertinente e que
do que, não tendo sido eleito enquanto sujeito conseguirá obter a prova que necessita frente a
especial, torna-se ainda mais difícil explicar as suas hipóteses. Mas nesta modalidade de pes-
razões de sua particular participação. quisa, seja o dado inesperado ou os comporta-
A seleção dos médicos obedeceu, pois, a mentos pessoais inesperados ("desviantes"),
um princípio especial: não se realizar ao acaso, também podem ser produtivamente explora-
mas por meio de mecanismos reconhecíveis dos. Esse "controle" dá-se no momento "analí-
pelos próprios entrevistados como formas de tico", isto é, inscrevendo no exame do material
escolha confiáveis, isto é, formas conhecidas e, o inesperado ou destoante. De igual modo,
de certo ponto de vista, também sob controle pode ser suficiente apenas um relato de experi-
deles próprios. Os entrevistados foram, assim, ência vivida, que convenientemente estudado
contactados mediante a indicação interpessoal, pode fornecer conhecimentos relevantes acer-
em que, a partir de médicos próximos e conhe- ca da vida social.
cidos do pesquisador, surgiram as primeiras Além da saturação, outros critérios foram
indicações, das quais surgiram novos médicos formulados ao longo do desenvolvimento da
e assim por diante, o que conformou "gera- investigação, referidos a procedimentos que
ções" de sujeitos indicados. não podem ser regidos por mecanismos fixos "a
A menção a cada novo contacto sobre o priori". O melhor modo de se obter o relato ou
entrevistado anterior e seu "encaminhamento" quando encerrá-lo são problemas que se resolvem
apenas no desenrolar da narrativa. Isto porque são ferramentas importantes no processo da
a técnica se funda na exploração de questões entrevista, mas que apenas ganham sentido no
que o pesquisador previamente traz, em conju- momento concreto do relato em produção.
gação com a presença do dado novo, este últi- O roteiro, em particular, assume o papel de
mo criado no momento da entrevista. guia da narrativa e é utilizado para orientar o
Mesmo que o pesquisador já domine ques- pesquisador na colocação de temas estimulantes
tões da história que indaga e muito embora do relato, constituindo apoio ao trabalho da
cada participante já tenha para si uma história reflexão ou memória auxiliar. Deve-se percorrê-
guardada, por ocasião da entrevista, como reto- lo subordinadamente à dinâmica que o próprio
mada deliberada e provocada dessa história, entrevistado dá à narrativa e respeitando a
ela será efetivamente refeita: pelo entrevista- seqüência das questões que o relato produz.
do, através de associações, repetições ou Algumas temáticas surgem como questões já
desqualificações de idéias cujos nexos se cons- problematizadas e certas informações aparecem
tróem no presente da entrevista; pelo pesquisa- relatadas espontaneamente, sugerindo questões
dor, na dinâmica do relato - pelos fatos que este relevantes para o narrador e como expressão
traz e em seus encadeamentos, totalmente ori- também da memória grupai. Outras têm que ser
ginais, na narrativa. sistematicamente estimuladas pelo pesquisador.
Assim, o modo pelo qual o pesquisador Entre as primeiras, no presente estudo ob-
pode intervir produtivamente não tem norma servam-se, por exemplo, a perda da autonomia
fixa e não se repete de uma a outra entrevista. mercantil e o assalariamento do médico, ou
Não possuindo princípios que de antemão defi- rotina e a impessoalidade da prática, decor-
nem o momento e a direção da intervenção, a rentes da massificação e institucionalização
entrevista conduz sempre a uma atualização do da medicina. Mas, a mais significativa questão
roteiro, fundada na avaliação subjetiva das foi, sem dúvida, o Estado como grande produ-
potencialidades do diálogo. tor, interferindo diretamente na dinâmica mer-
Eis porque elementos como a simpatia ou, cantil, o que é trabalhado, via de regra, sob a
como já se mencionou, o conhecimento prévio forma de protesto contra a política pública para
dos sujeitos a serem entrevistados, não configu- o setor. Como ilustração do segundo conjunto
ram nessa técnica fator inconveniente. Muito de informações, foram observadas as questões
pelo contrário, contituem norma favorável, por- referentes à autonomia técnica e ligadas à inti-
que a técnica se fundamenta exatamente na au- midade do processo de intervenção, dimensão
tenticidade e veracidade discursiva do entrevis- sempre muito preservada de reflexão e, sobre-
tado, cujo depoimento o pesquisador quer com- tudo, de indagações. Assim, a especialização
preender -e não contestar ou, mesmo, testar. ou a inovação tecnológica concreta são aspec-
O núcleo do procedimento técnico, neste tos que, quando referidos, são colocados como
caso, requer, pois, do entrevistado, o compromis- atributos "naturais" da medicina, parecendo
so declarado com suas concepções e valores, e a quase não necessitar de "reflexão".
disposição moral de evidenciá-los. E do pesqui- O relato mais espontâneo parece reservado
sador, requer a capacidade de estabelecer, com o para aspectos tidos como "genéricos" da profis-
entrevistado, relação pessoal e íntima, para que são: os outros; o saber científico; o desenvolvi-
este se sinta à vontade no relato4,20,21. mento tecnológico em abstrato. Ou, aspectos "ex-
Assim, o "controle" sobre a investigação, ternos": o governo; as instituições; a crise econô-
que se dá mais no sentido de garantir a presença mica do país. Reserva-se, ainda, do ponto de vista
das questões que a pesquisa coloca, da história, para o que se crê "perdido": o lado
freqüentemente se faz com base em critérios negativo da mudança, isto é, o que deixa de ser
criados no momento da entrevista. Eis porque o valorizado, segundo o imaginário profissional.
diálogo estabelecido na relação pesquisador - Raramente, ao contrário, os entrevistados
entrevistado deve ser adequadamente articula- supuseram a necessidade de contar ou de valer-
do ao próprio objeto de estudo, residindo o se de uma fala mais densa que a mera constata-
"controle" do processo da entrevista sobretudo ção, para os aspectos opostos aos anteriores: o
neste domínio intelectual do pesquisador. Por caso profissional particular, com suas mazelas
isso, também, de forma bastante flexível, quer e dificuldades do dia-a-dia; o relato do interior
o roteiro, quer a intervenção do pesquisador, da prática, em que se evidencia a abordagem do
doente para sua assistência e a formulação do ção detalhada dos vários aspectos envolvendo
julgamento ou decisão médica; ou, diante do a estruturação da prática profissional, a qual foi
desenrolar histórico, as mudanças "positivas", tomada desde o seu início, mantendo-se essa
como a incorporação dos equipamentos ou a descrição mais "densa" como eixo de aproxi-
"cientificidade" "aumentada" da prática ma- mação do transcurso da prática até momentos
terialmente armada. recentes, destacando-se em especial a reflexão
Alguma reflexão mais crítica, portanto, relativa ao trabalho do consultório privado.
parece importar apenas para as "perdas" histó- Buscando verificar, justamente, a estrutu-
ricas ou as adversidades, do passado ou do ração dos exercícios profissionais concretos e
presente, quase nunca articulando, em um mes- particulares diante dos modos vigentes de pro-
mo pensamento crítico, a totalidade dos aspec- dução de serviços médicos na sociedade brasi-
tos e qualificações do exercício profissional. leira, observando, inclusive, de que forma es-
Este último posicionamento, inclusive, os sas estruturações"acompanharam" as transfor-
faz mudar, no tempo, a "fronteira" do que lhes mações históricas dessa sociedade, e, princi-
pertence, o que nos é evidenciado por mudan- palmente, tentando verificar a posição do mé-
ças do alvo merecedor de reflexão crítica e, dico em sua prática, o roteiro conduzia a temas
pois, objeto da narrativa mais espontânea, à como: a finalidade do trabalho profissional; os
proporção que o relato percorre diferentes instrumentos e equipamentos, além de técnicas
momentos da história pessoal recordada. É o de intervenção utilizadas; as relações de cada
que ocorre, por exemplo, quando falam de sua trabalho com outros serviços médicos; cada
participação pessoal na construção de suas con- clientela e seus doentes como objeto da inter-
dições de trabalho relativamente à prática libe- venção; e, essencialmente, atos concretos de
ral, quando os mecanismos sociais conforma- realização do cuidado médico, como processo,
dores da produção na modalidade consultório isto é, a atividade do trabalho. Para facilitar o
privado não são reconhecidos enquanto forma relato acerca desse último aspecto, estimulou-
social e estruturada de autonomia técnica e se a descrição de situações marcantes no exer-
mercantil, parecendo-lhes sempre algo seu: cício profissional vivido, incentivando os ca-
esforço pessoal, vocação individual e reta con- sos e os exemplos, ainda que a narrativa mais
duta moral na profissão. Ao passo que, na livre logo conduza a fala para essa direção.
medicina tecnológica, o compromisso pessoal Da mesma forma que o uso do roteiro,
para com as condições de trabalho (quaisquer delimitar o tempo de duração e o momento de
delas), apontado no momento anterior, é o que encerrar a entrevista foi algo estabelecido no
deixa de ser reconhecido, por não mais se transcorrer do trabalho de campo. De um modo
incluir, mesmo enquanto produção de setor geral o tempo é longo, mas não se pode fixá-lo
privado, como algo "interno" à fronteira técni- previamente, além do que varia para cada situ-
co-profissional, repercutindo diretamente no ação. Da perspectiva do encerramento da entre-
conceito de autonomia e em seus pólos: liber- vista, o cumprimento dos itens do roteiro, como
dade e responsabilidade. conteúdo mínimo da reflexão prosposta, pode
Nos relatos, essa forma distinta de trata- ser um bom ponto de partida, porém, de modo
mento das questões (do superficial ao pensa- algum indica o término do trabalho de produ-
mento crítico mais articulado), indica-nos a ção das narrativas. Como trabalho de reflexão,
importância que cada conjunto de temas adqui- sua conclusão está dada pela suficiência de
re para o entrevistado. E a observação deste tratamento dos temas e quando estes se esgo-
aspecto, expressivo quanto às concepções acerca tam como forma de alimentar o diálogo, o que
da medicina como trabalho social e quanto à novamente se pode demarcar apenas no interior
auto-representação, tornou-se possível em ra- da dinâmica dos relatos.
zão do temário previsto pelo roteiro. Este per- Esse conjunto de envolvimentos do pes-
corria não só a vida de trabalho, mas a vida em quisador com o objeto que investiga confere
família, no lazer e na escolarização. Ademais, uma qualidade muito viva ao processo, em um
percorria a vida experimentada nos vários mo- caráter de permanente construção de modelo
mentos decorridos desde a infância, por onde, operatório da própria investigação, o que traz
inclusive, se iniciou a entrevista. No plano da ao pesquisador quase sempre muitas dúvidas.
vida de trabalho, o roteiro estimulava a descri- Desse ponto de vista alguns procedimentos
complementares à entrevista podem orientar sas as concepções e as problemáticas que valo-
melhor o processo, como é o caso dos sempre rizou, por referência às do entrevistado, seja
referidos, nessa modalidade de pesquisa, "ca- porque as questões trazidas remetiam a um
dernos de campo" em que são anotadas as vivido pessoal (do pesquisador) referido a uma
próprias percepções do pesquisador acerca da época histórica muito diversa daquela em que o
investigação em curso. entrevistado vivenciou a maior parte de suas
Não obstante, é o conhecimento do objeto de experiências profissionais. O pesquisador, por-
estudo e das questões que foram selecionadas tanto, terminou por produzir algumas falas dis-
para trabalhá-lo que muito auxiliam nos juga- tantes do entrevistado, em uma linguagem que,
mentos e decisões, exigindo do pesquisador do- a este, foi, muitas vezes, estranha.
mínio sobre a pesquisa tal que torne seus proce- O processo da entrevista, desse ângulo,
dimentos uma forma viva de exercício de subje- representou processo de aprendizado para o pes-
tividade teoricamente fundamentada, isto é, o quisador, no sentido de encontrar modos ade-
próprio pesquisador como instrumento de inves- quados de participar, até certo ponto, das mes-
tigação e não apenas em mero portador de impres- mas concepções e da mesma forma de pensar a
sões pessoais. Além disso e nesse mesmo sentido, realidade que o entrevistado possui, sobre o
sem prentender que todos os procedimentos presente e sobre o passado. A entrevista, assim,
adotados tornem-se regras universais, para que o não é só uma forma de entender e captar o outro,
processo não resulte em uma ação subjetiva pes- mas de se fazer entender, e tanto a história de
soal, deve-se estabelecer princípios que presidam vida como a posição social e científica distinta
a intencionalidade da ação técnica na pesquisa, do pesquisador relativamente ao entrevistado,
ainda que a estratégia de conduzi-los dependa introduzem linguagens divergentes.
fundamentalmente de cada relação interindividual Em parte decorente do mesmo princípio
que se consegue estabelecer. anterior e em parte com base nestas últimas
Embora alguns princípios já tenham sido observações, houve a necessidade de se fazer
mencionados, eles podem ser assim sintetiza- um "contrato" de trabalho bastante preciso,
dos. Um primeiro princípio tomou a entrevista esclarecendo o mais possível o objeto e o recor-
como meio de conhecimento, conforme já se te temático escolhidos para a pesquisa; as ra-
considerou no presente texto. Fundou-se, por- zões, os sentidos e as pretensões da pesquisa; e
tanto, a ação do investigador no fato de que não a forma indicativa de organizar o trabalho de
se tratava de uma polêmica, um embate políti- investigação: como, quando e onde se fariam as
co-ideológico, nem um teste de conhecimentos entrevistas, bem como a duração presumível de
ou objetivações neutras de "verdade absoluta". cada sessão ou do número de sessões desejável.
O fundamento residiu na necessidade de en- Também o pesquisador deve colocar-se autên-
contrar formas de apreender, com clareza, as tico e veraz na relação com o entrevistado.
representações próprias do entrevistado e o Da perspectiva dessa organização do tra-
diálogo transcorreu sempre no sentido de re- balho de campo, as explicitações foram no
cordação dos fatos e esclarecimentos dos valo- sentido de que iria tratar-se de um trabalho
res, incentivando o trabalho de reflexão em ambos relativamente prolongado, com o uso de grava-
os sentidos. A intervenção do pesquisador se dor, com sessões de gravação não muito curtas
pautou em falas bastante explícitas para que se e sobretudo por meio de sessões repetidas,
pudesse questionar o entrevistado o mais aberta- critérios fixados com base na experiência das
mente possível, mesmo que, dada a busca de primeiras entrevistas. Essa explicitação das "re-
produzir narrativas livres, tanto se a reduziu ao gras do jogo" foi de grande importância, pois é
indispensável, quanto se lançou mão do roteiro freqüente o indivíduo contactado pensar que se
apenas quando suas questões não eram trabalha- trata de pesquisa de curta duração ou com
das espontaneamente, o que foi feito sempre questinários padronizados, e a ocorrência opos-
com sugestão de temas em sua forma mais geral. ta, por fugir ao esperado, parece requerer expli-
Não obstante, ocorreram alguns impasses cações mais detalhadas.
de conversação. Foram situações em que, mes- O trabalho de campo ocupou cerca de qua-
mo involuntariamente, a sugestão foi formula- tro e meia sessões de gravação por entrevista-
da de modo inadequado, o que ocorreu seja do, variando de três até nove para um mesmo
porque, para o pesquisador, de fato eram diver- sujeito, em razão da disponibilidade e prolixi-
dade de cada narrador. A duração que se conse- tações feitas acerca do local de trabalho, quan-
guiu obter em cada uma das sessões de grava- do as entrevistas realizaram-se no consultório
ção marcou um tempo que quase sempre se particular (o que ocorreu em 6 dos 9 casos).
pautou no próprio cansaço do entrevistado, Em muitas ocasiões registraram-se infor-
fruto do trabalho de reflexão e de narrar, ocu- mações que o próprio entrevistado fornecia
pando mais freqüentamente uma hora de grava- fora da gravação, as quais não foram poucas ou
ção, sendo o máximo atingido o de duas horas irrelevantes. Pode-se mesmo dizer que uma
de gravação, em uma mesma sessão. outra entrevista se passa nos intervalos, na
Repartir a narrativa por várias sessões de "hora do cafezinho", ou ao término da sessão,
gravação mostrou-se produtivo sob dois pon- após concluída a gravação. As falas nesses
tos de vista. Primeiro porque, para o próprio momentos são descontraídas e recobrem assun-
trabalho de refletir e lembrar, o intervalo de- tos de todos os tipos: o entrevistado opina sobre
corrido de uma a outra sessão produziu a entrevista, sobre os médicos, sobre a medici-
efeitos relevantes, verificado no fato de que na, sobre sua vida e se inteira da vida do pesqui-
quase sempre ao início de cada sessão, mesmo sador, comenta a técnica, a possível participa-
que parecesse já trabalhado determinado tema ção de outros colegas, e assim por diante. São
na etapa anterior, o entrevistado espontanea- extremamente valiosas, pois, esssas anotações.
mente solicitava o registro de outros novos De outro lado, esses momentos informais
aspectos lembrados, por ter prosseguido em de aproximação são vitais para a própria rea-
sua reflexão após o registro anterior. Em se- lização da investigação, uma vez que determi-
gundo lugar, esse intervalo permitiu combi- nam as bases da relação interpessoal, com a
nar, ao uso do caderno de campo, o estudo formação de vínculos que ultrapassam o for-
sistemático do segmento discursivo já grava- mal, criando-se laços de amizade, simpatia e
do. E assim foi feito, precedendo cada nova confiança, pelo mútuo interesse que se estabe-
sessão, o que permititu explorar com mais lece - e há que se dar de fato - pela pessoa que
segurança as narrativas, à medida que se vi- ali está. A transformação do narrador em objeto
nham produzindo. de pesquisa morto e paralisado retira qualquer
O conjunto desses critérios fez com que se possibilidade de serem criadas relações efeti-
evitasse entrevistar mais que dois sujeitos, na vamente capazes de dar conta de um trabalho
mesma etapa do trabalho de campo, o que, de investigação dessa espécie. Além disso,
somado ao tempo gasto com localização, con- essa postura não significa, para qualquer dos
tactos e efetivação da entrevista, produziu uma dois sujeitos, esforço negativo: ao contrário,
duração global de 6 meses para este trabalho, expressa a cumplicidade do mútuo empenho
parâmetro a ser considerado também na delimi- para se produzir o relato e para se conservar,
tação da quantidade de relatos a serem produzi- no tempo, o depoimento e a historia 4,8 .
dos e no dimensionamento da investigação Quanto ao uso do gravador, este instrumen-
empírica. to, de fato, "representa uma ampliação do poder
Na produção das informações, combinou- de registro" 20, pela produtividade maior da ope-
se o uso sistemático e articulado de dois instru- ração e pelo registro de viva voz. Permite captar
mentos de registro, os quais, como já dito, e reter por maior tempo um conjunto amplo de
foram; o gravador e o caderno de campo. Este elementos de comunicação de extrema importân-
último serviu para anotar diversos tipos de cia: as pausas de reflexão e de dúvida ou a
dados, operação feita sempre ao final de cada entonação da voz nas expressões de surpresa,
sessão, identificando-a no caderno. Foram ano- entusiasmo, crítica, ceticismo, ou erros - elemen-
tações referidas à própria experiência vivenciada tos esses que compõem com as idéias e os concei-
na entrevista, através da efetivação de suas tos a produção do sentido da fala, aprimorando a
técnicas de abordagem e obtenção dos relatos, compreensão da própria narrativa.
avaliando-as no sentido de sua eficácia, produ- Mas gravar implica um trabalho dispendi-
tividade e impasses para a investigação. Tam- oso e difícil de transcrição de todo o material
bém se registraram informações sobre o entre- obtido. Trabalho que, se é possível fazer reali-
vistado, seu comportamento geral na entrevista zar-se à medida que são produzidas as narrati-
e em particular quanto aos temas e à dinâmica vas, economizando tempo de processamento de
com que transcorriam. Foram valiosas as ano- dados, requer razoáveis parcelas de recursos
financeiros, além de demandar conferência da ção de campo, trabalho em que se produz uma
própria qualidade da transcrição. É, porém, etapa forma própria de objetivação dos temas seleci-
obrigatória, já que facilita o manuseio posterior onados: objetivação cientificamente fundada,
dos registros e, por ser a fita material perecível, diferenciando-se de outros discursos acerca do
termina-se perdendo o registro como documento real. Desta perspectiva as narrativas prescindi-
de arquivo. riam deste terceiro momento de trabalho.
O uso do gravador introduz, de outro lado, Mas optando-se, no presente estudo, por
pela presença da própria máquina (o "terceiro" interpretá-las para produzir outros mais resul-
participante), a consciência de que o fiel retrato tados, as narrativas foram lidas como histórias
da narrativa e na forma exata de sua enunciação, particulares de modelos genéricos de profissão
está se tornando público, por vezes inibindo o e que contam as várias estruturações concretas
relato ou trazendo a excessiva preocupação do exercício profissional, cujos perfis indivi-
com desempenho pessoal. duais estarão, em alguns casos mais e noutros
Mas a necessidade da transcrição ou a menos, próximos da condição tecnológica
presença desse "outro" na entrevista são ape- geral do modo de produção de serviços em que
nas pequenos problemas, pouco alterando as se inscrevem. Da perspectiva totalizadora, en-
vantagens da gravação como forma de registro. tão, o leque de estruturações registrado foi
Após a gravação, um primeiro trabalho abordado como um conjunto, sem deixar
com o material, o da transcrição, representa a de levar em conta a singularidade de cada
passagem da forma oral para a linguagem escri- história produzida. Para tanto, é preciso, pri-
ta, de modo fiel ao contido na gravação. Isto meiro, dominar o todo de uma mesma história,
exige tanto selecionar um adequado profissio- para poder confrontá-lo com outra. Impregnar-
nal, quanto o acompanhamento da atividade, se de cada todo, é o termo que a literatura
este último, aspecto importante, já que o pro- específica consagra a este proceder20. O desta-
fissional da transcrição raramente domina o que a fragmentos, que aparece na abordagem
linguajar próprio de segmentos técnicos deter- de conjunto e, portanto, comparativa dos rela-
minados, ou..."a língua dos médicos", assim tos singulares, pressupõe que se tenha apreen-
como há o "sociologuês", o "economês", e dido o sentido próprio do fragmento na totali-
outros... Para se ter uma idéia do tipo de traba- dade do pensamento do qual é separado, tal
lho que envolve, vale destacar que cada hora como buscou-se realizar.
gravada produziu, em média, 30 laudas Como as narrativas, além de ferramentas
datilografadas, em espaço de aproveitamento de aproximação das representações, foram tam-
máximo da lauda, o que produziu um volume bém tomadas como instrumentos de observa-
total de 1.142 páginas de material coletado. ção da prática, sem desconhecer a ocorrência
Um segundo trabalho com o material, o de de falas mais descritivas ou mais opinativas,
edição, significa definir critérios de editoria e foi o todo do discurso conformado que se exa-
forma de publicação, o que no presente caso minou. A leitura das narrativas se fez, portanto,
seguiu critérios de "anonimato" dos informan- não só quanto às representações, mas igual-
tes, maior concisão e continuidade nas narrati- mente através das representações, para alcan-
vas e individualização dos relatos, excluindo- çar os procedimentos concretos pelos quais se
se, no texto final, as intervenções do pesquisa- organizaram e se transformaram os exercícios
dor e optando-se pela ordenação temporal das profissionais. Assim, o modo específico pelo
histórias, iniciando-se com o depoimento do qual foram trabalhadas as idéias, as noções e as
médico mais antigo na profissão e concluindo- concepções do pensamento médico supôs
se com o mais jovem 22 . considerá-las como constituintes da prática do
Um último trabalho realizado foi o exame médico, articuladas ao exercício profissional
totalizador e a leitura trans-individual dos re- que dotam de significação. Podem, assim, relatá-
latos. Nesse sentido, há que se mencionar o lo, situando nele o agente técnico e sujeito
duplo caráter desse material: ao mesmo tempo histórico; ao mesmo tempo que sendo processo
dado empírico para a exploração de dimensões de significação, representam a construção de
transcendentes ao singular, tanto quanto já re- pensamento acerca do trabalho e sua história. A
sultado do estudo. Como resultado é produto realização do trabalho analítico com o material
de trabalho específico no interior da investiga- buscou alcançar todos estes sentidos.
Considerações Finais explorar de duplo modo a dimensão subjetiva
do trabalho médico.
À guisa de conclusão das presentes refle- Da perspectiva de estudo histórico, esta
xões, seria importante algumas observações, forma de investigação empírica possibilitou,
ressaltando o que se considera contribuições do de fato, inscrever a cotidianidade na dinâmica
presente estudo acerca do trabalho médico, de mudanças observadas, ao longo do período
com base na metodologia da pesquisa qualita- de tempo considerado. E esta possibilidade é
tiva e na específica técnica ora examinada. especialmente importante no caso da história
O caráter do instrumento de pesquisa mui- da medicina, em razão dos mencionados des-
to amplo, sua definição sob princípios operativos vios de registro histórico, que valorizam quer
muito genéricos e a grande dose de decisões os feitos pessoais, quer os fatos científico-
pessoais do pesquisador no curso de sua utili- tecnológicos, enquanto a natureza própria da
zação no trabalho de campo, têm sido os aspec- memória neste campo.
tos mais polêmicos quanto à tecnicalidade des- Já enquanto estudo da prática médica como
ta forma de investigação. São eles, porém, ao trabalho social, ao resgatar um modelo de tra-
mesmo tempo, sua marca mais produtiva. É balho, o pensamento médico acerca desse mo-
exatamente esta sua natureza que permite me- delo e a auto-representação de seus partícipes,
lhor explorar a subjetividade como objeto de o relato oral expôs as percepções acerca do
conhecimento, já que promove resgate das cotidiano articuladamente à reconstituição
dimensões sujetivas dos processos sociais que objetiva deste. Permitiu-se, assim, não só co-
respeita o todo complexo de sua constituição. nhecer o pensamento de personagens técnicos
Tal capacidade nos é evidenciada por ser o acerca de processos sociais, mas revelar alguns
relato oral a apreensão da subjetividade na aspectos éticos e lógicos de sua forma de pen-
forma de um pensamento externalizado, vale sar: a produção de narrativas mais livres,
dizer, a narrativa. Trata-se, assim, da objeti- reconstituindo esse pensamento, fez emergir o
vação de pensamentos, por meio da constru- valorizado e o desqualificado, bem como o
ção de um pensar. problemático e o natural, para as percepções
Por isso, credita-se à pesquisa qualitativa singulares e para seu conjunto, o pensamento
e particularmente à produção de narrativas, a médico. Sua leitura, então, possível, nos fará
característica de ferramenta extremamente apro- compreender a cultura profissional, as imagens
priada para o estudo das as representações. No idealizadas acerca da prática e como se auto-
presente caso, o estudo desdobrou-se em repre- concebem, na história e na sociedade, estes
sentações acerca da realidade objetiva da práti- cujas práticas técnicas os situam enquanto pri-
ca médica e em auto-representações, permitindo vilegiados atores sociais.

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Abstract

Qualitative research as applied to Public Health and Social Medicine is studied. The project is based upon research
into the historical transformation of medical professional autonomy as medicine shifted from the "liberal" practice to
recent "technological" medicine. Field research used unstructured recorded interviews to gather perssonal testimonies
about the professional histories of physicians who graduated between 1930 and 1955. These testimonies are
technically classified as "oral accounts" and were registered as free narratives. This study analysis how accounts can
express the physicians' self-representations of their daily work and simultaneously write the history of medical practice.
Further, the unstructured interview is evaluated as an instrument yielding free narratives and life accounts.

Research, methods. Professional practice, history. Social medicine.

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