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Vanguarda e pedagogia
Toda poética ambiciosa é também uma pedagogia.
A pintura cubista é a melhor – e única, nesse sentido –
explicação do cubismo. Só depois, quando a pintura cubista conquistou
sua condição de possibilidade por seus próprios meios, isto é, quando
a sua linguagem acumulou a massa crítica de muitas “explicações”, foi
possível traduzi-la em palavras. Essa passagem só se completa quando
o cubismo, agora, explica a gramática.
A percepção de que o espaço perspéctico é uma construção
morfológica corresponde a um processo de desnaturalização das causas
que percorre todos os campos do conhecimento. Eventualmente, essa
onda se voltaria sobre si mesma, isto é, sobre o assombroso e comezinho
terreno em que a linguagem e o real se entretecem indiscernivelmente.
Desde então, a arte se tornou, sobretudo, uma discussão sobre os
mecanismos lingüísticos que produzem o valor de arte. Na verdade, hoje
sabemos, ela nunca foi outra coisa, contudo, para que a entendêssemos
assim, foi preciso colocar suas várias pedagogias sob a perspectiva
desse novo conteúdo.
Nem tudo é arte, mas certamente tudo é linguagem. Como
então demonstrar o momento em que a linguagem se torna arte senão
pela sua torção? E, já que tudo é linguagem, como estabelecer esse
retorno da linguagem sobre si mesma sem pressupor uma indistinção
entre arte e vida, entre visualidade e palavra, entre forma e conceito de
forma, entre arte e conceito de arte? Uma pedagogia adequada a esse
conteúdo tem que se valer de uma poética em que essas fronteiras com
que nos habituamos sejam exatamente o ponto em questão.
A Casa Klabin é um gabinete de objetos de arte, um
antiquariato, um lugar vulgarmente associado à arte. Mas onde está a
arte? Na autoria das pinturas, nas peças catalogadas da prataria e da
louça, nos móveis, nos tapetes, onde? Será que a arte se deixa definir
assim pelo gosto de uma senhora em viagem? E mesmo que tudo aquilo
seja autêntico e que o gosto da senhora seja impecável, por isso mesmo,
não ressoaria com mais razão a pergunta sobre o que faz daquilo arte?
Será o preço, a galeria de arte, os traços indiscutíveis do gênio, o aval
dos especialistas, o quê?
O valor de arte não tem garantias, não tem rede de segurança, é
uma atribuição solitária, mas nunca desinformada. A falta de informação,
no caso da arte, é a informação corrente. É essa a informação que está
na base dos juízos e ela é absolutamente democrática, como o atesta a
própria casa. Nenhuma pintura moderna, com exceção de um pequeno
Pissarro, muita coisa pesada e presunçosa, tudo em nome da arte.
Não é minha intenção criticar a coleção, contudo, ela se presta, por
si só, a uma discussão preliminar sobre o valor de arte – e acho isso
tão evidente que me parece impossível que o artista desconsiderasse
esse dado. Mais ainda, creio que ele partiu disso e tirou um proveito
calculado da premência com que essa questão se coloca ali.
O que o visitante de uma exposição de arte espera? A resposta
é a visibilidade das obras. Nuno Ramos propõe um jogo interessante.
Ele nega a satisfação dessa expectativa por meio de algo tão opaco
quanto a face porosa de uma lápide de granito. Ele poderia criar esse
impedimento por qualquer outro meio. Essa escolha precisa, por isso,
revela um apuro formal na opção por aquela pedra, com aquele peso,
aquele corte, aquela cor. Esse cuidado sugere uma barganha. O artista
propõe uma troca e dá garantias, permite que o espectador olhe por trás
da pedra e, nesse momento, surpreende-o com o reflexo da coisa na
face polida. A coisa se plasma na superfície da pedra que a contém e
a detém na superfície. Impenetrável, ela permite, no entanto, que uma
imagem da coisa se forme para nós, espectadores. Imaginar que o artista
pretendeu devolver o valor de arte a si mesmo não parece convincente,
porque armários, quadros e tudo mais, não têm qualquer valor em si
mesmos. Só há reflexão para nós e não parece haver uma devolução e
sim uma absorção tão superficial que insinua, de fato, uma rejeição. A
imagem se forma na pedra como se formaria na retina e o espectador
tem a oportunidade de ver, obliquamente, não a obra e sim a sua relação
habitual com ela.
O homem é o monólito com sua face polida enredada naquela
relação narcísica, assegurado de suas qualidades superiores pela
superioridade do valor de arte que ele, e não a pedra, projeta naqueles
objetos. Mas o monólito se volta para frente também. Sua face bruta não
reflete e não projeta, tampouco sua visibilidade total pode ser isolada
do que está à sua volta. Ele existe como contraponto absoluto, existe
contra tudo, mas declara verbalmente uma permissão.
Quando se quer cinzelar uma inscrição na pedra, o primeiro
passo é riscar regularmente os caracteres. É grafado com esse primeiro
risco que um longo poema cujos versos são iniciados por “Permito...”
se desenrola pelos monolitos. Isso cria um paradoxo – um obstáculo
que permite.
É a posição total do sujeito que a lápide ocupa, expulsando-
nos de nossa centralidade para uma periferia incômoda, para a nostalgia
de um si mesmo naquele reflexo do reflexo que constitui agora nossa
possibilidade de visão. Aquilo que podemos ver do outro lado, aquela
relação direta, está morto para nós, na melhor das hipóteses congelado,
encantado. Essa angústia ecoa nas vozes miasmáticas que não
permitem que a casa durma, que a mantém em uma vigília delirante.
Se a casa dormisse, talvez fosse possível, em sonho, experimentar
outra vez aquela unidade e primazia de que fomos deslocados. As
vozes o impedem com um pesadelo permanente e falante, algo como os
complicadíssimos raciocínios sonambúlicos, completamente ilógicos,
dos quais despertamos exaustos e atônitos, como quem retorna do
inferno.
No verso dos espelhos se desenrola outro poema. Seus versos
se iniciam por “Pergunte...”. São espelhos que não refletem ou, se o
fazem, não nos é dado ver seu reflexo e tampouco a coisa refletida, que
eles encobrem quase inteiramente. Espelhos pelo avesso que ordenam
uma pergunta. Espelhos interditados. Ao mesmo tempo impedidos e
entreditos. Interdictio. Entredizeres. Interdizer. Jogos verbais e jogos
formais, um no outro, um pelo outro, interditos. Proibidos – como a
trilha sonora que reverbera nas caixas de vidro, abafada e evidente.
A casa não iria se dobrar à fraqueza nem ao ligeiro, continuaria
sua vigília modorrenta, orgulhosa das suas relíquias. Venceria
certamente, mais uma vez. Nuno Ramos enfrentou aquela casa. Por isso
a pedra. Por isso o espelho. Para o velho, o velhíssimo, para o peso, a
tonelada. Para o fantasma, seu reflexo vazio. Pra qualquer assombração,
geometria, pureza, rigor. Transparência para todas as suas prisões e para
as vozes abafadas que produzem, nas caixas de vidro blindex. As vozes
vêm dali, de onde mais?
Para os que optarem pela vida, o artista conjuga dois verbos:
permitir e perguntar. O primeiro declara, o segundo ordena – “Permito”,
“Pergunte”. O seu significado contraria a lógica dos materiais. A
permissão está no impedimento absoluto e todas as perguntas que
interessam estão no verso das respostas.
Isso é um bom começo para a arte.