You are on page 1of 359

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais


Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

NA ‘PISTA’ DA FÉ:

música, festa e outros encontros culturais entre os


evangélicos do Rio de Janeiro.

Márcia Leitão Pinheiro

Rio de Janeiro
Junho de 2006
NA ‘PISTA’ DA FÉ:

música, festa e outros encontros culturais entre os

evangélicos do Rio de Janeiro

Márcia Leitão Pinheiro

Tese de doutorado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia – PPGSA,
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de
Doutor em Ciências Humanas
(Antropologia Cultural).

Orientadora: Profª Drª. Regina Reyes


Novaes

Rio de Janeiro
Junho de 2006

II
NA ‘PISTA’ DA FÉ: música, festa e outros encontros culturais entre os
evangélicos do Rio de Janeiro.

Márcia Leitão Pinheiro

Orientadora: Regina Reyes Novaes

Tese de Doutorado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-


Graduação em Sociologia e Antropologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Antropologia
Cultural).

Aprovada por:

Presidente, Profª.Drª Regina Reyes Novaes – IFCS/UFRJ

Profª. Drª. Glaucia Villas-Bôas - IFCS/UFRJ

Profª. Drª. Patrícia Farias - ESS/UFRJ

Profª. Drª. Sandra Sá Carneiro - IFCH/UERJ

Profª. Drª. Santuza Cambraia Naves – PUC/RJ

Suplentes:

Profº. Drº. Emerson Giumbelli - IFCS/UFRJ

Profª. Drª. Márcia Pereira Leite – IFCH/UERJ

Rio de Janeiro
Junho de 2006

III
Pinheiro, Márcia Leitão
NA ‘PISTA’ DA FÉ: música, festa e outros encontros culturais entre os
evangélicos do Rio de Janeiro/ Márcia Leitão Pinheiro. Rio de Janeiro:
UFRJ/IFCS, 2006.
XIII, 291f : il.; 31 cm;
Orientadora: Regina Reyes Novaes
Tese de doutorado – UFRJ/ IFCS, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia, 2006.
Referências Bibliográficas: f. 292-307.
1. Religiosidade. 2. Evangélicos. 3. Festas. 4. Produção Musical. 5. Indústria
Fonográfica. 6. black music gospel. 7. Disc Jockey. I. Novaes, Regina Reyes.
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. III. Título
Novaes, Regina Reyes. II.UFRJ/IFCS. III. Título.

IV
AGRADECIMENTOS

Gostaria de registrar que o momento de construção da tese foi confortável em virtude do


apoio recebido. Agradeço a todos aqueles que direta e indiretamente contribuíram para a
realização deste trabalho.

A Regina Reyes Novaes, pois, por sua generosidade, respeito, confiança e orientação,
tornou possível este trabalho. Por ela tenho imensa gratidão.

Aos professores do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UERJ) e do Programa de


Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ) fundamentais para o meu percurso,
especialmente, as professoras Patrícia Birman, importante presença em minha trajetória,
Márcia Leite e Sandra Carneiro por oportunas contribuições.

A John Burdick, por frutíferos debates sobre pesquisa, e por ter me apresentado a uma
instigante literatura sobre gospel music.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia: Maria


Laura Viveiros, Bernardo Sorj, José Reginaldo Gonçalves, Peter Fry e Glaucia Villas Bôas,
com os quais muito aprendi. Aos funcionários da Secretaria do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Antropologia, em especial a Cláudia e Denise, que
pacientemente me atenderam e esclareceram as dúvidas sobre as vias burocráticas da
universidade.

A Elizabeth Travassos, membro da banca de qualificação, pelas questões e sugestões para a


tese.

A Patrícia Farias, por longas e proveitosas conversas, deu-me valiosa contribuição.

A Edir Figueiredo e Elielma Machado, companheiras de longa jornada, sempre presentes.


Geraldo Pedro e Edileuza Lobo ajudaram-me na investigação, nas inusitadas incursões pela
cidade do Rio de Janeiro. A Paulo Cezar e Márcia Baptista verdadeiros incentivadores do
projeto de pesquisar as “festas”.

Aos amigos Ana Paula Vieira, Fátima Cecchetto, Andréa Tubbs, Ana Cristina Machado,
Cláudia Cunha, Andréa França, Cláudia Gomes, Aline Faísca, Bianca Silva, Fernando
Costa, Adélia Miglievitch, Christina Vital, Alan Faísca, Adriana Vilallon, Ana Cristina
Machado, Fernanda Fortes, Yara Rolim, Lourdes Benamor, Sônia Silva, Alessandro
Didecco, Josemar Costa, André L. Azevedo, Rogéria Dias, Antônio de Jesus e Luiz Carlos
Josephson, sempre presentes e solícitos, agradeço de coração.

Aos amigos da turma de 2001: Tânia Martins, Ricardo Lima, Maria Cristina Peixoto e
Alexandre Weber, pelos momentos de apoio e companheirismo construídos durante esses
anos. A Elizabeth Costa, Nilton Santos e Astréia Soares pelas rápidas e produtivas
conversas.

V
A José, meu pai, e Maurício, Rogério, Guilherme e Reinaldo, meus irmãos, pelo apoio,
compreensão e paciência com as constantes ausências. A Rosane e Cristina, irmãs e
amigas, que em todos os momentos acreditaram e apoiaram meus projetos.

Aos casais Ângela e Alexandre, Solange e Celso pelo incentivo e acolhida em suas
residências nas quais, inúmeras vezes, refiz-me no frio serrano. A Yolanda Troyack e
família, parentes afetivos, não poderia deixar de agradecer pela carinhosa acolhida e
respeito dado a mais este projeto.

A Sérgio Leopoldo, Wenderson, Charles, Francisco, Edinho, Nanci, Denise, Renato,


Otaviano, Antônia, Cleiton, Yone, Flávia, Sérgio Leal, Eliton, Jorge e tantos outros que me
permitiram realizar a pesquisa, disponibilizando seu tempo, suas histórias, acolhendo-me
em suas casas e lugares de trabalho e, assim, tendo fundamental importância na realização
deste trabalho.

A Sandra, tão presente, não poderia deixar de agradecer os momentos de tranqüilidade, de


aconselhamento, de distração e também de auxílio neste trabalho – e em outros. Seria
pouco agradecer, mas é como posso retribuir.

Agradeço, no âmbito de recurso material, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de


Nível Superior – Capes - pela concessão de auxílio financeiro no período de 2001 a 2003.
Igualmente cito a Fundação de Amparo e Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - Faperj -
pela outorga do prêmio Aluno nota 10 e bolsa de estudos de 2003 a 2005.

VI
Para Dora, minha mãe, por demonstrar
sua fé com muita festa.

VII
Venho para a festa, sei que muitos têm
na testa o deus sol com um sinal, um
sinal. Eu, como devoto, trago um cesto
de alegrias de quintal, de quintal. Há
também um cântaro, quem manda é a
deusa música pedindo pra deixar, pra
deixar derramar o bálsamo, fazer o
cântaro cantar, lalaiá. Fogo eterno pra
afugentar o inferno pra outro lugar.
Fogo eterno pra consumir o inferno
fora daqui.

Gilberto Gil – Palco


(Unplugged)

VIII
NA ‘PISTA’ DA FÉ – música, festa e outros encontros culturais entre os evangélicos
do Rio de Janeiro.
Candidata: Márcia Leitão Pinheiro

Orientadora: Regina Novaes

Resumo

Este trabalho tem por objetivo analisar a transformação do meio evangélico ao


focalizar as produções de black music gospel e de eventos efetivadas por leigos. Parte-se do
pressuposto de que esses formuladores dialogam com outros produtores de “música gospel”
e com as concepções oficiais acerca da atividade evangelizadora, apresentando outras
noções, bens e serviços que escapam das propostas de igrejas e empresas legitimadas,
apesar da relação entre mercado e religiosidade. Assim, as modalidades musicais e de
atividades em foco constituem empreendimentos não fundados estritamente por diretrizes
denominacionais. Seus responsáveis lidam com idéias e bens inclusos em fluxo
internacional e sublinham a produção de bens específicos com foco no entretenimento e em
propostas políticas. Trata-se de inscrição de posições no interior do meio religioso
decorrentes das ações de produtores em amplo diálogo entre si, com a tradição, com as
noções religiosas e políticas em relação ao contingente de fiéis formado por negros e por
mestiços. A black music gospel encontra resistência, desconhecimento e surgem iniciativas
voltadas à sua visibilidade. As composições, as articulações e as tensões evidenciam que os
empreendimentos e suas condições de elaboração envolvem produtores leigos e fiéis com
manifestas ações e explicitam outro modo de concepção e manifestação de fé.

Palavras-chave: black music gospel – evangélicos – indústria fonográfica – festa – Disc


Jockey.

IX
NA ‘PISTA’ DA FÉ – música, festa e outros encontros culturais entre os evangélicos
do Rio de Janeiro.
Candidata: Márcia Leitão Pinheiro

Orientadora: Regina Novaes

Abstract

The purpose of this work is to analyze the transformation of Protestantism by


focusing the black music gospel and other events’ production. The hypothesis is that the
producers of such activities maintain a dialogical contact with others producers of gospel
music and with members of the official Protestant thought about what really is the
evangelical action. They present notions and also goods and services that are far from the
legitimated enterprises and churches, although they maintain, as well the members of
Protestant churches do, the link between market and religiosity. Therefore, the musical
form and the activities focused here are not strictly directed by institutionally religious
influence. Their producers deal with ideas and goods that take part of an international flux
of music, goods and services, and then they emphasize the constitution of specific goods
that have both entertainment and political goals. They inscribe their positions inside the
religious context by means of a profound dialogue among themselves, with the traditional
and religious thought and political notions related to the Afro descendent adepts. This
musical modality is received with reticence and is largely unknown; and many people act in
order to maintain it invisible. The compositions, articulations and tensions show that these
activities involve laic and adept’s manifestations and that they make explicit another way to
conceive and express religious faith.
Key words: black music gospel; Protestantism; phonographic industry; parties, Disc Jockey

X
Sumário

Introdução 15

Entreato
De chegadas e descobertas: o trabalho de campo 27
Ponto de partida: intervenções 28
Contatos, encontros e “adoração” 31
Mudanças: novo campo e algumas questões 39
Músicas e presenças: comunicações 47
Falas oferecidas: as entrevistas 51

Capítulo 1
Histórias, falas e canções - cantar no Brasil 53
Gospel – canções e tipos 54
Vidas, dedicações e atuações independentes 58
Disseminação da fé: gravações e técnicas 67
Criações e músicas – diversidade de empreendimentos 72
Sobre canções e conexões 79
Ouvintes, “alegria” e “espírito” 84
“Mercado” e sagrado:correspondências 86

Capítulo 2
‘Derramar o bálsamo, fazer o cântaro cantar’ 94
Surgimento de equipes e promotores 95
Locais – buscas e diferenças 105
Uma noite, uma ‘pista’ – procuras 108
O poder da ‘festa’ 112
Os objetivos da brincadeira 116
Outras presenças e inscrições 125

XI
Capítulo 3
As revelações da apoteose 130
Fantasias, descontração e seriedade 131
Distâncias, inovações e festividades 134
Reformas religiosas e combate da alegria 137
(Re) encontros religiosos e produtivos 143
O que há nas reuniões? Alianças 146
Nova visão: força e perigo 150
‘Um ritmo fora do tradicional’ 156

Capítulo 4
Outro registro do ‘gospel’–iniciativas e questões 162
Nova cena musical 163
‘Black gospel’- música de crítica e de fé 165
Canções feitas e ouvidas – o que trazem? 170
Quem fala e faz o quê 180
Falas e ações:além do entretenimento 186
Exposição de uma polêmica 189

Capítulo 5
Sobre e cor e presenças – maneiras de falar 197
Capas, cores e imagens 198
Ludicidade, força e confronto 204
Participação, diferenças e modelos 211
Consumo e presença social 214
Onde tudo começa – bairros e encontro musicais 216
A terra do batuque e dos beats: passado e presente 223
Territórios de visibilidade 226
Vozes dissonantes 229
Ações em confronto 232

XII
Capítulo 6
Da rua ao palco: presenças e sentidos 237
Quem e por que ir à ‘festa’ 238
Retrato de uma fé 240
Causas para ir à “festa”, cantar e dançar 241
“jovens” e procuras 249
Entre o entretenimento, o estilo e a crítica 253
Animar e converter - momentos do pregador 259
Suprimir, colar, repetir e compor: fazer sonoro 266
Quem transforma fala 271
“Segurança”: o outro lado da força 276

Intervalo – considerações sobre um tema 285

Bibliografia 292

Anexos I
Encartes discográficos
Apocalipse XVI 308
Feliciano Amaral 310
Francisco JC 312
Gospel Night I 314
Gospel Night II 316
Mara Maravilha 317
Oficina G3 318
Rebanhão 320

Anexos II
Encontro Nacional de Louvor Profético 322
Cartão Identificação 323
Cartaz 325
Salão de vendas 326
Freqüentadores 327

Anexos III
Explosão Gospel 329
Convite 330
Ficha de pontuação 331
Apresentação de candidato 332
Público 334

XIII
Anexos IV
Gospel Beat
Componentes 335
Panfleto 336
Mensagem 337
Convite 338
Mensagem 339
Convite 340

Anexos V
Gospel Night
Cartaz 341
Ingressos 342
Casa de Festa 343
Clube 344
Freqüentadores 345
Gospel Night Fantasy 346

Anexos VI
Soul de Cristo
Panfleto 348
Filipeta 349
Cartaz 350
Cartaz de bar 351
Panfleto 352
Freqüentadores 353
Pregador 356
Conj. Musical 357
Divulgação 358

XIV
XV
Introdução

Esta tese aborda as produções musicais, de eventos e fonográficas 1 a partir da black


music gospel, integrante da “música gospel”. O argumento central é de que as produções
contribuem e refletem a transformação do “meio evangélico” 2 brasileiro, pois introduzem
níveis de porosidade, de encontros produtivos viáveis às continuidades e às rupturas
religiosas. Isso transparece nos arranjos entre leigos que confeccionam meios de
execução/recepção de canções. A ação criativa é perpassada por complexas relações
provenientes de apropriações de idéias e bens favoráveis às vinculações com o
entretenimento 3 e por composições políticas. O acento está na crítica social com destaque
na desigualdade e na invisibilidade de fiéis negros 4. Entende-se que as atividades musicais
configuram fronteiras menos rígidas entre religião e sociedade, e resultam em tensões, em
oposições e correspondências, desvelando níveis de alterações subterrâneas provenientes de
ações de leigos.
1
Entendo por produção musical a atividade efetivada por detentor de conhecimentos e envolvido na atividade
de concepção e orientação de projeto musical. Já a produção fonográfica pode ser realizada por empresa apta
à produção e registro sonoro em meios materiais como o compact disc (CD), o digital versatile disc (DVD) e
o long play (LP).
2
Apesar de diversos grupos protestantes atuarem no país, inscritos em momentos históricos distintos, eles
são (re) conhecidos pela designação “evangélicos”. O ponto de identificação entre eles (históricos,
pentecostais e neopentecostais), apesar de suas peculiaridades, é a referência ao Evangelho - a valorização
dos textos escritos na condução da vida religiosa e cotidiana. Utilizar as categorias “evangélico” e “meio
evangélico” permite trabalhar com situações, condições e produtos encontráveis entre os grupos e os adeptos
do protestantismo sem precisar ficar restrita às suas particularidades doutrinárias e históricas.
3
Entretenimento diz respeito às atividades, aos objetos e aos bens voltados ao uso do tempo livre com vistas à
recreação, ao divertimento individual e/ou coletivo.
4
O sentido atribuído à política não está restrito às práticas partidárias e de Estado. Como termos
intercambiantes, aplico política e crítica social com a finalidade de compreender as reflexões e ações de
indivíduos e grupos no tocante às relações sociais em vigência no meio evangélico. Elas são apontadas como
desiguais porque baseadas na cor da pele e referência cultural; atribui-se o quadro à existência de doutrinas
desvalorizadoras do contingente formado por mestiços-negros e suas manifestações culturais. Diante disso,
articulações, com direcionamento mais delineado ou não, são estabelecidas por leigos e por líderes religiosos
com a finalidade de auferir alterações desse quadro entre os evangélicos.

15
A minha atenção recaiu sobre certa modalidade de eventos 5 denominada “festa
gospel”, “baile gospel” ou “festa” 6, sendo a primeira designação a mais corrente. As
manifestações são realizadas ao redor da música e da dança e são capazes de atrair grupos
de diversas partes da cidade do Rio de Janeiro interessados em certas expressões musicais e
em reuniões. Nelas são vistos freqüentadores 7 de várias faixas etárias, embora os
organizadores afirmem que estão direcionadas aos “jovens”. As atividades são concebidas a
partir das noções que apresentam de “jovem” e de “juventude” 8, cuja peculiaridade, para os
organizadores, seja a disposição para a diversão. Isso fica evidente com os elementos
alinhados, com as intercessões e as tensões estabelecidas e componentes da participação
daqueles que compartilham certos sentidos culturais e não, necessariamente, de recorte
pautado na temporalidade.
Na “festa gospel” ou “festa”, predominam o hip-hop, o rhythm and blues (r&b), o
soul, o drum ‘n´bass (db) 9 (muitas vezes, designados black music gospel,"música negra”
[black music] 10 por promotores e freqüentadores) e pode ter o registro de outras

5
Evento não é entendido somente como distinto acontecimento capaz de mobilizar interessados, inclusive os
meios de comunicação. A perspectiva adotada é a de Sahlins para o qual “... apesar de um evento enquanto
acontecimento ter propriedades “objetivas” próprias e razões procedentes de outros mundos (sistemas), não
são suas propriedades, enquanto tais, que lhe dão efeito, mas a sua significância, da forma que é projetada a
partir de algum esquema cultural. O evento é a interpretação do acontecimento, e interpretações variam”
(Sahlins, 1999:191).
6
Por falta de termo adequado, capaz de definir o tipo de manifestação, utilizarei aquele predominante no meio
investigado. Ele é aplicado para nomear certa modalidade de iniciativa preparada por leigos e compreende a
realização de jogos, orações, apresentações musicais, danças e brincadeiras. São etapas promotoras de
entretenimento, de interações entre os presentes e de relaxamento. As "festas" podem ocorrer em locais
alugados e exigem de seus organizadores articulações materiais e sociais.
7
O termo freqüentador é usado para identificar o fiel religioso ou não, encontrado no ambiente de “festa” e
encontros similares. Ele aparece como apto a estabelecer relações com os demais e com os bens em
circulação.
8
As categorias jovens e juventude são recorrentes no universo pesquisado e indicam a ênfase na
temporalidade ou em certa etapa da vida como, por exemplo, ser solteiro e/ou estudante. No entanto, essa não
é a perspectiva aqui adotada. A orientação seguida é a de não adotar jovem (s) e juventude como categorias
indicativas de certo momento da vida restrito à idade ou situação civil. Os termos são aplicados a fim de
demarcar um grupo, suas peculiaridades e distinções a partir de orientações de ordem histórica, cultural,
política e condição de classe (Abramo, 2005; Mauger, 1989).
9
No decorrer do texto, palavras surgem destacadas distintamente por aspas e/ou itálico. As aspas marcam os
termos comuns ao campo investigado ou tenha correspondência com ele. No caso de expressões musicais de
origem estrangeira, utilizarei o recurso do itálico, pois isto me permite indicar que seu uso não é restrito ao
âmbito musical aqui investigado.
10
Segundo Maultsby (1999), em 1949, a Billboard aplicou o termo rhythm and blues (r&b) com a
finalidade de identificar o antigo gospel, transformado em música popular. Para a autora, na década de 1960,
o r&b passou a ser conhecido como soul com o uso do piano e o estilo vocal corrente na gospel music. Assim,
o r&b possui estética, harmonia, estilos vocais e timbres próprios das canções executadas nas igrejas e
popularizadas por gospel-jubilee quartets. O rap, parte sonora do hip-hop, está ligado aos grupos juvenis

16
musicalidades como o reggae, o samba e o pagode. Muitos dos organizadores estão
envolvidos com produções musicais e fonográficas (concebem e executam projetos,
compõem bases sonoras e articulam condições para prensagem e divulgação de CDs) e
terminam elaborando a “festa”. As reuniões e as expressões musicais, adotadas como bens
e serviços religiosos, não inovam somente pelo aspecto sonoro, mas também pelo corporal
e o cultural, pois as roupas usadas, o modo de perceber, de apresentar o corpo e os materiais
de propagandas veiculados marcam as especificidades da execução e da recepção.
Para os envolvidos, as reuniões, a música e a dança são elementos religiosos e não
desvinculados do aspecto social, permitindo-os expressar como vêem, sentem e refletem a
realidade. Para alguns organizadores, os bens e serviços produzidos viabilizam reflexões
sobre a desigualdade que permeia as relações sociais e atinge os artistas vinculados a black
music gospel e parte dos fiéis. Outros entendem as canções e a “festa” como importantes
por proporcionarem opções de diversão e de encontros entre fiéis de diferentes igrejas e
áreas urbanas.
A investigação da black music gospel, sem esquecer seu liame com a “música
gospel”, é importante para a reflexão sobre a transformação do “meio evangélico”, pois
indica dinâmica própria na qual idéias, objetos, valores, atividades, influências e relações
sociais constituem as produções, as promoções e as recepções. Essas podem ser diferentes
devido à ênfase em aspectos como a vinculação com a crítica social, com o entretenimento,
com a interação e com a confirmação de fé. Projetos, arranjos e rearranjos caracterizam a
“música gospel”, a black music gospel e a “festa”, pois seus organizadores estabelecem
contatos com expressões musicais e idéias não restritas ao meio evangélico e à sociedade
brasileira. Buscam produtores (culturais, religiosos) e dialogam com idéias, com iniciativas
e acessam bens culturais inscritos em fluxo mundial. Alteram sentidos e, com isso, instalam
oposições, conflitos e satisfações, afetando aqueles ligados às igrejas surgidas em períodos
distintos. Apesar da referência às Escrituras, apresentam características particulares e são
designadas históricas, pentecostais e neopentecostais.

urbanos que utilizaram a técnica dos sound systems, elaborada na Jamaica, como base sonora para os
discursos improvisados, as falas ritmadas. Estas, ao lado do grafite e do break, formaram uma cena constante
no espaço público (Vianna, 1988). Por fim, o db surgiu em Londres, na década de 1990, e possui traços
instrumentais e jazzísticos, com batidas sincopadas e construídas a partir de samples (colagens) de várias
músicas (Vianna, 2003).

17
As igrejas históricas foram instaladas no século XIX com as campanhas de
missionários europeus e norte-americanos. As primeiras décadas do século XX foram
marcadas pela instalação e difusão de serviço de evangelização ancorado na crença da
manifestação do Espírito Santo – Pentecostes. Por fim, a década de 1970 registrou a
instalação do neopentecostalismo, demarcado pelo combate aos cultos de possessão. Ao
mesmo tempo, eles foram levados para o seu interior e as sessões religiosas organizadas a
partir do destaque dado às entidades. Segundo Mafra (2001), essa oposição passou a
caracterizar parte dos evangélicos, expressando o movimento de mudança ocorrido em seu
meio religioso.
Os envolvidos com a black music gospel e com a “festa” são filiados aos grupos
protestantes – ou evangélicos, como se diz no Brasil; são integrantes da Igreja Batista e de
outras neopentecostais. Eles apresentam projetos e sentidos atribuídos à música e à
interação de fiéis - em constante diálogo com aquilo definido na esfera religiosa oficial.
O caminho escolhido para tratar aqui a questão compreende as recentes análises que
apontam para o pluralismo e a privatização como fatores da transformação religiosa no
Brasil contemporâneo. Na nova paisagem, estariam presentes os desmontes e o surgimento
de dualismos, de diálogos entre religiões e reinterpretações, de trânsitos de fiéis, de
rearranjos precários realizados por adeptos que contribuem para a inscrição de novos estilos
de atuação (Velho, 1997; Carvalho, 1999; Amaral, 2000; Sanchis, 2001; Steil, 2001;
Novaes, 2004; Brandão, 2004). Nesse âmbito, estão as ofertas de bens e de serviços
religiosos não elaborados somente por pastores e igrejas, mas a partir de outro nível de
produção e de administração (Oro e Steil, 2003).
O meio evangélico, assim, não estaria ileso ao existente fora de suas fronteiras,
mantendo proximidade com a política institucional (Burity:1997) e com as iniciativas
empresariais (Campá, 1998). Neste quadro, figura aquilo implementado por fiéis que, em
suas relações sociais cotidianas, registram ações inusitadamente criativas, empreendendo,
por exemplo, vias de mediação entre forças opostas colocadas pelo neopentecostalismo
(Birman, 1996).

18
Para compreender as atividades de leigos, aplicarei as noções de “porosidade” e de
“encontros transformadores”. Sanchis (1995; 1997), ao falar em sincretismo, observa que
no Brasil a confluência entre portugueses, indígenas e negros expressa os “encontros
transformadores” entre eles. Resultaria daí pontos de passagens, de influência cultural
demarcadora de uma “porosidade” identitária. Identidade nunca finalizada, com a
coexistência e possibilidades de ser diante de tantas inscrições religiosas, de confrontos, de
composições autônomas e reinvenções da tradição. E, em tal âmbito, os fiéis integrariam o
jogo do fazer e refazer o ser religioso.
As noções de “porosidade” e de “encontro transformador” permitem compreender
os componentes e as condições de imbricação entre crenças e produtos culturais.
Igualmente a convergência franqueia falar da transformação do campo religioso com as
produções musicais, de eventos e fonográficas. Isto é apontado porque a black music gospel
e a “festa” materializam os cruzamentos entre a religiosidade, o entretenimento e a política,
porém são iniciativas pouco visíveis.
O desenvolvimento do tema - a musicalidade como meio de expressão da
transformação religiosa – compreenderá as idéias, as ações e as criações em circulação na
esfera evangélica. Pode-se adiantar que esse conjunto, de modo aparente ou submerso,
instala tensão com a tradição. As instituições religiosas questionam a contribuição dessas
atividades musicais para o meio religioso. Pastores apontam para a “invasão da igreja pelo
‘mundo’”, para o perigo da indistinção com o “mundo”, a instância simétrica oposta da vida
religiosa; explicitam os confrontos entre específicos entendimentos do mundo e das coisas.
Apesar da visão de líderes religiosos, os produtores e os
consumidores/freqüentadores de canções e de “festa” apresentam outras concepções para
os bens e os serviços musicais - e evidenciam que a “produção de significados” não é
restrita ao âmbito das instituições (Steil, 2001). Isso configura o jogo entre antigas e
recentes relações sociais praticado por aqueles dispostos a experimentos com as ações, com
a linguagem, com o vocabulário, com a inscrição de oposições e de sentidos (Velho, 1997).
Trata-se de ação capaz de (re) criar, de combinar, e que apresenta tantos sentidos para o
grupo de fé. Assim, uma citação pode auxiliar:

19
As categorias tradicionais, quando levadas a agir sobre um mundo com
razões próprias, um mundo que é por si mesmo potencialmente refratário
são transformadas. Pois, assim como o mundo pode escapar facilmente
dos esquemas interpretativos de um dado grupo humano, nada pode
garantir que sujeitos inteligentes e motivados, com interesses e biografias
sociais diversas, utilizarão as categorias existentes das maneiras prescritas
(Sahlins, 1999:181, 182).

O destaque é dado aos registros de crenças e ofertas no campo religioso brasileiro,


no qual diversas tradições religiosas disputam o contingente de fiéis. Por sua vez, esses não
ficam inertes, pois podem realizar composições entre elementos e saberes de origens
variadas e assim “recriar pessoalmente seu universo religioso” (Sanchis, 1995:134).
Registra-se na contemporaneidade a crescente circulação e escolha por diversos “espaços
de experiência religiosa” (Brandão, 2004). Desse exercício, as novas gerações não estão
excluídas; relacionam-se com crenças e alternativas de fé, mesmo considerando aqueles
autoclassificados sem religião. Aqueles encontrados nessa posição podem indicar, a
despeito da não filiação institucional, a fé em algo; há também os possuidores de filiação
religiosa, praticantes de apropriações e reapropriações de elementos de outras origens
(Novaes, 2004).
Falar em porosidade e encontros transformadores é reconhecer o lugar que os
contatos adquirem no tocante às alterações (e manutenções também), pois sentidos são
produzidos, refeitos, mantidos ... Assim, é possível falar, para ser breve, em encontros
culturais, em transformação e em tensões.
Diante da questão estabelecida, tomo a produção musical e a “festa” como
reveladoras de ações propícias aos exercícios criativos (religioso, musical, discográfico e
político). Isso acarretou adotar algumas reflexões sobre festa (Mauss, 1974; Da Matta,
1979; Alves, 1980; Brandão, 1987; Durkheim, 1989; Burke, 1995; Bakhtin, 1999),
entendendo-a como evento fora do tempo rotinizado, específica linguagem compreensível e
estimulante, um ato de comunicação como espécie de ritual (Alves, 1980; Leach, 1983;
Peirano, 2001). Pode-se visualizar a produção de encontros culturais, de porosidades e,
portanto, de tensões constitutivas da transformação religiosa. Assim, os estudos sobre
manifestações populares e os historiográficos sobre festa permitem ter outra visão do
protestantismo (Thompson, 1987) e dialogar com a figura do protestante apontada por Max

20
Weber (1996). A partir desta discussão, é buscado compreender como o meio evangélico se
apresenta na sociedade contemporânea (Novaes, 1998).
Não é novidade a oferta de manifestações musicais entre os evangélicos. No Brasil,
são disponibilizadas diversas informações acerca da atividade de/para os grupos abrigados
sob a rubrica religiosa. A revista Show Gospel (veículo de edição trimestral e em seu
quarto ano de publicação, especializado no ramo musical amplamente definido como
"música gospel" 11), divulga os profissionais (cantores, compositores, arranjadores,
produtores e apresentadores), as empresas especializadas e os locais de execução musical
em diversas partes do país.
Em termos gerais, o relatório da Associação Brasileira de Produtores de Discos
(ABPD), de 2003, constata que o mercado fonográfico nacional, em 2002, teve crescimento
de cerca de 3,6%, porém o aumento de unidades foi menor, ficando próximo a 1,7%, em
relação ao ano anterior. No entanto, a associação afirma que o país figura em segundo
lugar, atrás dos Estados Unidos, com o registro de 76% no tocante à produção e ao
consumo de repertório nacional. Em vendas por repertório, o religioso alcançou 14% de
vendas, 2% a mais em relação ao ano anterior, acima das cifras dos repertórios de samba e
pagode (12%) e sertanejo (com 11%). Segundo as empresas da ABPD, as produtoras
religiosas são em número de três 12, entre evangélicas e católicas. Há gravadoras que
possuem cantores com repertório definido, mesmo sem vínculos com a dimensão religiosa;
esse seria o caso da Sony Music e do padre Marcelo Rossi 13. Os números podem
impressionar e principalmente abrem brechas para indagações acerca dos meios de
execução/recepção musical que podem ocorrer nas igrejas ou fora delas. Por fim, o tema
não é refletido somente no Brasil (Monteiro, 1982; Cunha, 1993; Araújo, 1996; Pinheiro,
1997; Almeida e Rumstain, 2003; Nascimento Cunha, 2004), haja vista haver nos Estados
Unidos (Oliver, 1986; Maultsby, 1999; Reagon, 2001), no México (Garma, 2000) e na
Espanha (Blanes, 2005) produções musicais e de fonogramas destinadas aos filiados do
cristianismo em sua versão protestante.
11
O termo é aplicado entre os evangélicos e os não filiados a fim de identificar a música que tenha conteúdo
religioso. O tema é abordado no primeiro capítulo.
12
Cito a Line Records, a MK Publicitá e a Paulinas Comep. A duas primeiras são evangélicas ligadas à Igreja
Universal do Reino de Deus - Iurd e a uma família convertida, respectivamente. A terceira está ligada à
Congregação Paulina, que tem por finalidade consolidar a música como eficiente linguagem a ser difundida
e, assim, cumprir o objetivo da congregação em atingir os adeptos.
13
Publicação anual da Associação Brasileira dos Produtores de Discos - ABPD 2002.

21
A dinâmica musical e religiosa no Brasil também é marcada por iniciativas
artísticas de leigos responsáveis por um panorama de produção e de atividades. Essas
igualmente são orientadas por convenções (Becker, 1977) que orientam a formulação de
novos serviços e bens musicais. Não obstante, esses devem, conforme as concepções
oficiais, delinear sua distinção em relação aos similares em circulação no meio secular.
Sobre a black music gospel e a “festa” o mesmo pode ser afirmado.
As elaborações em geral mobilizam fiéis de origens e formações diversas,
possuidores de gostos, de interesses e objetivos específicos e, muitas vezes, identificados
com certas expressões musicais 14. Nem sempre são organizadas por pastores, igrejas e
empresas, e não ficam restritas aos prédios religiosos - podem ocorrer, por exemplo, em
praias, em estádios de futebol, em teatros, em clubes, em restaurantes, em cafés e casas de
shows. Nesses eventos, predomina a execução de canções que ocupa boa parte do tempo,
existindo também momento de realização de breve oração conduzida por líderes religiosos,
cantores ou ambos.
No caso da black music gospel e da “festa”, conforme os envolvidos (organizadores
e freqüentadores), as canções e as iniciativas demarcam uma expressão de fé não
excludente da fruição e da efetivação de crítica social. Isso expressa e, ao mesmo tempo,
contribui para a transformação do meio evangélico, pois explicita as redefinições de
dualismos como igreja/mundo, sagrado/profano, espírito/corpo, religião/mercado. E
transparece nas discussões sobre “música gospel” no Brasil, sobre a “festa”, sobre as ações
de leigos, sobre a citada black music gospel, colocando a possibilidade de debates acerca
das noções de cor, de negritude e de territorialidade.
Para tratar a questão proposta e os temas introduzidos, uma estratégia foi
estabelecida. Não privilegiei uma igreja ou ações institucionalizadas. Optei por abordar
aquilo realizado por fiéis de diversas igrejas que estabelecem práticas e representações e,
assim, instalam tensões e negociações com aquilo apresentado pela esfera religiosa oficial.
Desse modo, são colocadas relações que indicam modo de ser e de pensar distintos e, ao
mesmo tempo, próximos daqueles defendidos pelas igrejas. O caminho escolhido

14
Expressão musical, também vista no plural, é entendida aqui como a composição caracterizada por letra de
conteúdo crítico ou não; e alia estilo corporal, inserção pública e, assim, demarca posicionamentos com
orientação política ou não. Isso identifica, situa determinado grupo perante os demais e é uma referência aos
seus adeptos como, por exemplo, o hip-hop.

22
compreendeu a observação participante, a análise de entrevistas, de canções e de materiais
imagéticos; também foram contemplados os depoimentos e os textos elaborados por
aqueles envolvidos com as produções pesquisadas. Diante do apresentado, três pontos
norteiam o desenvolvimento desta tese.
O primeiro ponto está centrado nas constituições da “música gospel” e da black
music gospel e com os instáveis cruzamentos entre esferas distintas como a religiosa, a de
entretenimento e da política (ou crítica social). Os investimentos de organizadores para
acessar dispositivos materiais (equipamentos e locais) e a preservação de suas experiências
de cunho sonoro, religioso, profissional e político externam negociações, combinações,
arranjos e tensões provenientes do que fazem.
O segundo tem a ver com o reconhecimento de estratégias de organização, de redes
constituídas por organizadores e propiciadoras de constante reelaborações de movimentos
de distinção interna e externa. De um lado, há possibilidades de proximidade entre os
organizadores, os freqüentadores e os demais evangélicos já que têm por objetivo
evangelizar. De outro lado, os arranjos e as combinações apresentam distinções com o
vigente no meio religioso, pois contemplam a dimensão da alegria, do divertimento e da
amizade.
O terceiro ponto privilegia os conflitos em decorrência de continuidades e de
rupturas com o meio religioso a partir da adoção de expressões musicais contemporâneas e
internacionalmente circulantes. A observação das iniciativas viabiliza atingir como os bens
culturais são apropriados e aplicados na composição de idéias e veiculação de imagens. O
resultado é constituído por estilos corporais, modo de exercício religioso e de
posicionamento político que tornam visível certo contingente de fiéis. No entanto, afirma-
se serem iniciativas propiciadoras da disseminação de serviço religioso.
Os três pontos franqueiam a compreensão da dinâmica dos arranjos e das tensões
próprios de atividades musicais no meio evangélico. Igualmente possibilitam acessar as
visões e os objetivos dos organizadores e tecer um retrato daquele que ouve música e
dança. Assim, poder-se-á apreender as proximidades e os distanciamentos no tocante ao
entretenimento, ao religioso e à crítica social.
O presente trabalho está dividido em entreato e seis capítulos, que abrangem
questões diversas. Acredito ser possível, a partir deles, visualizar as especificidades da

23
atividade musical e como esta contribui para a transformação do meio evangélico. O
entreato é uma parte voltada a informar ao leitor as etapas, as condições e as situações
experimentadas no decorrer do trabalho de campo. São apresentadas a questão inicial, os
primeiros momentos, as dificuldades e as questões enfrentadas.
O primeiro capítulo apresenta um histórico sobre a “música gospel”, nos Estados
Unidos; também privilegia os percursos artísticos de cantores brasileiros com a finalidade
de delinear a construção da musicalidade no meio evangélico. Será buscado compreender a
organização e a estruturação da “música gospel”, modalidade difundida a partir dos anos de
1990 entre os evangélicos. São destacadas as canções formuladas a fim de demonstrar as
características das canções. Sem ignorar as elaborações de encontros e execução de
canções, são exploradas as concepções dos envolvidos acerca da formulação musical para
ser possível alcançar certa organização empresarial e religiosa, a elaboração e a
apresentação de bens musicais e, ao mesmo tempo, chegar naquilo que demarca a relação
entre ouvinte e música. O ponto final tem a ver com a relativa resolução diante da tensão
entre mercado e religiosidade.
O segundo capítulo está centrado na apresentação das composições dos grupos
organizadores daquilo conhecido por “festa”, modalidade de reunião que expõe a
complexidade e a organização do meio religioso. Além da descrição da atividade, os
objetivos são evidenciados, bem como as concepções dos produtores acerca dos bens e
serviços musicais dispostos. Também serão destacados os tipos de mediação que os
produtores musicais estabelecem quando inscrevem a “festa”, a black music gospel e a
“música gospel”.
No terceiro capítulo, a partir de literatura pertinente, discute-se a “festa”, a
brincadeira e as fantasias. A reunião é vista não como atividade ímpar, pois outros grupos
utilizam tais elementos para suas práticas religiosas. Serão observados os fluxos de agentes,
de entendimentos, de interesses, de arranjos, de tensões e que provocam debates. Estes
tocam em pontos sensíveis como, por exemplo, tradição e quebra de tradição, afetividade e
autocontrole, diversão e religiosidade, informalidade e formalidade. Por fim, focalizarei
também a tensão entre os produtores de black music gospel e de “festa” e os líderes
religiosos institucionalizados. Como se verá, na última parte do capítulo serão abordadas as
visões pertinentes à “festa”: de um lado, as formulações dos organizadores permitem

24
destacar o aspecto da dádiva; de outro lado, as críticas de pastores viabilizam abordar a
atividade como dimensão do perigo.
No quarto capítulo, há a retomada do termo “música gospel” para apresentar a
tensão com a circulação de outro sentido dado pelos formuladores de black music gospel
que atribuem ao gospel uma origem “negra”. Também são apresentadas algumas canções
para atingir as peculiaridades da black music gospel e de seus produtores/divulgadores. A
partir das canções e de depoimentos, busca-se demonstrar ser a black music gospel e a
“festa” não demarcadas apenas pelo entretenimento, mas tomadas como adequadas ao
debate e posições definidas e questionadoras da invisibilidade da black music gospel e de
artistas negros, de fiéis e de suas referências culturais. No meio evangélico, outros grupos
igualmente questionam e estabelecem posições diante das condições enfrentadas pelo
contingente de fiéis negros. Materiais mediáticos permitirão observar que ações
empresariais e o mercado passam a ser as condições para a visibilidade da black music
gospel.
O quinto capítulo versa sobre a black music gospel e como ela viabiliza
problematizar a temática da cor no meio evangélico. Ao explorar o material imagético será
visto como os produtores constituem via de divulgação de artistas negros, de estilos
corporais pautados na apropriação de bens culturais. Além disso, as abordagens dos
depoimentos, de produções textuais e imagéticas permitem demonstrar a vigência de
diálogos com atividades constituídas fora do meio religioso e possibilitam refletir sobre a
vigência de um território. Ele estaria pautado na relação entre cor e música e sublinha outra
concepção de cidade. Também será vista a crítica sobre a validade das inovações musicais e
das expressões musicais de referencial afro-americano para o meio evangélico. Por fim,
será observado o confronto entre aqueles voltados ao questionamento do meio evangélico a
respeito da invisibilidade do negro e de sua cultura e os defensores da black music gospel.
O sexto capítulo focaliza os depoimentos e explora a descrição do campo
pesquisado para constituir um perfil dos ouvintes de black music gospel e aqueles presentes
na “festa”. Assim, busca-se conhecer ouvintes e freqüentadores, observando-se a dinâmica
entre o entretenimento, a crítica social e a fé. A partir das concepções dos usuários, será
realizado um retorno à esfera da produção para explorar outro aspecto. São trazidas as
pregações, as canções e a descrição de campo para indicar a vigência de novos postos na

25
arena musical e de “festa”: o pregador, o DJ e o responsável pela esfera de controle do
ambiente e dos corpos.
Na conclusão são retomados diversos pontos vistos no decorrer da tese. Eles
viabilizam a discussão do dito meio evangélico que, diante de canções, imagens e ações
empresariais e religiosas, depara-se com visões distintas acerca da “música gospel” e da
black music gospel. Ver-se-á que a transformação, como o perigo, não é dada somente pela
adoção de técnicas e de expressões musicais. Existem tensões pertinentes ao estilo de vida,
ao ethos e visão de mundo, entre líderes institucionalizados e produtores musicais, são
momentos significativos. Por fim, serão apontadas as instâncias de reconhecimento e de
visibilidade da black music gospel com a retomada da composição entre mercado e
religiosidade.

26
Entreato

De chegadas e descobertas: o trabalho de campo

Para prosseguir com o tema definido na introdução, descrevo aqui as etapas, as


condições e as situações enfrentadas no decorrer da investigação. Elas abarcaram
momentos como a entrada, a condução do trabalho de campo e a definição da questão.
Inicialmente tinha por objetivo compreender a lógica da produção fonográfica no meio
evangélico e, desse modo, considerei que a pesquisa poderia ser realizada em uma empresa
fonográfica. No entanto, terminei por investigar um grupo de atividades independentes,
seus organizadores e freqüentadores. A alteração resultou de condições enfrentadas e da
necessidade em reelaborar o planejamento. Entre 2002 e 2004, entrevistei pastores,
empresários e cantores; participei de reuniões destinadas a divulgar os empreendimentos.
Nos anos de 2003 e 2004, estive presente em edições de “festa” preparadas por alguns
grupos em atuação na cidade do Rio de Janeiro. Passo, a partir de agora, a descrever o
percurso de pesquisa.
De início, achava possível ater-me a algum empreendimento estritamente
industrial a fim de saber como era concebida e organizada a “música gospel”. O acesso a
uma gravadora foi possível, mas problemas foram enfrentados como, por exemplo, a
obtenção de informações solicitadas. Além disso, outro ponto contribuiu para reajustar o
plano de pesquisa. Visava abordar quais seriam as noções dos receptores sobre as canções
disponíveis. Enfrentei certa dúvida sobre a audição musical por meio físico (CD, rádio,
televisão, computador), pois envolveria etapas de concepção e de produção empresarial e
situaria o ouvinte em lugar distante. Esse contato indireto colocou dúvidas sobre como
poderia contemplar o aspecto da recepção.
Diante disso e das dificuldades, pouco depois reformulei meu plano de trabalho e
privilegiei algo distinto daquele estritamente relacionado com as empresas fonográficas.
Considerava ser possível acessar os aspectos da produção musical, da execução e também
da recepção e, assim, não escolhi o regular serviço religioso, marcadamente formal, mas
privilegiei manifestações resultantes de atuações independentes que mantivessem, em

27
algum grau, ligações com a esfera institucionalizada. Eram atividades informais e
descentralizadas e, portanto, acreditava, teria como perceber as peculiaridades das ações
dos organizadores e do público.

Ponto de partida: intervenções

Para falar sobre a pesquisa e apresentar o campo retomo momentos anteriores.


Tenho por início a minha dissertação de mestrado, em 1997, orientada pela profª. Patrícia
Birman, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - PPCIS/UERJ, sobre o
trabalho musical realizado por "agentes religiosos" (trata-se de membros efetivos e líderes
de igrejas evangélicas) interessados em evangelizar jovens de camadas populares e
residentes em bairros não centrais da cidade do Rio de Janeiro. O ponto de partida foi em
1996 ao participar de uma pesquisa coordenada pelo antropólogo americano John Burdick
sobre a atuação religiosa e o nível de consciência racial; parte do trabalho de campo foi
realizada na Igreja Jesus é a Verdade, localizada na Ilha do Governador, Zona Norte, no
Rio de Janeiro.
Durante o trabalho de campo, observei que a música preenchia significativa parte do
tempo dos adeptos. Nos finais de semana, a preparação do templo, a organização do serviço
religioso e a permanência de fiéis não estavam desvinculadas da música. O ensaio da banda
musical ocupava a tarde de sábado e de outro dia da semana; enquanto houvesse pessoas no
local, o equipamento de som estava sempre ligado. A liderança da igreja consentia e
evidenciava que a música era importante para a permanência dos membros como, por
exemplo, os convertidos. Isso compreendia dar liberdade para manipular e tocar os
instrumentos, cantar, movimentar-se por toda a área, fazendo-os ficar por muito tempo no
prédio. Mas tudo se desenrolava sob o acompanhamento de um ou mais integrantes.
A igreja estava localizada próxima a uma favela e em seu interior era corrente a
visão de que os adolescentes convertidos poderiam ser mais vulneráveis aos apelos de um
modo de vida considerado não adequado; havia leigos que explicitavam que alguns
adolescentes teriam vivido pequenas ações ilegais. Para a liderança e leigos, o perigo era
iminente e, assim, as atividades deveriam ser atraentes para mantê-los no grupo e, portanto,
a música teria significativa contribuição.

28
Durante seis meses, observei a dinâmica da igreja e do grupo juvenil e, nos
momentos posteriores, privilegiei atividades religiosas e ensaios do grupo musical; tomei
conhecimento da existência de músicas que circulavam no meio evangélico e
privilegiavam o funk. Esta é uma expressão musical associada aos grupos juvenis urbanos e
gozava então de reconhecimento negativo na cidade do Rio de Janeiro. Ela era vista como
ligada aos "arrastões" 15 registrados nas praias da Zona Sul, na década de 1990. Isso me
chamou a atenção e passei a indagar como e por que o funk se acomodava entre os
evangélicos.
Os cantores com os quais mantive contato foram César'El, convertido à Assembléia
de Deus, tendo passado para a Igreja Renascer e, posteriormente, retornado ao primeiro; o
outro foi o grupo Yehoshua, formado por pastores da Igreja Metodista – ao todo eram seis
integrantes, sendo dois convertidos e os demais oriundos de famílias evangélicas. No
discurso do grupo, havia a reflexão sobre certa juventude vista como associada ao funk e
aos "arrastões"; para os cantores, os dois – o estilo musical e o “arrastão” - eram
considerados elementos possuidores de poder negativo. Assim, era elaborada a apropriação
daquela expressão musical e feita sua transformação em potente meio de conversão.
O trabalho dos agentes religiosos compreendia tornar o funk um eficaz instrumento
de conversão e de atuação. Para os cantores, também os membros e os líderes religiosos da
Igreja Jesus é a Verdade, a música era um eficiente modo de transformação, pois
consideravam que os equipamentos faziam parte de seu trabalho evangelizador; atribuíam
ao som a capacidade de alterar a disposição dos ouvintes porque podia conduzir a atos
reprováveis ou não. Para os cantores, a expressão musical – funk - era vista como uma
sonoridade negativa e incentivava atos violentos porque incitava os sentidos e a
consciência. Por tal capacidade, esse estilo musical deveria ser recuperado e utilizado como
instrumento de evangelização, seja pelo poder atribuído ao som, seja pela penetração em
grupos juvenis urbanos encontrados em clubes e quadras localizadas em bairros e em
comunidades não centrais.
As músicas produzidas por artistas não evangélicos eram submetidas ao exercício de
transcrição que permitia o surgimento de versões, cujas letras veiculavam “mensagens”

15 Na década de 1990, a imprensa deu destaque ao conflito, nas praias da Zona Sul do Rio de Janeiro, entre
grupos de jovens, provenientes de comunidades localizadas no subúrbio da cidade, que teriam agredido e
subtraído pertences de banhistas. Sobre o tema, ver: Cunha, 2002; Farias, 1999.

29
como o poder divino e a guerra contra o mal. Este era entendido como o uso de drogas, o
abandono de crianças e o envolvimento com a criminalidade. Os depoimentos dos cantores
chamaram minha atenção, pois os integrantes do Yehoshua diziam que se apresentavam em
praças públicas, programas de televisão e “bailes funk”, principalmente os organizados pela
equipe de som Furacão 2000 16. Os cantores informaram que podiam contar com o público
da equipe de som Furacão 2000 e também eram contemplados por fiéis que iam aos bailes,
mesmo contra a posição da liderança religiosa, no caso desse grupo musical.
Com o fim da dissertação, percebi que os depoimentos prestados apontavam para a
existência de modo alternativo daquele formado pelas denominações e suas atividades -
ofertas de bens e serviços religiosos. O objetivo era atingir público constituído por
evangélicos ou não. A produção musical ao redor do funk ressaltava a proposta de
evangelização, com a apropriação de uma expressão musical considerada adequada para
penetrar em determinados grupos, com a finalidade de veicular a “mensagem” de salvação;
porém seria uma dupla salvação: oferecer uma vida próxima a Deus e longe das drogas e da
violência, ou o que entendiam ser o mal. Não obstante, pouco sabia quem eram os
organizadores, suas influências e interesses; quem consumia, qual o sentido que a música
tinha para o público, quem comprava CDs e ia aos shows. Por tudo que foi visto, considerei
que ainda haveria muito a pesquisar.
No Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia - PPGSA/IFCS,
tinha interesse em responder àquelas e a outras questões, e isso poderia ser feito ao
investigar uma produtora. Por meio do contato com uma jornalista da produtora musical
MK Publicitá, que procurara a prof.a. Regina Novaes em busca de informações sobre o
mercado fonográfico, consegui penetrar na empresa e conversar com o relações-públicas e
principal articulador da produtora desde sua fundação, na década de 1990. Porém, efetivar
uma pesquisa não foi possível, pois esse universo compreende segredos, cautelas e temores.
A MK Publicitá (MkP) está localizada na cidade do Rio de Janeiro, em São
Cristóvão. Fiz uma visita ao prédio da empresa; guiada pela jornalista, conheci alguns
setores, mas fui impedida de entrar em determinada área que poderia ser aquela de efetiva
produção de CDs. Conheci as áreas executivas, como a redação da revista editada pela

16 A Furacão 2000 surgiu na década de 1970, no Rio de Janeiro, com Rômulo Costa e Gilberto Guarani, que
iniciaram a empreitada com “bailes funk” e soul. Atualmente a equipe mantém programas na TV e bailes
semanais, possuindo gravadora e estúdio de som. Ver: www.imusica.com.br, acessado em 28/01/05.

30
empresa, a rádio El Shaddai, o portal Elnet, o estúdio de produção de programas de
televisão, o estúdio de gravação musical e...só! Apesar do ar receptivo, todas as minhas
investidas, contatos e pedidos eram adiados ou educadamente esquecidos pelo relações-
públicas; então, percebi que não deveria perder mais tempo. Também, nesse período, tentei
entrar em contato com uma cantora, prima de uma colega de disciplina no Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (IFCS/UFRJ), mas foi em vão. A agenda da
artista era concorrida, registrando constantes viagens e estadas no exterior. Depois de
algumas tentativas e uma conversa telefônica, terminei por desistir.
O período entre a visita à empresa MK Publicitá e o contato com a cantora foi
eficaz, pois foi possível questionar a condução do trabalho de campo. Entendi que a estrita
abordagem da atividade industrial ressaltaria a música como resultado de planejamento
racional; enfim, seria uma mercadoria para as empresas. No entanto, não visava fazer uma
pesquisa sobre o caráter administrativo ou empresarial. Achei que poderia tomar outra via.
Assim fiz.

Contatos, encontros e “adoração”

Por um tempo fiquei pensando qual caminho poderia tomar e compreendi que as
dificuldades não seriam encontradas somente na MK Publicitá, mas em qualquer outra
produtora. Restrições ocorreriam. Literalmente fui à rua encontrar indícios, pistas sobre os
ouvintes, sobre os atores que participariam da produção de uma determinada música.
Um dia, em visita ao Mercado Popular, na parte central da cidade, conversei com
17
Cosme (proprietário de uma loja – trata-se do bazar Deus Proverá. Nele são
comercializados CDs e outros artigos com frases religiosas), anteriormente indicado por
Claudinei, da JC Produções e ex-funcionário da Associação de Músicos e Arranjadores
(AMAR) 18. Este último foi entrevistado a partir da indicação de uma funcionária do

17
Convém explicitar que os nomes dos entrevistados foram alterados; porém em se tratando de artistas e
organizadores de eventos, a opção foi utilizar os nomes artísticos porque estão presentes na dimensão
pública, em meios de comunicação como, por exemplo, na Internet, em revistas e em jornais voltados à
divulgação musical. Sobre o bazar Deus Proverá e seu proprietário, ver: informativo e-black, ano 1, 6ª edição,
dez/2003, p.03.
18 A AMAR -Sombras é uma associação de músicos, arranjadores e regentes que visa administrar e
distribuir direitos autorais musicais. Seu escritório central está localizado no Rio de Janeiro e possui
representantes em diversos estados do país. A Sombras atua desde a década de 1970, defendendo a autonomia

31
Escritório de Arrecadação de Direitos Autorais (ECAD) 19 quando procurava dados sobre
consumo musical. Sobre as canções vinculadas ao meio evangélico, a interlocutora afirmara
não ter condições de explanar, porque o ECAD não fazia distinções entre as modalidades
musicais e, portanto, abrangia as execuções realizadas por diversos meios.
Cosme falou sobre os clientes e sobre suas preferências. No decorrer da conversa,
confirmou a realização de "baile evangélico" ou "festa gospel" no Rio de Janeiro (ouvira
falar sobre o assunto, por volta de 1998, pouco depois de ter finalizado a dissertação de
mestrado) e afirmou ser um patrocinador deste tipo de evento.
Esses eventos têm um caráter quase itinerante, contemplando músicas nacionais e
norte-americanas e reúnem interessados oriundos de diversas partes da cidade. A “festa” é
constituída por vários momentos (jogos, oração, brincadeiras, comensalidade e dança, por
exemplo) e configuram a atividade a partir da reunião entre entretenimento, religião e, de
modo não tão evidente, questões sobre desigualdade social e o lugar destinado aos não
brancos na sociedade brasileira.
No momento da conversa com Cosme, não me interessei muito pelas "festas", mas
entrei em contato com produtores de um programa semanal de rádio e entrevistei dois
deles: um é cantor e o outro DJ e empresário do grupo. A conversa girou em torno da
produção e da execução de músicas pautadas em recentes expressões musicais, como o rap
e o funk. Somente no fim da interlocução soube que também eram promotores de iniciativas
musicais.
Meu objetivo era investigar a produção musical oficial e, assim, tive a oportunidade
de conversar com o pastor Manga, casado, branco, dirigente de uma igreja que atua entre
surfistas e jovens da Zona Oeste da cidade − nos bairros da Barra e do Recreio dos
Bandeirantes. Após uma ligação telefônica, o pastor concordou em conceder uma
entrevista. Foi no decorrer dela que soube de sua participação na fundação e condução do
grupo de rock Oficina G3 20, do plantel da MK Publicitá, cujas músicas são consumidas no

do autor e passou a denunciar os grandes grupos fonográficos e o interesse em controlar o sistema autoral
brasileiro. Ver: www.amar.art.br, acessado em 06/12/04.
19 O ECAD é formado "por associações de autores e titulares filiados e/ou representados " e tem por objetivo
arrecadar e distribuir direitos autorais e conexos em decorrência de execução pública de obras musicais e
literárias. Ver: www.ecad.org.br, acessado em 06/12/04.
20 O grupo Oficina G3 é uma banda de rock que busca divulgar mensagens de cunho evangelístico. Ver:
www.elnet.com.br, acessado em 25/11/02.

32
meio evangélico. Depois de sair da Igreja Renascer, foi para a Vineyard 21. Contou que,
durante o período que esteve na Renascer, também promoveu "festa"; porém, com o
tempo, com a saída do grupo Oficina G3 e mudança de igreja, deu outra direção ao seu
empreendimento e passou a organizar reuniões musicais 22 com perfil mais adequado aos
valores protestantes. Naquele momento, cantava e participava da organização de eventos
divulgadores da chamada "música cristã", o que faz ainda hoje.
Durante a entrevista, com o pastor Manga, tomei conhecimento do Encontro
Nacional de Louvor Profético (ENLP). A partir daí, visitei a página virtual, entrei em
contato com a comissão organizadora e conversei com um dos pastores. No decorrer da
conversa, o pastor discorreu sobre as mudanças musicais e frisou a importância do
retroprojetor na exposição de canções que poderiam ser cantadas por todos os presentes no
serviço religioso. O ENLP é interdenominacional, teve fundação na cidade do Rio de
Janeiro, em 1990; depois, no decorrer da década, passou a ser efetivado em Petrópolis,
adquirindo amplitude nacional. Seu objetivo é reunir líderes religiosos (cantores,
compositores e expositores) e o público para "louvor e adoração" a Deus através da música
e da profecia 23. De três a quatro dias − atualmente há a proposta de fazer a reunião em uma
semana −, o público lota o teatro do Hotel Quitandinha, construído na década de 1940, na
cidade de Petrópolis, estado do Rio de Janeiro, para ouvir pregações dos pastores e cantar
juntamente com os líderes presentes. Diante da organização do ENLP, com a participação
de cantores e empresários do meio musical evangélico, em 2002/2003, decidi ir à
manifestação e, durante três dias, assisti a várias palestras e apresentações musicais.
O teatro pode ser alcançado pelo interior do hotel ou pelo acesso direto existente na
entrada oposta à dianteira, e precedida por um lago com o formato do mapa do Brasil.
Entrando por aí, chega-se a uma ampla recepção; depois, há uma escada que permite
alcançar o teatro, à direita, há outra escada que conduz a um salão com ampla cúpula,

21 A igreja Vineyard foi fundada nos Estados Unidos, por John Wilber, músico profissional, na década de
1970. A Vineyard procura enfatizar a adoração, o ensinamento prático das Escrituras, o treinamento para o
ministério, o cuidado com os pobres e a fundação de novas unidades. Atualmente sua administração fica a
cargo de um grupo formado por líderes que atuam em diversos países expandindo a denominação. No Brasil,
ela está localizada nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Minas Gerais e no Distrito Federal; ver:
www. vineyardmusic.com.br, acessado em 09/10/04.
22 Entrevista concedida a Márcia Leitão em 2002. Outros dados disponíveis em
http://www.supergospel.com.br, acessado em 15/02/05.
23 Revista oficial do Encontro Nacional de Louvor Profético, nº05, 24 a 28/08/02.

33
utilizado para exposições e igualmente ocupado por empresas e produtos religiosos. O
teatro comporta cerca de 2.000 pessoas, com dois níveis de cadeiras e palco giratório.
Abaixo do teatro, há uma área que funciona como restaurante. Ao chegar, dirigi-me à
entrada do teatro; constatei que desde cedo havia vendedores informais de produtos
comestíveis – vendiam café, bolos e biscoitos - posicionados próximos à porta. Até o local
designado para o encontro, a circulação era permitida, e encontrava-se um público
diversificado: crianças, adolescentes, jovens e adultos, observando o local ou na fila para
entrar no teatro.
Para chegar até o local designado, era necessário mostrar um cartão, com o nome e a
igreja de filiação, pois isso evidenciava a realização da inscrição com pagamento em rede
bancária. Em 2002, o valor do ingresso integral era de R$ 50,00, com depósito em conta
corrente e inscrição on line; o comprovante seria apresentado no setor de recepção, havendo
a conferência de nome e recebimento de crachá com identificação e revista com a
programação. Isso viabilizaria a freqüência nas reuniões em diversos horários. A inscrição
também poderia ser feita com o pagamento no local de quantia que poderia ser de dois
tipos: integral - permitia assistir a todas as sessões; e parcial - seu valor, menor, dava
licença para assistir as sessões programadas para o dia correspondente ao pagamento. Em
2003, a organização estabeleceu valores diferenciados para os interessados no pagamento
parcial. Assim, para assistir as pregações em um turno (manhã, tarde ou noite) o pagamento
seria de R$ 15,00; para dois períodos (manhã e tarde; tarde e noite) o valor seria de R$
25,00.
Depois de passar pela etapa de credenciamento, era a vez de sentar e aguardar o
início das atividades. Durante os intervalos, era possível ver o público explorando certas
áreas do hotel, a proximidade do hall dos apartamentos e, principalmente, o salão, naquele
momento ocupado por stands de vendas alugados a expositores de empresas – literárias,
discográficas, de vestimentas e equipamentos de som. Havia a comercialização de CDs, de
blusas com frases indicativas de filiação religiosa, de livros, de buzinas com frases de
cunho evangelizador ou ofensivo como, por exemplo, "sai, macumba!" (ou "sai,
despacho"), material de sonorização etc. Também os organizadores do evento
disponibilizavam as filmagens e as fotos correspondentes às apresentações, com valores
entre R$ 15,00 a R$ 42,00.

34
Grosso modo, o ENLP reúne pessoas de várias denominações, tanto no que tange ao
público, quanto aos cantores e aos líderes religiosos. Seus organizadores são da Igreja
Metodista, Ministério do Avivamento e Projeto Vida Nova. Os pastores convidados
também são oriundos de diversos grupos como, por exemplo, Comunidade da Graça,
Ministério Fogo e Glória e Igreja Batista Getsêmani 24. Constitui um universo de música,
de sermões e de manifestação emocional, como quando os cantores conseguem, ao executar
uma canção durante 30/40 minutos, levar os presentes a certo estado emocional demarcado
por risos, choros, lamúrias e quedas ao chão.
Em relação aos organizadores do ENLP, encontrei dificuldades em conversar e
somente consegui falar, mais de uma vez, com um deles. Não foi um contato rápido; diante
da demanda do momento, indicou outro integrante da equipe, cantor e autor de livros sobre
música e evangelização. Esperei para contatar o dirigente depois que tivesse uma questão
definida. Havia outro ponto: ainda não considerava ter encontrado questão viável a ser
investigada e nem ver ali o grupo por meio do qual poderia desenvolver minhas dúvidas e
observações.
Um ano se passou. Ouvia falar das "festas" e também de bares e shows nos quais a
participação de interessados nas músicas era significativa. As atividades eram organizadas
por grupos religiosos, pela esfera pública 25 ou pela iniciativa privada, sempre com a música
em voga. No meio evangélico, há termos empregados com a finalidade de identificar as
músicas produzidas e em circulação em seu interior. Assim, fala-se em “música gospel”,
"música evangélica" e, mais especificamente, "música cristã contemporânea" na tentativa
de demarcar a música produzida e consumida na atualidade e distinta da hinologia
protestante.
Aliás, a categoria "música gospel" é difundida no país, corrente entre evangélicos e
não evangélicos, para falar, em sentido geral, da música e de outros artigos com mensagens
religiosas. Atualmente, gospel ou "música gospel" é utilizado prodigamente por artistas,
produtores, programas de televisão e revistas. Para alguns promotores de "festa" − como
parte do público, o termo gospel pode ser aplicado às musicalidades ligadas aos cantos

24 Revista do Encontro Nacional de Louvor Profético, nº 06, 2003, p. 4 -7.


25
Algumas prefeituras realizam eventos como feira agropecuária, aniversário municipal, por exemplo, que
compreendem a realização de shows com a participação de cantores e artistas para entreter o público. A
agenda de atrações costuma ter uma noite ou uma tarde para a apresentação de grupos e cantores evangélicos.

35
elaborados por escravos nas plantações americanas e seus descendentes. Esses teriam
inspirado a black music que, por tal origem, estaria presente no meio evangélico 26.
Existem tantas iniciativas e canais – impressos e virtuais – especializados na
divulgação de artistas e de atividades que são alocados sob a rubrica gospel. Recentes
análises designam a existência do “circuito gospel” integrado por igrejas, boates,
restaurantes e outros lugares (Almeida e Rumstain, 2003). Aponta-se também para a
vigência da “cultura gospel” própria de um “modo de vida” que registra alterações
superficiais; ela pouco muda o meio evangélico, posto reforçar o ethos religioso
(Nascimento Cunha, 2004).
Diante da profusão de eventos e da dificuldade em penetrar numa gravadora, em
2003, resolvi ligar para a produtora do programa Explosão Gospel (EG). Este é um
empreendimento que visa descobrir talentos musicais a fim de gravar compact disc (CD)
com os novos cantores. Para tanto, houve composição com produtora localizada no bairro
de Vila Isabel, Zona Norte, cujo diretor-artístico expressava interesses em atuar no meio
evangélico.
Tomei conhecimento do encontro, realizado no Teatro da Praia, em Copacabana, ao
ler o jornal Explosão Gospel 27. Entrei em contato com Antônia, sua organizadora, que me
convidou para assistir a edição do EG. O jornal veicula notícias sobre o meio evangélico e
divulga as sessões elaboradas ao redor da música e da "caravana" − era o mesmo tipo de
atividade musical que a equipe de produção tentava implementar em outras cidades como
Campos dos Goytacazes, no Norte-Fluminense.
Antônia, ex-produtora de cantores e de baile funk, convertida à Igreja Universal do
Reino de Deus - IURD -, fala que o início do EG ocorreu após ter recebido o pedido de
uma “obreira” 28 para realizar um trabalho musical. A empresária dizia ter produzido
“cantores evangélicos” sem ter se convertido; teve insucessos e optou por abandonar a
atividade. Converteu-se e, apesar dos pedidos, resistiu. Depois viu ter passado por período

26 Como exemplo de mobilização e organização, ocorreu em 2004, em São Paulo, o 1º B.Unit Festival
voltado a premiar artistas da chamada black music gospel. Ver: supergospel.com.br, acessado em 05/08/04.
27
O jornal foi cedido por Edileuza, na época aluna do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e
Sociologia – PPGAS/UFRJ. O veículo surgiu em 2002, tem edição mensal, com distribuição gratuita; possui
colunas redigidas por líderes religiosos e favorece divulgação de anunciantes (comerciante e profissionais
liberais). Em maio de 2003, o jornal tinha uma tiragem de 10.000 exemplares.
28 Termo corrente na IURD e que designa aqueles que exercem atividades no templo e que complementam o
trabalho do pastor. Ver: Campos, 1997.

36
de provação, para ela, imposto por Deus; entendia que teria ficado “fragilizada e,
totalmente na Sua dependência”, para que mais adiante pudesse ter um verdadeiro encontro
com Ele 29.
Somente após algum tempo, cerca de dois anos, em 2001, e várias solicitações,
principalmente, de um músico da IURD, organizou uma equipe com amigos e conhecidos
seus. Atualmente, aluga o Teatro da Praia, propriedade da Igreja Maranata 30, para a
execução do EG. As reuniões da equipe de produção e a seleção dos participantes ocorriam
nas tardes de sábado, nas dependências da Igreja Internacional da Misericórdia, igualmente
localizada em um edifício no bairro de Copacabana, também alocado por ela. Apesar de
registrar que não solicitaria “nada a ninguém”, Antônia tem articulações que envolvem
igrejas, empresas, comerciantes e políticos, colocando-a além da dimensão religiosa.
O EG é realizado bimensal ou mensalmente, dependendo das condições materiais da
equipe e disponibilidade em alugar o teatro. Este está posicionado na área de um edifício
residencial e tem entrada independente. Existe uma ampla portaria envidraçada, seguida por
um hall e um lance de escadas e a abertura lateral que dá acesso ao teatro. Ao prosseguir
pela escada, chega-se ao segundo pavimento no qual há banheiros e o outro nível do
auditório. O interior é composto por várias filas de cadeiras e um palco no qual o
apresentador e os candidatos se posicionam no momento de cantar. A entrada para a
programação musical era franqueada, porém na porta ficava alguém da equipe para tentar
impedir que o barulho atrapalhasse a condução do programa, pois havia alguns que
alternavam suas presenças entre conversas, a assistência da reunião e o interesse em
adquirir alguma bebida ou comestível vendido por alguém da equipe produtora. A atividade
sempre tinha início depois do horário marcado devido ao atraso da equipe organizadora ou
chegada do público. A implicação era de os presentes se retirarem, inclusive componentes
do júri, antes do término.
Por ocasião da conversa com Antônia, explicitei o objetivo da pesquisa. Fui
convidada por ela a compor o corpo de júri e, no dia, terminei por ser anunciada como
“professora de faculdade”. O lugar destinado aos encarregados pela seleção dos calouros

29 Jornal Explosão Gospel ano 2, nº 17, 05/03, p. 02.


30 Igreja evangélica fundada na década de 1970, no Rio de Janeiro. Ela prega os dons espirituais, o
evangelismo com vistas à expansão, possuindo diversas unidades na cidade do Rio de Janeiro. Ver: www.
igrejamaranata.com.br, acessado em 09/10/04.

37
não facilitava a observação, haja vista ser a primeira fileira de cadeiras, o que impedia ficar
atenta ao que se desenrolava no teatro. Durante outras duas vezes tentei despistar para não
ser solicitada a assumir o posto, mas foi em vão. Era descoberta e solicitada para contribuir
para a efetivação da atividade. Depois passei a chegar atrasada para escapar aos convites.
No período de minha observação e também participação como componente do
grupo de julgadores, pude perceber inseguranças pertinentes ao critério de escolha. A
informação dada por algum componente da equipe organizadora era se a canção possuía
inspiração e referência religiosa. Não foi difícil constatar que os jurados ficavam em dúvida
diante de algo inconsistente e ocorriam, em algumas edições, dúvidas sobre como votar.
Alguns encontros depois, foi posta em circulação uma ficha de avaliação (anexo), contendo
os critérios e o intervalo de pontos (1 a 10). Os aspirantes eram avaliados e selecionados
por um grupo formado por amigos, dirigentes religiosos, membros de alguma igreja,
empresários, cantores e músicos. Os convidados deveriam votar conforme alguns critérios –
(os integrantes do júri recebiam uma caderneta de anotação e nela figuravam três critérios:
letra, arranjo e interpretação).
A estrutura do EG remete ao programa de auditório, com apresentador, platéia,
torcida organizada, candidatos a cantor, às vezes, algum artista iniciante, a presença de
pastores e de empresários – integrantes de gravadoras e de emissoras de rádio; havia
também o uso de tecnologias e apresentação de canções conhecidas cuja execução era
possível pelo playback 31. A presença e o uso de uma determinada estrutura comum aos
programas de auditório, as relações e os arranjos, envolvendo esferas diversas como, por
exemplo, a comercial e a política, fazem do EG uma iniciativa posicionada entre o religioso
e o empresarial.
Um ponto me fez ver o EG de outro modo; tinha relação com a dimensão da
recepção. O EG aproximava-se do modelo de programa de auditório (ou de calouros), no
qual os concorrentes finalizavam suas canções, sendo escolhidos os três melhores para a
gravação de um CD. Assim, o público se fazia presente, ocupava as cadeiras posicionadas
diante do palco no qual os calouros se apresentavam. Esses eram esperados por torcidas
organizadas, fãs, parentes e amigos e acompanhavam o candidato e, por isso, o público não

31 Trata-se do uso de gravação prévia de trilha sonora para acompanhar a execução de alguma letra musical.

38
era o mesmo na edição seguinte. A audiência era caracterizada por fluidez e laços
familiares ou amizade com os artistas; devido a isso, duvidei se contribuiria para abordar o
aspecto da recepção.
Ao integrar o corpo de júri, comecei a entender os desdobramentos, não somente do
EG, mas também da produção musical, das articulações com líderes religiosos,
empresários, artistas e políticos interessados em expor seus projetos, trabalhos e planos. A
interseção com a esfera política ficou explícita na entrevista de Antônia; ela deixou
evidente, por exemplo, a articulação com a liderança da IURD e outros líderes religiosos do
estado, ressaltando inclusive ter negado ser candidata a cargo público. Fui também
presenteada com um CD do bispo e senador Marcelo Crivella 32, do qual,
significativamente, ela tinha certa quantidade; depois, o material foi distribuído aos
presentes daquela edição do EG.
Para mim, o EG apresentava inconsistência no tocante ao público e à direção.
Achei que poderia observar outros eventos a fim de visualizar a receptividade da platéia;
diante disso, passei a indagar: como seria na "festa", qual o perfil do público e a sua
freqüência, e como os eventos eram concebidos entre os organizadores? Não somente por
isso, em 2003, percebi que não seria possível continuar o trabalho de campo sem, ao
menos, comparecer a uma "festa".
De início, acreditava poder compará-la com o EG, pois considerava existir pontos
relevantes como, por exemplo, a produção independente, as relações empreendidas com
igrejas, com empresários e com políticos; a presença e a participação de grupos juvenis.
Assim, houve uma alteração no tocante ao campo e, conseqüentemente, da questão
pesquisada.

Mudanças: novo campo e algumas questões

O caminho percorrido tinha a ver com o meu objetivo em compreender os arranjos,


as lógicas e as combinações próprias da produção e do consumo de canções; para tanto, em
vez de concentrar o trabalho de investigação em alguma gravadora, fiz a escolha, por causa
das barreiras encontradas, em não ficar restrita ao aspecto empresarial. Assim, inclinei-me

32 Membro da direção da Igreja Universal do Reino de Deus, cantor e senador pelo estado do Rio de Janeiro.

39
para determinadas modalidades de atividades. Entendia que elas evidenciavam um tipo de
articulação alternativa e tinham, por vezes, intercessões com as ações empresariais e
religiosas institucionalizadas.
Após observar duas edições do ENLP, várias do programa Explosão Gospel e tantas
outras reuniões, resolvi ir à "festa" e ver como era organizada e o que revelaria sobre o
aspecto musical e o meio evangélico; no entanto, a decisão não foi repentina. Em 2002, a
profª. Patrícia Birman convidou-me para um trabalho de pesquisa sobre o “Basta! Eu quero
paz” promovido pelo Viva Rio e o Instituto Sou da Paz. A manifestação ocorreu após um
episódio ocorrido em uma linha rodoviária, conhecido como o "seqüestro do 174", cujo
resultado foram duas pessoas mortas. Isso provocou mobilizações na cidade, no estado e no
país a favor da paz 33.
A minha opção foi analisar a rede formada por artistas (grafiteiros, rappers e artistas
de teatro) e o trabalho que desenvolviam. Assim, entrei em contato com diversos
participantes e encontrei o grupo de rap Revolucionando, Evangelizando e Politizando −
REP -, cujos componentes eram evangélicos. Entrevistei três integrantes do REP, faltando
um: L’Ton, um dos fundadores do grupo e também, soube depois, produtor de black music
gospel e organizador de “festa”. Posteriormente, em conversa com ele, fiquei ciente da
consolidação da "festa", de promoção de algo relacionado com a dimensão de
entretenimento, de religiosidade e de crítica social. Suas reflexões descreveram a
manifestação por outro ângulo, pois suas atuações na dimensão artística secular motivaram
indagações sobre as relações estabelecidas 34. As informações reunidas indicavam uma
complexa formulação e consolidação de eventos em certa parte da cidade.
Finalmente decidi ir à “festa” e pude contar com a companhia de Geraldo, cujo
conhecimento sobre bailes foi válido e facilitou a abordagem de freqüentadores, pois a
inscrição de uma dupla não era tão estranha ao cenário composto por grandes e pequenos
grupos, raramente algum solitário.
Escolhíamos aqueles posicionados por algum tempo diante do local. Considerava
que isso facilitaria a conversa, pois poderiam estar aguardando alguém ou algum momento

33 Ver: www.vivario.org.br, acessado em 16/10/02.


34
Antes disso, a prévia descrição realizada por Paulo Cezar, do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais (PPCIS/UERJ), que se disponibilizara em ir a uma edição da “festa”, foi fundamental.

40
especial e, portanto, não deveriam ter tanta pressa. Os grupos formados por homens e
mulheres eram igualmente contemplados por permitir obter diferentes visões. Nossa
abordagem consistia em interromper a conversa, explicar ser uma pesquisa sobre música e
religiosidade.
Os entrevistados perguntavam sobre o meu envolvimento religioso; quando
respondia ter tido educação cristã (católica), ficavam calados. Outra pergunta era sobre
minha vinculação com algum jornal ou revista, pois queriam saber se o material seria
publicado. Explicitava ser uma investigação acadêmica, para a obtenção de um título. A
permissão era constante, todos falavam e sempre perguntavam sobre a minha opinião, se
me sentira bem e se me convertera (“entregara”). Respondia achar interessante, muito
bonito e novo ... De qualquer modo, continuavam a falar. Pude contar com o auxílio de
L´Ton e de Sérgio, das equipes 35 Gospel Beat e Soul de Cristo, respectivamente. Eles me
apresentaram a alguns organizadores, muito me explicaram sobre as manifestações e
descortinaram as articulações entre os organizadores de eventos, evangélicos ou não.
Na “festa”, deparei-me com a ação de duas equipes organizadoras, Gospel Night
(GN) e a Gospel Beat (GB) e depois tomei conhecimento da atuação da Soul de Cristo
(SC). Ao chegar, confesso, fiquei tensa com o leque de possibilidades ali disposto. Desse
modo, considerei ser possível, sem abdicar daquilo coletado nos dois outros momentos da
pesquisa, compreender as peculiaridades daquele fazer musical relacionado a determinado
meio religioso.
O conjunto de ações das equipes permitiu visualizar como formuladores autônomos
e efetivos consolidam seus empreendimentos sem se valer de vínculos com empresas e
igrejas. Mesmo assim, dialogam com suas concepções, estabelecem conexões com
iniciativas e idéias vigentes ou não no meio religioso. Ao focalizar isso, foi possível
construir um retrato mais nítido do evento.
As explicações dadas por Sérgio, os discursos de outros organizadores (veiculados
por meios diversos), os materiais produzidos e as falas dos freqüentadores contribuíram
para incluir a “festa” no plano de investigação. Um ponto era visível: a “festa” era

35 Denomino equipe a associação voluntária voltada a compartilhar interesses, objetivos, mobilizar recursos e
forças políticas, sociais, religiosas e materiais a fim de assegurar a elaboração, a organização e a promoção
musical e de atividades.

41
apresentada como algo diferente de qualquer ação proposta e efetivada no meio evangélico.
Era afirmado ser o fiel antenado com o modo de vida não religioso e, ao mesmo tempo,
tudo era feito e vivido distintamente. Os diversos níveis de diferenças a mim explicitados,
nas conversas mais elaboradas e nos depoimentos coletados sob condições pouco
favoráveis, circunscreveram uma “realidade”. Ela emergia das relações sociais e das
especificidades concebidas e descortinadas (Viveiros de Castro, 2002: 121-123).
Ao ter por interesse entender quais os objetivos, as combinações e os arranjos
peculiares à organização da elaboração e da recepção, deparei-me com vários
empreendimentos e acompanhei diversos, permitindo configurar a execução e a recepção de
canções, e ligados, de modo amplo ou restrito, à esfera religiosa. Fui a shows e atividades
que tinham a musicalidade como elemento central e, apesar das diferenças, eles permitiram
elaborar uma reflexão sobre a dinâmica que envolve a organização de eventos e também de
modos de ser evangélico.
Em 2003, recebi um convite feito por Edileuza, a mesma amiga que possibilitara o
contato com o pastor Manga, para ir ao encontro da juventude da 1ª Igreja Batista do Rio de
Janeiro, no bairro do Estácio (área central da cidade), realizado durante a primeira semana
do mês de setembro que reuniria a "juventude" da Primeira Igreja Batista do Rio de Janeiro
-1ª Pib e outras igrejas convidadas 36, sob a responsabilidade dos componentes do grupo de
“jovens” da igreja.
O início das atividades foi marcado pela atuação da banda. Essa tocou um vigoroso
rock e, na segunda canção, contou com a participação de um grupo de coreografia. Após
algumas canções, foi chamado, naquela noite, o grupo da Igreja Maranata, composto por
quatro pessoas que, com os demais, executou canções por cerca de 40 minutos. Depois
houve a concessão de tempo para o "testemunho" do guitarrista, e um pastor falou ao
público. Nela estavam pais, irmãos, avós e tios, configurando não somente um encontro
musical, mas, acima de tudo, familiar.
O fim do culto foi forçado, haja vista passar de 23 horas e a banda e os demais
núcleos compostos por jovens (coreografia e "louvor") não pararem de cantar. Com o
término, todos foram para o salão, no qual ocorreu um lanche, momento de interação.

36 “No alto, aos Teus pés”- IX Congresso dos adolescentes da Primeira Igreja Batista do Rio de Janeiro (IX
Conapib), 4 a 7/09/03.

42
Logo após, o público começou a se retirar, porém uma parte significativa do grupo juvenil
ficou, com a finalidade de iniciar o momento designado "social". Isso consiste em jogos e
brincadeiras entre os presentes e configura um momento de descontração.
Depois de ir a outros tipos de reuniões, como já citei, pus-me a observar se a música
seria percebida distintamente entre aqueles que participavam do encontro da 1ª Pib e os que
freqüentavam a "festa". Também perguntava quais elementos seriam ali encontrados.
Observei que a "festa" viabilizava uma associação peculiar e distinta daquela registrada nas
igrejas. Diante das brincadeiras, da música e da dança comuns, podia-se indagar sobre as
vias de filiação religiosa, entendendo que nem sempre o parentesco, a procura por cura ou o
ato de apreciar o padrão de conduta de um grupo são fatores determinantes (Fernandes,
1998:29-53).
Há uma inegável dimensão de interação, de reunir um público variado - por
exemplo, local de residência, idade, grau de instrução e filiação denominacional. Os
participantes da “festa” afirmavam ser possível ocorrer interações e essas excederiam o
grupo religioso de origem; muitos enfatizavam que se conheceram ali; outros na sala de
bate-papo de uma das equipes; outro tanto se juntou na igreja ou no local de moradia.
Apesar disso, nos ideais da "festa", notava a existência de solitários participantes, uma
minoria, diante de grupos ou de associações ocorridas na entrada dos locais; no salão,
dançavam, conversavam, tiravam fotos e brincavam.
Os freqüentadores da "festa" - também os promotores e os convidados -,
diferentemente dos participantes do encontro juvenil da Igreja Batista, do EG e do ENLP,
por exemplo, conferiam certa característica, haja vista a pressa em dançar, em conversar,
em cantar. Tudo isso, era componente da dimensão religiosa. Estava diante de uma esfera
regida por outra regulação do pensar e do agir; sua peculiaridade era a diferença diante da
maneira contida de estar no mundo, considerada própria de religiões de acentuado traço
ético-racional (Weber, 1998).
Para um grupo de organizadores, a black music gospel e as atividades organizadas
seriam promotoras de um modo diferente de ser evangélico. Um disc jockey (DJ) 37 afirmou
que isso era possível porque ali se investia na “alegria” e não na “tristeza” e na “doença”,

37 Disc Jockey (DJ) é termo em vigência ao universo profissional e tem a ver com o profissional encarregado
da parte musical, porém não é mero executante de canções. Com domínio técnico, pode transformar as
composições e oferecer novas formulações sonoras e musicais.

43
como entenderiam algumas igrejas. Muitos freqüentadores afirmavam a “alegria” e
revelavam lidar de modo peculiar com o sagrado. Diante disso, era impossível deixar de
notar como se aliavam a estilos corporais e orientadores das modas contemporâneas e,
muitas vezes, mundialmente difundidos 38. Isso pode marcar a diferença entre os primeiros
protestantes e o exercício religioso que compõem o heterogêneo meio evangélico
contemporâneo (Fernandes, 1998).
O período de observação permitiu-me acessar um aspecto também visível em outras
atividades, mas que ficava mais evidente na “festa”. Tratava-se de composições
fundamentais aos empreendimentos, mas que se distinguiam das ações dos organizadores e
igualmente das do público. Elas eram efetivadas por aqueles ocupados com atividades
complementares. Esse grupo, que passei a designar pelo termo “colaborador”, podia incluir
os encarregados pelas filmagens e pelas fotografias para exposição na Internet; os
dedicados a proferirem oração ou mensagem religiosa; e, por fim, os que atuavam na
esfera da área de “segurança”, entendida como específica da dimensão do controle e da
ordem.
Nesse caso, parece existir uma combinação que marca a atuação desses
colaboradores, ou seja, é como um jogo complexo, os DJs excitam o público à dança, ao
canto e ao desprendimento e, por outro lado, ficam aqueles que circulam entre o público de
modo a não inibir os presentes. Eles, porém, devem impor uma presença capaz de tolher as
ações que podem atentar contra a organização da reunião. A participação de colaboradores
também foi registrada em outras iniciativas e estava destinada a atividades específicas:
controlar o acesso do público aos locais do evento, manipular equipamentos eletrônicos e
apresentar os eventos. É possível pensar que existem manifestações onde há, mais do que
em outras, certa maleabilidade de controle sobre a atuação dos presentes. Isso torna a
prática mais densa do que as demais.
Um relato como esse não tem por objetivo destacar o exotismo e sim focalizar os
empreendimentos constituídos e em diálogo com a esfera da produção (fonográfica e
musical). Diante da diversidade de ações, considerei precisar observar e abordar certos
eventos e elementos presentes em sua organização.

38 Para Almeida e Rumstaim (2003), a moda e a estética figuram o "circuito gospel" e permitem
"desconstruir" a imagem existente do crente que prega uma aversão ao "mundo".

44
Algo ainda pode ser dito sobre a “festa” e outras atividades musicais e religiosas.
Além da iniciativa autônoma, alguns organizadores participam de shows realizados fora do
meio evangélico, como produtores ou convidados, e ocorre de freqüentadores os
acompanharem. As atividades registram fases e atores, quando a produção musical, a
recepção, a concorrência pela oferta de bens religiosos, a música e a dança são reveladas,
vendo-se as combinações e a relevância da presença da música para a integração que
caracteriza a "festa" (Geertz, 1998:142-181).
A black music gospel e a "festa" desvelam a influência da globalização, explicitam a
relação entre religião e globalização. Elas dão destaque aos estilos musicais integrantes das
culturas do “Atlântico negro” (Gilroy, 2001) 39. Os grupos envolvidos apresentam
distinções porque o entretenimento é o aspecto enfatizado. Também a crítica à desigualdade
social pode constituir o trabalho de outra associação. Isso ocorre com a proposta de
releitura bíblica, haja vista ser afirmado não ocorrer valorização da cultura africana ou
negra – incluindo o popular e o regional -, e a distinção entre negros e brancos na ocupação
de posições de liderança (Novaes e Floriano, 1985b). O serviço musical oferecido resulta
dessa reformulação e exemplifica as possíveis combinações de componentes e iniciativas
que inscrevem, de um lado, uma noção de sagrado que compreende a música e a dança; de
outro lado, a reflexão sobre a relação entre brancos e negros.
Como foi apontado, a tensão sobre a visibilidade da black music gospel e do
contingente de fiéis negros será abordada, porém sua percepção não foi algo imediato. De
início, interessei-me pelo aspecto do entretenimento, mas o acesso aos materiais imagéticos
descortinou arranjos pouco visíveis e permitiu indagar sobre a construção da noção de
negritude (Bastide, 1974; Birman, 1989; Wade, 2003). Posteriormente, outras atividades,
não somente musicais, foram contempladas para obter algo mais consistente. Existem
iniciativas como o Fórum de Música Negra e Evangelização, elaborado pelo Fórum de
Mulheres Negras Cristãs, com o objetivo de conscientizar a partir da música 40. Vê-se

39 A idéia de “Atlântico negro” permite falar e refletir acerca dos fluxos e misturas culturais de matriz
africana, mas não a partir de um enrijecido centro irradiador, mas de formas culturais em movimento que
trafegam, cruzam mares e originam “culturas planetárias mais fluídas e menos fixas”, pois não são irradiadas
de um centro.
40
Esses grupos podem operar sinais que indiquem mudanças no meio evangélico, pois os leigos e os
religiosos buscam a via política e agem no interior do âmbito institucional. Ver:
http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, acessado em 22/11/03.

45
também a ação do Fórum de Lideranças Negras Evangélicas em marcar determinada
posição junto ao II Congresso Brasileiro de Evangelização (CEB2). Os integrantes incluem
o tema do racismo, da discriminação dos sinais caracterizadores de negros, principalmente
por igrejas neopentecostais que associam a religiosidade de referencial africano/negro com
o mal, com as ações do demônio.
A manifestação investigada destaca as expressões musicais entendidas por
envolvidos como de referencial afro-latino-americano e, portanto, alguns afirmam valorizar
parte da população a ele relacionado. Há organizadores que igualmente consideram tecer
críticas à desigualdade social e outros entendem poder construir algo próprio ao
divertimento. Os organizadores distinguem o que fazem com aquilo em vigor no meio
secular e, para tanto, destacam as características da manifestação vistas, por eles, como
positivas. É apontado não haver brigas, não ocorrer uso de drogas, não existir perigo aos
que buscam ouvir música.
Os três tipos de eventos aqui relacionados evidenciam certos arranjos divulgadores
das produções fonográficas e musicais, porém a comparação revelou outro aspecto,
conduzindo a pesquisa para outra direção. Após certo tempo, a constatação de que os
elementos pareciam desconectados e sem sentido começou a sofrer alteração. Isso ocorreu
após optar por investigar os arranjos estabelecidos, experimentados pelos atores a fim de
compreender o trânsito que empreendem na/pela cidade, como e por que estabelecem
encontros e trocas na esfera religiosa e empresarial (Magnani, 2002). Assim, passei a
refletir acerca dos elementos e dos sentidos que os eventos adquiriam no interior de cada
grupo, diante das experiências religiosas e de uma noção de sagrado. Ao me deparar com as
diferenças e repassando os estudos realizados sobre o tema é que pude chegar a outras
questões e entender as diferenças e as confluências entre os eventos estudados.
A visão, por mim seguida, consistiu em tomar, como a briga de galos, a "festa"
como modo de expressão (Geertz, 1989:278-321) realizado com a dança, com a música,
com a escuridão e com os equipamentos sonoros. Com isso, deu-se ênfase a momentos
demarcados pelo entretenimento - música, brincadeiras e dança. Eles desenham um lado
pouco visível do meio evangélico, porém não ausente, embora, em alguns momentos,
questionados, restringidos e/ou combatidos (Weber, 1996; Thompson, 1987). Desse modo,
será buscado demonstrar que o crer pode conduzir à reunião de elementos, de idéias e

46
objetos de origens ou tradições distintas e que incorre, muitas vezes, em sínteses próprias e
mínima ingerência institucional (Steil, 2001).

Músicas e presenças: comunicações

Por tudo o que já foi dito, a produção musical apresenta ligações com diversos
empreendimentos, com ações sociais e com as concepções dos envolvidos e tudo o mais
que integra os arranjos efetivados. Portanto, segui a orientação de a descrição trazer uma
reconstrução, mas não qualquer uma. Trata-se de exercício voltado a compreender o que os
informantes falam, o que entendem sobre aquilo que fazem e o que efetivamente fazem.
Tudo isso apontava para determinada via de comunicação e, conseqüentemente, de
orientações comportamentais (Geertz, 1989: 143, 144).
Na tradição antropológica interpretativa, a descrição de uma dada situação permite
compreender que ela se entrelaça com outras e, portanto, o uso de conceitos é adequado
para a produção da interpretação dos discursos sociais (Geertz, 1989). Essa anotação
procura tornar o discurso social algo acessível e compreensível a partir da apreensão e da
análise sem se perder em amplas abstrações, pois a formalidade destas impede o acesso às
elaborações dos atores em atualizações cotidianas. Ou seja, deve-se ter em mente que o
emprego de conceitos associa intimamente idéias e realidade representada - "conceitos de
experiência-próxima" -, mas não deve limitar a investigação. O mesmo vale para a
aplicação de conceitos formulados em outro sistema de entendimento - "conceitos de
experiência-distante". Isso não quer dizer que seja necessário nutrir certa empatia por
aqueles que integram o universo pesquisado, mas deve-se saber o que "eles acham que
estão fazendo"; cabe estabelecer uma conexão entre os conceitos a fim de compreender os
"elementos mais gerais da vida social" (Geertz, 1998: 87-90). Assim, visei compreender a
dimensão musical, abordando determinadas iniciativas organizadas e também o público.
Focalizei a produção de reuniões, fosse de cunho independente (autônomo), fosse
institucional. Durante a pesquisa, fui "apresentada" por alguns informantes a uma
modalidade de empreendimento. Constantemente era convidada ou avisada da realização de
algum encontro musical em determinado lugar. Ao ir a um deles, pude visualizar as
peculiaridades dos demais, suas diferenças, haja vista ter me deparado com arranjos mais

47
duros e outros não. Ou seja, alguns tinham conexão direta com a religiosidade
institucionalizada e estavam voltados à disseminação de seus valores e objetivos. Essas
iniciativas coexistiam com outras mais maleáveis e decorrentes de idéias, ações e
comportamentos indicadores de um outro modo de ligação com aquela dimensão.
Durante o trabalho de campo, deparei-me com as mobilizações, as promoções e as
circulações de grupos pela cidade. Trata-se de mais um modo de relação e seus integrantes
podem, muitas vezes, pertencer a grupos divergentes (Wirth, 1976) ou não. Desse modo,
encontrei aqueles que se deslocavam pela cidade e formavam os numerosos arranjos e
reuniões encontradas.
A partir da observação participante (Malinowski, 1975) foi possível coletar dados e
operacionalizar uma interpretação sobre o fenômeno estudado. Busquei apreender diversos
fatos e não somente os mais sensacionais. Além das entrevistas, considerei aqueles,
parcialmente ou não, declarados nos discursos dos envolvidos. Também compilei os
acontecimentos coletados no período de observação, quando ia e me diluía na multidão, na
escuridão das pistas de dança, quando sentada nos teatros percebia uma desordem ordenada
já que, a despeito da aparência, a programação era efetivada; nessas situações era possível
ver e ouvir o que nem sempre era explicitado. Também nas filas, para a compra de
ingressos ou de acesso ao interior dos locais, nas extremidades do salão ou no bar para
comprar algo, era possível conversar rapidamente com alguns participantes, destacar os
mais distintos aspectos comportamentais.
Em relação ao público de “festa”, a observação dos comportamentos no tocante à
vestimenta, o cuidado com o corpo, o modo como os freqüentadores se dispõem, a
integração que realizam e o que entendiam foram acessados também nos momentos
triviais. O instante de “louvor” ou de relaxamento, de encontro, da dança, a ida ao
banheiro, o bate-papo entre os amigos provocaram indagações acerca da música e dos
encontros, pois em relação aos freqüentadores faltaria entender o que seria a organização
social ali existente, seu traçado e também as idéias que conduziriam à intrincada atividade
(Geertz, 1989:227).
Como já foi apresentado, o período de observação desvelou um modo alternativo de
produção e recepção de canções e o vi como algo inusitado; desde 1990, tenho pesquisado
as denominações evangélicas, mas ainda não havia visto nada igual. Perguntei-me sobre as

48
razões e as lógicas dos envolvidos com as elaborações dos bens e serviços ali dispostos. O
que haveria de peculiar? Tudo era formulado e elaborado por cantores, radialistas,
compositores, DJs, músicos, empresários e outros profissionais. Esses leigos combinavam
elementos culturais, objetivos, organizavam recursos materiais e se dedicavam igualmente
em formar seu público.
Os especialistas visualizavam e organizavam certos bens e iniciativas, algumas
investigadas e outras não, e, portanto, diante delas passei a definir o grupo ao utilizar os
termos promotores ou organizadores. Alguns agem com relativo grau de autonomia, pois
promovem articulações para a feitura de canções, para sua recepção, vinculam elementos e
terminam por fornecer dois pontos aos empreendimentos: a) uma feição contemporânea ao
interagirem com outros e adotarem expressões e técnicas musicais; b) a ênfase em
assegurar o reconhecimento daquela atividade como religiosa, tendo-se a presença de
alguém voltado a executar orações e/ou tecer “testemunhos” à assistência. O percurso
compreendeu deslocamentos sociais e geográficos - proximidades e distanciamentos -, haja
vista as "viagens" realizadas que me levaram a cortar a cidade, a me deparar com outra
visão dela. Além disso, o aparentemente extravagante precisou ser refletido para que se
tornasse compreensível (Da Matta, 1983: 143-173).
Diante da amplitude das iniciativas, sabia ser preciso utilizar alguns recursos com a
finalidade de visualizar as relações e os componentes de certo atuar musical e religioso.
Desse modo, as relações entre os promotores e os freqüentadores, suas presenças no espaço
público – ruas, teatros, clubes e similares - também deviam fazer parte da investigação
(Magnani, 2002). Assim foi feito. Observei como se localizavam, posicionavam-se e
usavam locais, prédios, ruas e como entendiam os empreendimentos e áreas urbanas a
partir de suas presenças.
Desse modo, encontrei organizadores que falavam sobre a área na qual os eventos
ocorriam, percebendo-se uma concepção acerca da cidade. Foi possível “chegar” a outra
cidade, muitas vezes diferente do traçado geopolítico realizado pelo poder público, pois as
falas revelavam uma organização urbana distinta daquela que figura nos mapas. Os serviços
e as instituições até podem ser relacionados na concepção de urbano; no entanto, as falas
enfatizavam outros aspectos, como as diversas atividades e expressões musicais
encontradas. A região era pensada a partir da vigência de uma herança cultural, de recepção

49
musical, de ocupação do espaço e de equipamentos públicos. Isso desenharia as escolhas e
os posicionamentos, nem sempre rígidos, nem sempre visíveis nos atos como permanecer
na rua, ir às escolas de samba e outras instâncias de atividade musical.
Foi preciso ouvir e olhar a fim de entender como eram produzidas e vividas a
música e as atividades para sua execução e recepção. Assim, seria possível compreender o
universo dos produtores musicais (cantores, líderes religiosos, compositores, DJs e
empresários), das produções, de empresas e diferentes grupos religiosos. Isso se deu com a
observação das músicas concebidas e elaboradas por aqueles ligados às instituições
religiosas ou não; e de composições consideradas eficazes no processo de conversão -
religiosa ou política -, associando-se, então, à apropriação de expressões musicais,
relacionadas ou não com grupos juvenis urbanos.
Finalizado o período de observação e com uma prévia organização dos dados,
comecei a indagar o que poderia ser compreendido. Eu possuía horas de entrevistas, com
relatos que, às vezes, pareciam desconexos ou, outras vezes, marcados por uma única linha.
Essa poderia permitir tomar algo como sagrado e como os envolvidos sentiam tudo ali
desvelado. Era possível ressaltar a importância da audição das canções, a emoção sentida, a
dança executada. Também as fantasias e os adereços ostentados, em alguns momentos,
podiam ser destacados.
Como disse anteriormente, estava diante de coisas que, muitas vezes, não se
encaixavam e, outras vezes, ficavam mais confusas quando confrontadas com o já
conhecido. O coletado não parecia ter coerência e, para tanto, precisaria entender que os
dados, aparentemente dispersos e fragmentados, poderiam deixar de ser assim caso
passassem a compor outra elaboração, distinta daquela construída e apreciada pelos
pesquisados (Magnani, 2002). Precisaria visualizar os arranjos e como os atores sociais o
sentiam e o concebiam. Diante do que me fora dito, observara e escutara, passei a perceber
a existência de uma ligação entre os arranjos construídos e atualizados por aqueles em
constante movimento pela cidade. Foi assim que dançar, questionar, divertir-se e orar eram
aspectos que apontavam para algo além das lógicas da produção fonográfica. A constante
descrição me permitia questionar, conectar os dados e indagar sobre os elementos, as
propostas, os valores, os arranjos, as combinações e as concepções produzidas.

50
Falas oferecidas: as entrevistas

A minha presença, o acesso às manifestações estudadas e o que me foi dito foram


momentos independentes de qualquer acontecimento imprevisível. Tudo se deu com a
disponibilidade, tanto de organizadores, quanto de freqüentadores, em falar e demonstrar a
eficácia dos bens e serviços. Não dependi de algo inusitado para o grupo ser receptivo
(Geertz, 1998), pois é buscado enredar o “de fora”, enfim “evangelizar”, no esquema de
entendimento e de vida do grupo. Falar sobre a “festa”, sobre “música gospel”, sobre black
music gospel era como oferecer um “testemunho de fé”, pois integravam o mundo
religioso; curiosamente revelavam outra relação com a sociedade, com suas idéias e bens.
Essa operação indicava outra noção de “mundo” separado e recriado por complexo jogo
formado por colagens, oposições e invenções. Tudo sempre atualizado na linguagem e, para
tanto, a apropriação de bens é fundamental (Velho, 1997:147-149; Segato, 1999:229).
A facilidade em falar não era comum porque alguns líderes, envolvidos diretamente
com a esfera empresarial ou estritamente religiosa, não expressavam suas opiniões. Apesar
disso, a maioria estava apta e voltada a receber; talvez a disponibilidade em converter seja
uma constante e um novo contato possa conduzir a isso (Novaes, 1985a).
Diversas entrevistas foram realizadas, muitas músicas foram ouvidas no percurso da
investigação. Sendo mais minuciosa, o trabalho de campo compreendeu dois anos. Foram
feitas 28 entrevistas com profissionais: artistas, produtores musicais e organizadores de
eventos; também foram ouvidos líderes religiosos e freqüentadores. Coletei entrevistas com
rappers e DJs evangélicos e produtores de "festa"; em alguns momentos, recorri a
depoimentos disponíveis em sites de cunho religioso ou não. As matérias jornalísticas
(oriundas do meio evangélico ou não), os materiais promocionais - visuais e sonoros,
elaborados por aqueles envolvidos nas produções fonográfica, musical e de encontros
permitiram acessar um outro nível das formulações dos envolvidos. Ou seja, as iniciativas,
as falas, as imagens e as canções possibilitaram constituir um quadro mais consistente para
a compreensão das relações, das combinações e das tensões próprias aos empreendimentos.
Entre aqueles que consomem músicas, entrevistei não somente os freqüentadores
das atividades pesquisadas, mas adicionei ouvintes de canções consideradas de cunho
religioso, sejam executadas durante o serviço religioso, sejam contidas em compact disc

51
(CD); entre aqueles presentes em iniciativas musicais, incluindo a "festa", foram ouvidos
sete deles, entrevistas em profundidade, e cerca de 15 entrevistas curtas, não formais e
realizadas nas entradas dos locais dos eventos. Isto implicou na duração e na profundidade
das conversas, pois era preciso lidar com a atmosfera do momento e interferências diversas
(barulho generalizado, condições climáticas e intromissão de acompanhantes ou outros
participantes). Nas conversas de maior durabilidade foi possível tocar em diversos temas e
adquirir um quadro mais consistente do universo pesquisado. O acesso aos entrevistados
que constituíram essa parte foi pautado por dificuldades, por resistência em estender a
conversa. O quadro mudou graças ao auxílio de Sérgio, um organizador, ao atestar a
seriedade do trabalho. A partir disso, deparei-me com outra disponibilidade por parte dos
possíveis entrevistados.
A coleta de dados a partir da resposta a questionários mostrou-se inviável porque os
momentos anteriores, os posteriores e também durante a “festa” não eram propícios para
realizar a coleta sistemática. Para mim, a dificuldade decorria da disposição do público em
participar da atividade: ouvir música, orar, dançar, conversar e brincar. Além disso, a
distância geográfica e temporal, o retorno ou não do freqüentador foram fatores inibidores
da opção em usar questionários, pois o retorno ficava comprometido, haja vista as agendas
registrarem eventos distantes uns dos outros, alguns com ocorrências anual, bimestral (ou
mais) e mensal.

52
Capítulo 1

Histórias, falas e canções – cantar no Brasil

No Brasil, há no meio evangélico a coexistência de vários registros sonoros e


musicais. As categorias “música gospel”, “música evangélica”, “música de adoração e
louvor”, “música cristã” e “música cristã contemporânea” são aplicadas para identificar as
canções. Elas nem sempre constam nos livros de hinos e podem ser compostas e gravadas
por pastores e por fiéis. As canções veiculam assertivas de líderes religiosos, de produtores,
de músicos e de cantores que tomam a música como eficaz meio de comunicação entre os
homens e entre esses e a divindade.
A confecção e a apresentação de canções são efetivadas por empresas, por igrejas e
por grupos (independentes ou não). São apropriadas diversas expressões musicais como,
por exemplo, a balada romântica, o rock, o funk e o pagode. Além disso, são organizados
shows e atividades variadas e direcionadas aos públicos – formados por adeptos das igrejas
evangélicas.
Apesar das várias designações acima citadas, a predominante é “música gospel”. As
canções são percebidas como algo homogêneo pela associação com as Escrituras. Do
mesmo modo, os artistas, com suas atuações, intenções e adesões aos estilos musicais, são
considerados como dirigidos pelo Evangelho ou princípios concebidos como oriundos dele.
Aqui abordarei aquilo entendido por “música gospel” a fim de observar a
peculiaridade que adquire no país. A divulgação da “música gospel” desvela ser uma dada
modalidade musical. No entanto, “gospel” é a forma amplamente utilizada por cantores, por
grupos musicais, por empresas, por fiéis, por revistas e jornais relacionados aos evangélicos
ou não. Seu uso está ligado às igrejas, gravadoras ou fiéis diante da pluralidade de
iniciativas. Um sentido é conferido: seria tudo voltado a disseminar o conteúdo bíblico.
Porém, qual a referência dessa música? O que enfatizam os entrevistados quando falam das
canções e dos artistas? O que as empresas colocam nos materiais de divulgação?

53
O capítulo está estruturado para oferecer um panorama da “música gospel” e
explicitar o liame entre ela e a black music gospel. A primeira designação é aplicada aos
artistas, às canções e aos demais produtos encontrados. Já a categoria black music gospel
circunscreve certa modalidade musical, outro fluxo internacional de bens culturais e
determinadas questões – o que será demonstrado mais adiante. Por enquanto, contemplarei
a “música gospel” e sua dupla composição: o southern gospel e o black gospel, ambos
marcados por relações com modalidades musicais populares. Apresentarei também um
histórico da musicalidade no meio evangélico brasileiro, sublinhando a inscrição e a
emergência do gospel. Destacarei algumas histórias de cantores e de atuações de empresas;
também focalizarei as canções para indicar suas características; os receptores são
contemplados com a finalidade de observar como percebem as canções; por fim, buscarei
indicar a ligação entre religião e mercado estabelecida por aqueles envolvidos com a
produção e o reconhecimento do fazer musical.

Gospel – canções e tipos

Sobre a designação “gospel”, é apresentada a visão de sua relação com as igrejas


evangélicas nascidas nas comunidades negras norte-americanas. Alguns autores apontam
para essa relação com o jazz, o soul e o rhythm and blues (r&b) (Oliver, 1986; Maultsby,
1999; Young, 1997; Reagon, 2001). O termo gospel é utilizado desde o final do século
XIX, servindo para distinguir os hinos, cantados nos serviços religiosos dominicais, dos
gêneros populares de canções com os quais a comunidade buscava alguma elevação
espiritual e demarcar certa relação comunitária. Além do aspecto religioso, o gospel
também possui por característica o entretenimento e faz parte de performances e repertórios
de cantores populares (Young, 1997:xx; Goff Jr. 2002: 7). Contudo, a relação entre igrejas
com população negra não define totalmente o gospel. Também existe a variante ligada às
áreas rurais do sul do país, denominada southern gospel.
No século XIX, houve a introdução de canções com apresentação de variações
líricas e sonoras, relacionadas àquelas reconhecidamente populares. Elas concederam tons
mais vibrantes aos serviços religiosos, marcando o southern gospel. Após a Guerra Civil,
os encontros campais, realizados por protestantes, evidenciavam a adaptação de práticas e

54
visões teológicas, registrando-se liberdade emocional, gritos e danças, reveladores do
revivalismo. O cantar compreendia um momento de destaque com a atuação de coros e,
muitas vezes, recorria-se às melodias populares. Isso não somente concedia certa atmosfera
espiritual ao encontro como também teria sido um hábil modo de conversão. No fim do
século, ocorreu o espraiamento dos cultos revivalistas, sendo realizados também na área
urbana (Oliver, 1986; Goff. Jr., 2002).
A publicação de coletâneas musicais também foi uma marca do southern gospel, no
século XIX, como, por exemplo, a Sacred harp, a Kentucky harmony e a Southern
harmony. Além disso, escolas de música passaram a funcionar. Nas primeiras décadas do
século XX, houve o investimento em estações e em programas de rádios e produções
discográficas. O momento foi fundamental para o fortalecimento dos quartetos, existentes
desde o início dos encontros campais. Também no início do século passado, os
componentes passaram a receber proventos ao integrarem companhias especializadas na
edição de publicações musicais. Nas igrejas pentecostais, houve significativo investimento
na aquisição de instrumentos musicais e uso de diversos estilos musicais (Goff Jr., 2002).
Neste período, a southern gospel music teve no rádio um importante meio de
manutenção e divulgação de canções e conjuntos, contribuindo para dinamizar os canais de
investimentos (Goff Jr. 2002: 72-79).
Além do southern gospel, registra-se o black gospel, possuidor de características
peculiares, sem se voltar ao conhecimento técnico das canções rurais. Seu surgimento
também está relacionado aos encontros campais realizados no sul dos Estados Unidos nos
quais havia serviços distintos para negros e brancos. Os pregadores negros apresentavam as
canções como um modo peculiar de pregação. Assim, as canções e um modo de cantar
marcaram o surgimento de diversas igrejas nas comunidades rurais. A migração do sul para
o norte, do campo para a cidade foi também marcada por fixação de igrejas nas quais
proliferaram serviços e pregadores envolvidos em proferir exortações aos ouvintes (Oliver,
1986: 196; Reagon, 2001). As igrejas não tinham somente a tarefa de oferecer um
momento de encontro com o sagrado, mas possibilitar a adaptação e fixação daqueles
chegados ao meio urbano.
Figura exemplar desse momento foi Charles Tindley, ministro metodista, cujas
composições de hinos seriam extensões de sermões proferidos e, muitas vezes, auxiliariam

55
diante das dificuldades enfrentadas (Reagon, 2001:16,17, 20). As canções seriam marcadas
por mensagens de otimismo, ao ressaltarem um Deus zeloso e misericordioso (Oliver,
1986: 191, 192; Reagon, 2001: 17,18).
Nos anos de 1920, o termo gospel foi aplicado por Thomas A. Dorsey, músico
migrante e compositor, cuja peculiaridade estaria em utilizar acordes e arranjos associados
à música popular como, por exemplo, o blues e o jazz (Oliver, 1986: 200; Young, 1997;
Reagon, 2001), sendo o gospel veiculado como a música religiosa afro-americana (Young,
1997). Desde fim do século XIX, os quartetos gozavam de reconhecimento público, porém,
na década de 1930, Dorsey organizou o primeiro coral gospel, com o qual passou a
propagar as novas músicas (Reagon, ibid: 25). Posteriormente, o músico se tornou
presidente da National Convention of Gospel Choirs and Choruses, tornando-se influente
no meio musical protestante (Oliver, ibid:200). Além disso, atuou como empresário, fundou
uma publicadora musical e estabeleceu relações com cantores, cujo resultado foi o
surgimento da organização Gospel singers convention (Young, 1997).
As companhias de gravação passaram a contemplar a gospel music, além do jazz e
do blues, a fim de abastecer o mercado com novas ofertas (Young, 1997: xxii). As
gravações de discos por cantores aumentaram a partir de 1930 e neles muitos dos solistas
usavam técnicas de blues e de jazz (Oliver, ibid:207, 208). A apresentação em programas
de rádio foi organizada por gravadoras interessadas nas modalidades musicais emergentes
nas comunidades afro-americanas, como o jazz, o blues e o gospel (Young, ibid). Os anos
pós-guerra foram marcados por mobilizações voltadas aos direitos civis, com campanhas
embaladas por músicas gospel (Oliver, 1986: 219; Goff J., 2002: xx), também são
registradas conquistas tecnológicas, crescimento da indústria automobilística, de turismo e,
por fim, outro momento da produção musical.
A produção musical gospel não estava mais pautada nos encontros rurais, mas em
apresentações marcadas por introdução de instrumentos musicais, investimentos em
quartetos e descobertas de novos talentos (Oliver, 1986: 214, 215; Goff Jr. 2002:160, 163).
Com o advento da televisão, ocorreu a procura por novas audiências; os programas
passaram a contemplar o blues, o rhythm and blues e a gospel music, alcançando públicos
formados ou não por seguidores de igrejas protestantes (Maultsby, 1999: 179, 180).

56
A produção musical sofreu alterações, na década de 1950, diante das relações
comerciais entre empresas encarregadas por impressões musicais e os compositores. Estes
escreviam para as companhias e depois passaram a compor diretamente para os grupos, ou
seja, atuavam independentemente das companhias publicadoras e, portanto, as canções
circulavam mais libertas de imposições empresariais. Além do rádio, das apresentações em
salas de concerto, as gravações fonográficas figuraram como outro modo de encaminhar a
carreira de quartetos e cantores, possibilitando a circulação de canções. Isso teria
contribuído para influenciar os conjuntos formados por cantores brancos.
O impacto da televisão foi significativo, como o do rádio, para o fortalecimento
musical, por ser utilizada para apresentação de quartetos, a partir de 1950, em programas
musicais. Não somente a produção discográfica dimensionava a área musical, mas a
televisiva, evidenciava a organização de cantores, promotores e executivos na preparação e
realização das atividades (Goff Jr., 2002:209- 228). As estações de rádio, as gravadoras,
os concertos em teatros, as casas de espetáculos e os festivais de jazz contribuíram para a
transposição da gospel music da arena constituída por igrejas para a da indústria musical. O
resultado foi sua transformação em música popular (Maultsby, id: 173, 176). As
apresentações de cantores, de grupos e conjuntos não estavam restritas aos Estados Unidos,
pois a Europa passou a figurar nas agendas de cantores e grupos musicais (Young, 1997).
A combinação com expressões musicais populares – como o rock e o rhythm and
blues – impulsionou os limites da gospel music (Reagon, 2001). Por outro lado, alguns
cantores e quartetos, oriundos do meio musical religioso, utilizaram o estilo gospel – no
tocante ao canto, à interpretação e à pregação – em suas atuações na música popular,
redefinindo o som, o estilo e o ritmo das músicas populares (Oliver, 1986: 218, 219,
Young, 1997:9, Maultsby, 1999:178). Além da fundação de night club para a execução de
gospel music, com curta duração, cantores passaram a se apresentar em casas destinadas ao
entretenimento, enfrentando críticas de membros das comunidades religiosas. Esses artistas
se apresentavam em atividades seculares por dois motivos: as apresentações seriam para
evangelizar; e elas podiam entreter a platéia. Isso evidenciava as formulações e as
aplicações de diversas estratégias destinadas a explorar a modalidade musical para além das
fronteiras do grupo religioso (Maultsby, ibid: 178).

57
O termo Christian music ou Contemporary christian music passou a ser utilizado,
no final da década de 1960, com a emergência de novos estilos e sonoridades musicais no
meio cristão. Cooperou para isso a organização de representantes de novas gerações,
principalmente estudantes, caracterizando período de revivalismo, com a oferta de canções
de conteúdo gospel nas canções populares (Goff Jr. 2002:236 e 240). Segundo a Christian
Music Association 41, a denominada Christian music é composta por diversos gêneros como,
por exemplo, o rock, o gospel, o heavy metal e o hip-hop. Seus integrantes afirmam que ela
é sintonizada com cada época, pois utiliza os meios vigentes com a finalidade de divulgar a
mensagem de fé.

Vidas, dedicações e atuações independentes

No Brasil, o trabalho missionário desenvolvido compreendeu a utilização de


cânticos com a finalidade de acompanhar o trabalho religioso e, assim, seguindo a visão
puritana de conquista da terra e salvação dos povos, houve a transposição dos referenciais
litúrgicos e musicais para o país. Segundo Barbosa (2002), o livro “Salmos e Hinos”
integrou a atividade propagandista realizada pelo casal Kalley, fundador da Igreja
Congregacional, em 1855, no Rio de Janeiro. Em 1861, ocorreu a publicação de uma
coletânea “Salmos e Hinos”, porém, na primeira edição, constavam somente letras. Freddi
Jr. (2002) afirma que, em 1868, na terceira edição, houve a apresentação de letras e de
partituras; o livro passou a ter ampla circulação nos demais grupos protestantes e suas
edições demarcaram a coexistência de técnicas, pois acompanharam a produção musical
industrial com edições até 1975 e tiragens até 1982.
A obra foi o resultado do trabalho de produção, adaptação e tradução de hinos
surgidos na dinâmica do protestantismo europeu: as igrejas de tradição calvinista
conduziam o serviço religioso e salmos eram entoados; outras como, por exemplo, as
igrejas congregacionais cantavam hinos, oferecendo outro modelo musical (Freddi Jr.2002).
Segundo Barbosa (2002), o livro do casal Kalley tinha por característica a ênfase no perdão
pela fé, a vida eterna, a regeneração da vida ao seguir uma ética social e o amor de Deus.
Barbosa observa ter, diante da propaganda católica contra a multiplicidade de igrejas de

41 Sobre a associação ver: http://www.cmal.org, acessado em 12/10/2005.

58
cunho protestante e as distinções teológicas e doutrinárias, ocorrido a adoção do livro de
cânticos a fim de constituir uma estratégia para a implantação do protestantismo. Para
Braga (1961), o citado hinário foi utilizado por igrejas protestantes, tendo a Igreja Luterana
do Brasil seguido o “Himnos e Orações”, a partir de 1920; a Igreja Batista, depois de 1891,
teve no “Cantor cristão” o seu hinário.
Hoje, o termo “música gospel” é freqüentemente utilizado no Brasil e muitos citam
as igrejas norte-americanas e a musicalidade considerada proveniente delas. Alguns
entrevistados falam também em “música cristã” ou “música evangélica” em menção aos
cantos ouvidos nas igrejas e em atividades realizadas com o objetivo de execução. É
afirmado ser essa modalidade musical divulgadora do Evangelho, fundamental para a
evangelização e contato entre o fiel e Deus. A sua produção é feita por cantores, por
“adoradores” 42, por músicos, por leigos, por líderes religiosos e por empresas; todos
interessados em erguer ações pertinentes às apresentações em igrejas, em programas
televisivos e radiofônicos e tantos shows.
Para complementar a história da música entre os protestantes no Brasil, utilizo as
entrevistas realizadas com a cantora Cláudia e os cantores Feliciano e Francisco JC com a
finalidade de compreender as especificidades das músicas, de suas construções, sem ignorar
os lugares ocupados por eles. O ponto de partida foi constituído por histórias de vida, por
falas que apresentam certas experiências religiosas e musicais.
Feliciano, cerca de 80 anos de idade, viúvo, ex-pastor batista, falou sobre as
músicas encontradas no meio evangélico, do qual faz parte, e também de seu percurso
musical. Diz ter começado como cantor na década de 1940, quando ocorreram as primeiras
gravações solo no país com empreendimentos de grupos evangélicos.
Segundo Feliciano, gravou o primeiro disco, ainda de 78 rpm, em 1948, pelo
Serviço Noticioso Atlas. Nele estão registrados dois hinos do “Cantor Cristão” − como já

42
Músicos, cantores e artistas são termos recorrentes entre os entrevistados, entre os fiéis e os dirigentes
evangélicos. São aplicados constantemente por produtoras, gravadoras e editoras de revistas e jornais,
principalmente aquelas em atuação no meio evangélico. Isso pode indicar o percurso de estruturação da
produção musical, definindo-se várias categorias profissionais, como as citadas anteriormente. As atuações
buscam apresentar a música como destinada ao exercício de fé, existindo posição distinta no tocante à
atividade. É registrada a designação “adorador” para definir aquele voltado ao ato de cantar e assim
demonstrar a “glória de Deus”. Para o presidente da Associação de Músicos Cristãos do Brasil (AMC), a
“adoração é um estilo de vida, não uma forma de prática. Não adoramos quando estamos no palco. Somos
adoradores que ministram e são ministrados quando nos posicionamos no altar de Deus...” Liasch. “Músicos
do palco x ministros do altar”, revista Show Gospel, ano 04, nº 13, p.22.

59
citado, livro de cânticos da Igreja Batista. Durante décadas, Feliciano gravou hinos de
coletâneas de outras denominações evangélicas. O cantor conta ter se convertido, na década
de 1940, à Igreja Batista, depois de ter se tornado cantor e músico; antes de ser batista,
conheceu a fala sobre um outro modo de vida ao trabalhar na construção da rodovia Rio-
Bahia quando encontrara um antigo amigo. Esse havia se convertido e, conseqüentemente,
falara sobre o Evangelho para ele. Parece ser esse momento significativo para o
entrevistado.
Como músico, Feliciano afirma ter tocado na banda de sua cidade, no estado de
Minas Gerais. Apresentava-se em lugares específicos como, por exemplo, festividades
populares e religiosas, com o grupo de jazz no qual atuava e cantava. Logo cantou em uma
emissora de rádio da cidade e conta ter, durante o intervalo, ouvido na praça um grupo
cantando e perguntou: "meu Deus, o que estou fazendo aqui? No mundo, tocando, cantando
para agradar o mundo enquanto poderia estar na igreja cantando para Deus".
Em 1942, converteu-se e foi batizado no ano seguinte. A conseqüência teria sido o
abandono de sua prática musical, dos instrumentos tocados e da técnica de cantar. Sobre a
conversão, diz "(...) fui pra igreja e foi uma transformação da vida. Me transformou. Eu
procurei esquecer totalmente. Eu tocava instrumento e tal. Não toquei nunca mais, nunca
mais".
A fala de Feliciano ressalta o estágio de transição entre dois estados estabelecidos e
tem a ver com a passagem de um grupo para outro, para um modo de vida direcionado por
outro princípio no qual adquiriria status de fiel convertido (Gluckman, 1962:3). Nesse
sentido, cantar passou a ser exercício especial, pois entendia ser o “louvor” a “(...)
expressão mais divina da alma. Então, quando estou cantando, estou servindo ao meu Deus,
ao meu Senhor”.
Sobre o percurso de cantar no meio evangélico, Feliciano conta:

A história do disco evangélico no Brasil foi assim. Havia um missionário


aqui chamado Willian Hatford Barry. Ele era diretor do Serviço Noticioso
Atlas que tinha na Mayrink Veiga, toda tarde, 15 minutos de programa,
tocava notícias das igrejas, nacionais e também internacionais. Então, ele
pensou em gravar discos brasileiros, discos evangélicos. Ele foi a Belo
Horizonte, eu tava no colégio lá. Lá havia alguns cantores: Paulo Valle, Rui
Valle, Tarso Valle, Hélio Brasil, Edna Harrington, que é americana, e a
figura aqui. Então, juntou aquela gente para cada um gravar um disco e
mandaria para os Estados Unidos para junto da Sociedade que sustentava os

60
missionários aqui, a causa aqui de um modo geral. Então, eles mandariam
... O Hatford mandaria aqueles discos para eles ouvirem e para saber se
haveria condição, se havia elemento para gravar, para montar uma
gravadora. Então, voltou. Eu tive a sorte de, no meio de todos eles, eu fui o
escolhido. Então, foi feito o primeiro disco. Interessante que a máquina que
gravava era uma caixinha pequenina. Tinha o pick up de ouvir e para cortar.
Era um prato que tinha dois pinos; tinha o pino que contrabalançava e o
outro que puxava. A máquina puxava o pino para rodar (...) então, foi feito
o primeiro disco, o 35001, era o meu disco. Dois hinos do Cantor Cristão.
Comecei com o Cantor Cristão e fui do Cantor Cristão por muitos anos,
cantando o Cantor Cristão. Eram só duas músicas: uma de um lado e outra
do outro, ele rodava 78 rotações.
Márcia: E a capa do disco?
Feliciano: Era um envelope, sem nada. Só tinha a propaganda da
companhia que prensava o disco. Era a Continental. Só o selo que tinha o
Atlas. Serviço Noticioso Atlas, o número do disco, a série, as músicas, o
cantor e o acompanhamento solo.

Feliciano demarca sua trajetória a partir da conversão e, em sua elaboração, o antes


e o depois são recorrentes. Assim, transparece o drama da ruptura, do abandono do modo
de cantar e de vida com o acolhimento e o entendimento de determinados códigos
norteadores da conduta religiosa. Contudo, no meio religioso ao qual aderiu não via
condições para articulações individuais. Caso existissem, predominava a orientação
institucional 43. Quando Feliciano descreve o percurso para a gravação do disco, cita o ato
de gravação, a existência do selo Atlas e a empresa Continental, responsável pela
prensagem, e, portanto, descreve o momento de detenção de técnicas e de equipamentos por
empresas responsáveis pela indústria fonográfica mundial. O cenário registrava novas
tecnologias de gravação utilizadas por entidades ocupadas com a atividade (Dias, 2000:36,
126), com a escolha de repertório, com a seleção dos cantores e com a divulgação.
O depoimento de Feliciano evidencia o início da atuação de produtoras e
gravadoras; apesar de haver no país estúdios de gravação, o Serviço Noticioso Atlas teria
sido o inovador na tarefa de prensagem, publicação e distribuição (Braga, 1961:384). Além
do Serviço Noticioso Atlas, foram citados o Colégio Batista como o preparador das vozes
arregimentadas, a Sociedade Batista e, por fim, a empresa Continental – que já gravava
discos para igrejas evangélicas brasileiras desde o início da década de 1940. Evidencia-se a

43 Conforme Braga (1961:380, 381 e 387), até 1932, diversas gravações musicais eram financiadas por fiéis
e resultavam de iniciativas particulares. A década seguinte registrará um adensamento de ações de igrejas e
empresas para a produção de discos. Mas isso não excluiu a efetivação de investimentos de leigos e uso de
estúdio independente e, portanto, a apresentação de canções decorrentes de atividades paralelas às
empresariais e de igrejas.

61
complexa articulação para a seleção de cantores, escolha de repertórios e produções
fonográfica e musical. As gravações eram de hinos do livro batista de cânticos, porém
canções natalinas também foram privilegiadas e cantadas por corais e cantores (Braga,
ibid).
Em outro momento, o depoente observa ter o quadro persistido por alguns anos;
porém teve a adição de compositores brasileiros, contribuindo para complexificar o meio
musical evangélico. Como pastor, Feliciano continuou cantando os hinos e as composições
de vários autores, sempre acompanhado por um piano e, por fim, também integrou outras
gravadoras.
O depoente está aposentado, porém prossegue cantando em igrejas e não mantém
mais vínculos com nenhuma empresa; continua produzindo os discos independentemente.
Para tanto, aluga estúdio, contrata músicos, cuida da masterização e da prensagem, faz o
mesmo em relação às capas. Prontos, os CDs são vendidos nos locais de apresentação;
tudo ocorre com o auxílio de seu filho. Esse modo de veiculação de material fonográfico
foi apontado por outros entrevistados cientes da relação entre gravadoras, artistas e
públicos, porque o investimento exige retorno com a finalidade de assegurar a estruturação
da produção musical.
Cláudia, 24 anos de idade, solteira, graduação incompleta em Serviço Social,
moradora da Zona Oeste, oriunda de família evangélica (Assembléia de Deus), canta há
cinco anos. Seu início foi nos núcleos de atividades existentes na igreja; depois gravou seu
primeiro CD independente. Para tanto, recorreu aos amigos e parentes; participa de
atividades musicais, nas quais apresenta suas canções e tenta, como Feliciano, vender
exemplares do CD em tais momentos 44. Sobre o início de seu percurso musical, Cláudia
afirma:

Bom, a minha igreja, por exemplo: tradicionalmente tem grupo infantil, de


louvor, grupos jovens, de adolescentes, de senhoras. E também desde
pequeno a gente trabalha nisso. A música já é trabalhada na igreja. Aí eu
comecei assim, cantando no núcleo infantil primeiro; depois fui passando
pros outros grupos. Só que assim, cantar no solo, no caso, eu comecei aos
dezessete anos. E aí eu comecei cantando dentro da minha igreja, na

44 Esse modo de veiculação de material fonográfico foi apontado também por Bené, diretor artístico da
gravadora Astral Music. Ele fala de acordo entre gravadoras e artistas com vistas a atingir o público e, ao
mesmo tempo, assegurar a relação entre investimento e retorno como condições fundamentais à estruturação
da produção musical.

62
minha congregação; e fui começando a receber convites pra cantar em
festivais. Recebi convites pra casamento, pra quinze anos, pra outros tipos
de festas. Ai dali eu fui conhecendo pessoas do meio, foi quando eu
comecei a desenvolver um trabalho de bem social mesmo. Gravei uma fita
chamada fita demo. Aí depois é que veio a questão do CD. Mas esse
início se deu aí com dezessete anos.
Márcia: E você já conseguiu gravar um CD?
Cláudia: Gravei um CD, fez um ano ontem do lançamento (...).

Sobre a gravação de seu CD, diz:

Bem, como eu te falei, eu comecei cantando nos festivais, cantando com a


minha igreja depois fora, nos festivais e aí quando eu recebi um convite
pra cantar em outras igrejas as pessoas me perguntavam se eu tinha pra
CD pra vender e eu não tinha um trabalho meu. Eu cantava músicas de
outros cantores. Aí surgiu essa coisa das pessoas pedirem CD e aí eu
comecei a escolher o repertório e comecei a ver as músicas. Nos festivais
geralmente você só canta músicas inéditas. E aí eu já tinha já algumas
músicas que eu cantava nos festivais e outras eu fui conseguindo no
decorrer da execução do projeto mesmo. Aí eu, eu tenho conhecidos; a
minha cunhada ela é sobrinha do Jackson do Pandeiro e eles têm uma
banda de forró - ela e o irmão dela. E eles conhecem muita gente nesse
meio que não é evangélico. E aí, conversando com eles surgiu uma
possibilidade de estar montando um trabalho que seria só pra
apresentação. Eu gravaria quatro músicas, e essas músicas eu estaria
apresentando em gravadoras. Aí eu fiz inicialmente essas quatro músicas,
só que ainda não podia fazer um CD independente. Então eu voltei,
apresentei esse trabalho pra uma gravadora e a gravadora me pediu mais
músicas. Aí eu voltei pra fazer mais duas ou mais quatro músicas pra
montar um CD. Só que quando eu estive nesse estúdio pra montar o CD, o
rapaz, o dono do estúdio, me fez uma oferta de estar gravando dez
músicas e ele estaria facilitando o pagamento pra mim e tal. E aí eu
comecei a conhecer, que eram pessoas conhecidas dessa minha cunhada,
do irmão dela e tal. E aí eu sei que o CD saiu, com dez músicas. Eu
terminei não fazendo com a gravadora e fazendo um trabalho
independente.

Francisco JC, negro, casado, 30 anos de idade, cantor de black music gospel e
promotor de “festa”, ao falar sobre seu pertencimento religioso, de seu gosto e de suas
experiências musicais, observa as transformações sonoras e a concorrência de diversas
bandas para a constituição de um determinado fazer musical. O depoente registra:

Desde criança, sempre teve uma influência musical muito grande na


igreja, tanto com outros ritmos, até que na época não rolava muito essa
praia. Até pra gente curtir alguma coisa de soul ou alguma coisa do
gênero não era algo permitido, não era algo que se aprovasse pelas
direções das igrejas. Eu era de uma igreja que o lance de se curtir mais era
lance de coral, grupos de louvor e isso é que fazia predominância na

63
minha vida. Depois de um tempo a gente começou a ficar adolescente,
começou a ouvir outros tipos de música e até uma turma que chegava no
meio gospel tocando outro tipo de música tipo o Semeador na época.
Tinha umas outras bandas na época também que também tocavam
algumas coisas e começaram a estimular a gente a ter uma, a acreditar que
aquilo era possível, era simplesmente um tabu, que era necessário ser
quebrado. E a gente começou a fazer um trabalho mesmo estando numa
igreja que talvez não desse o apoio que a gente esperava que se desse, a
gente começou a fazer um trabalho musical. Então, tudo teve um início
porque uma coisa veio empurrando a outra. Há seis anos a gente tá no
ministério Renascer. O ministério Renascer é um ministério que abre
muito pra gente poder trabalhar, a gente poder tá fazendo na obra, não
discriminando uma coisa tipo o ser DJ. Muitas vezes o ser DJ é algo que
pode ser discriminado e a gente percebe que isso não faz parte do reino de
Deus, essa coisa de discriminar o cara. O cara vai aceitar Jesus e não vai
deixar de fazer o trabalho que ele fazia. O trabalho que ele fazia era algo
que já era divino, dado por Deus a ele usado da maneira errada. Então, o
cara conhece a Deus, conhece a Palavra, o cara de repente abandona o
trabalho dele. Não e não. Ele tem que pegar aquele trabalho, reverter todo
pra obra de Deus pra que aquilo seja uma maneira, uma estratégia pra ele
tá libertando vidas, salvando vidas, fazendo com que as pessoas vejam e
acreditem naquilo que ele acredita, naquilo que ele está vendo. E a gente
vem envolvendo com isso tudo, uma coisa puxa a outra; rádio, o mesmo
meio, a galera do hip-hop, a galera de soul. E a gente já vem nesses
últimos, digamos assim, oito anos, muito envolvido, pelos menos com a
galera do Rio e com a galera de São Paulo, a gente tem um envolvimento
muito grande com as bandas do Rio com as bandas de São Paulo e a
melhor coisa da minha vida, a gente faz com prazer, Tem equipes, então...
JC é isso. JC não era um nome, JC era uma banda no meu início, só que
eu comecei a fazer solo a partir dessa banda e parte do nome seguiu pra
mim porque o pessoal me reconhecia como aquilo. Então, a gente
resolveu deixar que foi uma benção de Deus pra nossa vida também, mas
não me importo se me chamar de J só ou chamar só de C, ou chamar pelo
meu próprio nome que é Francisco. Tá tranqüilo. Importa é o que a gente
faz e a gente continua fazendo sem pretensão nenhuma que isso se
espalhe, que isso venda alguma coisa ou que isso tenha alguma finalidade
financeira. Não é essa a intenção de maneira nenhuma...

Cláudia, ao enfatizar o início de sua trajetória musical, aponta o grupo religioso


como a arena privilegiada de estímulo e aprendizagem. As falas de Feliciano e de Francisco
também destacam a “influência musical” vivenciada na igreja como o “coral”. A atividade
religiosa conectada com o ato de cantar, como uma prece ou ato de cultuar 45, surge nos
depoimentos, constitui as trajetórias no grupo de fé e, assim, indica ser o meio evangélico,
apesar das diferentes igrejas em atuação, propício à inclusão. Daí o incentivo ao

45 Talvez aí esteja o termo “adorador” a fim de indicar alguém não voltado somente à execução de canções,
mas devotado à prática do culto.

64
desenvolvimento da “prática musical” com ofertas de atividades musicais promotoras de
participação (Travassos, 1999:133).
Cláudia e Francisco JC apresentam elementos de proximidade e de distanciamento
de suas trajetórias e possibilitam observar como as musicalidades encontradas são distintas.
A entrevistada esclarece sobre o incentivo dado pelo grupo religioso, porém as condições
foram colocadas a partir de relações sociais distantes dele. O resultado foi certo trabalho de
produção, após a tentativa de seguir as orientações de representantes de certa gravadora.
Como integrante do meio religioso e também do artístico, Cláudia passou a atuar com o
objetivo de participar do cast de alguma empresa. Contudo, isso não ocorreu e terminou em
optar por produção e divulgação independentes, porém antenadas com as regras existentes
no meio religioso (Becker, 1977).
O estado de transição experimentado por Cláudia teve a ver com a sua mudança do
estado de fiel para o de cantora – seria a assunção de outro status no grupo religioso. O
mesmo pode ser dito em relação ao trabalho de Francisco JC e de Feliciano. Este, depois de
integrar o catálogo de algumas gravadoras, também acabou por incorporar o modo
independente, demarcado por atuações individualizadas interessadas na produção, na
gravação e na difusão (Dias, 2000:132,150). Enquanto Cláudia e Francisco JC visualizam a
possibilidade de contratação por alguma empresa, continuam seguindo com os seus
projetos; na exposição de Francisco, a ruptura não é parte integrante, pois, distintamente de
Feliciano, observa: “O cara vai aceitar Jesus e não vai deixar de fazer o trabalho que ele
fazia”. Indica ser a conversão não circunscrita por transição pautada pela crise, pela ruptura,
mas pela continuidade do realizado anteriormente.
Feliciano diz não estar interessado em compor o quadro de alguma empresa e
entende ser a opção seguida a mais adequada ao agir religioso. Seu percurso foi oposto, ou
seja, era cantor e se converteu, tendo obtido, da Igreja Batista, condições para retornar ao
exercício musical. Passou a cantar conforme o direcionamento dado e, posteriormente,
desligou-se e passou a constituir seus próprios trabalhos.
Na formulação de Feliciano, é possível visualizar certa alteração musical no
contexto evangélico quando destaca o interesse por produção nacional, isto é, em registrar

65
as canções executadas por cantores e por grupos brasileiros 46, sendo isso realizado por
entidades religiosas e empresas seculares. Francisco também aponta para outro momento,
exatamente para os precursores de um movimento de transformação religiosa a partir da
música iniciada com os “corinhos” e com os grupos introdutores do rock. Essa iniciativa
estimularia crescente diversidade e, ao mesmo tempo, evidenciaria as restrições religiosas e
a tensão ao ultrapassar as convenções existentes. Ao escapar das determinações
institucionais, porém, sem se aventurar em grupos e empreendimentos não evangélicos,
propõe algo especifico: a black music gospel.
Francisco apresenta história próxima à de Cláudia, mas estabelece distinção por
caminhar em direção às expressões musicais não contempladas por dirigentes de sua igreja;
demonstra isso, ao afirmar “até pra gente curtir alguma coisa de soul ou alguma coisa do
gênero não era algo permitido... não era algo que se aprovasse pelas direções das igrejas”.
O depoimento desvela a posição de autoridade e o controle “moral e estético” exercidos por
líderes religiosos sobre o grupo de fiéis e as “atividades musicais” realizadas (Travassos,
1999:141).
Os registros musicais e sonoros propostos não são concebidos como algo estranho
às convenções vigentes. O cantor Feliciano continua a atuar para outros integrantes do
grupo religioso e demonstra sua integração e a de seu trabalho; igualmente Cláudia, apesar
de não compor algum quadro empresarial, difunde seu trabalho para determinado público
não avesso aos direcionamentos institucionais. Em suma, uma das características do gospel
contemporâneo é que as iniciativas – inovadoras ou não – despontam um momento
demarcado pela produção, oferta e recepção de bens em negociação com os objetivos e os
interesses institucionais, porém não são mais concebidos e controlados por líderes
religiosos. Assim, existem variações de estilos musicais, de criações próprias e de
produção independente de bens.

46 Braga (1961:379-385) observa ser gravações de corais realizadas por particulares desde 1912. A década
de 1930 registraria o início de gravações de canções sacras para companhias como a RCA Victor e a Odeon,
estendendo-se até o final da década seguinte quando o Serviço Noticioso Atlas passou a fazer gravações de
solistas, de duetos e outras formações musicais, inclusive o coro.

66
Disseminação da fé - gravações e técnicas

A fala de Feliciano sobre o empenho do missionário Barry em gravar hinos do


“Cantor Cristão” também revela determinada fase da produção musical no país. Essa era
composta por cantores, duetos e corais responsáveis pela execução de hinos e peças de
compositores eruditos (Braga, 1961). As gravações podiam ser realizadas sob a direção de
igrejas e ouvidas durante o serviço religioso e em outros momentos. Também o cantor
destaca o Serviço Noticioso Atlas e a Sociedade Batista como os responsáveis pela
formação de grupos de cantores, pela escolha de repertórios e detentora de relações e de
tecnologia viáveis para o projeto musical.
Atualmente, para ter seus CDs, Feliciano aluga estúdio, cuida do repertório, da
gravação, da prensagem e concentra a venda. Cláudia coloca o percurso de cantora
independente, as articulações necessárias com profissionais em atuação ou não no meio
evangélico. Os entrevistados apontam certa história da produção musical e revelam que o
seu começo registraria a presença de gravadoras internacionais, a existência de estúdios
independentes e de projetos financiados por fiéis (Braga, 1961).
Desde o início do século XX havia experimentos de gravações. Alguns projetos
foram consolidados pelo selo Favorite (de origem alemã), responsável por diversas
prensagens, porém passou por fusão durante a I Guerra Mundial. Até a década de 1950, as
47
empresas Odeon, Continental, RCA Victor e Columbia respondiam pela produção de
discos; havia as iniciativas de fiéis, de industriais, de grupos religiosos ou de
denominações. Além do Serviço Noticioso Atlas, no Rio de Janeiro, passaram a atuar o
Centro Áudio-Visual Evangélico (Cave), integrante da Confederação Evangélica do
Brasil, em São Paulo, cuja meta era produzir materiais direcionados ao trabalho de
evangelização. Depois o Instituto Bennet, no Rio de Janeiro, fundou o selo Fidelis; por sua
vez, a Gravações Regis Ltda prensava na Continental (Braga, 1961:379- 387). No entanto,

47 Essas empresas fonográficas eram estrangeiras e, segundo Dias (2000: 34-37), com as transformações
tecnológicas, expressas pela passagem da produção mecânica para a elétrica, acirrou-se a luta entre as
empresas, resultando em fusões. Entre 1928 a 1945, diversas empresas passaram pelo processo, que resultou
nos registros da Eletric Music Industries (EMI), da RCA-Victor, da CBS, da Polydor e da Phonogram. Duas
delas, a RCA e a Philips (Phonogran) detinham a produção de hardware e também de software. As décadas
seguintes presenciaram outras fusões entre as empresas de comunicação.

67
esse movimento de formação de empresas era tímido, sendo dominado por gravadoras
estrangeiras.
Apesar da organização empresarial, mesmo vinculada a grupos religiosos, uma
modalidade informal foi utilizada (e continua sendo) durante o serviço religioso. Ela foi
citada por vários entrevistados e reconhecida como importante para a exposição de
composições, com o uso do retroprojetor. Esse meio informal de divulgação é denominado
pelo termo "corinho". Para Faustini, um pesquisador evangélico, trata-se de pequenos
textos acompanhados por melodias simples, não diferentes das canções populares,
memorizados facilmente e, muitas vezes, presentes nas igrejas pentecostais (apud Freddi Jr.
2002). Dornelles (2004) 48, também um investigador ligado ao evangelismo, observa ter o
“corinho” permitido a valorização de "ritmos e estilos populares no culto de adoração". Isso
foi possível por ser o culto menos rígido, menos formal, de oração livre e com o registro de
gestos. A música, aliada a tudo isso, adquiriu lugar de destaque na condução do serviço
religioso.
Freddi Jr. (2002) entende terem os "corinhos" formado repertório de letras e
músicas adaptadas, influenciando o surgimento de conjuntos musicais interessados em
renovar as práticas musicais. Isso contribuiu para a aceitação dos "corinhos", figurando
como um "produto, já estruturado por instituições paraeclesiásticas" e formado por
repertório também importado e adaptado para execução nas igrejas brasileiras.
Além dos “corinhos”, havia os grupos paraeclesiais como, por exemplo, o Serviço
de Evangelização para a América Latina – Sepal -, na década de 1960, que respondeu pela
criação do grupo musical Vencedores por Cristo – VPC. Este teve participação na inserção
de instrumentos como o violão e o órgão elétrico. Enquanto o “corinho” tinha aplicação
interna durante o culto, os conjuntos contribuíram para dinamizar o trabalho evangelizador.
Para Dornelles (2004), vigorava entre os líderes religiosos, os músicos e os teólogos
a preocupação com a vigência de um modelo religioso alienígena e rígido imposto a vários
povos em oposição a um outro mais sintonizado com as peculiaridades culturais. Desse
modo, procurou-se justificar a dança e a incorporação de diversas expressões musicais. Isso
ocorreu na esteira da crítica à cultura e ao modo de vida capitalista, nos idos dos anos de

48 Sobre a reflexão produzida na rede evangélica, ver: Dornelles, Vanderlei - Liturgia pentecostal rompe
barreiras entre o religioso e o popular. www.musicaeadoração.com.br/artigos/meio/liturgia-pentecostal.htm,
acessado em 29/10/04.

68
1960, e teve proximidade com a proposta de alteração litúrgica no protestantismo. Ocorreu
a tentativa de implementar uma igreja protestante afinada com a cultura local e que tivesse
posicionamento político 49. As reflexões sobre a música, sobre os “corinhos” – uma técnica
difundida - contribuem para entender o meio evangélico e seus momentos musicais.
Em fins da década de 1960, a comercialização de artigos religiosos (discos, bíblias e
outros impressos) era significativa entre seguidores das denominações evangélicas, com a
música ocupando lugar de destaque naquela manifestação. Na década seguinte, já havia a
presença destacada de cantores evangélicos, e a música teria sido adicionada "à parte
dramática do exorcismo e a série de profecia". Sua visualização se dava nas apresentações
públicas e em programas radiofônicos (Monteiro, 1982).

49 Para Nascimento Cunha (2004:73-76), o protestantismo no século XX foi marcado pelo ecumenismo
voltado a refletir a divisão entre as igrejas. Isso permitiu a "articulação dos grupos" no Brasil e viu nascer, por
volta de 1934, a Confederação Evangélica do Brasil -CEB, sem a participação da Igreja Batista. Em 1948, o
Conselho Mundial de Igrejas fortaleceu a "responsabilidade sociopolítica” dos protestantes, resultando na
preocupação com uma teologia afinada com as questões contemporâneas. A Confederação Evangélica do
Brasil - CEB -, segundo Anivaldo Padilha, membro de Koinonia, está voltada à promoção de cooperação
entre as igrejas, atuando na área de ação social, trabalhos com a juventude, educação cristã e atividades
diaconais. Na década de 1950, surgiu o setor de Responsabilidade Social da Igreja e entre 1956/61 foram
realizadas três conferências, tendo por tema: Cristo e o processo revolucionário brasileiro. O Conselho
Mundial de Igrejas - CMI -, criado em 1948, em Amsterdã, visa proporcionar a proximidade entre as igrejas
cristãs. A cada sete anos o Conselho é reunido e atualmente conta com 342 igrejas filiadas, mas a Igreja
Católica não é membro do CMI, cooperando com a entidade. A proposta da CEB só encontrou penetração na
sociedade brasileira, a partir de 1950, com o enfraquecimento da "ação fundamentalista antiintelectualista".
Durante as seis primeiras décadas do século XX, o ecumenismo e a nova diretriz teológica permitiram a
vigência de uma visão crítica capaz de contextualizar as Escrituras à diversidade cultural. A autora aponta que
a visão da "responsabilidade sociopolítica, o ecumenismo e a nova teologia foram sintetizados pelas
juventudes nas igrejas, produzindo líderes - leigos e clérigos - que estiveram presentes na formação e
condução de trabalho social em áreas mais pobres”. Isso permitiu a alteração do protestantismo, encontrando,
posteriormente, entraves como reação conservadora em idos de 1950/60 e fortalecimento com o golpe militar
de 1964. A desmobilização de uma proposta cultural e social revelou crises e exílios de partidários da
valorização da diversidade cultural. Ao lado disso, outras iniciativas foram igualmente rechaçadas como, por
exemplo, o pentecostalismo, por trazer novos elementos e estabelecer conflitos com a concepção de igreja
vigente no protestantismo. Mesmo diante de tal quadro, a autora indica – que aqueles favoráveis ao
ecumenismo, apesar da oposição conservadora, estabeleceram vias alternativas, mesmo existindo na
clandestinidade.
Nascimento Cunha indica ter a alteração do quadro de repressão na sociedade brasileira peso no meio
evangélico, pois, no início da década de 1980, as lideranças com visão ecumênica, defensoras da leitura
política e social do Evangelho, antes impedidas de atuação pelos conservadores, obtiveram lugar de
visibilidade com a criação do Conselho Nacional das Igrejas Cristãs – Conic -, com algumas igrejas
protestantes e a católica. Além disso, os líderes e leigos envolvidos tiveram presença em sindicatos, partidos
políticos e movimentos sociais. O novo momento não foi suficiente para permitir uma inserção maior entre
a população, mas o neopentecostalismo parece ter alcançado maior êxito em alterar a face do protestantismo.
Isso se deu por ter inserido no cenário religioso “uma nova cultura” no país com ampla penetração na
população brasileira, sendo caracterizada pela afirmação de cura e prosperidade. Maiores informações sobre o
CMI, ver: http://ospiti.peacelink.it, acessado em 06/11/04; sobre a CEB:
www.cese.org.br/campanhas/juventude.doc, acessado em 06/11/04.

69
A década de 1990 também foi marcada pela organização de novas empresas de
produção e gravação mantidas por igrejas ou por fiéis. Sua vigência ocorreria sob o rótulo
“gospel”, com investimentos diversos. Conta-se a fundação da Line Records (LR), a Gospel
Records (GR) e a MK Publicita (MkP), respectivamente. Surgiram programas televisivos
como o “Conexão Gospel” e o “Clip Gospel”, com ligações com a MK Publicitá e a
produtora Gospel Records, integrante da Igreja Renascer. Os programas contavam com
apresentadores com vínculos oficiais; eram destinados exclusivamente à divulgação
musical, com apresentação de cantores e exibição de filmes.
Atualmente, são muitas as gravadoras e artistas em concorrência por
reconhecimento. Como exemplo, podem ser citados: a premiação Troféu Talento,
constituído pela Rede Aleluia 50, o uso da Internet para veiculação de programas musicais
realizados por empresas ou não. Assim, são a rádio 93 FM, da MK Publicitá, e a rádio GN,
da equipe Gospel Night.
No Brasil, a consolidação e a difusão do “gospel” estão relacionadas aos grupos e
bandas musicais organizados nas igrejas surgidas entre as décadas de 1970/80 como, por
exemplo, a Igreja Renascer. A marca “gospel” ganhou visibilidade, em fins da década de
1980, quando programas e shows foram realizados mesmo fora do âmbito religioso. Além
da criação de gravadoras, a marca “gospel” é aplicada a investimentos nas áreas de
vestuário, de educação e de saúde, como faz a Igreja Renascer (Siepierski, 2001:78, 85-89).
Um estudo realizado aponta ser o "movimento gospel" um "estilo" baseado no poder
divino, na guerra entre o bem e o mal, nas vitórias alcançadas por fiéis. Isso ocorre com o
consumo de produtos e os “serviços de apelo religioso”. As músicas - muitas vezes versões
de canções não religiosas -, os lugares e os eventos organizados formam o "circuito gospel"
e pode ultrapassar as igrejas, ocupar bares, restaurantes e outros locais. São explicitados
comportamentos indicadores de modo peculiar de inserção no religioso. Trata-se de exceder

50
O Troféu Talento é uma iniciativa da Rede Aleluia cuja finalidade é “divulgar a música gospel nacional”.
Seu início foi por volta de 1997, tendo por finalidade impulsionar a “música gospel” ao conceder prêmios aos
trabalhos destacados durante o ano. Para tanto, a eleição compreende o voto popular concedido aos
concorrentes escolhidos por comissão organizadora. São cerca de vinte categorias premiadas como, por
exemplo: cantor e cantora do ano, CD Pentecostal, CD Pop ou rock, Intérprete feminino, intérprete
masculino, CD do ano e Clip do ano. A Rede Aleluia surgiu em 1995 e atualmente reúne cerca de 56
emissoras e atinge 22 estados do país, veiculando programações com conteúdo cristão. Maiores informações:
Gadelha. “Gospel Line agora no Rio”, revista Show Gospel, ano 03, nº 11, p.27, 03/2003;
www.linerecords.com.br, acessado em 11/07/02; www.redealeluia.com.br.

70
o fazer musical por tocar no gosto e na estética, com mudanças de comportamento e
apresentação corporal. Trata-se de relativa liberalização e tensiona o estabelecido e
difundido (Almeida e Rumstain, 2003).
Outra abordagem destacaria não ser o “gospel” somente movimento musical, mas
expressão cultural característica do atual meio evangélico brasileiro. Ao ser visto como um
modo de vida e de experimentar o religioso, o “gospel” registra a presença de "elementos
profanos". Esses são sacralizados e mediados por meios de comunicação. Nesses termos, a
circulação de artigos e novos modos de vivência são vistos como um "invólucro moderno"
para as atividades que conservam as características próprias do grupo religioso apesar da
alteração externa. O quadro é definido como a “... modernização apenas externalizada,
promovida por canais que lhe geram atenção; um processo que não possui transformações
de pensamento (interno) – este estaria preservado”. O conjunto das iniciativas constituiria
um processo de mudança que asseguraria a continuidades dos fundamentos (Nascimento
Cunha, 2004: 110).
Sobre as transformações registradas, afirma-se ter o protestantismo experimentado
uma “flexibilização dos costumes”. Sua característica seria o questionamento de interdições
impostas e a admissão de certos comportamentos. Passa a ser dada atenção “às
necessidades do corpo e da mente” diante do avanço do pentecostalismo. Como as igrejas
protestantes estariam perdendo fiéis, passaram a buscar o alinhamento entre a liturgia e a
vida atual. Tudo isso seria processado em decorrência de duas vertentes teológicas: a
ecumênica e a evangelical. A primeira, antenada com a mística, com a emoção e com o
carisma - elementos da pentecostalização. A evangelical colocaria a relação entre
evangelização e culturas locais, com seus representantes mais atentos aos dogmas.
O cenário descortinado era composto pela temática da contextualização e abordadas
questões como a relação entre teologia e liturgia e as culturas indígenas e negras; a mulher
e sua inserção na sociedade, na família e também na igreja; maior afirmação da religião
tradicional e secularização e, por fim, certo relaxamento comportamental. A proximidade
entre a esquerda evangélica e a ecumênica descortinou o conservadorismo voltado a obter
resultados com a admissão de instrumentos musicais, de shows e de tecnologia, por
exemplo, com a finalidade de incorporar uma forma mais antenada com os diferentes

71
públicos visualizados sem, necessariamente, incorporar o conteúdo cultural (Burity,
1997:148-161).

Criações e músicas – diversidade de empreendimentos

Os depoimentos de Cláudia e de Francisco JC ressaltam modalidades musicais e


sonoras encontradas no meio evangélico. Seja “música de louvor”, seja “música gospel”,
seja “música cristã”, seja black music gospel, seja o objetivo em atender distintos grupos de
fiéis, apontam para a complexidade do meio evangélico, para as peculiaridades sonoras e
musicais e permitem perceber a contribuição das investidas individuais. Da técnica de
gravação, enfatizada por Feliciano, ao uso de computadores, sintetizadores e outros
equipamentos 51, os entrevistados indicam para a crescente introdução de novas tecnologias,
de organização de gravadoras, ligadas ou não às denominações, de formação de estúdios
domésticos e direcionados às produções musicais.
As empresas especializadas são numerosas e contrastam com o meio secular, no
qual são registradas fusões entre empresas; há também aquelas, de portes pequeno e médio,
além da produção independente, viabilizada pela tecnologia digital. As formulações
independentes expõem arranjos, combinações, estabelecem repertórios e catálogos
adquiridos por grandes produtores e definem as relações entre os distintos produtores de
discos (Dias, 2000).
Como estratégia eficiente de divulgação é dada ênfase aos meios de comunicação,
com a finalidade de atingir uma fatia maior de seu público. Para tanto, são feitos
investimentos em mídia, em tecnologia e, principalmente, na presença marcante no
universo virtual, através da produção de portais, sítios e salas de bate-papo, que
possibilitam a recepção religiosa. Nessa configuração, a música tem ampla presença e surge
na base de ações evangelizadoras de cunho institucional ou não. Os empreendimentos,
caracterizados pela produção musical, ganham amplitude, por meio da presença e atuação
de gravadoras fornecedoras de bens e atividades voltadas ao fortalecimento da participação
e da conversão.

51 Não se deve esquecer a exploração de estações de rádio e emissoras de televisão a fim de veicular os
diversos programas e, por fim, a Internet. Com ela é possível a realização de programações e veiculação de
informações e textos relacionados às musicalidades religiosas.

72
As ofertas musicais, os eventos, a abertura de empresas, os investimentos
institucionais e os independentes – com leigos envolvidos na exploração de capital social e
também cultural - formam canais favoráveis ao estudo do fazer musical e discográfico
por/para evangélicos. O investimento em mídias específicas – compact disc (CD) e digital
versatile disc (DVD) é significativo. Os produtores divulgam seus objetivos e definem os
bens, os acontecimentos e as ações empreendidas. Novas possibilidades surgem a partir de
ações de especialistas, de líderes religiosos e de leigos possuidores de objetivos e de
interesses; os organizadores visam, a partir de determinadas convenções (Becker, 1971),
fornecer bens definidos como religiosos. As atividades de preparação e oferta são exercidas
por diferentes organizadores e podem ter estatuto jurídico ou físico. Eles são detentores de
forças assimétricas no tocante aos enunciados, ao proposto e ao efetivado. Isso pode ser
visualizado quando são observados os empreendimentos oficiais e os independentes.
Serão apresentadas as gravadoras Line Records, a Mk Publicitá e a Vineyard Music.
As primeiras são nacionais e integram a Associação Brasileira dos Produtores de Discos –
ABPD -; a Vineyard Music tem ligação com uma igreja norte-americana e seus integrantes
têm participado em vários encontros. Além disso, serão exploradas as visões de três
depoentes: um produtor musical, um diretor artístico e a empresária de um programa
musical.
A Line Records (LR) é ligada à Igreja Universal do Reino de Deus – IURD 52 -,
fundada em fins da década de 1990, no Rio de Janeiro; posteriormente foi transferida para
São Paulo, retornando ao Rio de Janeiro por volta de 2003 53. Em seu material de
divulgação é apontado ter rapidamente alcançado o “topo do mercado”; segundo o material,
teria sido ela que “escancarou as portas do mercado fonográfico para a maioria dos cantores
que hoje cantam e encantam o público evangélico” 54. A publicidade da empresa registra
que “através das letras, a mensagem do Evangelho é propagada em forma de música” 55.

52 A Igreja Universal do Reino de Deus - IURD, uma denominação neopentecostal, foi fundada por volta de
1970, no Rio de Janeiro; a ênfase da IURD está nos rituais de cura, nos testemunhos públicos e na oposição à
igreja católica e aos cultos de possessão. O patrimônio da IURD compreende emissoras de rádio, de televisão,
de gráficas e de empresas. Maiores informações ver: www.linerecords.com.br, acessado em 22/04/02;
www.igrejauniversal.org.br, acessado em 27/10/05.
53 Gadelha. “Gospel Line agora no Rio”, revista Show Gospel, ano 03, nº 11, p.27, 03/2003.
54 Informações disponíveis em www.linerecords.com.br, acessado em 22/04/02.
55 Disponível em http://www.igrejauniversal.org.br, acessado em 27/10/05.

73
Integrada por diversos cantores e bandas, a LR está ligada ao programa televisivo
Gospel Line (veiculado pela Rede Record) e ao Troféu Talento – iniciativa parceira da
Rede Aleluia. A estruturação da atividade musical conta com a integração entre meios de
comunicação, a igreja e os parceiros apresentados como independentes.
A gravadora e distribuidora Mk Publicitá (MkP), localizada no Rio de Janeiro, foi
fundada também na década de 1990 por uma família evangélica. Conta com numerosos
grupos e cantores e promove reuniões na cidade com a finalidade de divulgar as canções e
os artistas de seu cast. Além disso, há outras iniciativas, como o programa televisivo
Conexão Gospel, a revista Enfoque Gospel e a rádio 93FM. De acordo com o material de
divulgação, sua entrada no “mercado gospel”, para “divulgar a música evangélica para o
mercado secular, ou seja, popular”, tem consistido em investir em variadas expressões
musicais, principalmente as contemporâneas. Isso constitui a “missão de ordem espiritual”
a ser realizada num país de maioria católica 56.
A Vineyard Music (VM) atua no país, desde 2001, porém, como já foi citado, surgiu
nos Estados Unidos. Seu objetivo é utilizar “recursos e músicas que despertem os corações
para um encontro com Deus de genuína adoração” 57. Sua participação é registrada em
atividades promovidas por outros grupos, tendo a participação de seus dirigentes, como o
ENLP e outras atividades musicais 58. Para seus dirigentes, isso contribui para a
evangelização e para a “adoração” feita “com integridade, contemporaneidade e
intimidade” 59.
Além dos materiais publicitários, relaciono os depoimentos coletados entre aqueles
em atividade independente. Isto é, alguns mantêm conexão exclusiva com empresa e/ou
igreja e agem de acordo com as visões e os objetivos de cada um; outros agem sem
vinculação com entidades. As informações são dadas por Pedro, produtor musical, por
Bené, diretor artístico, e por Antônia, empresária.
Pedro, cerca de 40 anos de idade, casado, graduação incompleta em engenharia,
convertido à Igreja Presbiteriana, é sócio de um estúdio de gravação, localizado na Barra da

56 Informações disponíveis em www.mkpublicita.com.br, acessada em 11/07/02.


57 Disponível em www.vineyardmusic.com.br, acessado em 24/11/05.
58 Informações disponíveis em www.vineyardmusic.com.br, acessado em 24/11/05.
59 Costa. “Música para unir o corpo”, revista Show Gospel, ano 03 nº 11, p. 12.

74
Tijuca 60. O entrevistado, ao explanar sobre as canções contidas no hinário e sobre aquelas
atualmente produzidas, afirma:

É a linguagem das músicas é uma linguagem coloquial. Músicas não só


direcionadas para Deus, mas direcionadas para o ouvinte, em geral; é para
a pessoa, para atingir a pessoa. É um nível de comunicação horizontal. O
hinário, o Cantor Cristão, ele tem uma comunicação vertical com Deus,
puramente. Têm poucas músicas de comunhão, pra momentos de
comunhão, casamento, mas tem, né. Tem mais uma visão vertical. E a
música do Rebanhão era mais uma visão horizontal, de evangelismo. E é
um movimento que tá crescendo hoje porque houve, agora nos anos 90,
crescimento muito grande também da música de adoração também com
uma linguagem mais coloquial: a Igreja Batista da Lagoinha, que fez um
movimento grande, com David Quinlan, Casa de Davi, pastor Cirilo, de
Belo Horizonte, que tão crescendo, Asas de Adoração. O movimento tá
crescendo muito. Agora, esse mesmo movimento tá sentindo a
necessidade de retomar também o evangelismo; também a música
evangelística, o evento evangelístico através ... agora sim pode ser feito o
evangelismo também com adoração, com músicas de adoração, mas com
uma linguagem musical também moderna e tal para que possa atingir os
jovens de hoje.

Bené, cerca de 50 anos de idade, casado, diz ser simpático ao cristianismo, porém
afirma não possuir vinculação religiosa; ele dirige projetos musicais, alguns voltados ao
tema religioso. Participa com Antônia no programa Conexão Gospel, voltado a encontrar
cantores e bandas. Ele focaliza a “música gospel” e oferece um panorama da produção
musical ao apontar dois momentos. O primeiro seria constituído por ausência de
profissionalização; o segundo demarcado por um projeto de comercialização. Bené diz:

O gospel começou, praticamente com plágio, imitavam outras músicas,


copiavam. Hoje em dia não. Hoje em dia, o gospel tem uma linha própria,
tem um caminho próprio que é muito legal. A mim anima trabalhar nessa
área também, independente do lado espiritual, há o lado profissional
também em questão.
Márcia: Fale um pouco da profissionalização. O senhor falou que antes
havia a versão, a cópia e agora não.

60. O entrevistado atuou como vocalista e tecladista na banda Rebanhão, surgida em 1980. O grupo investiu
em sonoridades diversas como, por exemplo, o rock e o baião, a fim de efetivar seus objetivos: evangelizar e
cultuar. Para tanto, suas canções falavam sobre fé – ressaltando-se a transformação individual - e também
veiculavam críticas sociais. O primeiro disco foi gravado, em 1985, pela gravadora Doce Harmonia; em
1986, pela gravadora Polygram, o Rebanhão apresentou o segundo LP. Informações oriundas de entrevista
concedida à autora em 2003. Também presentes em matérias jornalísticas e em verbetes: Bíblia World Net;
http://geocities.yahoo.com.br/nickalexsoares/rebanho.htm, consultado em 18/08/05. Também ver: Gadelha.
“Talento e Determinação”, revista Show Gospel, ano 03, nº 11, p.36. Dicionário Cravo Albin da Música
Popular Brasileira; www.dicionariombp.com.br, acessado em 09/05/06.

75
Bené: Porque tudo é o início. Pra você começar qualquer coisa na vida,
você precisa copiar. Agora, existe a cópia ingênua, a cópia bem feita e a
cópia criativa que já deixa de ser cópia, é uma cópia mais elaborada que, a
partir de um certo ponto, ela já cria personalidade própria e passa a não
ser mais cópia. O gospel tá nessa fase de não copiar mais e, depois disso,
muitas congregações, muitas igrejas adotaram, lideravam essa idéia, no
tempo que eu tocava violão, na Igreja Batista, era muito difícil.
Márcia: Como assim?
Bené: Havia um certo tabu, havia um certo preconceito. Hoje em dia não.
Quase todos os gêneros musicais são cantados no gospel. Até mesmo
aquele gênero altamente... metal pesado, sabe que originariamente tem um
perfil totalmente contra o gospel, hoje em dia ele é tocado no gospel com
a letra adaptada pra gospel.
Márcia: Sobre o gospel ter o lado comercial... como assim, tem um lado
comercial? Como se desenvolveu, se é que sempre existiu.
Bené: Não, ele não existia, esse lado não existia. Nos últimos quinze,
dezoito anos, talvez, ou mais um pouco. Tenho uma noção vaga, é uma
questão natural que um veículo de comunicação, uma rádio gospel, tenha
que ter patrocinador senão não sobrevive, vai pagar cotas? O próprio
artista gospel, hoje em dia, ele vai numa igreja e tem certo número de CDs
pra ser vendido, isso é um acordo. Existe uma série de coisas que essa luta
é muito importante. Não se pode trabalhar sem ganhar porque existe
profissionalismo. Como eu disse hoje cedo, hoje em dia há
profissionalismo no gospel, como há profissionalismo tem que haver
retorno financeiro, é óbvio. Só que esse retorno financeiro tem uma
importância grande, mas, o mais importante, é a palavra de Deus tá sendo
divulgada. Claro, existem palavras que são divulgadas ai em vão por
pessoas que gostam de esperteza, exagero, mas se for uma coisa bem
dentro do conceito normal, eu acho justo. É o que ta acontecendo
atualmente, existe, não sei precisar, muitas gravadoras gospel, têm muitas
gravadoras. É coisa profissional porque gravadora não pode viver só de
palavras, vive de retorno financeiro. É o nosso caso, nós estamos ... a
Astral Music tá, aos pouquinhos, saindo do, que chamamos, popular pra
assumir uma posição gospel com mais força. No próximo ano nós
queremos ter em torno de quinze a dezoito artistas gospel.

O depoente também tem participado do projeto Explosão Gospel, criado e dirigido


por Antônia. Ela tem cerca de 50 anos de idade, migrante nordestina, viúva, convertida à
IURD 61 e ex-produtora de baile funk. Antônia observa o percurso de construção do
reconhecido como “música gospel” e afirma:

61 Informações contidas no editorial do jornal Explosão Gospel, maio de 2003, ano II, nº 17, p.02; outros
dados são provenientes de entrevista concedida por Antônia à autora, em 2003.

76
A tendência da música gospel é conquistar o espaço e crescer
muito. Toda a música tem a sua época. Eu creio que a música
evangélica, a qualquer momento, pode ter um grande estouro no mercado.
Independente das religiões, as pessoas estão gostando, estão aceitando.
Porque no início era muito difícil você colocar numa rádio secular, numa
televisão, o programa evangélico. Ele não tinha esse espaço, o cantor
evangélico. Hoje não. As pessoas, ao contrário, elas estão pedindo. Então,
sabe aqueles que dão oportunidade para conhecer. Está crescendo. E eu
creio que vá crescer muito.

Márcia: O que você acha que esteja acontecendo?


Antônia: Olha, se eu for te responder pela parte espiritual, eu te digo que
Jesus está voltando; se eu for te responder pelo lado normal, da razão, eu
creio que é qualidade.
Márcia: Como, assim, qualidade?
Antônia: Antes as pessoas abriam a boca de qualquer jeito. Tinha o que eu
lhe digo: muitas vezes você vai avaliar a comunhão. Eu recebo o CD
completo com qualidade. Mas eu sabendo que a pessoa tem condição, é
uma pessoa, que tem uma pessoa no altar, é uma vida de oração, eu vou
melhorar, porque eu sei que eu posso ter um resultado maravilhoso. Se
juntar isso com a qualidade. A qualidade, que antes qualquer pessoa fazia
um CD de qualquer jeito que não dava nem vontade de você ouvir. Hoje
não. Hoje você vai, faz um bom arranjo. Você sabe que tem música... O
Marquinhos Gomes, por exemplo, o CD dele “Cinco Anos ao Vivo” é
fantástico. A Cassiane, então, é maravilhoso. Eu acho que as pessoas estão
passando a ver com outros olhos, devido à qualidade também.
Márcia: Por quê?
Antônia: Porque é sempre bom você ouvir um bom louvor, como falam.
Essa música da Cassiane que “Toda a vez que o Mar Vermelho tiver que
passar”, eu acho que independente de qualquer religião, você parando
para ouvir, é maravilhoso! Eu acho que a qualidade, então, está contando
muito.

Manga, cantor e pastor, tendo participado, desde a década de 1980, na elaboração e


disseminação de uma musicalidade considerada atraente para evangélicos e possíveis
convertidos, fala o seguinte:
Nós fomos um dos fundadores de todo esse movimento que hoje chama-
se movimento gospel.
Márcia: Por falar nisso Manga, o que é o gospel? O que vem a ser?
Manga: Na verdade, vem da palavra americana Godspel que é Evangelho.
E nos Estados Unidos, eles pegaram essa palavra godspel e simplesmente
sintetizaram ela pra gospel. Então, gospel seria alguma coisa ligada ao
Evangelho e uniu-se a música a isso. Por isso que ficou gospel que seria a
música que tem um conteúdo do Evangelho de Jesus.
Márcia: E aqui no Brasil, tem a mesma...
Manga: Sim, na época sim. Em 90, né, utilizou-se um nome gospel porque
vinha da concepção americana da música gospel que são as músicas mais

77
espirituais, músicas mais negras, porque hoje nos Estados Unidos o termo
que eles usam é música cristã contemporânea.
Márcia: Não é gospel, aqui já está usando o gospel.
Manga: Aqui esse termo música contemporânea não pegou, enquanto nos
Estados Unidos, hoje, eles usam música cristã contemporânea, música
alternativa cristã e aqui no Brasil gospel foi o que mais agradou.

As questões despontam e favorecem a visualização dos movimentos executados e as


concepções existentes. Há, por exemplo, oscilação entre projeto comercial e outro, de
cunho religioso, e parece estruturar a designada produção musical. Às vezes, ocorre a
equivalência entre as duas esferas, quando é afirmado ser a música ouvida porque os
cantores alcançaram “as portas do mercado fonográfico”. Desse modo, “cantam e encantam
o público evangélico”, como propagado pela gravadora LR. A visão de equivalência
transparece efetivamente nas falas de Bené e de Antônia quando destacam o
“profissionalismo” e a “qualidade”, respectivamente. Não se trata somente de divulgar as
Escrituras para alcançar a dimensão religiosa, mas o “profissionalismo” passa a ser
assegurado com as articulações, com os arranjos e as exigências de empresas do circuito de
produção e de divulgação. A afirmativa de Antônia corrobora essa visão quando focaliza o
declínio da dificuldade em encontrar canais de execução. Isso ocorre devido aos
investimentos realizados, capazes de tornar aceitável a canção proveniente de alguém,
segundo ela, em estado de “comunhão” próprio de quem tenha “uma vida de oração”.
Os entrevistados indicam as concepções sobre música e descortinam aquela que
atribuem ao gospel. A modalidade seria caracterizada por veicular o Evangelho. Opera-se,
em nome disso, a inscrição de estilos e temas musicais anteriormente não contemplados,
basta rever o depoimento de Francisco JC. O pastor Manga observa ter sido a partir da
década de 1980 a adoção de uma concepção musical, segundo a qual tudo estaria
relacionado ao fortalecimento de uma visão de mundo e certa ética comportamental. Isso
fica evidente ao afirmar estar “tudo ligado ao Evangelho”.
A partir das declarações, vê-se, que para a iniciativa musical ser atrativa, a exclusão
ou a ruptura não são consideradas viáveis, mas a conjunção desenharia as propostas
surgidas. Com isso, a noção de pertencimento exclusivo vai de encontro à outra, cuja marca
é aproximar elementos distintos. Além disso, aos fiéis seria permitido participar e transitar
entre as manifestações elaboradas por leigos e dirigentes de vários grupos de fé. Tem-se

78
referência a um momento no qual é possível aproximar, reaproximar e fundir elementos
oriundos de “várias tradições” (Sanchis, 1995:133/134).
Nas divulgações das gravadoras LR e da VM são enfatizados os mesmos elementos.
A música passa a ter uma dupla constituição, porque é a ligação entre os homens, cumpre a
evangelização, e, ao mesmo tempo, caracteriza a relação homem-Deus com a “adoração”.
Assim, a música não fica restrita ao lado “espiritual”, à “comunicação vertical”. Outro
elemento, apontado por Pedro, é estabelecido, o “horizontal”; ele fica aparente no
posicionamento da MkP quando afirma visualizar o “mercado secular”. Portanto, não cabe
mais a mera “cópia”, como surge na fala de Bené, como também não é visualizado somente
o meio evangélico.
A ênfase dada ao contato mantido entre as esferas religiosa e secular é visível com
as noções de “mercado secular” ou o “secular”. Trata-se de esfera privilegiada de diálogo e
posicionamentos. Sem oposições, sem confrontos. Assim, fala-se de “uma linguagem
musical também moderna e tal para que possa atingir os jovens de hoje”, como enfatiza
Pedro. São exercícios de apropriação, de combinações e de (re) significações realizados por
cantores, por dirigentes religiosos e por profissionais. Seus empreendimentos demarcam
existir um grupo específico – de fiéis e prováveis membros - para o qual é necessário
fornecer canções e atividades consideradas expressões de uma determinada época. Daí os
shows e iniciativas diversas. Seria a “contemporaneidade” apontada pela Vineyard Music
(VM)? Isso coloca o diálogo com o outro, com o “secular” para construir um “mercado
gospel”. Despontam possibilidades de interlocução com aquilo também alocado fora dos
limites religiosos. Então, a atividade produtiva compreende a apropriação de bens culturais
e sua (re) significação, marcando a diversidade das musicalidades vigentes no dito meio
evangélico (Segato, 1999:232, 233).

Sobre canções e conexões

Os empreendimentos musicais independentes e institucionalizados são numerosos e


resultam em modalidades de canções. Quais seriam suas características? Apresentarei
quatro canções com a finalidade de ilustrar o produzido e veiculado; os trabalhos resultam
de atuações das gravadoras Mk Publicitá (MkP) e Line Records (LR) e selecionados

79
porque: a) são empresas nacionais; e b) têm origem em investimentos de fiéis, no caso da
primeira, e de uma denominação, no caso da segunda, como demonstrado anteriormente.
Além disso, as duas gravadoras são integrantes da Associação Brasileira de Produtores de
Discos – ABPD 62; e são as mais citadas entre os entrevistados quando objetivam apontar as
primeiras e mais estruturadas gravadoras. Recorrerei ao trabalho da cantora Mara
Maravilha, reconhecida intérprete de baladas e constantemente citada por entrevistados.
Outro material em exposição é confeccionado pelo grupo de rock Oficina G3, da gravadora
MkP, igualmente reconhecido entre os depoentes por inovar ao recorrer ao rock.
¤
O CD “Deus de Maravilhas” é o quarto trabalho da cantora Mara Maravilha,
convertida em 1996. Antes, ela cantava e apresentava programas televisivos, infantis e
juvenis, em emissoras locais (região nordeste), em âmbito nacional 63 e depois para países
de língua espanhola. 64. Após a conversão, a cantora gravou CDs, contando com a
participação de outros cantores evangélicos. Em 2002, ganhou o Troféu Talento, premiação
instituída pela Rede Aleluia, voltada ao reconhecimento daqueles em destaque na chamada
"música gospel", com o CD “Deus de Maravilhas”.
Opto por analisar aqui as faixas “Deus de Maravilhas” e “Deu tudo certo” 65, as
primeiras do CD, uma é a faixa título e a outra oferece imagens acerca do ato de conversão.
Apesar de a cantora ter composto algumas canções, as duas selecionadas são de autoria do
diretor artístico do trabalho, porém ambas exemplificam a peculiaridade da produção da
LR, e o público a qual é destinada. As letras são as seguintes:

Deus de Maravilhas
Não há deus maior que o nosso Deus/Nosso Deus é o Deus do
Impossível/Fala com as estrelas e ordena o vento e o/mar/Igual ao nosso
Deus não há/Não há Deus maior que o nosso Deus/Do cativo faz um livre
vencedor/A alma do ferido só Ele pode restaurar/Igual ao nosso Deus não
há/É o Deus de Maravilhas operando quem impedirá/É o Deus de

62 Entidade fundada em 1958 e voltada a representar as gravadoras, defender seus direitos e interesses. Ver:
relatório anual da ABPD 2002, p.44.
63 Ela trabalhou em programas das redes de televisão Record e SBT. Maiores detalhes, ver:
www.linerecords.com.br, acessado em 28/10/02. Kikuti.“De volta à TV”, revista Show Gospel, ano 03, nº 09,
2002, p.14,15.
64 Maiores detalhes, ver: www.linerecords.com.br, acessado em 28/10/02. Kikuti. “De volta à TV”, revista
Show Gospel, ano 03, nº 09, 2002, p.14,15.
65 CD “Deus de Maravilhas”- Records Produções e Gravações – LRCD 197.

80
Maravilhas que o morto faz ressuscitar/É o Deus de Maravilhas que faz a
estéril dar a luz/Maravilhas faz o nome de Jesus.

Deu tudo certo


Hoje eu vim aqui pra confessar que sem a fé em ti/Não dá mais pra viver
Meu Senhor/O que ouvi aqui já começou a acontecer meu pai/Tanta coisa
em minha vida se modificou/Porque a fé em Ti Jesus me abençoou/Deu
tudo certo Senhor/Eu vim oferecer o meu louvor/Pai de amor/Porque a fé
em Ti Jesus me abriu as portas e eu vou/Deu tudo certo Senhor/Eu vim
oferecer o meu louvor/Pai de amor/Quando cheguei aqui eu vim chorando
aos pés do meu Senhor/Jesus me atendeu me abençoou/Me deu sua
Palavra/ cumpriu com tudo aquilo o que falou/Fez de quem não era nada
um grande vencedor.

O Deus contemplado pela canção é detentor de poder considerável, capaz de,


somente Ele, derrotar o que pudesse impedir alguém viver em plenitude, pois age sobre a
natureza. Além disso, algumas referências bíblicas estão presentes, como a ressurreição, a
concepção e o poder sobre as forças da natureza. Tudo é mesclado e fornece ao ouvinte a
percepção de ultrapassar os limites sociais e naturais que submetem o sujeito. E isso fica
evidente na referência ao fim do cativeiro, na condição de liberto. É uma referência à
liberdade auferida com a derrota das forças do mal e com as curas alcançadas, condições
obtidas com a submissão ao poder divino. Além de tais construções, a outra canção refere-
se ao momento no qual o fiel reconhece as transformações em sua vida proveniente da
intercessão divina. O centro da composição é o fiel, capaz de vencer os limites e alcançar
outro lugar após se colocar sob a guarda e a ação da divindade.
¤
No final da década de 1980, a banda Oficina G3 foi fundada, em São Paulo, na
Igreja Cristo Salva, ou, como é divulgado, na "Igreja do tio Cássio", como era conhecido
seu pastor e fundador 66. Segundo Manga, ex-integrante do grupo musical e pastor da Igreja

66 Siepierski (2001:79-81), ao discorrer sobre a Igreja Renascer, comenta que a Igreja Cristã Evangélica
Independente de Indianópolis, conhecida como igreja “Cristo Salva”, foi fundada por Cássio Colombo, ex-
empresário, em 1975. Isso foi posterior a sua conversão à Igreja Evangélica Independente do Cambuci, da
qual acabou se afastando. Antes disso, realizava reuniões com diversos jovens em sua residência, atraindo
adeptos de igrejas ou não. O encontro era caracterizado por “testemunhos” e valorização musical, com o
registro de inovações sonoras. Isso teria levado à formação de grupos musicais. Depois, houve o desligamento
de Cássio Colombo da igreja a qual se convertera. Logo fundou aquela conhecida como a “igreja do tio
Cássio”. Os futuros líderes da Igreja Renascer teriam freqüentado os encontros promovidos por Cássio
Colombo. www.oficinag3.com.br, acessado em 05/12/2005. A referência também consta em entrevista
concedida por Manga, ex-integrante da banda.

81
Vineyard, a "igreja de Tio Cássio" promovia "... uma reunião às segundas-feiras, que era
uma reunião muito moderna pra época; muita música, todo mundo sentava no chão. Porque
a gente tem que pensar que a gente tá em 77, aonde o movimento hippie tá acabando". A
igreja possuía três bandas e os componentes do futuro Oficina G3 faziam parte do terceiro
grupo formado para ter uma atuação interna. Segundo o depoente, no desenho institucional,
esta banda permitiria aos integrantes chegarem ao grupo principal. Com o tempo, foi se
consolidando e passou a se apresentar em diversos lugares, até se constituir na banda
Oficina G3.
Na década de 1980, ocorreu o lançamento do primeiro long play (LP); o grupo
alcançou projeção nacional e presença no circuito musical evangélico internacional 67. Seus
integrantes são professores de música e colunistas de revista especializada em
instrumentos 68. Para eles, as canções executadas provocaram reações num meio no qual o
rock surgia como novidade diante do predomínio de hinos.
O CD “O Tempo” possui 13 faixas. Selecionei duas, por considerar três pontos.
Primeiro, demonstram, com as letras e os arranjos, a visão da gravadora: divulgar artistas
evangélicos. Segundo, as canções são exemplares da proposta da banda: evangelizar com o
rock. Terceiro, evidenciam as peculiaridades das canções contemporâneas encontradas no
meio evangélico nacional. As faixas em questão são “O caminho” e “O tempo” 69, ambas
compostas por integrantes do grupo. Trata-se da primeira e da quinta canções do CD.

O caminho
Preciso viver, preciso mudar/Preciso de algo para acreditar
Me sinto tão fraco/Desisto da vida/Me vejo em um beco sem saída
Ouvi sobre um Deus/Que mandou seu Filho/Para que houvesse um
novo/Destino ao mundo/Deus, me mostre o caminho/Deus, não me deixe
andar sozinho/Agora consigo viver/Consigo pensar/Encontrei a
vida/Posso respirar.

O tempo
O vento toca o meu rosto/Me lembrando que o tempo vai com ele
Levando em suas asas os meus dias/Desta vida passageira/Minhas
certezas, meus conceitos/Minhas virtudes, meus defeitos/Nada pode detê-

67 A banda Oficina G3 conta com apresentações nos cenários nacional e internacional - Estados Unidos e
Itália. Informações disponíveis em www.oficinag3.com.br, acessadas em 19/05/02.
68 Disponível em www.oficinag3.art.br, acessado em 05/12/05.
69 CD “O Tempo”, Oficina G3, MK Publicitá 109-631, faixas 02 e 05.

82
lo.../... o tempo se vai/mas algo eu sempre guardarei.../...o teu amor, que
um dia eu encontrei/os meu sonhos, o vento não pode levar
a esperança, encontrei no Teu olhar/os meus sonhos, a areia não vai
enterrar/porque a vida recebi ao Te encontrar.../... nos Teus braços não
importa o tempo/só existe o momento de sonhar/e o medo que está/sempre
à porta/quando estou com Você/Ele não pode entrar...

Aqui não há referências bíblicas e o grupo constrói as composições a partir da


credulidade, condição decisiva na condução da vida e para a transformação. Ela é visível no
uso de termos como “ouvir”, "mudar", "acreditar" e "fraco", que indicam o “encontro”
vivenciado e alicerçado na combinação entre “ouvir” e “crer”, compondo o “caminho” para
a mudança de vida. O passar do "tempo", as alterações e as perdas físicas são suportadas,
após o encontro com a divindade; a dimensão intangível dos "sonhos" e da "esperança" é
resguardada em decorrência da inserção numa ordem cósmica que possibilita outra
concepção: viver sob a ação da divindade. Ela eficazmente organiza as peculiaridades
humanas por ser poderosa, capaz de impedir a ação implacável do “tempo”. Quando a vida
é assim conduzida, nada mais assusta e fica possível entrar na dimensão do "sonho", na
qual a vida deverá transcorrer.
¤
Após sair do âmbito de depoimentos e de materiais promocionais, busquei
compreender a noção defendida por produtores e empresas: a de que as canções teriam por
propósito “propagar o Evangelho” em “linguagem contemporânea”. As músicas, inclusive
aquelas aqui transcritas, veiculam as imagens com as quais os compositores buscam
fortalecer a ligação entre os fiéis e os grupos religiosos. Isso ocorre ao ser instalada a
dualidade entre passado e presente, entre as condições físicas e emocionais anteriores e as
atuais - alteradas em decorrência de uma relação estabelecida com a divindade. Quem sabe,
não estaria aí aquilo que foi definido por Pedro como uma “comunicação vertical”? Ela
permitiria formular atividades e igualmente atingir público diversificado, seria sua
“horizontalidade”; ao mesmo tempo, é afirmado ser a música um modo de “adorar” em
conformidade com o tempo, próprio da “contemporaneidade”.
Assim, a música seria uma “linguagem” fundamental porque asseguraria a
disseminação de uma “imagem da realidade”, de instruções extrínsecas, voltadas a modelar
o comportamento e a existência, pois uma noção moral, uma visão estética e disposições

83
(re)definem o certo e o virtuoso (Geertz, 1989: 143, 144). Tudo isso, conforme os
depoimentos, é circunscrito pela palavra “gospel” ou “música gospel” tão presente no meio
investigado.

Ouvintes, “alegria” e “espírito”

Em sessão anterior, foram destacadas algumas canções e permitiram refletir sobre o


elaborado e o cantado. Também foram vistas algumas noções daqueles envolvidos com as
formulações musicais e viabilizaram compreender porque as canções são tomadas como
eficazes para evangelizar, pois veiculam a visão de cada grupo religioso. Contudo, os
adeptos ouvem e falam sobre as canções sob outro ângulo. Vejamos o apresentado por
alguns adeptos.
Otávio, 27 anos de idade, casado, branco, morador da Zona Norte, ensino
fundamental completo, convertido há seis anos à Igreja Universal do Reino de Deus -
IURD, funcionário de uma empresa de reprografia, aponta a importância da música para a
sua filiação religiosa. Afirma sentir:

Uma alegria tremenda dentro do coração que a gente não tem nem como
explicar, mas só o Espírito Santo mesmo.
Márcia: Mas você sente alguma coisa em especial?
Otávio: Com certeza, eu sinto o espírito de Deus, como se fosse tocando
em nosso coração. Tem momento que a gente louva, que a gente louva e
chora e essas músicas elas agrada Deus.
Márcia: Você já sentiu isso ?
Otávio: A partir do momento que eu me entreguei pra Jesus, com certeza.
No começo a gente ainda tava assim engatinhando né. Agora, não. Agora
a gente vê como é que é a verdade. Que a palavra de Deus é conhecer a
verdade, a verdade (inaudível) libertará. Através de um louvor pode se
libertar também.

Roberta, cerca de 30 anos de idade, casada, graduada em Pedagogia, moradora da


Zona Norte, oriunda de família da Assembléia de Deus e da Igreja Batista, mudando para a
Presbiteriana, é funcionária de uma instituição de ensino; para ela, a música ouvida:

É espiritual, mas é agradável aos ouvidos, por exemplo: eu gosto de


músicas tradicionais antigas, como hinário, novo cântico que a gente tem
lá na igreja. São músicas que foram criadas junto com a denominação.
Mas não toda hora. De vez em quando, você quer ouvir uma coisa mais

84
atual, mas sem perder a espiritualidade. Por exemplo: um dia que você
está com algum problema, um dia que você está com conflitos ou em
depressão. Se você ouve a música, alivia a alma.
Márcia: Quais temas essas músicas costumam explorar mais?
Roberta: Fala muito na ajuda. Levanta a auto-estima, são passagens da
Bíblia que comovem, coisas que Cristo realizou quando veio a Terra e que
te dá realmente uma razão de viver, de continuar lutando que, às vezes, é
uma palavra, é um alívio. Como eu já te falei, é um alívio.
Márcia: Então, isso seria a música mais espiritual?
Roberta: A música mais espiritual.
Márcia: Por que você está chamando essa melodia de mais moderna? O
que seria isso?
Roberta: São estilos de músicas atuais. Pop, um pouco de rock, não muito
pauleira, aquele rock mais leve, mais suave. Me agrada esse tipo de
música
Márcia: Faz essa junção?
Roberta: Faz essa junção, exatamente.
Márcia: Você gosta de algum programa de música?
Roberta: Olha, temos poucos, não tem muita qualidade. Na realidade,
ainda estão muito artesanais. O melhorzinho, que tá acontecendo, é o
Conexão Gospel que é o da Marina de Oliveira, aos domingos. Tá numa
roupagem – não sei se é bem essa a palavra – bem mais atual e que você
consegue ficar vendo, por uma hora, o programa sem achar que é uma
coisa mal feita. Não fica muito a desejar a outro programa, entendeu?

Os fiéis e ouvintes musicais enfatizam aspectos específicos acerca das canções em


circulação no meio evangélico. Apesar de algumas referências bíblicas, há músicas que
destacam a submissão ao poder divino e as conseqüentes transformações em decorrência
da intercessão divina – vide as composições defendidas por Mara Maravilha. Também
existem aquelas centradas em visão sobre a ação da divindade capaz de transformar a vida e
a realidade, como veicula o grupo Oficina G3.
Os depoimentos de Otávio e Roberta expandem a concepção acerca do ouvido, seja
durante o serviço religioso, seja em outras atividades. Otávio diz sentir “uma alegria
tremenda” com a presença do “Espírito Santo”, não somente por tal presença, mas também
por proporcionar a “libertação” das forças da aflição. Esse ponto aparece nas canções de
Mara Maravilha, reconhecida principalmente entre os adeptos da Igreja Universal do Reino
de Deus, da qual o entrevistado faz parte.
Roberta destaca as diversas fontes musicais em circulação e que constituem um
leque de opções aos fiéis. Os hinos e as canções surgidas recentemente utilizam expressões
contemporâneas veiculadas em diversas atividades musicais, além do culto religioso. Eles

85
são equivalentes entre si, pois têm, a seu ver, conteúdo “espiritual”, remetendo aos feitos
bíblicos capazes de “comover” ao falarem sobre a vida de Cristo.
A ênfase recai na ação provocada pela audição musical e explicitada quando fala em
“ajuda”, “levanta a auto-estima”, “dá razão de viver, de continuar lutando”. O ponto não é a
evangelização e, muito menos, o fortalecimento de um estado de emoção social. Os dois
depoimentos revelam outra face. Trata-se de colocar no centro o fiel, o crente apto a viver e
sentir o mundo e que, portanto, constrói explicações ao se deparar com certos elementos,
como nas canções de Mara Maravilha e aquelas da banda Oficina G3. Nesse caso, as
canções veiculariam um conjunto de informações.

“Mercado” e sagrado: correspondências

Os depoimentos e os materiais de divulgação aqui contemplados possibilitam


visualizar a mobilização para atingir o mercado secular e dispor as coisas religiosas. São
gravadoras e empresas voltadas a enfatizar isso, mas há outros encarregados de acenar a
existência de um “mercado gospel” no qual os bens são disponibilizados. Assim, a música
que constitui, segundo Pedro, a “comunicação horizontal” entre os fiéis, capaz de divulgar
o Evangelho, conforme estabelece a Line Records (LR), indica os componentes de uma
visão religiosa. São apontadas a “qualidade” e o “profissionalismo” por Antônia e Bené,
respectivamente. “Qualidade” e “profissionalismo” são indicadores e resultam de
exigências, arranjos, articulações e demarcam a música asseguradora da fé.
Líderes religiosos e produtores sublinham a vigência de um “mercado” e
estabelecem uma equivalência entre ele e o religioso. As duas esferas não estão separadas,
não são excludentes desse fazer. Eles ressaltam a vigência de um “mercado gospel” ou
“mercado cristão” 70, como colocam alguns, cujas marcas são a oferta e a procura por bens e
serviços. Os envolvidos objetivam espraiar um discurso sobre a música como via de
divulgação do Evangelho e de pertencimento religioso. Porém há também o registro de
outra visão. Ela não entra em conflito com aquela, mas surge como complementar e
desenha uma visão na qual a crença não é dissociada da idéia de “mercado”. O que viria ser
esse “mercado”?

70 Tristão. “Mercado Cristão”, revista Show Gospel, out.2004, ano 05, nº17, p.32.

86
Em uma publicação, voltada a divulgar cantores, empresas e shows, foi veiculado o
depoimento de um dirigente religioso - da Igreja Batista de Contagem, estado de Minas
Gerais. Nele há elementos favoráveis ao entendimento das articulações e dos investimentos
enfatizados. Para o pastor, existem duas “montanhas” e um “vale” ocupados por todos
aqueles envolvidos com a música. Assim, diz:

O Senhor me falou a respeito de duas montanhas. Ambas são montanhas


de adoração. A primeira é onde nós chegamos à presença de Deus e
recebemos as canções, pregações, etc, e a outra é onde as pessoas que
adquirem os CDs adoram ao Senhor enviando para o céu o fruto do que o
Senhor enviou para a terra.
A questão é que entre duas montanhas sempre existirá um vale. Esse vale
é onde acontece a comercialização desses produtos. Produto, é assim que
vida que flui de dentro do coração de Deus através de nossas poesias e
acordes é chamada (...) o que escrevo não se trata de uma crítica, pois, não
temos como ir de uma montanha a outra sem passar pelo vale. Seria
hipocrisia criticar uma vez que também compramos e vendemos CDs. Sou
grato a todos que militam no vale do comércio fazendo a conexão entre
uma montanha e outra. E nesse vale todos temos que agir como
empresários, pois as dificuldades contidas nele são as mesmas
71
enfrentadas por qualquer outra empresa ou empresário...

As decisões técnicas, a produção e a comercialização transformam algo em


“produto” comercial, fundamental para o “objetivo espiritual”. O entrevistado Francisco
JC, diz sobre o cenário musical:

Eu posso dar, é claro que um posicionamento muito individual, né. O


mercado hoje tá muito mais aberto, muito mais porque é uma necessidade
muito maior. Devido a tudo que a gente já falou e a essa mesma transição,
o mercado, é claro, visualizou a necessidade do jovem ouvir algo com
uma musicalidade talvez um pouco mais trabalhada, mais aprimorada.
Não dizendo nunca que os trabalhos dos quais você citou não são
trabalhados ou aprimorados. Mas são trabalhos que têm uma visão, vamos
dizer, uma visão A que atinge um público A e existem novos trabalhos
que estão atingindo o público B. Assim como há no meio secular, também
há no gospel. Existem pessoas idosas que querem ouvir músicas da antiga.
A minha mãe quer ouvir o Jair de Paula. Então, é legal. Minha avó quer
ouvir a Talita. Não que a Talita seja uma pessoa antiga, eu também gosto
da Talita, pôxa, que isso. Mas existe um público A, B, C e D, existe
criança. Então, a indústria tem trabalhado muito bem porque existe todo
tipo de música pra todo tipo de gente. Existem bandas hoje que trabalham
com axé. Quando há três anos você ia imaginar que ia acontecer isso? Tá

71 Cirilo. “As duas montanhas”, revista Show Gospel, out. 2004, ano 05, Nº 17, p. 30.

87
amarrado, né, ia tá amarrado. Tá amarrado o trabalho aí ou tá amarrado
esse aí ou sai de mim ou esse tipo de coisa.

Parece ser o “vale” uma esfera livre de certos princípios e, portanto, viável ao
predomínio da técnica e exercício da criatividade com vistas a alcançar algo superior. Na
fala de Francisco JC, a indústria prepararia os bens expostos aos distintos grupos de
consumidores. As figuras do “vale” e da “indústria” estimulam a pensar sobre uma
ambigüidade em relação aos envolvidos com a produção musical. Estes podem ser vistos
como empresários em atuação no mercado e, ao mesmo tempo, ocupam lugar de destaque
no meio religioso. Assim, entre criar posições e forjar novos bens, esses ambíguos
produtores podem ser entendidos como criadores de uma arena de transição. Ou quem sabe,
ligam áreas dispares e imprescindíveis para a iniciativa religiosa. Sem conflitos. A inovação
aqui caracteriza a figura do empresário, presente na elaboração do pastor Cirilo, a partir da
situação redefinida com a atuação do profissional no campo de produção e recepção de
serviços e bens (Ortiz, 1980; Bourdieu, 1992; Oro e Steil, 2003).
A observação de Francisco JC, acerca da concorrência de modalidades musicais e a
necessidade de atingir distintos públicos, focaliza a elaboração e a organização musical
conforme os gostos e fases da vida. A seu ver, o “mercado”, e não a igreja, está “mais
aberto”, capaz de absorver novas propostas sonoras e musicais ao visualizar não existir um
público, mas vários a serem atingidos. Portanto, a “indústria” deve impor a dinâmica
musical; como exemplo, ter-se-ia a introdução de novos estilos musicais, a presença do
anteriormente excluído.
Isso provoca posições como a expressa pela afirmativa “tá amarrado esse aí, ou sai
de mim, ou esse tipo de coisa”, conforme destaca Francisco JC. Aparece aí a vigência de
uma lógica orientadora da percepção do sagrado e visível com termos como “amarrar” ou
“sai de mim” numa menção do que deve ser mantido seccionado. Essa lógica da exclusão
aparece na afirmativa de Francisco JC, e é exemplificada no drama de conversão de
Feliciano, parecendo ter sido a característica de uma produção musical e de grupos
evangélicos. Em outras palavras, a oposição entre nós/eles, entre religião/profano parece
coexistir com outra lógica, presente na fala de Francisco e na redação sobre as “montanhas”
e o “vale”.

88
As elaborações musicais não podem ser vistas a partir de interesses exclusivamente
religiosos ou empresariais, com vistas a penetrar em um “mercado”. Pode-se observar a
indicação de possibilidades inscritas. Essas podem surgir com as iniciativas
institucionalizadas e independentes (autônomas) e, muitas vezes, podem registrar
negociações ou não. Ainda assim, há referência constantemente a um “mercado”
constituído e mantido por serviços e bens formulados com vistas a alcançar os leigos, como
pode ser visto na passagem sobre “as duas montanhas” com a frase “... a outra é onde as
pessoas que adquirem CDs adoram ao Senhor, enviando para o céu o fruto do que o senhor
enviou para a terra”. Isto também pode ser visto na fala de Francisco JC e da divulgação da
gravadora que estabelece: “enquanto olhamos e vemos o mercado fonográfico secular
caindo e o mercado evangélico crescendo vemos a diferença que Deus está fazendo” 72.
Haveria um “mercado” de bens religiosos ou a religião produziria bens para o
mercado? A pergunta parece juntar duas áreas separadas, mas não é resolvida caso vigore a
visão de o interesse do mercado se apropriar de tudo próprio da esfera da fé e da
religiosidade. Talvez outra via possa existir e transparece na figura do “mercado”, entre
duas “montanhas”. Na primeira, é possível receber os dons; na segunda “montanha”,
vigoram preces e orações dos homens e, portanto, marca o lugar da relação homem-Deus.
Então, o “vale” é destinado a proporcionar a ligação do contrário, pois o “mercado”
somente cresce ao estar orientado por Deus. Eis como é possível a correspondência entre
duas áreas opostas. Pois, de um lado está a socialização comunitária e, de outro lado, aquela
pautada na troca e na concorrência entre os participantes.
A figura oferecida não veicula dualismos entre sagrado e profano, entre religioso e
“mercado”. Pelo contrário, configura a mediação entre o homem e o divino. Qual a
importância do “vale do comércio” ? Sem ele, os produtos e serviços viáveis ao exercício
de fé não seriam ofertados e acessados por aqueles voltados ao culto. Pode-se afirmar ser o
campo religioso penetrado pela lógica de mercado porque a concepção, a produção e a
oferta de bens não são mais prerrogativas das igrejas. Agora, ligadas às igrejas ou não,
surgem produções, ofertas e modos de arregimentar novos fiéis (Oro e Steil, 2003:309,310).
Para Weber (1998:493-497), o mercado é caracterizado pela diversidade de
interessados e probabilidade de câmbio apto a ligar os homens entre si. Ele pode ser regido

72 Cintra. Editorial da revista Show Gospel, ano 03, nº 13, p. 08.

89
por acordos entre os participantes ou experimentar uma ordem estabelecida por alguma
comunidade de cunho político ou religioso. Todavia, a relação de troca é impessoal e nem
sempre se dá em decorrência da ação de outro, mas pode ser estabelecida mediante os
futuros participantes e marcado por objetivos, por interesses nos bens voltados ao
intercâmbio. O autor afirma que os arranjos estabelecidos podem findar com o recebimento
dos bens, porém sua persistência advém de imperativo voltado a regular os envolvidos,
principalmente quando passam a vislumbrar a continuidade da relação de troca.
Sobre a relação entre mercado e religiosidade, Alves (1982: 15 e 17), ao analisar as
“agências de cura divina”, destaca a relação entre os especialistas e os usuários dos bens e
práticas oferecidos em busca de cura para algum mal. Isso demarcaria a “razão
operacional” e ressaltaria a vigência de visão utilitarista entre aqueles participantes da
“comercialização de bens espirituais”. Ocorre de não haver adesões duradouras entre os
envolvidos porque há a passagem de uma agência à outra com a procura por resolução de
problemas e que podem afligir alguém.
Monteiro (1982:107 e 110), com a descrição da presença pronunciada de cantores e
uso de meios de comunicação entre os evangélicos, na década de 1970, indicava a
superposição das lógicas promocional e religiosa nos programas e encontros religiosos. Os
bens eram consumidos por clientes desejosos de resoluções, de explicações para os
problemas concretos, ávidos por entender e se relacionar com os detentores de
conhecimento. A busca de cura e as apresentações de especialistas eram marcadas por
relações opostas entre doença/pecado, cura/libertação. Elas caracterizariam a atitude da
clientela flutuante das “agências de cura”; tal clientela estaria sempre em busca de
“controle das incertezas” e de respostas, explicações para os problemas vividos e
componentes do cotidiano doméstico.
No meio religioso e musical, quais seriam os elementos desse lugar de troca? Em
uma “montanha”, os dons são recebidos; com isso, ocorre a retribuição das dádivas obtidas.
Essa é a base do acordo e, por ora, pontua a dita “relação horizontal” e, obviamente, a
“vertical”. Seria a conciliação de duas dimensões antagônicas? Estes tempos de pluralidade
religiosa são marcados por complexas articulações, reaproximações, sobreposições e (re)
fusões diante de bens culturais disponíveis (Sanchis, 1995:134). Deparamo-nos com
posições favoráveis ao desmonte ou descongelamento de dualismos, de mundos

90
inconciliáveis, com suas oposições internas, possíveis de integração com as interlocuções e
as ações humanas (Velho, 1997:143). O âmbito religioso é constituído por forças internas e
elas podem estar em recomposição, viabilizando o “alargamento das suas fronteiras” em
direção aos elementos considerados opostos. Isto permitiria compor e oferecer bens e
“alternativas religiosas” (Steil, 2001:120,121).
Para os profissionais e líderes religiosos, a equivalência entre “mercado” e religião é
possível devido aos bens em oferta. Eles permitem cultuar e resultam de atuações daqueles
posicionados no “vale”. Isso é possível na medida em que o comércio é uma das arenas na
qual é permitido perpetrar e manter a relação de troca entre os homens e a divindade
(Mauss, 1974:39 e 129). Não se trata somente de receber “canções” e “pregações”, como
afirma o pastor Cirilo, mas, conforme registrado nas composições defendidas por Mara
Maravilha e a banda Oficina G3, também libertação, transformação de vida e segurança.
Ou, como indicam os ouvintes: a “alegria” alcançada e a “razão de viver”. Como a
aquisição pode ser conduzida? Exatamente a audição seria adequada em despertar, em
alterar certa disponibilidade emocional.
As procuras por resoluções e pelo “controle das incertezas” poderiam demarcar o
acesso aos bens, aos serviços religiosos e evidenciar a relação utilitarista entre os
envolvidos – especialistas e usuários. Não obstante, os ouvintes ressaltam o consumo
musical como uma eficaz via de reflexão, sendo possível, a partir dela, erigir um
entendimento acerca do mundo, da vida e do eu. Para tanto, as iniciativas registradas no
“vale do comércio” não alimentariam exclusivamente os trânsitos de fiéis entre as igrejas;
as atividades constituem algo distinto, com regras próprias no tocante ao produzir e
oferecer bens e serviços específicos. A relação de troca não é mais impessoal, isto é, a
conexão entre o ser humano e os bens deve ser íntima. O registrado no “vale” é
imprescindível, pois as relações constituem objetos, pontuam outras e, portanto, incorporam
e transmitem “idéias”, visões, “atitudes” e “julgamentos” (Geertz, 1989:105)
As formulações apresentadas indicam para uma relação entre o vivido, o pensado, o
sentido por leigos, o elaborado e o concebido institucionalmente e, assim, pontuam as
alternativas sonoras e musicais. Quando é apontado o trânsito de leigos e de empresários
entre a “montanha” e o “vale”, pode-se sublinhar a construção de caminhos que rechaçam a
disjunção. No entanto, é preciso observar que tudo isso coloca tensões, tentativas,

91
combinações e composições. Elas transparecem nas histórias transcritas, nos percursos
musicais e no criado e apresentado aos receptores.
Além de evidenciar a existência de atores voltados à produção de objetos e eventos
de acordo ou não com as regras comuns ao meio, a um “mundo” (Becker, 1971), no qual
são operacionalizadas constantes e complexas combinações (Oro e Steil, 2003), foi possível
demonstrar como as canções são concebidas distintamente por leigos e especialistas. As
falas de produtores e as divulgações de empresas diante das manifestações dos ouvintes
apresentam diferenças.
Os leigos - cantores e empresários - integram um grupo intermediário encarregado
da produção de bens, algumas vezes distintos daqueles oferecidos por pastores. Suas
manifestações circunscrevem uma integração entre religiosidade e profano quando
focalizam o mercado fonográfico ou o “mercado gospel”, o “profissionalismo” e a
“qualidade”. As iniciativas, os lugares e as qualidades caracterizam o debate com o
constitutivo do “mundo” oposto. Já os consumidores destacam a “alegria”, a “liberdade” e a
“espiritualidade” alcançadas por aqueles alocados no intermediário mundo das atividades
produtivas, mas não enfatizam essa dimensão e sim como o cotidiano é demarcado por
condições distintas quanto ouvem, sentem e cantam.
São desprendidas coexistências entre elas e tornadas equilibradas com a noção de
“mercado”. Desta forma, parece que a dimensão da produção não é mais tomada como
antítese do sagrado, mas aproxima dois âmbitos, duas áreas contrastantes concebidas pela
religião (Leach, 1983:180, 181). O “mercado” e aqueles em atuação nele têm poderes
fundamentais para sentir e viabilizar o exercício de fé. A figura do “vale” e das “duas
montanhas” bem revela a composição entre profissionais e dirigentes religiosos.
Isso contribui para a coexistência de fazeres, de iniciativas, de objetivos que
permitiriam visualizar um “mundo” não tão homogêneo e harmônico, porém ora inclusivo,
ora seletivo, caso sejam consideradas as propostas e as produções paralelas. De certo
ângulo, todas elas parecem constituir uma totalidade formada por diversas coisas e
iniciativas e, na qual, a “música gospel” passa a ser peça fundamental. Ela caracteriza
acontecimentos favoráveis à atração de “jovens”, pois transmite, apesar das mudanças, os
valores, a concepção de mundo e o modo de inserção nele (Geertz, 1989).

92
A noção de “música gospel”, a presença e as transformações musicais no meio
evangélico brasileiro foram apresentadas sem abdicar de outras histórias contadas por
envolvidos com a atividade. Tudo isso permitiu observar inscrições diversas e impedir de
apontar a exclusividade de influências culturais norte-americanas ou de empresas e igrejas.
As atuações indicam arranjos e rearranjos próprios das atividades de empresários, artistas,
técnicos, igrejas e demarcam outra história. Os lugares e as falas apresentam
correspondências e é fundamental saber quem fala e o que fala.
As constantes referências ao “mercado” são indicativas de que se está diante de
momento específico no qual várias expressões musicais são registradas e destinadas a
diferentes públicos. Configura-se, assim, um meio ávido e inclusivo (Segato, 1999:241),
capaz de recriar o constituído no mundo secular ao incluir, ao ressignificar e ao redefinir os
empreendimentos e os modos de participação religiosa e de manifestação de fé (Brandão,
2004). Com isso, entra em cena outra concepção de sagrado e de existir religioso, sendo
também mediada pela calculada e objetiva ação de produtores voltados a abastecer fiéis e
pastores com bens e serviços. Estaria resolvida a tensão entre religião e mercado? Quem
sabe?
Os fazeres independentes e institucionais podem ser complementares, paralelos ou
opostos, mas há a procura por reconhecimento e, para tanto, busca-se a Bíblia e ações
consideradas adequadas a ela para as combinações realizadas. Desse modo, foram
apontadas as especificidades, as combinações, as tensões integrantes dos momentos, dos
interesses e dos arranjos. Com eles, são visíveis as concepções de “mercado” e “mercado
gospel”.
O capítulo seguinte amplia a abordagem da designada “música gospel”,
especificamente da black music gospel. Será apresentada a “festa” como iniciativa musical
e interessante para a atuação de profissionais e atração de fiéis. Portanto, saber quem são
seus organizadores, como concebem o evento em sua especificidade (como dimensão
religiosa e de entretenimento) e o que fazem serão alguns dos pontos contemplados.

93
Capítulo 2

“Derramar o bálsamo, fazer o cântaro cantar” 73

No meio evangélico do Rio de Janeiro, ocorrem atividades organizadas por leigos


com vistas a executar canções e explorar o tempo livre. Elas circunscrevem via de
participação, de integração entre os envolvidos. Tudo isso é realizado ao redor da
elaboração, da produção e da execução da black music gospel. Esta é apresentada e
consumida em algumas atividades formadas por leigos, artistas e ouvintes. Vigora um fazer
independente, cujas realizações transcorrem a partir dos objetivos e das relações
estabelecidas por aqueles encarregados da produção: musical, fonográfica e de eventos.
Conhecida pelos termos "festa gospel", "baile gospel" ou “festa” – sendo esta última
designação a mais corrente entre os envolvidos; a reunião se destaca pelas experiências
sonoras, pela exploração de tecnologias e pelas interações entre adeptos de diversas
denominações evangélicas (históricas, pentecostais e neopentecostais) e os não evangélicos.
Trata-se de encontro interdenominacional no qual ocorre o destaque de diversas canções e
de artistas.
A “festa”, por seu traçado, consistência, estrutura e organização, viabiliza a atuação
de grupos com diferentes propostas e pode evidenciar as tensões entre religiosidade,
política e entretenimento.
As atuações demarcam bens e serviços e apontam para complexo arranjo, por busca
de sucesso, por relaxamento, por participação religiosa. Resulta disso certa associação
nutrida por efusiva voluntariedade, porém pode revelar algo também sobre a produção
musical e fonográfica.
A black music gospel e a “festa” colocam algo: uma instabilidade. Tal é possível
diante do considerado próprio das igrejas: suas verdades, seu esquema de entendimento. A
“festa” seria, como definiu uma adepta do encontro, algo “contra o tradicionalismo”. Um
organizador diz ser “espaço de resgate”. As duas posições revelam as noções em trânsito,
instáveis por suas ações, por seus entendimentos e marcadoras da peculiaridade do

73 Gilberto Gil – “Palco”, faixa 14, CD Unplugged.

94
empreendimento. Uma delas é o destaque dado às expressões musicais, principalmente as
componentes do “Atlântico negro” (Gilroy, 2001: 15 e 38) com a finalidade de fornecer aos
investimentos uma feição contemporânea. Assim, há combinações entre música,
entretenimento e sagrado e, por sua vez, permitem a incorporação de temas como religião,
política e cultura.
Aqui serão explorados alguns pontos a fim de compreender como a black music
gospel e a “festa” dialogam com as questões, com os valores, com as ações e as
organizações vigentes. Serão vistos os grupos organizadores; as relações estabelecidas e,
assim, apontar-se-á os organizadores como mediadores religiosos e culturais porque
oferecem bens e serviços e têm posicionamentos entre os fiéis e o religioso. Além disso,
será oferecida uma descrição da “festa” e apresentados os objetivos para sua formulação.

Surgimento das equipes e promotores

Conforme foi explicitado, a black music gospel e a “festa” são elaboradas,


organizadas e promovidas por grupos formados por quem possua algum conhecimento em
organização de atividades e de tecnologias sonoras. Denomino essa associação pelo termo
equipe. Os integrantes são aqui denominados promotores e são os possuidores de
conhecimentos e com eles agem e articulam os empreendimentos.
Estive presente a algumas reuniões e entrevistei vários de seus promotores e
freqüentadores. Durante cerca de 24 meses, compareci aos eventos e visualizei sua
organização. Pude identificar a existência de uma rede, cujo fluxo é intenso por possuir
grupos com propostas musicais sem exclusão da religiosidade. Tudo pode ser desfeito ou
ser submetido a rearranjos com outras equipes e/ou componentes situados ou não no meio
evangélico 74. Observei os trabalhos de três equipes e outras iniciativas; conversei com seus
integrantes a fim de saber mais sobre suas formações.
Cada equipe apresenta um núcleo de componentes voltado a conceber, organizar,
promover e executar as reuniões. São necessários direcionamentos técnico, empresarial e
administrativo, haja vista as exigências, como conhecimento de repertório musical e outros

74 Certa vez, Alberto, um freqüentador de “festa”, distribuía panfletos na portaria de um clube no bairro de
Irajá. Soube por ele que estava começando a organiza uma “festa” em bairro vizinho e, para tanto, contava
com o apoio dos integrantes de um grupo já estabelecido.

95
técnicos como locação de imóveis, equipamentos de som e apoio logístico. Estes grupos
também devem interagir com empresários, com líderes religiosos, com artistas e
convidados com vistas a constituírem apoio para a viabilização e/ou execução de
atividades.
Além disso, há outro círculo formado por alguns voltados a atividades distintas
como, por exemplo, encarregados do controle da reunião, da bilheteria (normalmente o
preço do ingresso é R$ 5,00), de filmagens e de fotografias. As tarefas podem ser divididas
entre os componentes do núcleo ou em parte atribuída a alguém com os quais mantenham
relações sociais. Nas equipes investigadas, não foi identificada a existência de uma
liderança a qual os demais devam se submeter. Como artistas – cantores e DJs – todos são
reconhecidos entre os concorrentes e os freqüentadores, dirigem-se aos encontros cientes
do talento, dom e compromisso, vistos como demarcadores de seus trabalhos e também o
do grupo.
Foram investigadas três equipes em atuação na cidade do Rio de Janeiro e voltadas
a promover “festa”, produzir canções e discos. Serão vistas as composições, propostas e
atuações das equipes Gospel Night (GN), Gospel Beat (GB) e Soul de Cristo (SC). Elas
foram selecionadas porque apresentam propostas peculiares, atuam há mais de cinco anos e
apresentam desenhos variados. Além disso, podem destacar, além do entretenimento, temas
como a desigualdade social e a percepção de ser negro no meio evangélico.
O tipo de encontro aqui descrito teve início em fins da década de 1990, porém há
imprecisão sobre quem primeiro o teria produzido. Alguns atribuem a uma equipe em
atuação e a um pastor, porém a relevância não está em encontrar o fundador, mas destacar
as articulações, as forças, as relações de trocas, as negociações e os limites estabelecidos
para a organização da execução musical.
Sobre o início da “festa”, Manga, um de seus precursores, antigo pastor da Igreja
Renascer, diz ser a estrutura por ele utilizada propriedade da igreja como, por exemplo,
local e equipamentos. Logo depois, mudou de denominação, porém havia outro dirigente
empenhado em trabalho semelhante, no município de Duque de Caxias, na Baixada
Fluminense, também da Igreja Renascer. Tratava-se do início de uma das equipes
acompanhadas por mim: a Gospel Night (GN).

96
As "festas" da GN são produzidas por Charles, Francisco JC e Marcelo 75. Os dois
primeiros foram entrevistados por mim, em momentos distintos. Todos preparam a reunião
e o programa em emissora de rádio. Charles, negro 76, 30 anos de idade, mora em Jardim
América, área da Leopoldina, tem ensino médio completo e é proprietário de uma empresa
de projetores para eventos e empresas. Era da Igreja Presbiteriana, foi para a Igreja
Renascer e, depois, para a Metodista. Francisco, como já citado, é casado, negro, tem
ensino médio e é morador do bairro da Penha, na região da Leopoldina. Era da Assembléia
de Deus e foi para a Igreja Renascer, onde exerce atividade no grupo de "louvor" 77.
Atualmente divulga o CD solo com canções de sua autoria. Marcelo, antigo DJ de eventos
não evangélicos, converteu-se à Igreja Renascer e foi para a Igreja Restauração e Vida; tem
mais de 30 anos de idade, ensino médio completo, morador de Irajá e é representante de
uma empresa 78.
O grupo também possui um programa de rádio, veiculado nas tardes de sábado, na
Manchete FM 79, e segue o modelo da "festa": muita música, brincadeiras e premiações.
Além disso, dois CDs foram lançados e contém (re) composições (“remixes”); suas faixas
registram composições de cantores e grupos musicais e também dos componentes da
equipe. O primeiro CD foi produzido por ela e a distribuição feita pela mesma empresa na
qual a equipe adquire CDs e DVDs utilizados em suas iniciativas. O segundo CD, também
de produção e distribuição independentes, veicula alguns dos estilos tocados na “festa” e é
composto por remixes, algumas faixas de canções de outros cantores e grupos musicais.
Os componentes do grupo GN e os materiais de propaganda divulgam tudo ter
acontecido a partir da organização do show de um cantor de rap - integrante do cast da
gravadora Gospel Records (GR) 80, cujo trabalho visa propagar o cristianismo. Um dos
fundadores da GN conta que, ao término da apresentação do rapper, o grupo percebeu a

75 Ver: www.gospelnight.com.br, acessado em 15/02/05


76 As designações cor e origem aqui registradas, também atribuídas aos demais entrevistados, incluindo os
freqüentadores, decorrem de autoclassificação. Em sua ausência, a autora absteve-se em designar a cor do
depoente.
77 Conforme entrevista para o informativo e-black, ano 2, 10º edição, 04/2004, p.03.
78 Conforme depoimento disponível em www.louvor.net, acessado em 11/08/04
79 Rádio de propriedade da Igreja Renascer em Cristo, localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro.
Entre 2003/04, o grupo deixou a Manchete FM e foi para a Nossa Rádio FM, propriedade da Igreja
Internacional da Graça de Deus, fundada em 1980, no município de Duque de Caxias. Depois retornou à
primeira emissora. Ver: www.ongrace.com, acessado em 27/04/05.
80 A Gospel Records está ligada à Igreja Renascer em Cristo e sua ênfase está na musicalidade e tem
investido em cantores e na formação de grupos musicais. Ver: Siepierski, 2001.

97
ocorrência de conversões. Diante disso, e com o apoio do pastor local, foi decidido: "seria
importante existir mais eventos evangelizadores como aquele na cidade do Rio de Janeiro,
pois, até o momento, nada existia com aquele formato animado, descontraído e sincero para
os jovens" 81.
A equipe passou a realizar periodicamente as reuniões em diversas igrejas da
denominação. Logo teve a produção de programa de rádio, na emissora da Igreja Renascer,
e isso contribuiu para aumentar o campo de divulgação. Segundo a equipe, a idéia é colocar
“um ritmo dançante e mantendo as mensagens, para que as pessoas possam dançar e
receber ministrações através das mesmas (remixes), músicas nacionais e internacionais,
fazendo uma programação jovem e divertida" 82. Depois a equipe começou a atuar em
Jacarepaguá, ainda na Igreja Renascer, cujo dirigente instituiu o “Espaço Gospel Brasil”
com a finalidade de dar prosseguimento ao empreendimento iniciado no município de
Duque de Caxias 83.
Como foi visto, o percurso de construção de associação revela a estratégia de
pertencimento, de salvação ou de acesso ao sagrado. O arranjo dependeu de relações e de
negociações com certa liderança de uma agência institucionalizada. Com a iniciativa, o
pastor tinha a freqüência do templo ampliada, tornava explícito o vínculo entre ele, os
promotores e os adeptos: a possibilidade de salvação. Isso era constituído a partir do uso
dado ao tempo livre, tempo de construção e de reconstrução de relações sociais (Brenner et
al, 2004).
O início e a manutenção da atividade revelavam a relação de troca entre o grupo de
leigos e a liderança local com marcada ascendência sobre aqueles, pois o pastor tinha o
domínio da estrutura da igreja. Ele indicava ser o evento produzido com a finalidade de
atuar entre os “jovens”; assim, a iniciativa, o apoio recebido e o resultado alcançado
apontavam ter o acordo encontrado meio adequado por ultrapassar o interesse dos
envolvidos: agir, pregar e agradecer ao divino. O sucesso da equipe é atribuído ao
“trabalho sério” e também por divulgar a palavra de Deus - com a finalidade de impedir a

81 De acordo com texto de divulgação da equipe Gospel Night, recebido em jan/2004; também disponível em
www.gospelnight.com.br, acessado em 15/02/05
82 Idem
83 Idem.

98
dissolução do laço entre o fiel e o divino. Isso poderia ocorrer com a procura por diversão
e, portanto, com o perigo em conhecer atrações facilitadoras do afastamento.
Então, a integração seria em tríplice registro: entre os freqüentadores, entre os
promotores e as igrejas e, por fim, entre eles e Deus. Como diria Mauss (1974: 62-63), ao
analisar a dádiva, os homens “agem apenas enquanto representantes de espíritos. Pois,
nesse caso, essas trocas e esses contratos arrastam em seu turbilhão não apenas homens e as
coisas, mas os seres sagrados que são mais ou menos associados a eles”.
Os idealizadores da GN afirmaram ter o meio local, pertinente ao universo da Igreja
Renascer, incentivado a atividade que obteve êxito entre leigos e certos dirigentes,
principalmente no município de Duque de Caxias, pois prestaram apoio. Enquanto o
dirigente ficou na região, o grupo continuou agindo. Depois houve sua transferência para
outra igreja localizada na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Todos o acompanharam
e a “festa” continuou a ser realizada. Porém, isso não permaneceu por muito tempo, haja
vista a lógica institucional não compreender a longa estada de um dirigente em uma igreja,
com o quadro alterado periodicamente. Novamente, o pastor envolvido na atividade foi
transferido e, assim, deixou de realizar a reunião nas dependências do templo. Deu-se o
deslocamento do grupo do solo denominacional, próximo ao sagrado, para clubes e também
"casa de festa" 84.
A passagem das dependências da igreja para clubes e similares tem explicações.
Teria resultado com a cobertura da imprensa que atraiu significativo número de
interessados. Então, para preservar as dependências e os equipamentos, a opção foi
transferir para outro âmbito. Outro ponto apresentado seria a procura por um lugar de fácil
acesso.
Estas poderiam ser as únicas explicações, mas há outra. Ela aparece em diversos
depoimentos coletados. Vejamos. É dito ter a equipe obtido divulgação e a atividade foi
transposta para outro espaço. Alguns entrevistados afirmam que diversos pastores não
receberam satisfatoriamente o empreendimento musical. Um promotor da GN diz que, com
o tempo, o projeto adquiriu reconhecimento de algumas antigas e recentes igrejas
evangélicas. Deixar de realizar a reunião sob a proteção da igreja exigiu nova articulação,

84 Termo aplicado para designar o local alugado para a realização de aniversários, casamentos e outras
atividades, distinguindo-se dos clubes, entre outras coisas, com a inexistência de instalações e atividades
esportivas.

99
não somente dentro da denominação, mas com outros grupos religiosos presentes no meio
evangélico. Assim, deu-se a busca por crédito e, para o empresário da GN, isso exigiu
construir eventos para execução musical e para a dança sem ser visto como “bagunça”. A
equipe passou a se apresentar em outras cidades ou igrejas e, assim, compor um momento
de suas programações. Tudo isso formava um meio de participação e sociabilidade, cujo
objetivo seria impedir a circulação em outras crenças ou a saída da igreja. Diante disso, a
iniciativa seria vista como “um trabalho sério”, realizado durante o ano, para oferecer
evento capaz de romper com a rotina do serviço religioso e estender mais ainda a
religiosidade sobre o tempo livre dos fiéis.
A oposição entre “bagunça” e “trabalho sério” indica uma tensão proveniente de a
“festa” ser algo perigoso (Douglas, 1966). Essa condição era auferida com a oferta de
conduzir a um estado de êxtase, de valorização do corpo e não da razão. O perigo estaria
em tal reversão, em expor o meio religioso ao “mundo”, ao colocado em separado em
virtude de certa organização (Leach, 1983:178, 179). Somente a apresentação da “festa”
como “trabalho sério”, apesar da descontração promovida, poderia alterar sua feição e
posição diante das forças institucionalizadas e representadas por sacerdotes legitimados
(Bourdieu, 1992).
A “seriedade” deveria ser evidenciada e tornada própria daqueles agentes
encontrados na esfera da organização, não representantes do quadro eclesiástico, mas que
se interpõem entre os fiéis e os pastores. Em posição intermediária, desenham suas ações
como integrantes de uma prática não definida por divertimento – apesar de defenderem a
alegria como componente litúrgico, e sim de intenso trabalho para a realização. Note-se,
aqui, que o “trabalho”, na verdade, é algo comum também entre os encarregados do preparo
e execução de festas em outros meios religiosos (Ferreti, 2001).
As iniciativas não têm por marca somente o entretenimento, pois os promotores
estão voltados a ações mais racionalizadas com a finalidade de constituir a “festa”. Assim,
ocupam-se com o aluguel de equipamentos, com a execução de projeto fonográfico, com a
divulgação e distribuição de CDs e contratação de seguranças. As músicas e os filmes
exibidos podem ser adquiridos a partir de circuito formado por amigos em viagem ao
exterior ou podem ser adquiridas em empresa sediada no centro do Rio de Janeiro e
especializada em produção e comercialização de CDs e DVDs. Quanto aos rendimentos de

100
bilheteria e de bar não obtive informações consistentes, não sendo possível definir se o
clube fica com toda a renda do bar e/ou da bilheteria. Contudo, é acordada a não
comercialização de bebida alcoólica; já a venda de materiais promocionais da equipe - CDs,
camisetas e chaveiros - parece ficar sob a responsabilidade do grupo.
A equipe Gospel Beat (GB) surgiu em 2000, e é formada por L´Ton, DJ W e Nega,
os três foram entrevistados por mim. A ênfase está na evangelização, porém consideram
inovar por não destacarem os presídios e as favelas, como outros evangelizadores,
afirmando atuarem entre a "galera black”. Indicam a música como elemento principal, com a
qual é possível construir um “exército” capaz de atuar por meio da música em um segmento
populacional, visto como diferente não pelo âmbito da moralidade, mas devido à cor.
L´Ton é gerente de uma empresa de consultoria, localizada no centro da cidade do
Rio de Janeiro; morador de Vila da Penha, área da Leopoldina, casado, negro, cerca de 25
anos de idade, ensino médio completo, é oriundo de família batista (seu pai era pastor e a
mãe integrava o coral da igreja no bairro de Madureira). Atualmente, está na Igreja
Internacional da Graça. Como produtor de “festa”, L´Ton também é conhecido como O.S.K
e é ligado ao site “os Karas”, especializado na divulgação de eventos de “música gospel”;
além disso, assina como “Visio”, quando produz cantores não evangélicos e evangélicos 85.
DJ W é funcionário de um condomínio na Zona Oeste, tem o ensino médio
completo, 25 anos de idade, negro, casado, morador de S.J. Meriti, Baixada Fluminense.
Converteu-se há mais de 10 anos à Casa de Oração, juntamente com a sua mãe, quando
residia em Santa Cruz, Zona Oeste. A equipe passou a contar com a participação de Nega,
prima de L’Ton, também de família pertencente à Igreja Batista, cerca de 30 anos de idade,
solteira, ensino médio completo, secretária de consultório dentário, no bairro do Méier,
moradora de Olaria, e filiada ao Projeto Vida Nova de Irajá (PVNI). Antiga freqüentadora
de "festas", organiza eventos em sua igreja ou fora dela. Com o tempo, fundou a Nega
Produções, empreitada cujo objetivo é organizar reuniões para evangelizar a partir da black
music.
Como Nega, os integrantes da GB e alguns da GN tiveram iniciação musical nos
grupos familiares e nos corais de suas igrejas. Essa participação é apresentada como
importante para a formação musical devido ao aprendizado de música sacra e canções

85TR – “O ‘Proceder’ dos pioneiros do rap gospel carioca....” Disponível em www.enraizados.com.br,


acessado em 22/06/05.

101
populares como, por exemplo, as possuidoras de referencial formado por igrejas
evangélicas integradas por afro-americanos. Entre os depoentes, o coral parece ser um
eficiente canal de recuperação da musicalidade entre os fiéis que atuam como, por exemplo,
instrumentistas, regentes ou coralistas (Novaes, 1985b: 59-72).
A GB realiza suas reuniões em locais alugados como "casas de festa" ou boates
existentes nas regiões de Irajá e Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Seu início está
relacionado ao grupo REP - Radicalizando, Evangelizando e Politizando 86, também criado
por L´Ton, em 1998, com a proposta de evangelizar por meio do hip-hop. Os integrantes da
GB falam que a equipe resulta "da união de vários talentos diferentes com objetivo único:
levar o evangelho de Deus através da black music gospel e suas vertentes: soul, r&b, hip-
hop, blues, jazz e spiritual etc" 87. Distintamente da elaboração da GN, a atuação da equipe
é definida a partir de certas expressões musicais com as quais busca caracterizar os eventos
organizados e, para tanto, realiza associações que ultrapassam o cenário religioso, tanto
com o REP, quanto com a GB.
L’Ton e W mantêm contatos com grupos musicais de cunho social em atuação fora
do meio evangélico e também participam ou formulam outras atividades 88. Além disso, os

86 Recentemente, ocorreu uma alteração no nome do grupo com a substituição da palavra “politizando” por
“profetizando”, ficando, então, Radicalizando, Evangelizando e Profetizando (REP).
87 Informação disponível em www.gospelbeat.com.br.
88 Recentemente W, um dos DJs entrevistados, apresentou-se com o grupo DuGhettu (cuja ênfase está no rap,
no grafite e na dança - ver: www.dughettu.com.br, acessado em 24/02/05), na festa de lançamento do DVD
da cantora Sandra de Sá (conforme e-mail: " a prévia rola hoje", recebido em 17/03/04), que possui um
programa voltado à divulgação da chamada música preta brasileira – mpb. Também L´Ton participa do
DuGhettu e exerce a atividade de diretor técnico do grupo; em 2004, dirigiu a atividade na Universidade
Estácio de Sá, com exibição de filmes, presença de atores para debate com o público e depois a apresentação
da banda88, tendo as participações de integrantes do Afro Reggae ("Hip-hop em 2 tempos -Banda Dughettu.
Revista Casa de Cultura, ano III, n88 35, set..2004, p.03 e 04.). Além desses, estiveram presentes diversos
rappers que, juntamente com o vocalista do Dughettu, desenvolveram improvisações e rimas ao vivo a partir
de temas apresentados (essa modalidade do hip hop é denominada de freestyle) como a violência, a cidade e a
educação. Também foram exibidas as composições do grupo que não enfatizam somente a violência e a
desigualdade racial, sendo também privilegiados outros temas. Foram realizadas releituras de músicas de Lulu
Santos, Djavan, Max de Castro e Sandra de Sá, reconhecidos cantores brasileiros. No local havia em torno de
60 freqüentadores, entre 18 a 35 anos de idade, oriundos da Zona Sul, da Zona Oeste, Norte e de Vigário
Geral, subúrbio da cidade. O público era, em sua maioria, formado por negros, por outros jovens não negros e
também consumidores de hip-hop, demonstrando que essa expressão musical não circula somente entre os
jovens suburbanos e negros. O local de moradia e a cor são dois pontos que permitem iniciar o desenho da
heterogeneidade dessa expressão musical, pois o público pode apresentar distintas posições políticas,
compreendendo o gosto musical, a origem social, a inserção no mundo do trabalho, o que leva ao registro de
círculos distintos em relação a esses consumidores; porém podem ocorrer proximidades entre eles. Um ponto
em comum pode ser a desconfiança que possuem das ações realizadas pela polícia (Novaes, 2001) e, não por
acaso, o hip-hop no Brasil, em sua vertente musical, o rap, direciona críticas à desigualdade social e racial e
também à violência de algumas operações policiais.

102
dois fazem parte do grupo Radicalizando, Evangelizando e Politizando – REP que, por
exemplo, integrou a manifestação Basta! Eu quero paz, promovida pelo Viva Rio (Pinheiro,
2005).
A outra equipe é a Soul de Cristo (SC) surgida em 2003, inicialmente a partir da
reunião entre um empresário convertido, um divulgador musical na cidade e outro
promotor de "festa" na Zona Oeste. Foram entrevistados dois componentes da SC: TR e
Sérgio. O primeiro é técnico em cobrança, evangélico da Igreja Batista, cerca de 30 anos de
idade, negro, solteiro, ensino médio completo, morador da Cidade de Deus, Zona Oeste da
cidade. TR, antigo DJ de hip-hop, participou, juntamente com o cantor MV Bill 89, do grupo
Geração Futuro e de diversas atividades de hip-hop (Gonçalves, 1997). Após uma
temporada em São Paulo, TR fora chamado para escrever no veículo e-black 90; hoje, TR
redige sobre música em um sítio especializado em entretenimento. A partir do
conhecimento adquirido dos circuitos musicais do Rio de Janeiro e de São Paulo, e de sua
vivência religiosa, TR viabilizou a equipe SC, chamando Sérgio para atuar no grupo.
O segundo integrante trabalhava como segurança em uma instituição de ensino, tem
formação técnica em marketing, negro, casado, é morador da Zona Oeste da cidade e
oriundo de família evangélica da Igreja Batista. Sérgio passou a organizar "festa" com a
equipe Gospel Planet, no bairro de Anchieta, local no qual reside. Sérgio contou ter
começado a produzir "festas" em praça na qual havia a presença de vários agrupamentos.
Com o objetivo de estabelecer um espaço de interação, de conversão, e também alterar a
feição do bairro, passou a agir entre os presentes na praça que eram vistos, segundo o
promotor, como pessoas “sem perspectivas”.
Por volta de 2004, Sérgio foi contatado por TR e passou a compor a equipe Soul de
Cristo (SC). Ela acenou com projeto para atingir outras áreas da cidade, pois contava com
trabalho de divulgação e estrutura favorável ao aluguel de clubes ou similares em outros
bairros. Atualmente, Sérgio escreve para o informativo e-black, em uma coluna sobre
“música gospel” e também no site da equipe GB.

89
Trata-se de rapper, também da comunidade de Cidade de Deus, Zona Oeste, participante do projeto
Conexões Urbanas, realizado pelo Afro Reggae. O programa Conexões Urbanas visa proporcionar uma
integração entre as partes da cidade a partir da realização de shows e certos serviços feitos pela prefeitura após
os eventos. Ver: www.afroreggae.org.br, acessado em 12/11/04.
90 Informativo com distribuição gratuita e voltado a temas como saúde, música e política como questões
pertinentes à população e à “cultura negra”.

103
Um dos integrantes afirma ter a Soul de Cristo por finalidade: "primeiro, tirar o seu
próprio auto-sustento; segundo lugar, fazer com que esse auto-sustento possa beneficiar não
só quem faz parte dela, como também nos permita entrar em presídios, nas favelas, fazer
evangelismo em lugares que ninguém faz e deveria fazer". Desse modo, o almejado é
evangelizar, fornecer aos fiéis algo voltado a transmitir “mensagens”, proporcionar
divertimentos e assegurar a autonomia da equipe para ter ação mais abrangente no sentido
de evangelizar e estabelecer pontos de atuação.
A partir de preocupação não restrita ao aspecto comercial, TR entende ser a
atividade da equipe própria para constituir canal alternativo e permitir aos cantores, aos
músicos e aos DJs divulgarem seus trabalhos. Portanto, considera atender a um contingente
não privilegiado por igrejas, por empresas e por estações de rádio. A seu ver, não existe por
parte do empresariado o investimento em artistas devotados às expressões musicais de
referencial não europeu. O trabalho é visto como de importância, porque ultrapassa outro
pautado exclusivamente na transmissão da palavra bíblica. A concepção do promotor é de
que a SC "... tá pregando uma ideologia, mas não tá pregando uma doutrina, uma doutrina
religiosa". O trabalho deve transformar não o pecador, mas o submisso, o excluído, aquele
sem reconhecimento, para, com a audição das músicas, com a apresentação de artistas
negros e, principalmente, de seus testemunhos, adquirir subsídios para a valorização deles e
fiéis considerados negros.
Para efetivar a proposta concebida, a equipe segue a mesma dinâmica das
anteriores: aluga estabelecimentos, equipamentos, contacta colaboradores para cuidar do
controle do local e do encontro – constituindo a área de segurança, e outros para a
realização de fotos e filmagens. Sobre a parte financeira, não foi possível afirmar quem
possui o controle da bilheteria e do bar, no qual são vendidos comestíveis e bebidas não
alcoólicas. Em certa reunião, um dos componentes da SC estava encarregado do controle
do bar e vendia as fichas – pequenos recortes de papel nos quais estariam escritos os
pedidos dos compradores que poderiam ser trocadas no bar por alguma bebida, comestível
ou os dois.
Foram vistas as composições, as redes estabelecidas por cada equipe, e as
participações entre elas. Também há o cuidado com a programação para não sobrepor as
atividades; isso configura alternativas aos freqüentadores, aos organizadores e aos artistas.

104
Os promotores e os artistas vão à “festa” de outra equipe, podem cantar ou se exibir como
DJs; há os exemplos do DJ Marcelo, já presente nos eventos da GB, do cantor JC,
componente da GN, participando em um empreendimento da SC. Também o DJ W e o
grupo REP têm registrado presença em "festas" programadas por outras equipes. O
patrocínio também fortalece a relativa não concorrência, pois um proprietário de loja no
Mercado Popular, na rua Uruguaiana, aparece como incentivador dos eventos,
principalmente os realizados pela GN e pela SC. Ocorre de as redes sociais dos membros
da equipe também apontarem para atividades fora do meio religioso. Esse é o caso da SC e
do convite dirigido à GN para participar de comemoração no Portelão, em Madureira 91.
Durante o meu trabalho de campo, não via tantas distinções entre as atividades das
equipes. Reconhecia diferenças entre elas, sabia que uma investia mais em suas redes
sociais com a finalidade de ter presenças de cantores; outra privilegiava o trabalho de seus
componentes e também em sua rede para ter a cooperação de DJs evangélicos; uma terceira
também tinha no trabalho de seus componentes uma atração. Uma, apostava mais na
exibição de clipes, e outras nem tanto. Enfim, tudo estaria mais no aspecto operacional, mas
isso não era tornado visível em suas iniciativas. No entanto, deparei-me com outras
diferenças ao prestar atenção nas redes construídas. Isso ficava evidente nos depoimentos e
nos materiais de divulgação, o que tornava a “festa” algo mais complexo. Sua observação
descortina um mosaico de forças, intenções, combinações e concepções evidenciadas nas
relações estabelecidas dentro e fora do círculo de “festa”.

Locais - buscas e diferenças

A equipe GN é a mais antiga e atua na região de Irajá há cerca de sete anos,


alugando clubes e locais apropriados. Atualmente a GN tem realizado a "festa" no Irajá
Atlético Clube – IAC, fundado em 1912 92. São diversas iniciativas ocorridas no clube e ele
parece obter parte de sua renda com o aluguel de dependências para curso de informática,
para academia de ginástica, para grupos de pagode, de samba e de bailes. O IAC está
localizado na principal rua do bairro, ladeado por uma igreja evangélica e uma residência.
Diante do prédio, há uma ampla calçada – cerca de 4 metros de largura por 15 metros de
91
“Festa de 1º ano do e-black!”, informativo e-black, ano 2, 12ª edição, junho de 2004, p.08.
92 Ver:http://agrocon.sites.uol.com.br/index2.htm , acessado em 24/02/05.

105
extensão – usada como estacionamento. Logo há um portão por onde o público entra e, ao
lado, localiza-se a bilheteria.
O muro e a parede oposta formam um corredor de acesso à parte interna. Nesta há
ampla área e uma piscina localizada à direita; na lateral esquerda, ficam o muro e alguns
bancos; mais adiante, encontra-se o prédio com dois pavimentos. No térreo, são
encontradas algumas instalações e uma escada de acesso ao segundo andar, no qual as
atividades são realizadas. O salão é amplo, conta com pilastras de sustentação e janelas
responsáveis pela concentração de público num certo ponto do salão, principalmente, no
período do verão – quando facilmente a temperatura ultrapassa 40 graus. À direita da
escada, fica o palco e, do lado oposto, estão o bar e os banheiros.
A GN também utiliza uma "casa de festa", localizada na mesma rua na qual está
situado o clube. Ela ocupa uma quadra próxima a um posto de gasolina e a um posto de
saúde. O prédio conta com um pavimento e tem uma área externa usada como
estacionamento; sua entrada apresenta uma varanda e tem ao lado uma bilheteria e logo
uma porta de acesso. Entre a portaria e o salão, há um pequeno espaço no qual ficam os
seguranças e uma catraca. A área interna conta com o registro de colunas e o palco fica no
meio, mas encostado na parede esquerda, e o bar do lado direito. Por fim, na lateral do
salão ficam as mesas e as cadeiras.
No mesmo ponto, a equipe SC também efetivou suas atividades; tem igualmente
atuado em um local chamado Point Gospel, em Nova Iguaçu, área metropolitana do Rio de
Janeiro, especificamente na via Dutra – rodovia que liga os estados do Rio de Janeiro e de
São Paulo. O local tem área extensa e devassada, pois as mesas e cadeiras ocupam um
plano de certa altura, ficando visíveis a quem passa pela estrada. Segundo TR, a opção
pelo novo local foi graças ao fato de ele já ter sido dedicado a encontros efetivados por
grupos e por denominações evangélicas. Tirando a provável inserção da SC em Nova
Iguaçu, a "festa" costuma ocorrer em determinada área da cidade já reconhecida por
promotores e pelo público.
Sem ter apoio e vinculação direta com o meio evangélico, algumas das iniciativas
são organizadas com o incentivo de empresários como, por exemplo, loja de discos
localizada no centro da cidade, há lojas de roupas, lan house (local para jogos virtuais),
sites de informação e/ou entretenimento. Apesar de tais ligações, os promotores não se

106
vêem como empresários e, por sua vez, suas atividades nem sempre são tomadas como
empreendimentos demarcados por objetivos mercadológicos. Todos ressaltam a
evangelização, porém alguns promotores são explícitos quando afirmam objetivar ganhos
materiais e assegurarem a sobrevivência com canal diferenciado para a recepção de suas
músicas, de seus eventos e suas imagens – os componentes da SC e da GB deixam isso
mais evidente, enquanto os da GN consolidam suas inserções como DJs. Além da
proximidade com a esfera religiosa, há equipes com participação de pastor ou diácono com
a finalidade de realização de oração.
No entanto, não existe exigência de restrita formação teológica e/ou ocupação de
cargos entre dirigentes de igrejas, embora relações com estes sejam buscadas e mantidas. A
equipe GN, ao iniciar as atividades, tem sua história caracterizada por relações com
representantes da Igreja Renascer; a SC e a GB também trazem momentos constitutivos
onde seus membros estabeleceram contatos específicos para as propostas efetivadas. A
necessidade de alocação em postos de liderança pode inscrever posições ambíguas, capazes
de reunir características de empresário e também de líder religioso. As relações
constituídas não contemplam somente as áreas religiosa e empresarial - com vistas a auferir
apoio voltado à efetivação do encontro. Conta-se com arranjos e rearranjos com grupos,
artistas e entidades incentivadoras de projetos e valorizadoras da arte. As iniciativas
apresentadas colocam a inscrição de novos postos de liderança e inclui a busca por
profissionalização. Músicas são elaboradas e apresentadas e diversas relações são
empreendidas com empresas, com igrejas, com grupos musicais, com artistas e com
profissionais ligados ou não ao meio religioso. Assim, existe formação para a apresentação
de canções e de artistas.
A atividade musical e seus organizadores introduzem algo distinto da rotina
religiosa; isso pode ficar evidente quando comparados com outras iniciativas como, por
exemplo, o encontro da “juventude”, realizado na Primeira Pib da cidade do Rio de Janeiro;
também relaciono o Explosão Gospel (EG) e, por fim, o destinado ao “louvor” como o
Encontro Nacional de Louvor Profético (ENLP). Os serviços citados apontam para a
vigência de segmento capaz de receber e de consumir as músicas e outros bens elaborados
em conformidade com as convenções em vigor (Becker, 1971). Entretanto, há uma
diferença; ao contrário dos demais eventos citados, a “festa” não é uma atividade destinada

107
e capaz de mobilizar grupos familiares. Pode ser possível encontrar uma dupla de irmãos ou
primos, porém o arranjo predominante é aquele formado por laços de amizade e surgidos
em ambientes de vizinhança, de escolas, de igrejas ou na Internet. Pode-se até visualizar
algum “adulto” envolvido na condução de freqüentador, porém termina por ir embora ou
permanece sem interagir com o grupo formado. Para os responsáveis, a “festa” constitui
estratégia para a conversão e a manutenção de membros; isso ocorre mesmo que seja
aparentemente conflitante. Diante disso, fica a pergunta: o que é a “festa”?

Uma noite, uma ‘pista’ – procuras

A relevância do tipo de encontro aqui indicado é sublinhada porque integra a


atividade de elaborar e apresentar canções. Também é observada a realização de arranjos e
combinações entre artistas, profissionais e, por vezes, representantes do quadro de
dirigentes religiosos. Pode-se apontar para o acréscimo na oferta e procura por vias de
experiência de fé. Isso pode ocorrer a partir da adesão, da conversão religiosa ou, então, da
capacidade de leigos combinarem “culturas” e, com isso, fazem surgir bens ou modos de
lidar com a fé e com a crença.
Este estudo, de certa forma, também é uma procura. Trata-se de seguir certas pistas
com a finalidade de compreender as operações feitas, entrelaçadas e definidoras de
possibilidades de fé, de crença e de religiosidade na contemporaneidade.
Durante minha permanência no campo, alguns pontos foram estabelecidos.
Primeiro, existem múltiplas relações, tensões e concepções para a organização de reuniões
capazes de atrair centenas de fiéis e prováveis seguidores. Em segundo lugar, há específica
ordem comum aos organizadores; terceiro ponto, há amplo uso de ações e palavras por
parte do grupo promotor ou colaborador; quarto ponto, trata-se de atividades viabilizadoras
de experiências individuais e coletivas. Se a “festa” equaciona tudo isso, o que ela possui?
O que ocorre nela?
A descrição é sobre o evento promovido pela equipe GN, porém ela pode ser
exemplar mesmo diante de variações colocadas por outros grupos – algumas são
contempladas mais adiante. A intenção é relatar o efetuado em uma noite, explanar sobre a

108
peculiaridade da “pista” e, por sua vez, entender aquilo constituído para promover canções
e artistas. Vejamos.
Outubro de 2003, noite de sábado, 1º encontro de DJs no Irajá Atlético Clube –
IAC, cidade do Rio de Janeiro/RJ. Cheguei ao local (estava com Geraldo, que me
acompanhou em alguns momentos, auxiliando-me diversas vezes durante o trabalho de
campo), por volta de 23 horas, e ficamos na calçada do clube cerca de uma hora.
Conversamos com alguns freqüentadores a fim de saber quem procurava o tipo de reunião.
Havia a presença de pessoas de diversas faixas etárias, mas predominava aquela
compreendida no intervalo entre 15 a 25 anos de idade. Boa parte dos presentes formava
grupos (pequenos ou médios, ou seja, era possível encontrar formações com três, cinco, dez
ou mais componentes), organizados ali ou já constituídos previamente. Ao conversar,
descobri laços prévios e, assim, integrantes podiam ser irmãos, primos, vizinhos, amigos de
igrejas. Havia também muitos conhecidos de ambiente virtual ou apresentados por amigos
em comum. Então, chegavam de ônibus, carros particulares ou lotações; vinham de bairros
próximos ou de outras cidades do Grande Rio.
Durante o período no qual ficara do lado externo, foi possível ouvir as músicas,
tocadas por algum DJ; depois, entramos no clube. O encontro acontecia no segundo
pavimento. Ao subir os degraus, deparamo-nos com um ambiente com pouca iluminação,
algumas luzes especiais e uma névoa no ar. Havia pessoas paradas próximas às janelas e à
escada de acesso, e muitas no salão. No palco, entre as caixas de som, um DJ atuava e
tinha a seu favor uma potente aparelhagem sonora. Poderia haver naquela noite cerca de
300 freqüentadores aglomerados no meio do salão e depois dispersos, voltando a ocupar a
pista de dança, o bar, a escada e demais dependências. Em cada edição, o número de
presentes variava no decorrer do evento, dependendo de quem se apresentasse como DJ ou
cantor.
Chegamos e estava em andamento a execução do sermão da noite, acompanhado
por efeito sonoro. A fala levou alguns minutos, mas pude pegar parte da etapa e ver a
atuação do pregador e a do público. Francisco JC já estava adiantado em sua explanação,
marcava sua especificidade, pois aparecia como apresentador, como animador de público,
fazendo-o alterar sua conduta. Diferentemente do DJ, cujo recurso é formado por
equipamentos e músicas, o pregador fazia o público passar da excitação, provocada pela

109
música e pela dança, para um comportamento um pouco diferente, em evidente
demonstração do carisma como elemento importante para o empreendimento realizado.
Naquela noite, a intervenção de Francisco JC contemplava um efeito sonoro
fundamental, juntamente com a escuridão do lugar, ao controle exercido. Quando
chegamos, ele falava e os presentes reagiam, dando um ritmo ao encontro, pois o pregador
dizia o seguinte: "... Neste local Te adoramos e oferecemos nossas palmas [nesse momento,
crescia a intensidade das palmas, dos assobios e gritos], mais palmas aí" [por alguns
segundos, o público aplaudia, assobiava e gritava]. Ele continuava: " algo sobrenatural vai
começar agora porque você está aqui "[aplausos e gritos], prosseguindo: "Esta noite, com
vocês Gospel Night - tem gente santa do teu lado e você vai entender isso em liberdade.
Com vocês, Gospel Night" [mais aplausos, assobios e gritos].
O efeito sonoro passou a registrar uma voz grave que pronunciava: "prepare-se,
prepare-se ... pressão máxima... agora você está pronto; execução do sistema, execução do
sistema". Naquele momento, a mixagem dava a impressão, pelo menos foi a minha, de algo
a ser realizado em esfera não humana, não terrena (poderia ser sagrada ou no estilo dos
filmes de ficção científica). Então, ocorreu uma contagem regressiva de 10 a zero [ o
público continuava com gritos e assobios em sinal de aprovação]. O efeito prosseguiu com
montagem que lembrava rajada de metralhadora [novamente gritos e assobios]. Francisco
JC apresentou um DJ componente de sua equipe e extraiu mais manifestações de
aprovação: os presentes aplaudiam, assobiavam e gritavam. Depois de outra contagem, feita
por Francisco JC, uma música foi tocada, cuja característica seriam batidas mais
sincopadas.
Tudo foi transformado novamente com os DJs; os presentes retornaram aos
rodopios, aos passos marcados das danças, e ao bate-papo. No salão ou na pista, todos
atuavam em grupo ou individualmente e, assim, tinha-se uma unidade, sem platéias. Todos
dançavam, acotovelam-se, levantam as mãos, giravam o corpo, projetavam-no para frente
ou para trás. As coreografias não eram definidas como expressão de diversão; elas eram um
ato de “adoração” 93.

93 Sobre a dança como elemento de “louvor e adoração”, ver: Coimbra. “A dança no louvor e na adoração”.
Revista Encontro Nacional de Louvor Profético, 2002, nº 05, p. 17.

110
Estudos sobre o fenômeno da festa indicam que ela compreende momentos distintos
e complementares porque envolve cantos, alimentos, danças e sacrifícios fundamentais para
a vida do grupo. As diferenças rituais evidenciam a continuidade do grupo a partir do
princípio de os ritos assegurarem a capacidade de existência, despertando e fortalecendo
um estado diferenciado entre os participantes com a prática de atos comuns reveladores de
sentimentos compartilhados, como também certo estado moral e de confiança (Durkheim,
1989: 363-462). Era o que ocorria ali, no IAC, em Irajá.
Um pouco distante dali, na extremidade do salão, ficava o bar, no qual eram
vendidos comestíveis e bebidas – água, refrigerantes, mate, guaraná. Nessa área, muitos
conversavam, poucos namoravam. Os banheiros eram os responsáveis por movimentos
constantes dos presentes. Além das conversas e tentativas de namoro, notava-se a
preocupação com a aparência e, nesse caso, o banheiro era o local privilegiado para os
retoques após uma sessão de dança – maquiagens, cabelos e roupas; havia a troca de
informações sobre a próxima “festa”, um culto ou show. Além dos freqüentadores, alguns
transitavam, outros utilizavam equipamentos de fotografia e de filmagem; outros
observavam os presentes, não para apreciar e sim com a finalidade de manter o controle.
Tudo poderia ilustrar o momento profano do encontro no qual os interesses terrenos
parecem ser privilegiados e realizados.
Durante a noite houve mais intervalo, também comandado por Francisco JC,
acompanhado por Charles (outro integrante da equipe), que igualmente provocou
participação e interação do público. Isso foi realizado com a escolha de pares para o
desenvolvimento de tarefas, como dançar. Avaliada pelo público, a dupla vencedora
recebeu prêmios como CDs. Do lado oposto do palco, os demais freqüentadores aplaudiam,
assobiavam, procuravam ressaltar o instante. Novamente, como o componente encarregado
das pregações, o momento dos jogos indicava a importância da linguagem para o estado de
exaltação da reunião. Ela era pronunciada por quem fosse consagrado pelo público
(Durkheim, 1989: 68 e 264).
Depois da descrição do ambiente interno, retorno a falar sobre o período e as
conversas mantidas com os freqüentadores. Durante o tempo de permanência diante do
prédio, foi possível observar vários pontos. Do lado oposto ao clube ou contíguo, ficava um
local no qual muitos freqüentadores permaneciam por algum tempo. Lá eram vendidas

111
bebidas, inclusive as alcoólicas, e comestíveis (doces e salgados) e muitos eram atraídos
com vistas ao consumo de alimentos, de bebidas ou simplesmente conversar ou aguardar a
chegada de companheiros. Para lá fomos e permanecemos sentados, tomamos refrigerantes
e observamos a entrada do prédio e da movimentação na área na qual estávamos.
Um conhecido se aproximou e me cumprimentou. Era morador de um bairro
vizinho e costumava ir sempre àquela modalidade de encontro com os amigos e com a
namorada. Eduardo falou-me sobre as "festas", o clima de divertimento e de interação
como de maior interesse; também esclareceu sobre o horário de encerramento, que segundo
ele, costuma ser próximo às 4 ou 5 horas da manhã; isso colocava a importância de
formação de um grupo maior para aguardar o ônibus para o retorno ao ambiente
doméstico. Depois Eduardo avisou da chegada de alguns amigos; despediu-se, foi ao
encontro deles. Permaneceram por mais algum tempo em animada conversa.
Eu e Geraldo ficamos no local; súbito chegou um grupo e os integrantes iniciaram
um bate-papo na mesa ao lado da qual estávamos. Logo depois, perguntei a um dos
componentes se estavam ali por causa da reunião. A resposta foi positiva e a mesma
indagação nos foi dirigida. Porém uma componente do grupo disse não poder opinar, pois
todos estavam ali pela primeira vez. Mesmo assim, perguntei de onde eram; quais suas
igrejas de origem; e de onde se conheciam. As componentes do grupo responderam ser de
Nova Campina - município de Duque de Caxias, próximo à cidade do Rio de Janeiro cerca
de 30 km; souberam do encontro por meio de divulgação em programa de rádio. Este seria
produzido pela equipe responsável pelo encontro da noite. As componentes do grupo eram
oriundas das igrejas Metodista, Assembléia de Deus e Batista, sendo irmãs e amigas,
algumas solteiras, outras casadas; estas últimas teriam deixado os filhos com parentes e
foram, pela primeira vez, à "festa", acompanhadas pelo marido de uma delas.

O poder da “festa”

Ao observar o empreendimento, tive a impressão de ser o momento de oração


indicativo de menor intensidade. Por esse prisma, o entretenimento seria o momento mais
marcante. Isso poderia ser visualizado com as danças, as coreografias desenvolvidas no
salão, as filmagens, as fotografias feitas por integrantes da equipe promotora, o

112
acionamento de luzes especiais e de fumaça. O conjunto dava uma atmosfera encantada.
Não obstante, entendi não ser a visão mais adequada, pois, para os atores envolvidos,
constituiria algo além do mero divertimento. Não haveria um momento religioso e outro
profano. Enfim, os depoimentos coletados evidenciavam ser tais momentos componentes
de um todo entendido - pelo público e por organizadores - como um modo específico de
exercício religioso.
O apresentado até agora evidencia como sentimentos são experimentados e
manifestados em comum, pois os integrantes pareciam compartilhar de uma mesma visão e
ação, o que permitiria ao grupo um modo de reafirmar sua integração. Assim, a diversão
não é a única a ser perseguida; o riso por ele mesmo, como certo estado da vida, não
depende das razões de sua produção. A reunião, a experiência, a comunhão de certos
sentimentos, idéias e ações são, na verdade, ações de renovação do grupo.
Portanto, seja em uma cerimônia tida como estritamente religiosa ou em uma festa,
e há proximidade entre elas, vê-se a promoção de um estado de ânimo caracterizado por
desprendimento, por distanciamento do tempo e das ações ordinárias. As marcas disso são
o riso, as danças, os cantos, os movimentos mais abruptos que, em tal momento,
caracterizam o rompimento das regras, podendo conduzir à transformação. A distinção
entre os festejos populares e as cerimônias religiosas tem a ver com a proporção da
combinação entre a seriedade e o desprendimento da vida séria. Trata-se de manifestações
opostas ao tempo sério e das convicções institucionais (Bakhtin, 1999:89, 97, 191) 94.
Era possível, a partir dessas noções de comunhão e desprendimento do ordinário,
encontrar a combinação resultante de modo de subversão da condução da prática religiosa,
mesmo entre aqueles alterados por manifestações emocionais, corporais e que também
contavam com a presença musical. Havia uma atmosfera peculiar. O som, a projeção de
vídeos no telão, o jogo de luzes e de fumaça eram componentes da construção do
espetáculo sonoro e religioso, contribuindo para o efeito provocado com a participação do
condutor do show ao fazer da oração o clímax da noite. A todo instante, os sentidos eram

94 O autor enfatiza as festas, as comemorações públicas, porém não oficiais (com ênfase no corporal, no
erótico e no material ao invés do espiritual e do ideal) efetuadas juntamente com as nacionais e religiosas.
Assim, as festas religiosas, agrícolas ou particulares colocariam a manutenção de um “tempo alegre” com
jogos, paródias em forma de profecias e de enigmas. Isso apresentava algo novo aos homens ao invés de
confirmar a atmosfera sombria da Idade Média, das determinações escolásticas, eclesiásticas, o judiciário e
suas verdades. Com as festas, havia a paródia dessas instituições, da organização e da visão de mundo
peculiares ao período medieval; assim, o antigo seria submetido à renovação e à transformação.

113
explorados, fosse para fornecer a sensação de entretenimento, fosse para enfatizar o seu
aspecto não profano.
Isso acontecia sem existir interdições, pelo menos de modo explícito, e
determinações das ações praticadas (Durkheim, 1989). Parecia não haver essa preocupação,
pois tudo constituía uma atmosfera possível de ser tida como sagrada, isto é, o encontro não
era composto por uma fase profana e outra não. Todos os momentos constituíam a “festa”,
e eram partes de algo vivido, sentido e pensado como sagrado, conforme será visto no
decorrer do trabalho.
Outro ponto foi o destaque dado ao palco. Nele ficavam os responsáveis pelo
comando do encontro; eles não descem. Lá permaneciam os cantores e os Djs, todos
reconhecidos e admirados. Do palco cantavam, tocavam e falavam aos presentes. Atuavam
de modo a alterar o estado de ânimo de todos, mas isso não necessitava da realização de
milagres, de exorcismos, de discursos pautados nos Livros, mas do desenvolvimento de
“estratégias” e manipulações de objetos para a condução da reunião. (Rivera, 2001:235-
239; Campos, 1997:61-163) 95.
Desse modo, a reunião não seria constituída por leitura bíblica, porém canções,
danças e brincadeiras marcariam o palco como o centro irradiador de uma atmosfera de
celebração e de energia (Amaral:2000: 123-144). Assim, este seria o lugar para ligar os
homens e a divindade, a terra e outra dimensão, pois registraria gestos e objetos
consagrados e fundamentais ao desenvolvimento da cerimônia (Durkheim, 1989:444, 445).
Como o púlpito, o palco coloca no âmbito da reflexão as relações, os objetivos e as
expectativas de leigos e especialistas detentores de certas prerrogativas e que contribuem
para os presentes alcançarem outro estado. Assim, no palco podem estar o DJ, o pregador,
em alguns momentos, o cantor, enfim, todos dispostos ou alternados. Eles devem e fazem
com que os freqüentadores ultrapassem a rotina do cotidiano, mantenham algum tipo de

95 Rivera afirma que nas igrejas pentecostais o púlpito é um lugar de onde emana determinado poder, pois
nele está o pregador que atua no interior da igreja e, portanto, curas, milagres e exorcismos ocorrem a partir
do uso da palavra e monopólio dos momentos e acontecimentos que compõem o culto. Campos, ao focalizar o
neopentecostalismo como um “empreendimento religioso e cultural”, pautado no desenvolvimento de
estratégias de marketing, aponta que o templo compreende um espaço composto por objetos, platéia e
integrantes do serviço religioso, podendo ser entendido como um teatro. O momento do culto registra a
construção do sagrado com a participação de todos os presentes e cabe ao dirigente expressar certa habilidade
e obter recursos materiais como também provocar certo estado emocional.

114
participação com a esfera religiosa. Ao mesmo tempo, podem levar o público a sentir o
contato com o sagrado. Mas não somente eles estão encarregados disso.
Seja no salão, no qual os presentes devem “louvar” e “adorar”, seja em sua
extremidade, é possível visualizar a circulação de um grupo voltado a exercer o controle do
local. Não obstante, não se trata de um mero e raso jogo entre liberalidade e repressão.
Antes de tudo, o controle também ajuda a definir a atividade como não estritamente
profana, demarcada pela simples perseguição do entretenimento. A ação dos profissionais
da área de segurança também constrói a forma a partir da qual a dança, as conversas, o
cuidado com a aparência e a música pontuam as interações orientadas por uma etiqueta.
Esta é, de certo modo, reforçada com a ação de colaboradores designados para o controle
do local e dos presentes. Essa presença e a etiqueta não ficam restritas ao ato de
normatizar/padronizar os comportamentos, mas precisam compor o mosaico de forças
direcionadoras das percepções dos presentes, dos visitantes e do novato. Afinal de contas,
tudo precisa ser, ao mesmo tempo, parecido e totalmente distinto do registrado nos bailes e
nas igrejas 96. Mas voltarei a isso no último capítulo.
Como diz Geertz (1989: 225-277), ao visualizar o pensamento como algo social, os
atos não constituem o mero agir, o simples atuar, porém marcam um modo peculiar de
sentir e viver, onde o realizado deve ser feito conforme as prescrições em vigência. Assim,
pode-se agradar a uma extensa gama de seres – divinos e humanos –, seguindo-se
comportamentos orientados por normas e idéias adequadas. Não somente pela virtude,
porém com alegria e certa estética, promotores, responsáveis pela segurança (o controle de
local e dos presentes), outros colaboradores e, principalmente, os freqüentadores esperam
também agradar a Deus. Contam fazer, manter e ser reconhecidos por amigos a partir de

96 Da Matta (1979) analisa o carnaval, as procissões e as paradas militares, juntamente com as festas e o
cerimonial, aglutinadores da população, a partir de contrastes com as ações cotidianas. Isso é feito porque
não são caracterizados pela rotina e também não são imprevistos e incontroláveis, como as tragédias, os
acidentes e os milagres. Alguns destes exemplos podem ser formais e outras informais, já que a centralização,
o planejamento e a personalização marcam o primeiro caso – podendo estar nessa situação as paradas e as
procissões. As festividades, os cerimoniais e os rituais aproximam-se no momento em que marcam contrastes
com o cotidiano e não ficam circunscritos à magia e ao místico. Ligados ao cotidiano ou ao extraordinário, os
eventos, como bailes, festas e reuniões, estariam alocados na esfera do incomum, porém previstos pelas regras
sociais e marcadamente hierarquizados ou descentralizados. Seja a procura de uma vida mais amena e livre ou
um modo de discursar sobre certos aspectos do real, as festas, cerimoniais e rituais marcam um outro
compasso de vida e também de discursos sobre o vivido pelos homens. Assim, as reuniões investigadas
trazem essas peculiaridades, pois podem demarcar uma maneira de atuar no mundo, ao mesmo tempo que fala
sobre ele de um modo distinto do discurso religioso institucionalizado.

115
qualidades demonstradas: bom dançarino, amigo, engraçado e “adorador” fiel. São
qualidades almejadas e tomadas como fundamentais ao meio constituído por todos.

Os objetivos da brincadeira

A descrição oferecida anteriormente apresenta o encontro e seus desdobramentos: o


ocorrido na rua, o realizado no salão de danças e em seus limites. Viu-se as atuações de
DJs, de cantores, de animadores e de pregadores, mediadores voltados a proporcionar a
audição, o entretenimento e o “louvor” – como ato de cultuar, de retribuir, de celebrar a
divindade. Como foi visto, várias equipes foram formadas - outras surgem a todo instante -
para a execução de encontros em bairros da cidade e têm mobilizado fiéis e profissionais.
Então, quais as versões sobre o realizado?
Manga, branco, cerca de 40 anos de idade e ex-cantor do grupo de rock Oficina G3,
é reconhecido como um dos precursores desse tipo de empreendimento. Segundo ele, o
baile:

Foi o primeiro que foi feito. Não havia esse termo aqui no Rio de Janeiro
e nós lançamos isso dentro da igreja. Nós não fomos pra uma casa de...
Nós fizemos dentro da igreja, com luzes, com DJ e com banda tocando ao
vivo, mas sempre com uma mensagem, uma pregação mesmo. Eu não sei
se ainda o pessoal faz da forma com que fazíamos, que era uma coisa com
muita oração, com muita seriedade, visando alcançar as pessoas. E
alcançar as pessoas porque queríamos vê-las transformadas e não pelo
dinheiro que elas podiam trazer pra igreja. Então, nós fazíamos ... e a
nossa intenção era ganhar gente pra Jesus. Sempre vai ser a minha
intenção. A minha intenção sempre vai ser ganhar as pessoas pra que elas
tenham uma experiência nova, mudança de vida...

Com o objetivo de converter, as primeiras "festas" foram feitas, justificando-se por


traço exclusivamente evangelizador. A atividade não podia ser definida como de produção
cultural destinada a obter ganhos; portanto, a legitimidade era dada em decorrência do
espaço no qual a "festa" era executada: o interior do templo. Além disso, era envolvida por
oração porque tratava de “transformar” os “jovens”. Isso se daria por utilizar uma
linguagem conhecida e favorável ao início de um compromisso religioso e de certa prática
no interior do grupo. Destacando a intencionalidade, o pastor atribui ao evento um caráter
de exclusividade. Isso ocorreria em esfera propiciadora da segmentação e da formulação de

116
novas atividades, de movimentos, de grupos interdenominacionais (Mafra, 1998) e o
registro de novas igrejas. Diante de sua proposta, entendida como inédita, e sua ida para
outro grupo, restava saber se o projeto persistiria e se, em outros empreendimentos, esses
traços seriam mantidos.
Edinho, promotor da equipe Zoação Gospel (ZG), cuja atuação é na área de Bangu,
Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, observa o caráter da "festa" do seguinte modo:

Porque sempre tem festa: poxa, Gospel Night - a festa! Zoação Gospel - a
festa! E as pessoas, às vezes, não entendem. Por que a festa? Porque
biblicamente, eu fui ver na Bíblia; no passado existiam vários tipos de
festa que o povo ali se alegrava. Então, eu e os outros, baseados na
Palavra de Deus, na Bíblia, nós vimos que havia, existiam essas festas,
existia festa no tabernáculo, festa. Então, nós pegamos, no século que nós
estamos vivendo hoje, a mesma festa, mas só que nos dias de hoje. Por
exemplo, naquele tempo era um tipo de festa; naquele tempo eles
precisavam do vinho pra se alegrar porque Jesus, na festa de casamento
havia acabado o vinho; então, eles ficaram naquela situação: acabou o
vinho. Então, Jesus transformou a água em vinho porque no passado trazia
alegria pro povo. Alegria como se fosse uma festa hoje sem música. Já viu
uma festa hoje sem música? Então, nós pegamos o quê? Pegamos essa
festa do passado, trouxemos ela pra hoje, mas só mudamos o ritmo da
música. Porque ... Jesus, acabou o vinho e todos chamaram Jesus; na festa
de casamento não podia faltar vinho porque era o vinho que traz alegria
pro povo. Então, nos fazemos a festa do passado, com costumes do
passado e transformamos ele pra hoje. Por exemplo, o vinho que traz a
alegria, nós pegamos o quê? A música que traz a alegria pra festa hoje.
Márcia: Como que a música traz essa alegria? Que alegria é essa da qual
você está falando?
Edinho: A Bíblia diz que a alegria do Senhor é a nossa força. Muitos
dançaram: Míriam dançou, Davi expressou a alegria dele através da
dança. Então, nós pegamos essa música evangélica que tem uma letra, que
tem uma origem e começamos a trazer ela pro nosso meio; pra nós nos
divertirmos sem precisar, por exemplo, eu não preciso sair, eu não preciso
sentar numa mesa, embora eu sou livre, mas essa não vai me trazer uma
alegria permanente, vai me trazer uma alegria momentânea. Eu..., por
exemplo, eu tô desesperado, então, eu entro no bar pra beber; aí começo a
esquecer tudo, mas sendo que eu vou pra casa, eu vou deitar e vou acordar
e vou continuar com os mesmos problemas. Então, através desse esquema
de música, através de Nosso Senhor Jesus Cristo, nós temos uma alegria
que nunca acaba, entendeu? Nós curtimos as músicas, tamos ali, tamos
alegres; não vamos beber; quem bebe quer o quê? Quer esquecer; muitos
vão pro bar pra beber e pra esquecer. Ela usa a droga por causa da
dificuldade, ela usa, ela tá desesperada e começa a usar drogas, começa a
beber pra esquecer o seu problema, esquecer o desemprego, esquecer
tudo, mas sendo que vai acabar aquilo ali ela vai continuar com os

117
mesmos problemas, com as mesmas dificuldades. Nós não. Nós estamos
ali nos divertindo, vamos sair dali e vamos continuar alegres.

Edinho, ao recorrer à fonte escrita conhecida e reconhecida dentro de seu grupo


religioso, apresenta uma interpretação com a finalidade de explicitar a origem e legitimar
sua iniciativa. Termina por enfatizar certa disposição entre os presentes na fundação do
cristianismo e, desse modo, indica a base da orientação da conduta, expõe sua fonte de
legitimação: a Bíblia. A disposição é explicitada no estado vivido por todos e, assim,
atribui-se ao “vinho”, proveniente da água, a atmosfera da reunião. Ao se aproximar e ao se
distanciar, o depoente registra ser a “alegria” a base do elemento capaz de alterar a
disposição mental dos presentes, mas não temporariamente. Ao afirmar “nós estamos ali
nos divertindo, vamos sair dali e vamos continuar alegres”, Edinho pontua ter o povo
originário, com a transformação da água e com a dança, experimentado o estado corporal e
mental atualmente perseguido. Hoje ele pode ser alcançado com o uso de substâncias
químicas, de bebidas que ajudam “esquecer”, e conduzem à “alegria”, mas, com o término
de seu efeito, retorna-se ao estado originário marcado pelos “mesmos problemas, com as
mesmas dificuldades”.
A “alegria” apontada é alcançada e mantida com a crença na capacidade do divino
em transformar. É possível falar com Deus porque a música e a dança liberam das
limitações pessoais, instalam o extravasamento e a possibilidade de trilhar um caminho de
comunicação com o divino, também de adesão às manifestações culturais incentivadoras
do desprendimento, do alcance de estado distinto do controle diário (Durkheim, 1989: 198
e 456) 97.
Para Charles, da equipe GN, a reunião promovida:

É um espaço de resgate. Fora essa atividade toda, com a igreja que eu tive,
eu passei um tempo, mesmo na Igreja Presbiteriana, em que eu visitava
algumas danceterias, com algumas casas, foi uma época meio rebelde com
14, 15 anos, não queria muita coisa com igreja, né? Então, eu comecei a

97 Sobre a cerimônia religiosa e festividades, Durkheim estabelece que “... tem como efeito aproximar os
indivíduos, colocar em movimento as massas e suscitar assim estado de efervescência, às vezes até de delírio
que não deixa de ter parentesco co m o estado religioso. O homem é transportado fora de si mesmo, distraído
de suas ocupações e de suas preocupações ordinárias. Assim, de ambas as partes, observam-se as mesmas
manifestações: gritos, cantos, música, movimentos violentos, danças, procura de excitantes que restaurem o
nível vital etc... o mesmo se dá com as cerimônias religiosas que determinam como que uma necessidade de
violar as regras normalmente mais respeitadas”.

118
freqüentar... graças a Deus, foi uma fase curta, né? Então, eu comecei a
visitar alguns bares, algumas festas, e você só vê destruição.
Aparentemente traz algum prazer momentâneo, mas depois você fica
numa fossa danada. Então, quando eu olho pro Gospel Night, eu olho pra
alguma festa, eu acho que aquilo ali é uma estratégia de resgate. Você
pegar um jovem que, mesmo que às vezes seja cristão, mesmo que às
vezes esteja no gospel, às vezes tem uma vida destruída. Está vivendo um
Evangelho de fachada. Uma vida sem compromisso. Sem ter nenhum
envolvimento com a igreja. Então, o que acontece? O Gospel Night é um
tipo de resgate. Aquele jovem, que não quer nada com a igreja, que está
com a vida destruída, a gente pega esse cara e resgata. Coloca ele no lugar
certo. Eu vejo o Gospel Night como uma atitude de resgate. Tirar o cara
da lama, tirar o cara que está se prostituindo, da mina que esteja fazendo
alguma coisa errada. O cara que esteja se drogando, tirar e colocar no
lugar certo. Embora seja uma loucura danada. Toda a estrutura, toda a
correria, a noite de sono que a gente passa sem dormir, mas a recompensa
é muito grande. Você encontra o jovem na rua. O cara fala: ‘pô você se
lembra de mim? Não lembro. ‘Eu tava na festa, vocês oraram por mim. Eu
estava afastado...’ Então, esses testemunhos são muito grandes. Pessoas
que estavam afastadas, pessoas que estavam longe, e hoje estão na igreja,
estão na família, estão casados; pô, é legal.

Ao partir de uma fase de sua vida, o depoente observa o aspecto exclusivista do


elaborado por ele. Com a oposição entre “destruição” e “resgate”, este adquire sentido
moral. Há o destaque da conversão, da condução ética, pois o objetivo da iniciativa é, após
a conversão, tirar ou impedir certas práticas. O primeiro sinal de reconhecimento é obtido
com a manifestação de alguém ao experimentar a ação moralizadora do grupo. A
transformação, a alteração de um modo de inserção no mundo, no primeiro caso, estaria
relacionada ao ânimo exaltado e, em segundo lugar, passa a ser ressaltado o aspecto moral.
No depoimento de Charles aparecem situações comprovadoras da eficácia: “tirar da lama”
(...) “o cara que esteja se drogando”.
L´Ton, da equipe Gospel Beat (GB), destaca o lúdico e sublinha a disposição do
público, não contrário a isso. Para ele,

O meu público é o público evangélico, enfim. Mas eu percebi o seguinte:


o público evangélico que consome o rap, que consome o CD tem, posso
dizer assim, tem vinte por cento, por exemplo, até consumiria Apocalipse
16. São aquelas coisas mais, pô, são negros que já têm uma cabeça,
entende? As dificuldades, passaram por dificuldade, esses consomem.
Agora o restante, os oitenta por cento, é o seguinte: “Vim para cá para
curtir! Já passei a semana toda na maior ralação, cara! A melhor coisa do
mundo é vir para cá, para esse baile gospel, curtir, estar feliz e dançar
tranqüilo”. Pô, você tem que adaptar a música para esse pessoal. Senão,

119
os DJs mesmos, os próprios DJs gospels, não vão tocar. Ele não vai tocar
uma música que a pista murcha.

Nem todos pensam assim. Integrante da mesma equipe, Nega coloca não ser os
empreendimentos entendidos a partir da opção de entretenimento, do lúdico ou de encontrar
algo capaz de expressar as angústias ou as experiências vividas, conforme L´Ton enfoca.
Há oposições entre trabalho/responsabilidade e diversão/relaxamento e delineiam os
valores, as idéias e o modo de conceber e atuar no mundo. O contraponto de L´Ton é
realizado por Nega; ela termina por ressaltar a evangelização. Assim, a entrevistada diz o
seguinte:
Eu acho que eu tenho que mostrar ao mundo; mostrar as pessoas a palavra
do Senhor; juntar aquelas pessoas pra falar do amor de Cristo. Nem uma
pregação, mas músicas; mostrar um ambiente saudável, mostrar um
ambiente em que você pode estar conversando sem precisar de
prostituição. Sem precisar utilizar drogas. E mostrar que ainda tem lugares
assim. E mostrar às pessoas o amor de Cristo. Através dessas músicas,
através do meu testemunho, através da minha vida. Isso é o principal, mas
também pra ter um local para a juventude cristã estar junto sem precisar
estar no mundo.

Sobre a dimensão do entretenimento, Nega afirma:

Não é só um lugar de lazer, mas sim um ponto de evangelização das


pessoas. Através do meu testemunho. Através da minha vida. A pessoa vê,
“poxa, essa menina não é igual às outras meninas. Não é igual às outras
meninas. Aquele rapaz é diferente”.E você acaba conversando com aquela
pessoa. E você vê a diferença no dançar. No jeito de falar... a pessoa
sente. Então, você mostra isso pra pessoa. Então a pessoa fala: ‘Pó
legal...’, ‘que você vai fazer domingo? Ah, domingo tem uma coisa legal
pra fazer’. Você pode chamar a pessoa pra igreja. ‘poxa, vocês são assim?
Eu achava que era diferente...’ muitas pessoas que eu vi acontecer assim.
Eu tenho amigos que veio para igreja através de um baile. Através até de
uma festa. Num tá num evangelismo estrategicamente diferente, uma
coisa bem diferente que você coloca. E pra mim a festa é para isso. O
propósito nosso é isso. Você estar mostrando pra pessoa um evangelizar
aquela pessoa através da festa, mostrando o amor de Cristo por aquela
pessoa.

Ao entender a “festa” a partir de dinâmica entre o entretenimento, a evangelização e


a exemplificação moral – medida voltada à prevenção por afastar os freqüentadores de
atividades consideradas não adequadas -, Nega, como L´Ton, explicita o ponto de distinção

120
e permite o reconhecimento de atividades. Há momentos nos quais ela sobrepõe a
evangelização ao divertimento, pois não somente a música, mas o “testemunho” de vida
sublinha a interação e também constitui o ambiente descontraído de evangelização. No
entanto, a efetivação não deve promover a impulsividade e, para isso, existem homens e
mulheres preparados para a atuação moral e física. A “festa” figura como um canal propício
ao contato e ao reconhecimento da divindade; portanto, coloca noções de sagrado e de
experiência de fé das quais a dança e a música fazem parte. A formulação de Nega ressalta
a exemplaridade, a moralidade apta a definir a reunião e igualmente a inscrição feminina
(Gillian, 1996:233) entre os formuladores de black music gospel.
Até aqui foram apresentadas as concepções de promotores. Porém há a visibilidade
de uma personagem que, no entanto, ainda não teve voz para compor o quadro de
compreensão sobre a “festa”: seus freqüentadores. Ynah, uma freqüentadora de “festa” e
ouvinte de black music gospel, diz:

Foi uma gama de pessoas que se insurgiram contra o tradicionalismo. O


próprio tradicionalismo das igrejas. Já foi tema dentro da própria igreja,
nos grupos jovens. É certo ou não é: ‘ah, porque jovem evangélico não
pode chegar em casa de madrugada’. E a gente sempre foi contra isso de
certa forma; contra entre aspas.

Lena, outra freqüentadora, fala sobre a “festa” e observa que “... o objetivo da festa
gospel é esse: é você encontrar amigos, encontrar amigos de outra igreja, comunhão, lazer,
adoração, evangelismo ... Tudo isso”.
As duas depoentes ressaltam algumas possibilidades de interação e de diversão entre
os adeptos. Conforme Lena, o momento de alegria é condição para encontrar o divino.
Tratar-se-ia de alternativa ao “tradicionalismo”, mas sem haver a abdicação de oposições,
pois é feito tudo, ou quase tudo, considerado próprio de um modo “jovem” de ser. Afirma
“o objetivo da festa gospel é esse”, sem a inscrição do que seja visto como impróprio.
O que transparece em todos os depoimentos é que as manifestações musicais podem
propiciar divertimento, jogos e interações. Tudo isso, conforme os promotores e os
freqüentadores, coloca a dimensão característica de modo de participação e de expressão de
fé do qual a música e a dança são componentes. A oposição com o modo de vida não
submetido a princípios religiosos é apresentada a todo instante, pois é ressaltado um

121
discurso moral. Há a busca pelo “resgate”, pela “conversão” para um modo de vida
balizado como próprio do cristianismo.
No mesmo jogo de oposições, os promotores e os freqüentadores apresentam
distinções interna e externa. A atividade é peculiar porque acreditam estar em oposição com
o “mundo” e isso é assegurado com rearranjos não contemplados por líderes religiosos. Em
sua oposição, na manutenção da coisa sagrada e separada, a emoção e a alegria são aspectos
significativos, seja quando enfatizam o encontro com os amigos, seja como via de
“adoração” 98. Seria a insurreição “contra o tradicionalismo”, como afirma Ynah?
Como demonstrado por Edinho, ao remontar uma história considerada não somente
reveladora de um passado, mas de um tempo presente e de um futuro - porque um modo de
vida adequado, caracterizado pela alegria, poderá ser assegurado-, a “festa” deve evidenciar
uma atmosfera de transformação (na qual os elementos humanos e não humanos são
transformados - da água ao vinho, do pecador ao redimido, do solitário ao socializado, do
sofredor ao ser feliz), de integração e de excitação. Não se trata da excitação do desejo.
Esse seria mantido distante, como entre os metodistas, cuja ênfase estaria no amor maternal
e sacrificial (Thompson, 1987:250, 251). Na “festa”, são estimulados os sentidos e o
relaxamento a partir da música, da dança, da brincadeira, descortinando uma antiga tradição
popular de vigência do riso, de manifestações cômicas. No entanto, esta tradição em
determinado momento histórico foi expulsa e condenada em nome da seriedade que veicula
a verdade, a veneração e o saber oficiais (Bakhtin, 1999:62-65).
L´Ton, promotor da equipe GB, observa ser a reunião concebida como a “pista do
céu”, pois ali é possível “divertir agradando a Deus, com pureza e segurança...” 99. Portanto,
diversão é o aspecto definidor do ato de fé, excludente da sobriedade, da contrição e do
sacrifício como requisitos para a inserção e a participação em um grupo de crença
(Thompson, 1987:249). A ética protestante, seja em seu traço racional e diligente, seja pela
manifestação de sinais e cultivo da melancolia (Campbell, 2001), é redefinida ou, quem
sabe, substituída por outra, porque não cabe na “pista do céu”, no local onde se dança, e

98 Para exemplificar o clima de “louvor e adoração”, na edição do ENLP, em 2002, os cantores se


apresentavam e as canções executadas por mais de 20 minutos, um refrão era repetido longamente, até que as
pessoas começassem a falar, alterando a voz, dando “aleluias”, curvando-se ao chão, outras sentadas com as
cabeças abaixadas, outras choravam; os dirigentes falavam que os corações ficariam “quebrantados” –
tomados pela presença de Deus.
99 Conforme e-mail “espalha pra geral”, recebido em 11/03/04.

122
ocorre a ligação entre o divino e o mundo dos homens. Os promotores estabelecem
determinado estilo de ação e definem o realizado e a inserção de elementos e valores antes
excluídos por certa ética corrente no meio evangélico (Weber,1998; Thompson, 1987;
Campbell, 2001).
A partir do exposto, apesar das visões e de concepções diferentes das regras do meio
religioso, a subversão dos promotores é relativa, mesmo ao ser ressaltado o entretenimento.
L´Ton se movimenta e constrói uma intercessão entre a esfera religiosa e a do divertimento,
apostando na figura do DJ como o condutor da atividade voltada, antes de tudo, ao
fortalecimento de fronteiras e da peculiaridade do grupo de crença, como indica Nega.
Porém, ele fala em uma adaptação da música a fim de oferecer “alegria” à “pista” e, assim,
assegurar a felicidade e o divertimento. Opõe, portanto, o encontro e a realidade do
trabalho e da vida.
Os dois relacionam elementos contrastivos, mas revelam a dinâmica entre
objetividade e subjetividade. L´Ton, ao falar do público da “festa”, focaliza a força do
ambiente, capaz de agir sobre o freqüentador, ciente do cansaço, das cobranças cotidianas,
mas sabe poder ali vivenciar emoções e satisfações100. O depoimento de Lena corrobora
com essa posição, pois ir à “festa” é ficar alegre e “dançar com Jesus”. Esses são os
atributos para garantir o “estar feliz e dançar tranqüilo” e, assim, adiciona “pô, você tem
que adaptar a música para esse pessoal”, haja vista no lugar transitarem as emoções e, por
isso, o DJ pode ter uma “pista murcha” e não assegurar o “divertimento”, como coloca
L´Ton. A diferença está em Ynah porque apresenta a reunião como manifestação da
emoção. Por sua vez, Nega fala em “testemunho”, em “exemplos” e, assim, enfatiza o
meio como a esfera da qual emanam as emoções, o “amor de Cristo” não sentido, mas
evidenciado. Tudo fica centrado na exemplaridade do modo de vida, em certo controle
emocional. Para os outros promotores, a “festa” não é a alegria pela alegria, mas uma força
de moralidade.
A tensão entre os promotores não é algo inovador, pois a disciplina puritana
também compreendia o controle dos sentidos, do carnal e do afastamento de manifestações

100 Segundo Campbell (2001: 106, 107), diferentemente do mundo contemporâneo, no qual as emoções
surgem no interior de cada um e os impulsionam à ação, na cultura pré-moderna as emoções seriam próprias
a “aspectos da realidade” em atuação sobre os viventes. Seria um estado de obrigatoriedade diante da emoção
do momento, capaz de intervir, levar à ação e ao estado de excitação.

123
culturais, caracterizando a “cultura dos sentidos” (Weber, 1996:88-96). O ascetismo não foi
uma máxima seguida na mesma medida por todos os grupos protestantes, porém foi
adotado mais fortemente por uns e menos por outros. O metodismo e os batistas se
juntariam ao tema cada qual a seu modo. O aspecto sentimental e também a relação com o
mundo tinham peculiaridades de acordo com a noção de salvação e de bem-aventurança
presentes em cada grupo religioso. No puritanismo, o prazer, a distração e a emoção foram
colocados sob determinado controle, vistos negativamente, repercutindo, juntamente com a
noção de trabalho como meio de agradar a Deus, como modo de demonstrar a “veracidade
de sua crença” (Weber, 1996: 130-134).
Mas não é só. Um estilo de crença e de demonstração de fé poderia ocorrer pela
conduta da vida sob direção cristã e poderia compreender viver como os eleitos bíblicos ou
ter uma vida prática ordenada, de ações éticas, direcionada à obra de Deus. Campbell
(2001:143-195), cujo interesse está no “sistema de consumo” e não na produção, segue um
caminho distinto do realizado por Max Weber. Campbell apresenta a existência de uma
outra ética protestante, não somente voltada a destacar o trabalho e a acumulação de
riqueza, em decorrência de atividade conscienciosa. Observa de o puritanismo ver com
reservas a vaidade, a ostentação, bem como o divertimento, as festas e os romances. A
sobriedade deveria ser admitida na organização coletiva e individual da vida a fim de
submeter o desperdício, impedir o uso irracional dos bens, guiar a conduta dos homens,
inclusive as recreações consideradas adequadas.
Curiosamente, as afirmativas apresentadas pelos entrevistados não circunscrevem
novidade, pois festas, jogos, brincadeiras estariam inscritas no mundo cristão. O rigor e o
controle moral e físico, pertinentes a uma noção de ordem, foram construídos e aplicados
ao corpo e a mente dos europeus a partir de determinada fase (Thompson, 1987:291-347;
Burke, 1995:231-265). Este ponto será desenvolvido adiante.

124
Outras presenças e inscrições

Parte da peculiaridade da black music gospel é expressa na “festa” e traz à tona uma
tensão no tocante ao comportamento, Isso, portanto, afeta a mentalidade religiosa e a
tradição. O investimento em certa produção musical, a confecção de CDs e organização de
reuniões marcam uma associação voluntária, informal, e seus elaboradores oferecem um
conjunto de bens e serviços poucos difundidos. No entanto, divergem daqueles definidos
como “música gospel”, haja vista resultarem de iniciativas registradas na esfera oficial.
Todas, inclusive a black music gospel, apresentam profissionais e pastores que alteram a
produção de bens e serviços e, com isso, formam o público voltado aos eventos (Ortiz,
1980; Bourdieu, 1992; Oro e Steil, 2003).
Os leigos e os pastores inclinados à formulação e à consolidação dessas e de outras
propostas musicais surgem como mediadores e disponibilizam diversos bens musicais e
religiosos. Com as elaborações, os formuladores musicais veiculam “mensagens” de
conteúdo político, cultural e religioso. São, então, os transmissores (Martín-Barbero,
2003:282, 283); como eles, existem outros formuladores e disseminadores de serviços e
bens. Escritores, artistas, empresários e artistas podem ser reconhecidos institucionalmente
e apresentam produção posicionada entre o Evangelho e os fiéis (como também os
prováveis “novos” fiéis). São vários aqueles em atividade; integram e apresentam o fazer
religioso, direcionam “mensagens” e atitudes aos adeptos que esperam receber e
internalizar. Igualmente existem promotores de “festa” sem reconhecimento institucional e
consideram também participar como transmissores de um conhecimento e de um modo de
vida representados por dirigentes religiosos legitimados. Nesse sentido, integram uma
“cadeia de intermediários” (Burke, 1995:98,99) com a produção de materiais sonoros,
musicais, imagéticos e escritos.
Conforme está sendo demonstrado, existem proximidades e distanciamentos entre o
apresentado por mediadores em atuação entre segmentos de fiéis e entre a cultura religiosa
e a cultura popular. Desse modo, realizam movimentos de combinações com o posicionado
fora do grupo de crença. Ou seja, buscam por expressões e técnicas musicais e sonoras
hábeis ao favorecimento da abordagem de temas, muitas vezes, não contemplados por
outros mediadores, como os pastores e os elaboradores da “música gospel”. Reconhecem

125
ser as atividades e as músicas viáveis ao divertimento, à interação e direcionadas às novas
gerações de adeptos, portanto, registram experiências com a esfera religiosa e com
expressões da cultura popular.
Os promotores de “festa” não possuem oficial e profissionalmente o saber religioso
e agem distintamente daqueles que encontram o apoio de dirigentes de igrejas e de
empresários. A contribuição à distinção é o fato de os promotores atuarem em tempo
parcial, haja vista realizarem outras atividades com as quais asseguram suas sobrevivências.
O exercício de uma profissão não impede adquirir “renda complementar” (Burke,
1995:126) com as “festas” e as canções produzidas. A dupla entrada não é favorável ao
reconhecimento como artistas por aqueles que dominam o canal de produção, de
divulgação e de comercialização. O monopólio de serviços religiosos e a organização de
atividades complementares, determinadas institucionalmente, podem não fazer parte do
horizonte de atuação dos promotores, porém eles entendem, bem como aqueles interessados
nos serviços e bens oferecidos, disponibilizar algo fundamental aos participantes.
Apesar do fazer distinto daquele empreendido por pastores e outros atores
legitimados, difusores da distinção e contrários da mistura e da efusão emocional, ou de
produtores de “música gospel”, os promotores de “festa” não formam um bloco
homogêneo. Há formuladores de bens em conformidade ou em tensão com as regras
vigentes. Pensaria haver distintas mediações. Elas surgiriam em decorrência das propostas
estabelecidas por cada equipe, por produtores musicais, por pastores. Assim transcorre o
diálogo com as regras.
As produções efetivadas e a relação mantida com as convenções permitem apontar
para a existência de tipos de profissionais. Haveria o “integrado”, o “inconformista” e o
“ingênuo”. O primeiro seria o conhecedor das regras; o segundo agiria sem se submeter às
convenções. Por fim, haveria o ingênuo, aquele que não tem formação técnica, desconhece
as diretrizes e os membros do mundo artístico (Becker, 1977).
A tipologia apresentada por Becker pode contribuir para compreender as atuações
daqueles voltados ao fazer musical. Sabe-se que eles têm por proposta atingir fiéis e
aqueles ainda não convertidos. As composições devem ser efetivadas em diálogo com as
condições e as regras estabelecidas, tal como ocorre com a “música gospel” reconhecida no
meio evangélico.

126
Apesar de existirem promotores e equipes na criação de ofertas musicais e
religiosas, os tipos registrados não são rígidos, pois existem constantes negociações no
sentido de tornar o feito algo aceitável. As apresentações dos promotores de “festa” e de
uma encarregada da produção de programa musical permitiram visualizar os caminhos
percorridos e as propostas construídas. Os arranjos – relacionados às condições de ação
dentro e fora do meio evangélico - indicam, para alguns, ser possível mesclar um tipo no
outro, ou, então, um ser justaposto ao outro.
O pastor Manga, envolvido com a “música gospel” e precursor das "festas" no Rio
de Janeiro, poderia ser um inconformado, mas é preciso ir um pouco além. Manga afirma
ter iniciado a “festa” no interior do templo e seu foco era converter os “jovens”, porém agiu
assim porque o desenho da Igreja Renascer permitia. Portanto, sua ação e sua rede de
colaboradores sempre estiveram "coladas" aos direcionamentos institucionais. Conhecedor
das regras, muito comprometido com o meio evangélico, produziu, sim, uma variação, mas
sem violar as determinações formais, pois esta sempre esteve calçada na visão oficial;
assim, Manga seguiu a diretriz de expandir o trabalho religioso.
Já Antônia era antiga produtora de “baile funk”, de peças teatrais e musicais;
converteu-se depois de enfrentar certos acontecimentos e tentar suplantar as adversidades
colocadas em sua vida. Debita seu retorno como produtora musical às orações de alguns
membros da Igreja Universal do Reino de Deus – IURD – e incentivos recebidos por parte
da liderança da igreja de adesão. O resultado foi o lançamento de um cantor, a organização
e a efetivação de um empreendimento destinado a forjar e a promover novos artistas e a
“música gospel”. Antônia e Manga apresentaram aos seus grupos de fé atividades
consideradas eficazes por ampliarem os objetivos formais. Visto por esse prisma, eles
seriam atores integrados não somente pela proposta e dedicação, porém por agirem
conforme as convenções próprias de seus pertencimentos institucionais.
Ao observar o trabalho da equipe Gospel Night (GN), as inovações propostas
pareciam estar incorporadas ao seu grupo, caso seja considerada a iniciativa de Manga e a
disposição da Igreja Renascer. Então, a inovação da equipe não foi iniciar a "festa", mas
levá-la para o exterior do templo e locá-la em clubes e similares. As atividades não seriam
dirigidas por pastor, mas por membros do grupo, talvez uma inversão do objetivo de
Manga. Nesse caso, houve alteração e a GN realizou algumas mudanças e isso foi feito

127
conforme a relação de seus promotores com as regras e os acordos vigentes. Isso adquire
consistência com os DJs porque inovaram e pouco se aproximaram do contexto secular. A
diferença está no movimento de a equipe ser reconhecida e, portanto, tornar suas inovações
aptas ao meio.
Esse movimento entre ações implementadas por organizadores integrados ou
inconformados revela não ter sido o meio evangélico a visualizar a importância da
proposta, mas ela se insinuou, a todo instante; ou melhor, seus organizadores conceberam e
implementaram bens e serviços, por vezes, opostos aos direcionamentos oficiais; porém
entendem contribuir para a ampliação da evangelização e, por enquanto, esperam por
reconhecimento. Uma demonstração disso é o fato de os promotores designarem a GN de
"ministério".
A equipe Gospel Beat (GB) segue a inovação da Gospel Night (GN) e desenvolve
uma proposta considerada por alguns líderes e pelo público como integrada ao meio
religioso. Nega entende a “festa” como exercício de fé e aponta o “amor de Cristo” como o
principal aspecto a ser alcançado por freqüentadores. Conforme ela, seria um
empreendimento integrado, porém alguns componentes não restringem seus trabalhos ao
meio evangélico e procuram outro público e, até mesmo, criam um intercâmbio entre os
componentes.
A Soul de Cristo (SC) também leva artistas do meio evangélico para tocar em
eventos seculares. A rede integrada por seus componentes viabiliza a equipe apresentar
uma proposta tida como "pioneira" por tocar na questão racial e tentar discuti-la, pois
consideram que isso não seja contemplado por evangélicos e na sociedade mais ampla.
Portanto, as expressões musicais adotadas estão direcionadas a trabalho com dupla entrada:
religioso e político. Nesse sentido, os integrantes da SC, principalmente o articulador TR,
comporiam o tipo inconformado. Esse é o conhecedor das regras vigentes, estabelece redes
de ações, de colaboradores e tenta adquirir um público específico e distinto de outros
encontros. Não obstante, as ações e as inovações implementadas buscam por um
reconhecimento da esfera artística e também da religiosa.
Os depoentes apresentam um ponto em comum quando destacam o objetivo em
atrair ou impedir a saída de fiéis, fazem parecer uma fria estratégia de convencimento. Não
obstante, há aspectos reveladores do fenômeno religioso. Ao ver uma “festa”, a primeira

128
impressão é a de considerar que os atores estão subvertendo a organização dos grupos
evangélicos, mas talvez não seja somente isso.
É corrente na sociedade brasileira a existência de acusações de intolerância
direcionadas aos evangélicos diante da religiosidade e da cultura do outro. Assim, as
atividades organizadas podem estar em uma esfera na qual parece não incentivar inovações,
as transformações das coisas existentes, mas não se trata disso. Os filiados negociam, de
modo eficaz, com os regulamentos existentes e podem levar à inscrição de novos bens e
serviços. Estes podem povoar central ou perifericamente o meio evangélico; no primeiro
caso, está a “música gospel” que conta com artistas, compositores e intérpretes, todos
balizados por gravadoras e pastores. Diferentemente, a produção de black music gospel
registra a construção de canais próprios de confecção e execução. Apesar da ênfase no
divertimento e na interação, é possível observar que os organizadores apresentam em seus
discursos algo próprio dos posicionamentos dos dirigentes religiosos: o proselitismo e a
condução moral.
Os objetivos, os percursos e as atuações das equipes são momentos de destaque da
feição do meio evangélico brasileiro. Tal como ocorre com as igrejas, a expansão ocorre
com os movimentos de ruptura e continuidade: igrejas surgem e empresas são formadas.
Isso é dito porque as apresentações e os depoimentos abrem um canal para visualizar e
entender as novas possibilidades de organização, de manifestação de fé, de sociabilidade e
de pertencimento. De acordo com Brandão (2004), falar em religiosidade no Brasil
constitui exercício de conhecimento da geografia de fé e de crença devido às tênues e
móveis fronteiras entre as tradições religiosas. Com isso, pode-se deparar com ativa e
complexa trama de significados, de “sensibilidades de fé” e de novas vias de filiação. Isso
pode estar relacionado aos arranjos mais fechados ou não no tocante à aquisição de fiéis.
A proposta do próximo capítulo é continuar a abordar a “festa” e mostrar seu nexo
com o entretenimento e sua distinção com o meio evangélico, recorrendo à literatura sobre
“festa” e cultura popular. Serão visualizadas as tensões, os arranjos e os debates pertinentes
as iniciativas aqui focalizadas. Nesse sentido, duas visões serão contempladas: aquela que
enfatiza a aliança e outra que sublinha o perigo.

129
Capítulo 3

As revelações da apoteose

No capítulo anterior destaquei as composições das equipes promotoras, as relações


estabelecidas para efetivação dos encontros e como a “festa” não é concebida somente
como entretenimento, pois é feita a evocação a Deus e os presentes buscam estabelecer
contato sem, no entanto, tomar a atitude de contrição. Ainda assim, seus organizadores não
abdicam de certos componentes e tentam construir um meio de recepção pautado na
sensibilidade auditiva. Tudo isso exige outra direção estética, emocional, valorativa e moral
com a finalidade de saber que em uma “festa” o inusitado e o surpreendente têm lugar
porque os gestos, o som ensurdecedor, o falar alto e os movimentos abruptos, em
decorrência da dança executada, podem e adquirem sentidos.
Antes de abordar a black music gospel ainda me deterei na “festa”; como foi dito, é
espécie de atividade promovida e voltada à sua execução. Convém afirmar que essa
manifestação não é isolada, pois há propostas similares em vigor em outros estados do país.
Elas ressaltam um modo específico de celebração religiosa; nesse caso, o depoimento de
um pastor e DJ, especializado em black music e envolvido com a organização de
“baladas” 101, contribui para explicitar mais sobre aquilo tratado até o momento. Ele afirma:
“Acreditamos que a carne também deve louvar ao Senhor” e, mais adiante “as baladas e
shows de música gospel foram a solução para trazer o jovem de volta à religião”. Por fim,
lê-se: “Deus se adequa a cada momento” 102.
O material transcrito é parte de matéria jornalística realizada sobre modalidade de
atividade musical destinada aos adeptos de igrejas evangélicas. Ao me deparar com ele,
dentre muitos que encontrei durante o trabalho de campo, indaguei-me acerca das diversas
inscrições musicais e percebi que elas indicavam a vigência de arranjos, de posições
ocupadas e de sentidos produzidos por alguns empenhados com a elaboração e outros
envolvidos com a participação 103. Isso permite contrastar o modo evangélico de ser

101 Assim são designadas certas atividades musicais voltadas à dança.


102 Semerene e Cunha . “O DJ é o meu pastor”, revista Capricho, 30/11/2003; p.38-41.
103
Ao falar em produção e em recepção não afirmo serem as musicalidades desenvolvidas a partir de posições
rígidas, polares e excludentes. Há trânsitos entre os componentes e, portanto, as posições são
intercambiantes. Assim, pode-se encontrar participantes de elaboração musical e/ou de atividades destinados

130
presente no imaginário popular e oposto ao desenhado no depoimento do pastor e DJ.
Desse modo, surge o ponto de relevância. As atividades são formuladas e organizadas por
fiéis, apresentam certa estruturação, sentidos atribuídos por envolvidos e, finalmente,
revelam algo do meio no qual são elaborados.
Neste capítulo será visto como a dimensão do divertimento é feita presente e
permite emergir outro aspecto do cristianismo. Ele compreendia festividades, brincadeiras,
jogos, teatros e outras práticas, porém mudanças alijaram tais expressões da vida religiosa.
Retoma-se como esse protestantismo teve de lidar com a sociedade brasileira marcada por
disposição ao encontro e à mescla, porém a medida tomada foi ficar distante das práticas
culturais populares. Por fim, procurar-se-á descortinar as peculiaridades da black music
gospel e da “festa”: a aliança e o perigo, como visões antagônicas em vigor diante da
celebração. Isso atravessou o segundo capítulo, esteve submerso, e permite refletir sobre as
transformações, sobre as tensões estabelecidas, sobre os sentidos compartilhados e, por
vezes, tornados conflitantes diante de práticas e de interesses específicos (Sahlins,
1999:187).

Fantasias, descontração e seriedade

A dinâmica das reuniões investigadas é marcada por execução musical, por


realização de jogos (isso é comum no trabalho desenvolvido pela equipe GN e consiste na
realização de perguntas/respostas e existir premiações) e participação de alguém (pode ser
integrante da equipe ou convidado) com inserção na hierarquia de alguma denominação. A
finalidade é proferir “mensagem” considerada, por todos, possuidora de cunho religioso. Os
promotores podem privilegiar a presença de cantores, de DJs e as reuniões podem ora
divulgar o trabalho de um, de outro ou dos dois. Além disso, é realizada a “festa à fantasia”
ou gospel night fantasy, como é designada. Trata-se de reunião marcada por exibição de
fantasias e premiação daquela considerada mais original.
Pela brincadeira ou pelo prêmio, os grupos, as duplas e os solitários marcavam a
noite; os brincantes chegavam de carro, de ônibus ou transporte alternativo, com a

à execução musical. Do mesmo modo, há produtores que, em certo momento, colocam-se na posição de
receptores, freqüentadores de eventos e compradores de CDs.

131
disposição em exibir personagens que podiam ser o de empregada doméstica estilizada, um
grupo de músicos mexicanos, embalagem de biscoito de polvilho, box de banheiro,
jogadores de hockey, donzela ao lado de uma “mulher das cavernas”. Esse seria o momento
do freqüentador.
A composição deixava a dimensão da diversão muito mais evidente do que em
outros momentos. Todos ocupavam o salão, circulavam, conversavam e dançavam, quando
queriam, as canções tocadas por DJs. Isso era feito sem que houvesse atividade
previamente definida para os foliões. Não havia composição de músicas e lugar
determinado para desfile, como ocorre no carnaval. Mas os presentes escolhiam a fantasia a
ser premiada.
O que era realizado no salão, na qual muitos dançavam, revelava ser algo marcado
por anulação temporária das diferenças (Da Matta, 1979:35-66); impedia a diferenciação e
o reconhecimento. Do mesmo modo, o salão não instalava a segmentação – camarotes ou
área privada – por parte dos organizadores, pois era ocupado e, próximo ao palco e as
caixas de som, a maioria dançava; em sua periferia, os presentes conversavam e/ou
ingeriam alguma bebida. Os integrantes das mais diversas denominações compartilhavam
do momento que propiciava o encontro entre sagrado e profano. O salão também passava a
ser uma “estrutura aberta”, que compreendia a participação indeterminada, os desfiles e as
brincadeiras. Os elementos que constituiriam organização considerada oposta, ou seja, a
diversão do carnaval, associada ao profano, às festas e deuses "pagãos” 104, ali estavam
presentes. Assim, com a fantasia, as personagens dançavam e desfilavam; os presentes
pareciam comunicar algo entre si e estavam pouco interessados no que os de fora poderiam
entender.
As fantasias permitem a indistinção, mesmo dos iniciados, e compõem um estado
liminar, indefinido, porque colocam a ausência de indicadores de status, de papel ou classe
social e, assim, permitem ao portador tornar-se indistinto como qualquer “neófito ou em
processo de iniciação” (Turner, 1974:117, 118). No carnaval brasileiro, a fantasia viabiliza
ao público realizar “conjunção de domínios” a partir da soma do papel vivido no cotidiano
com aquele (s) imaginado(s). O ato da “brincadeira” permite suspender as linhas que
separam e compartimentalizam o social. Assim, figuras periféricas, de mundo não vivido,
104
Rodrigues. “E vai rolar a festa”, revista Enfoque Gospel, edição 19, ano 2, 2003, p52-58.

132
fazem-se presentes - mesmo estando fora ou nos “interstícios” do sistema. Na “festa”, como
no carnaval, ocorre o encontro de figuras ímpares dançantes de modo a indicar ser ali
propício à mescla de “campos antagônicos e contraditórios”, pois uma donzela aparece
acompanhada por uma “mulher das cavernas”.
Essa combinação ocorre com as brincadeiras que, desse modo, são capazes de
relacionar o mantido separado pela vigência de regras sociais, de doutrina e moralidade
delineadoras do cotidiano (Da Matta, 1979:48-49) 105.
Esse tipo de “baile” é propiciado por promotores, isto é, eles programam e esperam
o comparecimento de presentes fantasiados, mas isso não quer dizer que haja organização
formal dos momentos, não há a separação entre participantes e espectadores. Muito pode
ser alterado, até porque o centro é constituído por todos os freqüentadores e promotores,
empenhados em efetuar uma comemoração (Bakhtin, 1999). Os envolvidos ocupam
indistintamente o salão no qual as fantasias e as danças são vistas e comentadas por outros.
Além de dançar e brincar, sob a ação de algum promotor, tem lugar certa
competição com a finalidade de escolher a fantasia considerada a mais original. Nesse
momento, fica visível a distinção entre público e participantes. O primeiro deve selecionar,
sob o comando do apresentador, a fantasia. Esse é o instante de maior formalidade. A
“festa” não figura como pura diversão e, ao mesmo tempo, não é algo tão sério, pois,
mesmo quando não há ações determinadas, a organização pretende estabelecer momento de
descontração, de divertimento. A atividade evidencia o riso e a seriedade do planejamento
(Burke, 1995: 206-210) 106. Poderia ser, então, algo intermediário e alocado entre o sério e

105 Da Matta (1979:52) coloca ser o carnaval, ao contrário do rito histórico, a festa que escapa do controle
institucional por ser organizada voluntariamente. O cotidiano sofre alterações com a manifestação dos foliões
sem ser preciso seguir roteiros, direções e esquemas organizacionais. Isso fica evidente na exposição do corpo
ou a não prevalência de grupos elementares, pois quem “brinca” é o folião e é ele o único a decidir como será
feito. Em tal momento, as inversões têm lugar e compõem os dias festivos. Assim, tudo considerado do
domínio privado - pessoas, objetos, gestos, comportamentos - pode ser encontrado na rua, domínio do público
e da impessoalidade. O estar na rua durante o carnaval contrasta abertamente com aquela do cotidiano, guiada
por objetivos, pois “brincar”, “ver” o carnaval não são atos direcionados por interesse racional, mas pelo
prazer, pela diversão e pela alegria. Da Matta ainda apresenta as peculiaridades da festa e da parada a fim de
demonstrar o existente nesses dois atos públicos, que também explicitam a organização e a hierarquia da
sociedade brasileira.
106
Burke ressalta que o carnaval constituía a peça desenvolvida por toda a cidade; nele, os atores terminavam
representando diversos papéis durante o desfile. Isso compreendia a organização feita por confraria ou clube,
portanto, mais formal sem que houvesse a imposição de “roteiro” ou ensaios determinando o apresentado.
Assim, tudo poderia acontecer em clima de diversão e, nem por isso, deveria excluir a seriedade para fazer o
desfile, a competição e a encenação de alguma farsa. Essas etapas não tornavam aquele momento algo sério e
imutável e, muito menos, livre de qualquer compromisso.

133
a diversão, entre a rigidez religiosa e a leveza do entretenimento. O que pode ser esse
intermediário? Configura um novo modo de refletir, de se expressar e, por isso, distinto da
estrutura em vigência (Bakhtin, 1999:171-241). Então, seria algo novo e permitiria pensar o
mundo de modo diferente por seguir seu movimento de transformação 107. Seria isso que
ocorreria na “festa”?

Distâncias, inovações e festividades

Sobressai na “festa” a substituição do pertencimento contínuo pela associação


transitória que, porém, de forma duradoura, não substitui aquela constituída por vínculos de
pertencimento institucional. Muitos afirmam ir à manifestação por causa da alegria
experimentada. Ela ocorre mediante a ação do DJ, do pregador, do apresentador e do cantor
que operam os equipamentos, falam e cantam. Os efeitos por eles produzidos, como as
colagens sonoras, as alterações das batidas, acompanhadas por certos efeitos como luzes e
fumaças, retirados de seus contextos originais, passam a compor arranjos nem sempre
fechados e nunca definitivos. São flexíveis, pois instrumentos podem ser inseridos e outros
retirados; os significados também podem ser alterados. Por isso, tudo compõe a “festa” e
pode ser considerado “aparato ministerial” - e viabilizar o contato com o divino.
A reunião é vivenciada como continuidade do experimentado no serviço religioso
institucionalizado. Os freqüentadores, que saem de seus templos e vão à “festa”,
reconhecem certas capacidades nas palavras, nas músicas, nos equipamentos e em outros
bens apresentados e manipulados. Com isso, expressam ser possível encontrar Deus e não
ficar vulnerável ao que consideram os perigos do “mundo”: drogas em geral, criminalidade
e relações sexuais fora do casamento. Para os promotores, os equipamentos e a “festa”

107 Bakhtin, ao analisar a transposição de ordem social – da concepção medieval para outra marcada por
idéias e sentidos mutáveis - toma certas imagens e indica que as festas e os jogos populares – com suas
paródias das absolutas verdades eclesiástica e jurídica que marcariam a dinâmica entre morte-ressurreição -
descreveriam uma “unidade contraditória”. Também exporiam o fim e o começo do mundo – trata-se de um
fim começado e recomeçado à medida que há abandono da verdade ou da fé absolutas numa época.
As imagens grotescas, cínicas e efusivas trariam o sentido, revelariam a organização, seria unidade
popular surgida de modo próprio e não pela lógica e força da estrutura social, política e econômica. O corpo
sentiria, desenvolveria e expressaria a mutação, a capacidade em criar linguagem e seriedade diferentes da
predominante até então. Conforme o autor, ter-se-ia aberto o “caminho a uma seriedade nova, livre e lúcida”.
O intermediário seria essa seriedade, o falar e o refletir um modo distinto da estrutura de pensamento em
vigor para o qual o mundo e as ações eram concebidos a partir de concepção imutável. Fica visível, mas é
preciso apreender a lógica desse intermediário para que se possa entender não ser simplesmente o inverso.

134
demarcam outra concepção de religiosidade. Nesse âmbito, a manifestação não é
caracterizada pela proposta de curas, de prosperidade material ou combate aos elementos de
outras crenças. Como aponta um organizador, tudo estaria voltado para o freqüentador
agradecer a “vida” e a “alegria” recebidas. Faz-se isso com danças e também com cantos
porque o retribuir não precisa ser com algo ou coisa da mesma espécie. Pode-se
compreender elementos distintos e, nesse caso, o cumprimento, o aplauso, a dança e o afeto
marcam momentos e são elementos de vínculos entre os presentes.
Convém demarcar que a “festa gospel” não é única atividade no meio evangélico
brasileiro que demarcaria a “alegria”, a dança e estabelece encontros com práticas
populares. Por exemplo, cito o bloco e o trio elétrico, ativados nos dias de carnaval, na
cidade do Rio de Janeiro, cuja finalidade seria a evangelização. O primeiro é vinculado ao
Projeto Vida Nova de Irajá (PVNI); já o trio elétrico é componente da Comunidade
Evangélica Internacional da Zona Sul (CEIZS).
O PVNI foi fundado entre 1988/89 e instituiu o bloco “Cara de Leão”, composto por
cerca de quatro mil componentes e sete alas. Há mais de 10 anos, o “Cara de Leão” desfila
em avenida no centro empresarial e comercial da cidade para atuar entre os foliões da
“festa da carne”. Já a Comunidade Evangélica Internacional da Zona Sul (CEIZS), surgida
na década de 1990, mantém um trio elétrico que desfila nas ruas do bairro do Flamengo.
Afirma-se ser acompanhado por cerca de mil participantes; nas palavras de seu líder, “a
gente fica pulando para mostrar a todos que também nos divertimos. Esta alegria
contagiante tem envolvido e restaurado muitas vidas, que atualmente têm servido a
Deus” 108. Além desses casos, cita-se a “Escola de Samba Jesus Bom à Beça”, fundada em
1997, em Curitiba. Em 2001, a escola ganhou o desfile carnavalesco com enredo sobre a
odisséia bíblica. Os articuladores dessas iniciativas chamam atenção para a importância em
demonstrar a alegria que constitui a vida do cristão 109. Isso pode evidenciar que ser
evangelizado não incorre na abdicação de gostos e modos de vida – lembremos de
Feliciano e de Francisco JC 110. Desse modo, não há a cautela em conduzir ao isolamento,

108
Rodrigues. “E vai rolar a festa”, revista Enfoque Gospel, edição 19, ano 02, p.52-58, 2003.
109 Idem.
110
No primeiro capítulo, foram oferecidas reflexões acerca da produção musical associada aos grupos
evangélicos no país, e, assim, vistas as histórias de alguns cantores em atuação e detentores de estilos e
percursos distintos. Feliciano afirma ter se convertido e “abandonado” um modo de viver e de cantar, a

135
em combater às práticas de diversão, como ocorreu outrora (Burke, 1995:231-265;
Thompson, 1987:300-3002).
As recentes propostas e efetivas ações evidenciam o investimento de alguns na
relativização dos princípios comportamentais e morais na busca pela disseminação bíblica
(Almeida e Rumstain, 2003). Os depoimentos explicitam as peculiaridades. Por exemplo,
lembremos da afirmativa do pastor e DJ ao afirmar “acreditamos que a carne também deve
louvar ao Senhor” ou quando Ynah fala sobre a “festa” e a black music gospel e afirma ser
algo “contra o tradicionalismo”; também quando Edinho explicita que a “alegria”
experimentada é “verdadeira” e somente sentida pelo fiel.
As concepções apontam que o meio produtivo de músicas e de eventos seria
caracterizado pela capacidade de ser igual e diferente das manifestações musicais
seculares; essa ambigüidade revelaria a produção de sentidos por nova mentalidade, por
outra noção de sagrado, outro modo de lidar e se envolver com as questões religiosas.
Seriam os fluxos de bens culturais, os rearranjos de expressão que conduzem ao desmonte
de antigos dualismos (Sanchis, 1994; 1995: 134; Velho, 1997:143)? Talvez isso explique
sua proliferação, igualmente explicite sobre as críticas direcionadas a alguns eventos
musicais.
Ao relacionar iniciativas como o bloco carnavalesco e a escola de samba, é possível
situar uma pergunta sobre aquilo visto até o momento. Assim, qual seria a peculiaridade da
“festa” em relação ao meio evangélico? Foi indicada a ambigüidade, mas ocorre a tentativa
em demonstrar a vigência de estado vivido, distante de outro desenrolado no cotidiano, e
marcado por efusão de sentimentos, enquanto o dia a dia não é.
Assim, os momentos de comemoração e de entretenimento também revelam os
aspectos, o contexto de criação, além de vivências de crença e fé no interior de grupo
religioso. Ela surge do empreendimento de alguns e disposição de outros e denota a
transformação do grupo. Essa não ocorre porque apresentam objeto, mas porque as ações
motivam novas idéias e outros sentidos são atribuídos às categorias em circulação (Sahlins,
1999: 184). Tudo isso decorre dos encontros estabelecidos por leigos próximos de outras
dimensões da vida, interagem com vários produtores e bens culturais que, em outros

técnica e os instrumentos; por outro lado, Francisco JC, não convertido, mas aponta para uma vivência
pautada pela conjunção entre experiências de vida e princípios religiosos.

136
momentos, estariam fora do grupo. Assim, seus limites evidenciam os pontos de porosidade
e, portanto, de um ser evangélico em constante (re) construção.
As atividades aqui relacionadas sublinham o encontro entre a esfera religiosa e
outras manifestações culturais, configurando a transformação do meio evangélico. O
protestantismo enfatiza a existência do “mundo”, âmbito simétrico oposto, do qual deve
manter distância; parece não ser bem isso o que ocorre. A tensão é recorrente, haja vista a
busca pela distinção que inclui o controle moral, das condutas, o desapego material, o
desinteresse por práticas culturais e o predomínio do Evangelho na condução do cotidiano.
Seria isso peculiar somente ao protestantismo em vigor na sociedade brasileira?

Reformas religiosas e combate da alegria

Para entender esse quadro, é preciso visualizar a implantação do protestantismo no


Brasil como um modelo ímpar de trabalho missionário. Diferentemente do registrado no
catolicismo, no qual havia o uso de expressões musicais e manifestações populares na
educação e nas festividades religiosas (Alves, 1980; Almeida, 1976), as igrejas protestantes
mantinham distância da cultura local e impunham rígidas normas de conduta (Barbosa,
2002; Nascimento Cunha, 2004). A ação protestante incluía a distância de expressões
musicais populares (Nascimento Cunha, ibid.). Exemplos podem ser encontrados em
escritos de missionários como o trabalho de Kidder e Fletcher (1941). Nele, encontra-se
visão crítica sobre a condução da vida cotidiana, sobre as manifestações populares e
religiosas (Barbosa, 2002; Kidder e Fletcher, 1941). Isso seria exclusivo aos missionários?
O que havia no protestantismo que poderia incentivar a fraca tolerância? Havia algo na
sociedade brasileira favorável ao quadro?
Talvez seja viável conhecer primeiro alguns momentos pertinentes ao
protestantismo na Europa.
Segundo Burke (1995: 231-265), no início da Reforma protestante, as canções e
outras manifestações populares eram contempladas por dirigentes religiosos para
estabelecer comunicação com as populações 111; porém, isso foi perdendo espaço. As

111
Para Burke (1995), as canções populares estiveram presentes no período de instalação do protestantismo,
onde o salmo não era o único cântico presente. Lutero e outros pastores “empregavam o método da
Contrafaktur” quando “os hinos eram modelados por canções populares e adaptados às suas melodias. Nem

137
campanhas religiosas reformistas (protestante e católica) foram disseminadas e tiveram
momentos e acentos distintos, conforme os seus realizadores, as regiões e as épocas. O
destaque passou a ser dado à “ética dos reformadores”, pautada na decência, na ordem e no
autocontrole, em oposição à “ética tradicional”, com ênfase na generosidade e tolerância
das práticas populares.
As contestações dos reformadores tocavam em dois pontos; o primeiro, de ordem
teológica, sustentava que as manifestações seriam sobrevivências de práticas “pagãs”,
“blasfêmias”, “ofensivas” e “escandalosas”. Vigoraria a preocupação em estabelecer a
separação entre “sagrado” e “profano”, definindo e estabelecendo modo de lidar com o
religioso. O segundo, de foco moral, era formado por críticas às ações consideradas
excessivas porque exaltavam a “embriaguez”, a “luxúria”, a “violência e a vaidade”, com a
prevalência do “mundo” e da “carne”. Por esse prisma, a Reforma protestante era
caracterizada por preocupação moral e ressaltou uma atividade pautada na “eliminação”.
No entanto, em diversas regiões, o teatro, os rituais e as festividades persistiam entre os
fiéis protestantes, podendo ser utilizadas para ridicularizar o dirigente católico, marcar a
ineficácia das “superstições” e da ação do clero católico.
Com o avanço da Reforma, no século XVII, as práticas culturais foram sofrendo
constantes ataques de “reformadores mais rigorosos”. Nessa tarefa, os “pregadores leigos”
também contribuíram para a renovação dos costumes, atacando o divertimento popular. O
século XVIII foi marcado pelo prosseguimento de campanhas reformistas e o empenho do
clero em disseminar comportamento regulamentado e pautado na Palavra em favor da
reforma moral e dos costumes. O alvo seria composto por canções populares, pelas feiras,
pelas mascaradas, pelas peças, pelas baladas e pelo carnaval. Portanto, as preocupações
seriam de ordem secular - uma “reforma dos costumes” - do que especificamente litúrgica e
doutrinária.
Apesar das empreitadas de reformadores, não se pode esquecer que parte do público
foi se tornando mais letrado e, portanto, menos voltado às imagens e mais atento à Palavra.

todos os reformadores aprovavam a contrafação, mas Lutero praticava-a de bom grado”. O recurso à música
popular era, então, algo recorrente no início da Reforma, demonstrando não existir a distância entre a nova
prática religiosa e as expressões do povo. Também indicava ser alguns reformadores mais tolerantes e esse
seria o caso de Lutero, pois não se opunha tanto às manifestações populares, inclusive o carnaval. Para os
reformadores, o teatro e as festas teriam lugar apto à comunicação com o público, pois, com eles, o povo
lembraria e aprenderia o visto e o ouvido – como os sermões e as leituras bíblicas.

138
Também o avanço da revolução científica sublinhou o distanciamento da cultura popular
por parte do clero, dos burgueses e da nobreza em distintos lugares e épocas. Alguns
exemplos estariam na adoção de línguas, na proximidade com o conhecimento formal e na
aprendizagem de dança considerada mais refinada. O distanciamento das “classes
superiores” do considerado popular ocorreu com a interiorização de certa moral. Ela
defendia uma noção de ordem e de autocontrole e, não por nada, confortável ao ambiente
protestante. Não obstante, eram efetivadas impressões e distribuições de livros, livretos e
folhetos e o aumento da alfabetização também foram fatores favoráveis para a preservação
de contos e de canções populares.
Thompson (1987:291-347) afirma que, a partir do século XVIII, houve a imposição
de disciplina social e moral aos trabalhadores e disso a assertiva religiosa não esteve
ausente. Dos púlpitos ressoavam reprovações direcionadas às manifestações esportivas, às
festividades e outras formas de divertimento da população. Mas, o período não viu o
desaparecimento de entretenimentos considerados “mais rudes” – lutas de animais e
pugilismo. O século XIX, não foi diferente, ataques e proibições eram direcionados para as
atividades esportivas, aos festivais ou tudo aquilo que compunha as “tradições pré-
industriais” e vivenciadas pelos operários. A imprensa fazia sua parte, criticando as
manifestações e as práticas esportivas tradicionais.
O combate implementado pelo metodismo contribuiu para colocar uma “nova
disciplina” adequada à economia fabril, estimulando o desinteresse e o desaparecimento de
locais para recreação. Com a campanha, as práticas esportivas, consideradas violentas e
tradicionais, cederam lugar a outras mais sedentárias e adequadas à atividade laboral.
Soma-se a isso, o estímulo para uma vida distanciada daqueles não guiados por valores
religiosos. Apesar do quadro, a resistência marcou presença, porém a operação disciplinar
atingiu o operário “médio inglês”, figurando como mais metódico, condicionado pelo
“ritmo da produção” e menos afeito aos atos populares e considerados violentos.
O cenário descrito pode contribuir para entender a peculiaridade do protestantismo
no Brasil, por ocasião de sua penetração, no século XIX. Os missionários mantinham
distâncias das práticas culturais e religiosas em solo nacional 112, onde a religião estava

112
O Brasil, no século XIX, foi marcado por empreitada protestante mais consistente, porém existe anterior
presença dessa expressão religiosa. A dificuldade de penetração do protestantismo estava presente na empresa
colonialista formada por holandeses calvinistas, no século XVII. Essa presença revelou ao Novo Mundo

139
fortemente ligada às instâncias social e política. A atuação protestante passou a combater o
catolicismo e a desprezar as demais manifestações religiosas e culturais ocorridas nas áreas
urbana e rural do país. Tratava-se de incômodo com aquilo proveniente do encontro entre
os diversos grupos culturais e, principalmente, com a configuração que o catolicismo
passava a ter. A reprovação das manifestações sincréticas alcançava o catolicismo, pois os
missionários entendiam que as práticas do catolicismo romano seriam marcadas por
desconhecimento bíblico de teólogos e de fiéis. Estes conheceriam precariamente os
verdadeiros princípios cristãos, vivendo uma prática religiosa perpassada por cerimônias,
por pompas, por ritos, santos e por festas (Barbosa, 2002: 61,64). Portanto, os fiéis e o
clero católico estariam perdidos em crenças e em práticas que remontavam ao cristianismo
pré-reforma visível na importância dada à água benta, às imagens, às relíquias e às
benzeduras.
Diante de tal cena, caberia aos protestantes evangelizar e converter os brasileiros. O
peso da ação dos missionários e de seus instrumentos de evangelização estava em tudo que
ressaltasse a Bíblia: cânticos, sermões e distribuição de exemplares. Os protestantes
criticavam a Igreja Católica e o modo de vida registrado na sociedade brasileira,
evidenciando a visão sobre o “bem e o mal” que os orientava. Isso teria funcionado como a
medida de relação entre os protestantes e as expressões religiosas e culturais existentes no
Brasil. Diante da igreja vigente no país, de capacidade em construir formas ritualísticas
complexas e, ao mesmo tempo, lidar com os traços das religiões africanas no catolicismo,
os missionários entendiam que “Si nós considerarmos o Brasil do ponto de vista religioso,
ficaremos admirados da soma de ignorância e superstição que aí domina” (Kidder e
Fletcher, 1941:170).
O desconforto diante da peculiaridade da cultura e da religiosidade nacionais não
seria restrito aos protestantes estrangeiros. Por razões outras, as criações populares e o
sincretismo religioso atrairiam outros olhares igualmente pouco tolerantes. Havia uma
concepção de nacionalidade que enfatizava aquilo registrado no país. Vejamos.
Segundo Pereira de Queiroz (1988:62-78), na ocupação do território brasileiro, a
igreja católica esteve presente no desenvolvimento da sociedade, porém, é pertinente

prática religiosa exclusivista e menos universalista, o que dificultaria a adesão e a acomodação das
religiosidades aos “ideais cristãos” seguidos pelos holandeses (Holanda, 1993:35-36).

140
destacar, o catolicismo não era algo homogêneo, havia distinções conforme a ocupação
territorial: interior e litoral. As áreas mais interioranas do país, ocupadas também por
colonos portugueses, a suposta preservação de crenças e dos ritos do “catolicismo ibérico”
também compreendeu discreta criatividade em decorrência da ausência do clero. Figuras,
lugares e agentes alimentaram as práticas religiosas locais. Para a autora, o exercício
estabeleceu hierarquia ao compreender os “agentes de culto”. Eles seriam possuidores de
autoridade e aplicados em alimentar as manifestações de fé. Os agentes podiam ter
recebido o saber no grupo familiar ou em posterior aprendizado com alguém “mais
experiente”; havia os andarilhos, realizadores de voto de pobreza e celibatários que podiam
organizar confrarias e solicitar recursos para a construção de locais não profanos; por fim,
encontravam-se aqueles detentores de maior reconhecimento por modo de vida e realização
de milagres, reconhecidos como os “eleitos do Senhor”, com muitos seguidores. Oposto a
esse catolicismo, vigorava outro, desenvolvido no litoral, nas cidades, que contabilizava a
presença efetiva do clero, guardião de práticas oficiais do catolicismo. Tanto as práticas
religiosas “romanas” como as “rústicas” desenhavam a heterogeneidade religiosa.
A configuração religiosa e cultural brasileira não era problema para os fiéis, mas
esteve presente nas reflexões de alguns intelectuais brasileiros em momento designado de
“negação da identidade nacional”, por volta da segunda metade do século XIX. Para a elite
intelectual e o clero, a preocupação em desconsiderar o que fosse oriundo das “diferenças
culturais” indicaria investimento no considerado próprio de “homogeneidade cultural
interna”. Seria a defesa da emergência de “sentimentos nacionais”, no interesse pelo
“desenraizamento dos traços culturais africanos”, forjando a identidade do país em
conformidade com a “civilização ocidental” (leia-se européia). Posteriormente, as primeiras
décadas do século XX, a visão foi mudando diante da preocupação com os “sentimentos
nacionais”. Manifestos marcaram a exaltação da integração de expressões culturais
produzidas por povos diversos. Daí se desprenderia o desenvolvimento e a manutenção de
sentimentos de nacionalidade, questão candente na sociedade brasileira. As transformações
culturais e religiosas decorreriam de nova disposição diante de componentes culturais

141
distintos, e a mistura e a transformação seriam reconhecidas como partes de algo singular: o
“ser brasileiro” 113.
Apesar da transformação da concepção sobre a cultura nacional, os grupos
protestantes aqui aportados, mesmo tendo encontrado, em certo momento, atmosfera
intelectual menos divergente, continuaram a sustentar uma visão de mundo baseada na
distinção, na separação das coisas e das manifestações populares. Entendia-se existir um
meio religioso e fiéis livres daquilo desprivilegiado, posto ser parte do “mundo”.
Acontece de a sociedade e o campo religioso serem refletidos a partir da noção de
sincretismo. A discussão sobre sincretismo aponta para interações entre grupos sociais
basilares na construção da nação (Da Matta, 1983). Contudo, a noção de sincretismo foi
tomada para falar em “mistura” e confrontar com aquilo pensado “puro”, indicando a
confusão que atravessava a sociedade. Porém, outra compreensão é possível; ela permitiria
falar em relações e novos sentidos. Daí tomar o conceito para pensar a sociedade brasileira,
onde, diferentemente de Portugal, marcado por acumulação e referência local, teve lugar
algo com características próprias com o não enraizar, a ruptura com o constituído com o
grupo local, sua persistência e história. Para Sanchis (1995), no Brasil, teria havido
confluência entre portugueses – direcionados pelas ações da Igreja e do Estado -, os
indígenas e o terceiro grupo também retirado de sua base topológica e social: o negro. A
mescla resultante expressaria os “encontros transformadores” entre os três grupos e
proporcionou uma porosidade identitária com as multiplicidades de ser. Religiões africanas,
indígenas e o catolicismo e, mais tarde, outras inscrições, como o budismo, as seitas
orientais e os pentecostais, deixam evidentes as convergências entre os grupos religiosos.
Os “encontros transformadores” proporcionaram os “cruzamentos de identidades
religiosas” processados na sociedade brasileira, não ficando, porém, restritos ao âmbito
institucional. Para o autor, fiel e instituição constituem dois níveis analíticos do exercício
sincrético. Ambos apresentam distinções relacionadas ao cotidiano do fiel e outra que

113
Exemplos são encontrados nos manifestos de Oswald de Andrade e de Gilberto Freyre para os quais o país
seria pensado a partir da cultura nele produzida. Assim, Andrade (1972:5) diz: “o carnaval do Rio é o
acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso.
A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança”. Freyre (1996:
61) diria que: “... Mas como noutras artes, as três grandes influências brasileiras e de sua estética são a
portuguesa, a africana e a ameríndia, com as predominâncias regionais assinaladas”.

142
descortina articulação viável aos arranjos capazes de tensionar ou diversificar o campo
religioso.
O lado protestante - reconhecido por marcada oposição ao diferente, sendo fechado
e distante de qualquer projeto de combinação - tem evidenciado outra feição. Há casos de
igrejas constituídas com a inserção, pela oposição, de elementos oriundos de outras
tradições religiosas como, por exemplo, o caso de ataque aos cultos de possessão, mas esses
são centrais na construção do neopentecostalismo. No nível institucional a ligação entre
cultos de possessão e o neopentecostalismo pode ser vista com reservas, porém na
dimensão pessoal algo diferente ocorre. Isso pode acontecer por ela fornecer ao detentor
reconhecimento no interior do grupo familiar e de vizinhança, com a procura pela cura e de
contrafeitiçaria (Birman, 1996). Além da constituição denominacional, o trabalho de
membros e as relações estabelecidas anteriormente contribuem para a alteração do meio,
pois os fiéis, em suas localidades, (re) elaboram os fundamentos de seu grupo de
pertencimento religioso (Sanchis, 1995; Birman, ibid.).
Também a via de entendimento do que se produz e se configura na América Latina
não passa por abordar os mecanismos de separação e o que deles resulta. Para Canclini
(1997:304), seria adequado visualizar e refletir as mesclas, os cruzamentos culturais.
Portanto, a segmentação e a hierarquização que excluem pessoas, áreas e expressões
artísticas cedem lugar a algo em circulação. Por esse prisma, afirma o autor, “as culturas já
não se agrupam em grupos fixos e estáveis e, portanto, desaparece a possibilidade de ser
culto conhecendo o repertório das ‘grandes obras’”. As composições, as mesclas passam a
compor as coleções e as construções feitas e vivenciadas.

(Re) encontros religiosos e produtivos

As reflexões aqui contempladas permitiram visualizar um aspecto do protestantismo


a partir de outro ângulo: a festa seria um componente do cristianismo que, porém, foi
paulatinamente exilado do protestantismo. A apresentação de meio formado por distância
de práticas culturais populares e religiosas encontrou correspondência com certa camada da
sociedade brasileira igualmente avessa àquelas manifestações. Ao lado disso, o controle
moral e emocional foi difundido e contribuiu também para caracterizar e orientar os grupos
e os adeptos do protestantismo no Brasil.

143
A configuração protestante registra a coexistência entre a visão de controle moral e
de distância cultural e outra demarcada por possibilidades de negociação. Assim, a reflexão
sobre sincretismo é favorável para compreender as inscrições de black music gospel e de
“festa”. Estas integrariam, ao lado de outras iniciativas, a segunda via, pois amplificam o
nível da vivência e, portanto, a dimensão dos “encontros transformadores”, seja do adepto
diante de nova crença, seja dessa mediante a ação do fiel capaz de ressemantizar e também
mesclar elementos e, como está sendo indicado aqui, não somente de religiões distintas. A
formulação dos promotores é viabilizada por confluências entre elementos e visões capazes
de expressar os estilos musicais e marcar determinado modo de inserção no mundo. Trata-
se de um critério de organização que delineia a crença e o religioso a partir de constantes
reconstruções. Os “encontros transformadores” ficam explícitos com as experiências e as
percepções, vigorando com a música 114, com a crença, com outros leigos ou líderes
religiosos, com a política, com grupos defensores da valorização cultural e com a
tecnologia. A partir disso, certas iniciativas permitiriam indagar sobre as diferenças entre os
evangélicos e aqueles presentes em “baladas”, “shows” e “festas”.
Os entrevistados têm enfatizado a “festa” como esfera de comemoração e de
distração. Um exemplo é o pastor Manga que transformou a nave da igreja ao colocar
“luzes, com DJ e com banda tocando ao vivo, mas sempre com uma mensagem, uma
pregação mesmo”; do mesmo modo, Edinho fala de reunião peculiar, de um tempo, pois no
“passado existiam vários tipos de festa que o povo ali se alegrava”; L´Ton destaca o
entretenimento, o relaxamento, pois a “pista não pode murchar”. O templo, até então, era o
lugar da contenção, da ausência de excessos, caracterizado por modo de estar no mundo
diferente do existente nas festas populares (Alves, 1980). As atuações de DJ e de banda
musical, no lugar dos sacerdotes, manipulando luzes e equipamentos, devem ter a mesma
eficácia que as palavras e os aparatos utilizados por pastores. O diferencial está naquilo que
circunscreve a “festa” e atividades semelhantes.
O anteriormente ausente do universo sagrado e religioso passa a fazer parte dele; ou,
como dizem alguns, seria um retorno a situação anterior? Talvez seja isso que Edinho
114
Transformações e construções em outros âmbitos também decorrem de encontros. No caso do samba, a
interação entre sambistas e intelectuais, o surgimento de rede de relações e de arranjos foram fundamentais
para estabelecer ligações entre pontos da cidade e apresentação do samba como música brasileira (Vianna,
1995).

144
queira expressar ao falar da “alegria”, mas, no caso, sua formulação possibilita refletir uma
proximidade com uma visão religiosa protestante anterior a reforma moral, dos costumes -
e antenada com a concepção industrial. Os depoentes evidenciam não a inversão da
organização do meio religioso, mas a retomada de algo há muito abandonado, porém
argumentam a partir dos textos bíblicos. A partir disso, explicitam que o ausente passaria a
ser presente, passando-se da leitura de textos à manifestação emocional, da austeridade e do
autocontrole à descontração, ao desprendimento e ao tempo da festa e do riso, assim, saindo
do tempo marcado pela sobriedade religiosa (Bakhtin, 1999; Burke, 1995).
O outro lado que pode ser visualizado nos eventos propostos está ligado diretamente
ao destacado por Edinho e Charles, mas não somente por eles. A partir do entretenimento,
buscam englobar o freqüentador em meio moral; suas falas ressaltam o “conjunto de
instruções” peculiar ao meio evangélico. Esse investimento no controle também está
presente no trio elétrico da CEISZ, no bloco carnavalesco Cara de Leão e também na
Escola de Samba Jesus Bom à Beça, quando demonstram a possibilidade de outro modo de
vida no qual diferenças e ambigüidades transcorrem nos dias de carnaval e de festa quando
as ruas e as passarelas são ocupadas agora por fiéis atentos em arregimentar outros para sua
crença. Do mesmo modo, os clubes, as boates e as casas especializadas em comemorações
figuram na agenda daqueles em busca da disseminação de valores do cristianismo.
A escola de samba, o bloco carnavalesco e a “festa” colocam elementos pertinentes
sobre a especificidade dos evangélicos na atualidade. A musicalidade, as brincadeiras, o
destaque ao emocional e ao corporal exemplificam as muitas atividades efetivadas. Elas
podem parecer exóticas diante de outras em vigência, porém podem contribuir para
construir o retrato de segmento de cristãos. Os materiais apresentados retratam as distinções
entre as equipes, de suas propostas e preocupações no sentido de fornecer à “festa” o
reconhecimento do grupo religioso. De outro lado, a realização dos eventos é marcada por
elementos próprios às equipes, como as experiências musicais, religiosas e sociais dos
promotores. Tudo isso é formado por atividades distintas e complementares e, desse modo,
permitem a associação – seja para o entretenimento, seja por objetivo religioso – para a
qual a música e a dança são elementos básicos. Com elas, pode haver o escape do cotidiano
e das regras sociais do grupo religioso como contribuir para excitar e distrair (Durkheim,
1989:456).

145
O que há nas reuniões? Alianças

A manifestação, ao ser visualizada por algum tempo, permite a impressão de o


momento para oração ser menor do que aquele voltado às outras manifestações. Essa não
seria a visão mais adequada, pois, para os envolvidos, a atividade constitui algo que
ultrapassa a diversão. Os depoimentos coletados evidenciavam estar diante de momento
peculiar para os presentes – mesmo em posições diferenciadas, como organizadores e
freqüentadores. O salão, a pista de dança, a ensurdecedora canção integravam um todo
composto por desdobramentos planejados e espontâneos – fundamentais à composição da
reunião.
Esse todo fica evidente nas edições do projeto Explosão Gospel (EG), elaborado
para a descoberta de intérpretes de canções, abertas com a oração realizada pela promotora
que, ao enfatizar a presença de Deus no local, dirigia breves “louvores”. O mesmo pode ser
observado entre os concorrentes no momento da apresentação. Também no Encontro
Nacional de Louvor Profético (ENLP), realizado anualmente e caracterizado por
apresentação de cantores e pastores, busca-se demonstrar a vigência de um “tempo de
profecias”, de “avivamento” marcado por operações divinas com a transformação da
sociedade. Há a exaltação a Deus por meio de exclamações, canções, choros, balbucios e
danças 115. Os componentes não podem ser subtraídos devido os sentidos decorrentes
atribuídos à evangelização e à “adoração”.
Na “festa”, há a aparente ausência desses sentidos, caso seja ressaltado o
entretenimento. Todavia, a observação revela que aqueles e outros elementos estão também
presentes e formam o arranjo já descrito. O pregador, durante a madrugada, diz “... neste
local Te adoramos e oferecemos nossas palmas” – palmas, assobios e gritos eram
registrados – e tudo prosseguia embalado por montagem sonora. Ela depois marcava o
retorno às danças e à música. Um componente da equipe GN, ao apresentar o CD Gospel
Night I, afirmava o compromisso de todos e a importância da música, da dança e da
brincadeira para o ouvinte ficar apto a receber alguma “mensagem”. Assim, passa a

115
No encontro do ENLP, em 2002, ocorreu uma oficina sobre a dança como instrumento de adoração,
ministrada por professora de dança. A seu ver, a dança conduz a integração da “congregação para momentos
de júbilo, edificação, libertação e restauração na presença de Deus” (Coimbra. “A dança no louvor e na
adoração”, revista do Encontro Nacional de Louvor Profético, 2002, nº05, p.17.

146
experimentar um “... contexto, uma alegria que não acaba como a droga acaba, como o
efeito do álcool acaba e vai pra casa e fica triste. É uma alegria vinda diretamente do trono
de Deus e essa alegria não acaba nunca, é uma alegria eterna...” 116.
O ato em questão é ressaltado por todos os promotores, pois entendem que os
presentes recebem exemplos de vida, esclarecimentos sobre a realidade, momentos de
descontração e, acima de tudo, algo vindo do divino e transformando a vida. Essa visão
embasa as associações engendradas e indica ser a “festa” direcionada a alguém. Como as
procissões e outras festas, existe o centro em torno do qual a aglutinação ocorre (Da Matta,
1979:92).
No centro da manifestação, estariam os atos de “louvar” e o de receber; ambos
sustentariam as múltiplas relações constitutivas da “festa” e tantas outras iniciativas. Eles
marcariam outra noção de tempo e espaço, porém não o tempo rotineiro, do trabalho, das
obrigações cotidianas. Não o espaço determinado somente por exigências do mercado, da
sobrevivência 117. Seria o espaço oriundo da interação entre promotores e freqüentadores.
No entanto, essa não pode ser vista da maneira mais simples, como aquela entre produtores
e clientes; ela ocorreria entre o organizador e o ouvinte-dançarino, com seu estado de
ânimo alterado com o recebido. Tudo marcado com a alegria e o “louvor”.
A música e a dança são dois elementos que circunscrevem o binômio “louvar” e
“receber”, marca da manifestação religiosa e características das transformações. Nesse
sentido, existem outras ações como, por exemplo, a proposta de culto oriunda do
questionamento da distância das raízes culturais. Daí o registro da “música gospel”, da
black music gospel, de “ritmos populares no culto de adoração” 118. Esse culto seria
caracterizado pela ligação entre os homens e outra dimensão por meio da música. Sobre
isso, Manga, atualmente pastor da Igreja Vineyard, articulador de diversas reuniões
musicais no país, diz o seguinte:

116
Fragmento do depoimento de Marcelo contido na faixa multimídia do CD Gospel Night – a festa - vol.
01, BV 029.
117
Como apontado no primeiro capitulo, em visão oferecida por líder religioso, ao observar ser o culto, a
“adoração”, realizado distante do comércio, representado por um “vale”. No entanto, é oferecida outra noção
de “mercado” como algo não totalmente profano, mas fundamental à produção e à circulação de bens
sagrados.
118
Trata-se da consideração de alguns analistas protestantes presente na reflexão de Dorneles, Vanderlei –
“Liturgia pentecostal rompe barreiras entre o religioso e o popular”, disponível em:
www.musicaeadoracao.com.br/artigos/meio/liturgia-pentecostal.htm, acessado em 20/10/04.

147
Aí tem o Espírito Santo por trás disso, aí já é místico, aí já é uma coisa
mais... é a ação de Deus tocando, agindo na pessoa, trazendo à lembrança
algumas coisas e quando vem à lembrança e a pessoa se abre, ela
encontra... Ela encontra... Ela encontra algo saudável. É terapêutico
porque o Espírito Santo está agindo na vida da pessoa, a música como
esse elemento.

Os ouvintes de “música gospel”, não freqüentadores de “festa”, observam ser a


música importante para a experimentação da “alegria” e o alcance de outro estado de
ânimo. Para Charles, da equipe GN, o “louvor” é marcado pela ligação entre homem e
Deus, para o qual:

A música é só um complemento disso. A essência da adoração é você ter


Deus na sua vida, independente de música. O louvor na minha vida
representa muitas coisas. Representa intimidade. Quando você está
louvando você está adorando, você tem intimidade, você tem o
direcionamento de Deus para muitas coisas. É a gratidão pelo fato de
você está ali, você está vivo, você está respirando, você está podendo se
alimentar. Várias coisas, é momento de gratidão, é momento de
celebração, é momento de entrega, de busca... muitas coisas, na área de
louvor, envolve tudo isso.

Todos destacam exatamente o “louvor” como o modo de agradecer a Deus e


também de sua atuação capaz de transformar e, portanto, receber reconhecimento, gratidão
e ser celebrado. E, nesse ponto, a “festa”, como apontado até aqui, constitui o momento de
celebração.
As iniciativas aqui tratadas tiveram início, são mantidas e viabilizam intercâmbio
entre os envolvidos. Os promotores de equipe se apresentam nos eventos de outras, e
tentam elaborar uma agenda sem conflitos entre as datas de apresentação de cada grupo. Há
cooperação entre eles 119, mesmo que alguns não toquem ou cantem, podem auxiliar
fazendo orações durante os encontros, como registrado por Nega. Estas composições
indicam a vigência da noção de retribuição. Com ela, são estabelecidas associações que

119
Isso não quer dizer que não ocorram conflitos. Eles são negociados também com a abertura à integração
de um grupo em alguma atividade. Isso ocorreu entre a GN e a SC diante de situação entendida, por
integrante da SC, como conflito. A solução foi o convite feito aos integrantes da GN para participação na
comemoração do aniversário do jornal e-black, ocorrida na quadra da Escola de Samba Portela, no bairro de
Madureira, área não central da cidade do Rio de Janeiro. O objetivo era reunir artistas com trabalhos
reconhecidos na promoção da “cultura negra”.

148
sustentam atuações e diálogos entre os promotores e deles com o público, com o sagrado e
com as lideranças existentes nas associações institucionalizadas.
Nesse sentido, Mauss (1974: 39-129), ao analisar os fenômenos presentes nas
sociedades e marcados por prestação e contraprestação, observa que as situações sociais
podem e são marcadas por específico vínculo entre os homens. Isso coloca a “obrigação de
dar”, de receber e também de retribuir. Diversas cerimônias evidenciam esses momentos.
Para o autor, a dimensão da troca não é definida somente por bens materiais, móveis ou
não, mas “... trata-se, antes de tudo, de gentilezas, banquetes, ritos, serviços militares,
mulheres, crianças, danças, festas, feiras em que o mercado é apenas um dos momentos...”
(Mauss, ibid.). Assim, portanto, as alianças são dispostas, vividas e celebradas, conectam
seres entre si.
Os promotores estabelecem alianças, rivalizam-se e cada equipe deve superar a
outra na “festa” realizada. Tenta-se algo diferente e capaz de eclipsar os outros grupos,
melhor ainda quando os integrantes estão presentes na reunião ou participam do leque de
atrações. Assim, uma equipe pode trazer o cantor ou o DJ mais renomado, outra reúne
vários DJs em disputa ou propõe baile à fantasia; tudo isso é constante. Tentam oferecer
aos presentes a melhor “pista”, a “festa” mais incrementada – efeitos e canções – para que o
“louvor” seja realizado. Como diria Mauss, a rivalidade é registrada na forma de presentes
oferecidos aos outros e devem constar, em decorrência, em convites recebidos e, assim,
ganham reconhecimento. Tudo isso demarca modo de comunicação compartilhado, vivido,
retribuído, estendendo o reconhecer aos participantes.
Há mais. O evento é concebido com a finalidade de ser canal para a
experimentação de “alegria”, da vida e tantas outras coisas dadas por Deus e deve ser,
então, “adorado”, celebrado com a disponibilidade em dançar e “receber” a “mensagem”
através da música. É estabelecida a relação entre quem faz a doação, possuidor de poder, e
o recebedor que recompensa com danças e cantos. A retribuição compreende o retorno de
tal poder ao doador de algum bem, de coisa, de objeto, de alegria, de vida ou o que seja.
Estabelece-se nexo não definido somente por aspecto material, jurídico ou religioso, mas,
acima de tudo, para Mauss, ele é de natureza espiritual, ligando coisas, pessoas e grupos.
Conforme o autor, a ligação entre homens e deuses é estabelecida pela dádiva; esta
pode permitir o acesso à paz, afastar os “maus espíritos”, como também alcançar a alegria e

149
a vida. No caso da “festa”, o que pode ser? O depoimento de Marcelo ressalta a “alegria”,
Manga enfatiza a atuação do Espírito Santo na vida do fiel e, por fim, Charles fala da
“vida” como dádiva divina. Os promotores e os festivos freqüentadores das reuniões
apontam a “música” e a “festa” como canais de “louvor e adoração”, como diria Pedro,
produtor musical, de comunicações “vertical” e “horizontal”, entre os homens e entre eles e
o divino. Desse modo, os dançarinos e ouvintes esperam obter coisas em um mundo no
qual não detêm o domínio. Aliás, são, para os envolvidos, grandes coisas porque ganham
“vida” e “alegria” duradouras. A comemoração é composta por música, por dança, por
alegria, por equipamentos, considerados “aparatos ministeriais ” 120. São coisas importantes
para os envolvidos, pois os materiais são coisas sagradas que compõem a virtude da
manifestação; ela é integrada por tantos seres e todos conectados pela dádiva que informa e
constrói o ato “... que recebe e vomita ao mesmo tempo os espíritos dos jovens iniciados”
(Mauss, 1974:121).
Ao destacar a importância da música e da “festa” para a conexão homem - Deus, de
um lado, e, de outro, impedir que os fiéis se distanciem de suas igrejas, são visíveis os
arranjos, os rearranjos e as combinações efetivadas. Elas também evidenciam um meio
heterogêneo, formado por forças, às vezes, concorrentes, conflitantes. Então, a “festa”,
apesar da atração e de forças, motiva polêmicas, e pode configurar perigo para parte de
líderes religiosos.

Nova visão: força e perigo

A reserva de líderes institucionalizados diante da “festa” não é algo recente. A


oposição às práticas populares de diversão é há muito registrada no âmbito religioso,
sempre ávido por distinção. No entanto, leigos inserem diversas propostas. O esperado
termina por acontecer: os eventos, nem sempre demarcados por corpo doutrinário, acabam
resultando de ações independentes, marcadas por músicas, danças, falas, objetos e
significados circulantes e precários, devido à apropriação. Esses são eficazes em

120
Conforme depoimento de Marcelo Araújo, na faixa multimídia, CD Gospel Night – A Festa , BV 029.

150
possibilitar ao freqüentador experiências distintas daquelas vividas no cotidiano e
consideradas “sobrenaturais” 121.
A descrição da reunião, o destaque dado aos grupos e as relações estabelecidas entre
os envolvidos, permitiu ver as combinações, as mesclas e as inovações apresentadas. As
interações ressaltam as alianças e os vínculos; o receber e o retribuir delineiam
determinadas práticas. Porém, não é somente isso. O desenho da “festa” viabiliza
apresentar e demarcar relações e visão contrárias, apresentadas por líderes religiosos.
As atividades musicais e religiosas inscrevem tensão, pois as práticas promovidas
parecem instalar conflitos com aquelas estabelecidas na esfera oficial, pautada no
predomínio de sermões, de tratados e de textos das Escrituras, utilizados cotidianamente.
Em tal arena, prepondera a visão de conquista (da terra, de fiéis) com vistas a validar a
designação divina e o do “ritual da palavra” (Bercovitch, 1988). Ou então, com a reedição
do Pentecostes, outras igrejas foram organizadas e passaram a enfatizar menos a memória
escrita em favor de pertencimento a partir do “êxtase coletivo”. Esse compreende a
manifestação de dons, do Espírito Santo, como também a presença de danças, de orações e,
para alguns, o enfraquecimento da memória oficial (Rivera, 2001). Com proximidades e
distanciamentos, os encontros observados contemplam as articulações de leigos e também a
corporalidade. Ambos independem da manifestação de qualquer dom ou “sistema
educativo”, pautado nos livros, e dirigido aos líderes como também aos leigos (Weber,
1998: 364-368). Isso oferece panorama do nível religioso no qual a “festa” esteja presente.
As emissões de mensagens, as músicas e a dança são defendidas, por exemplo, pelo
depoimento do pastor e DJ que afirma: a “carne também deve louvar ao Senhor”. Por esse
prisma, os envolvidos parecem agir na contracorrente de líderes institucionalizados. Estes
defendem a ruptura com o “mundano” ou com aquilo considerado próprio de expressões
religiosas caracterizadas pela possessão. Apesar dos argumentos e tentativas de promotores
em validar a “festa” como “trabalho sério”, mesmo com o reconhecimento do público,
existem críticas e oposições diante da possibilidade de indistinção com o “mundo”. A
preocupação é com as fronteiras, com as possibilidades de quebra da distinção. Isso fica

121
A “festa” da GN exemplifica isso, principalmente, quando Francisco JC, ao ter por sustentação o trabalho
do DJ, diz: “algo sobrenatural vai começar agora porque você está aqui (...) Esta noite, com vocês Gospel
Night - tem gente santa do teu lado e você vai entender isso em liberdade”.

151
evidente no depoimento de Sérgio, da equipe SC, sobre o início de seu trabalho. Diz ter
comunicado sua iniciativa ao pastor de sua igreja e ao pai (também pastor batista). Obteve
por resposta o seguinte: “(...) Ele chegou e colocou a opinião dele, mas não colocou
nenhuma objeção. Desde que eu não vinculasse o que estava fazendo com a Igreja Batista
que eu pertencia (...)”. Mais adiante complementa: “Por não ser um evento comum, um
evento conhecido ... Pra eles ... Eles não gostariam de chegar e, de repente, colocar a ‘mão
no fogo’ por uma coisa que eles não conheciam. Por uma coisa obscura”.
Não ocorreu a tentativa em coibir a efetivação da atividade, mas havia o temor com
a possível associação entre ela e a instituição. A posição diante da “coisa obscura” reflete a
precaução de líderes com elementos não formulados no interior da arena institucionalizada,
fora de seu campo de influência. Em meio marcado por ações e decisões, tomadas por
dirigentes legitimados e seguidores da tradição, qualquer iniciativa, surgida fora desse
âmbito, não poderia angariar reconhecimento.
A situação apresentada por Sérgio não é algo isolado, pois há os defensores de
inovações e os partidários de posição contrária. Com eles, outros questionamentos
trafegam. Debatem se tais atividades contribuiriam ou não para a construção espiritual dos
membros, como exemplo, há o pronunciamento de pastor da Igreja Batista que afirma o
seguinte:

O jovem cristão tem que entender que novidades desse tipo são brechas
espirituais das quais o inimigo de nossas almas se aproveita para
enfraquecer a moral cristã. Hoje, a Igreja deve cuidar para que não haja
uma inversão de papéis, e o mundo invade a Igreja com o seu modo de
vida, ao invés de o modificarmos através dos valores do cristianismo. 122

Os depoimentos permitem visualizar a vigência de mentalidade de distinção de


acordo com a qual os fiéis não devem ser próximos ou copiarem aquilo considerado
próprio do “mundo”. Acusações são estabelecidas porque alguém estaria auxiliando o
“inimigo” a disseminar aquilo do “mundo” de baixo – mundano e licencioso. Portanto,
visa-se preservar a conduta disciplinada, de modo controlado de estar e agir no mundo
(Thompson, 1987 e Weber, 1996). A relação entre “carne” e “louvor” aloca a quebra de
unanimidade, pois alguns entendem a necessidade em manter a oposição entre igreja e

122 Tavolaro.“Gospel na pista”, revista Enfoque Gospel, abril, 2002, p.20-24.

152
“mundo”. A tensão envolve concepções, moralidade e valores religiosos colocados em
risco diante de inovações independentes e difusas.
TR, componente da equipe SC, estabelece que a “festa” em nada concorre ou
polariza com as instituições evangélicas, e afirma:

Claro que a gente sabe que tá representando Jesus Cristo na terra. Mas,
nem tampouco a gente não se iguala à condição de um pastor ou substitui
como uma igreja; a gente não faz isso; o que também não é a nossa
intenção...eu não tô tirando ninguém da igreja, eu não tô tirando ninguém
dele; muito pelo contrário, tô trazendo gente pra ele. Eu tô fazendo um
trabalho que ele deixou de fazer um tempo. De repente não tem ninguém
na igreja dele que se levantou pra fazer. Então, eu tô levando o cara lá. Eu
prefiro que ele vá pra igreja do cara do que ele fique na pista aprendendo
besteira. Aí o pastor: “mas como que é isso? Que trabalho é esse?” Aí a
gente convida o pastor pra ir, pra dar uma olhada no nosso trabalho.

O depoente reconhece não se tratar de projeto de instituir uma igreja em


concorrência com as demais, produzindo bens religiosos e apresentando corpo doutrinário e
de especialistas. O passo estaria em negociar com a posição oficial e mostrar estar a “festa”
voltada a confirmar, a seu modo, aquilo próprio do estilo de vida evangélico, e não se opor
a ele. E, portanto, TR espera surpreender e, ao mesmo tempo, obter reconhecimento por
parte de líderes religiosos.
A partir do que é dito, a relação proximidade-distanciamento deve ficar no âmbito
da forma, com certo relaxamento comportamental e comunicacional. Nada além. O
conteúdo - quem sabe, “a moral cristã” - deve ser concebido, preservado e transmitido por
aqueles detentores de posições legitimadas. Tudo isso revela o caráter conservador da
abertura evangélica em nome de estratégia eficaz a fim de converter diversos públicos
(Burity, 1997) 123. Mesmo assim, a alteração da forma ainda pode ser entendida como
perigosa por líderes religiosos que atribuem a tudo isso poderes destrutivos por algumas
forças mobilizadas.

123
A pauta de mudança compreenderia debates sobre a liberalização teológica e litúrgica, com a ação política
e o avanço da pentecostalização. Esses seriam fatores de adensamento do debate entre o conservadorismo e o
ecumenismo diante da cultura e da prática da igreja. Do lado conservador, ter-se-ia visão acerca da eficácia
evangelizadora, haja vista a utilização de recursos distintos a fim de atrair e colocar à disposição "música e
linguagem informal", shows multimídias, com o recrutamento de danças e diversos ritmos musicais (Burity,
1997).

153
Outro exemplo pode ser a crítica feita à abertura musical. Existem oposições
declaradas ao uso de expressões musicais de referenciais indígenas e africanos 124. Elas são
consideradas veículos do paganismo, da sensualidade e do misticismo; são consideradas
forças nocivas, incentivadoras da licenciosidade e opostas à visão de mundo cristã 125. As
combinações e os arranjos pouco convencionais são vistos com cautelas em decorrência da
desestabilização possivelmente instalada. O alerta do pastor sobre as “... novidades desse
tipo são brechas espirituais das quais o inimigo de nossas almas se aproveita para
enfraquecer a moral cristã” 126 demonstra a preocupação com a “poluição”, com a
contaminação, com a “mistura”, carreadas ao meio evangélico. O perigo bateria às portas
da organização, das coisas e do seu mundo, pois as alterações seriam nocivas e capazes de
quebrar simbolicamente dimensões anteriormente ligadas ou, então, conectar aquilo
mantido desligado.
Sérgio, ao registrar a reação do pastor de sua igreja diante de sua proposta em
organizar reuniões para execução musical, fala do temor diante de algo considerado
“obscuro”. Por que seria? Sérgio e os demais promotores não são pastores, o que fazem não
tem reconhecimento institucional; então, tudo por eles produzido estaria nos limites do
meio religioso e em contato com práticas culturais e expressões musicais com débil
visibilidade. A atuação nos interstícios cultural e religioso acaba por escapar da “rede de
classificação” em vigência (Turner, 1974: 117). Por esse prisma, estariam em risco o
esquema e as condições de percepção do meio evangélico.
Há alguns mediadores cujas ações motivam discursos, falas que apontam para
oposições, forças e perigos; igualmente ressaltam, temerosos, os limites, o poder, a pureza.
Uma crise que permitiria pensar em “anomalia” e em “ambigüidade”, pois é destacada a
tensão mediante o cuidado com os limites que cada grupo estabelece. As situações de
anomalia e de ambigüidade colocariam o sistema em perigo, pois a ação de ir aos seus

124
III – Música contemporânea – instrumentos barulhentos e múltiplos tambores da bateria e dança como
atrativos para fazer a igreja crescer – por José Laérton Alves Ferreira, disponível em http://solascriptura-
tt.org, acessado em 20/07/05.
125 O tema será abordado no quinto capítulo.
126
Sobre a crítica realizada à chamada “música cristã contemporânea”, ver: http://solascriptura-
tt.org/separacaoeclesiasticafundament/Laerton-crescIg3-musicapagaMilenar, acessado em 10/02/04.

154
limites e assim entrar em contato com a fonte de poder capaz de instaurar perigo, poluição e
desordem (Douglas, 1966) 127.
Nem tudo é festa, principalmente quando toca às inovações musicais - mesmo se
apontadas como importante para a evangelização e a permanência de adeptos no meio
evangélico. Os questionamentos sobre a validade das iniciativas indicam a preocupação
com a possibilidade de dissolução dos limites, das fronteiras estabelecidas que separam a
organização daquilo considerado “mundano”. O risco de contaminação leva outro dirigente
a solicitar que a atividade realizada não fosse associada à igreja, pois, para Sérgio, da
equipe SC, não haveria o interesse em “... colocar a mão no fogo (...) Por uma coisa
obscura”. Seria desconhecida e, por isso, perigosa. Assim seria por estar próxima de outra
fonte de poder, por desestabilizar a ordem existente. Tal visão não é nova. Ela terminou por
vigorar em universo religioso e cauteloso com a distância do considerado próprio da cultura
popular, de manifestações festivas e cômicas, que ultrapassava a seriedade e as regras
oficiais (Bakhtin, 1999; Burke, 1995; Thompson, 1987).
O empenho dos promotores está em demonstrar serem os empreendimentos
adequados aos objetivos do grupo religioso e que, portanto, as atividades não seriam
nocivas. Elas também primariam pelo controle do comportamento e poderiam contar com o
apoio de outros leigos e de líderes religiosos voltados à pregação, à transmissão de
mensagens com teor evangelizador. Afinal, é “trabalho sério”, como sustenta Charles, da
equipe GN. Assim, atuam no meio evangélico e procuram estabelecer canais mais
consolidados e favoráveis ao reconhecimento e legitimidade perante as instituições e a
ampla camada de fiéis. Todavia, os integrantes dos eventos reconhecem, de modo
inquestionável, sua feição religiosa, pois ali é possível ouvir “mensagens” e acreditam,
assim, ter ligação com o sagrado.

127 De acordo com Douglas, as noções de anomalia e de ambigüidade viabilizam tratar as condições de seres,
estados e coisas. A anomalia diz respeito ao elemento sem lugar no interior de conjunto ou série como, por
exemplo, o melaço, que não é sólido e nem líquido. Já a ambigüidade pode compreender a dupla
interpretação. Para ela, as padronizações culturais e as classificações originaram a anomalia e a ambigüidade,
e definem o que entra na classificação das coisas aprovadas e o que fica de fora de modo a confirmar aquela.
Desse modo, a cultura não pode ignorá-las em seu interior. Portanto, cada grupo elabora vias para lidar com o
ambíguo e com o anômalo, seja eliminando-os, vendo-os como algo especial, como reforço da conformidade
ao designá-los perigosos ou usá-los em rituais com o objetivo de destacar outros níveis de existência e
possibilitar a percepção das coisas e do mundo.

155
“Um ritmo fora do tradicional”

Vigoram na manifestação várias expressões musicais como o hip-hop, o soul, o


pagode, o samba e outras. Tudo isso é identificado pela aplicação do termo black music
gospel e coloca o fazer dos grupos não somente para organização, mas também a
combinação e ao rearranjo de noções, de forças e de relações para efetivar suas propostas.
Depara-se com mesclas entre as expressões musicais, entre o entretenimento e o religioso.
Apesar da aceitação entre o público, a modalidade musical e a reunião podem ser vistas
com alguma reserva por líderes religiosos ao indagarem se as atividades não seriam
expressões do desmonte, da falência ou da crise do religioso.
Os empresários e leigos inovam dentro do meio evangélico, estabelecem projetos
não afeitos às fechadas alocações destinadas a fundamentar as oposições e distinções como
diz Canclini (1997:67-97), por exemplo. Para o autor, a organização voltada a excluir ou
superar aquilo considerado tradicional, indígena e colonial pode recorrer a hibridações, a
entrecruzamentos, a reelaborações entre tradições e ações educativas, comunicacionais e
políticas. Há o favorecimento de instalação de cenário social transformado com a
autonomia artística, com a profissionalização e “campos artísticos autônomos”. Tudo isso
definiria os projetos criadores.
Para entender a “festa” e as músicas comuns a ela, é preciso pensar no encontro
entre promotores e público. Com ele, emerge uma arena na qual sagrado e profano
dialogam constantemente. Isso é estruturado e atualizado a partir de referência à fonte
escrita, do lido e entendido das Escrituras, o que está presente em diversas passagens até
aqui focalizadas. Por vezes, elas podem não ter ligações, mas constituem facetas e elas
proporcionam seguir certa via de compreensão.
O público e os promotores organizam e executam os vários momentos constitutivos
e a dança está presente em quase todos: ocorre a parada somente para a pregação e o jogo.
Dançar, tocar e cantar ali são atos de “adoração”, são modos de chegar ao sagrado, formam
o sagrado capaz de expulsar o profano para os limites do salão. Nessa região fica o bar no
qual se come ou é possível namorar, manter bate-papo entre os amigos; há também os
banheiros nos quais ocorrem intermináveis sessões de arrumação de roupas e maquiagem -
com empréstimos de batons, pentes, escovas e outros acessórios.

156
Outro ponto tem ligação com aquilo que Edinho, um promotor, evidencia “... nós
fazemos a festa do passado, com costumes do passado, e transformamos ela pra hoje. Por
exemplo, o vinho que traz a alegria, nós pegamos o quê? A música que traz a alegria pra
festa hoje” . E isso pode ser complementado com o pastor e DJ, cujo depoimento utilizado,
ao dizer “acreditamos que a carne também deve louvar ao Senhor”. Portanto, a visão é de a
diversão proporcionar a satisfação, o relaxamento, a “alegria” – condições de uma vivência
de fé.
As iniciativas podem ser tomadas como coisas “obscuras”, como brincadeira ou
exotismo. O encontro entre os mediadores com certas práticas e expressões populares cria
instabilidade, haja vista a posição do pastor ao registrar: “Hoje, a Igreja deve cuidar para
que não haja inversão de papéis, e o mundo invade a Igreja com o seu modo de vida, ao
invés de o modificarmos através dos valores do cristianismo” 128. No pólo oposto figura o
registro de Ynah, pois coloca:

Foi uma gama de pessoas que se insurgiram contra o tradicionalismo. O


próprio tradicionalismo das igrejas. Então, já foi tema de debate em rádio.
Já foi tema dentro da própria igreja, nos grupos jovens... É certo ou não é:
“ah, porque jovem evangélico não pode chegar em casa de madrugada”. E
a gente sempre foi contra isso de certa forma; contra entre aspas. Porque
passamos as madrugadas fora de casa, porque a gente gosta desse tipo de
música. E assim é um ritmo fora do tradicional. É um ritmo que assusta.

Uma interpretação da dinâmica do meio evangélico brasileiro, com serviços


demarcados pela ênfase no emocional, no exorcismo e exortar a prosperidade, aponta haver
crise com o desvencilhamento do controle institucional. A formulação de Ynah é despida
da orientação oficial. Ela ressalta a reação dos pastores e contrabalança com o prazer
sentido por ocasião da confraternização. Algo diferente, não caracterizado por estudos
bíblicos, hinários, escolas dominicais próprios de um conjunto oficial de práticas (Rivera,
2001).
A “festa” é atividade oriunda de objetivos e arranjos e instala níveis de porosidade
que abrangem os lugares de promotor e o de freqüentador. No tocante ao primeiro, ocorrem
articulações com vistas a auferir e a conservar prestígio. Procura-se cantar, tocar e/ou

128 Tavolaro.“ Gospel na pista”, revista Enfoque Gospel, abril, 2002, p.20-24.

157
convidar artistas, DJs, cujas presenças asseguram o sucesso e atmosfera propícia à
disseminação da “mensagem” de fé. Ainda assim, o promotor figura como coadjuvante.
O público é o que menos trabalha e investe material, social e espiritualmente para
preparar e executar o evento. Para sua inscrição, a manifestação exige mais dos portadores
de dons como os de cantar, tocar e pregar. Não é necessária a legitimação dada pelo
certificado, mas pela “experiência” com o “sobrenatural”, como destacado por Francisco
JC, como condição para estabelecer e sentir a proximidade com o divino. Mesmo não
reconhecidos institucionalmente, os promotores explicitam agir conforme as Escrituras,
cujo exemplo estaria na afirmativa de Edinho ao estabelecer que “nós fazemos a festa do
passado, com os costumes do passado, e transformamos ela pra hoje”. De um lado, tudo
deve estar voltado para o freqüentador ter contato e vínculo com o divino; de outro, as
relações ocorrem entre ele e os promotores e seus colaboradores. Não há como manter o
universo festivo e religioso sem o “estranho jogo de dependências e ações complementares”
(Brandão, 2004) que envolve os homens e o sobrenatural.
A alteração de modo de ser parece ser a grande questão. Em meio tradicional,
caracterizado pelo peso dado aos textos sagrados, ocorre o trânsito de fiéis, de encontros
interdenominacionais, de bens culturais e de idéias inscritos em fluxo de combinações e
recombinações (Sanchis, 1995). O bloco, a escola de samba e o trio elétrico são iniciativas
institucionais. Mesmo as críticas existentes colocam a licitude das estratégias e a cautela
das lideranças envolvidas 129 e, por mais audaciosos, estariam limitados, configurando
estratégias, alteração da forma, para disseminação de valores, de entendimentos e sentidos
comuns (Geertz, 1989).
As possibilidades de combinações e recombinações de elementos e crenças
religiosas (Novaes, 2004) indicam a dinâmica de transformação do campo religioso. Nesse
sentido, estaríamos diante de organização representativa do apontado por Brandão
(2004:15) como algo revelador de “tipos, estilos e estratégias de afiliação”. Essas coexistem
e se multiplicam na sociedade brasileira e, por sua vez, revela a arena religiosa não ser tão
fechada, pois surgem “unidades de crenças” partilhadas com elementos de “imaginários
diversos”. Nesses tempos, ocorrem a possibilidade de o leigo lidar, relacionar-se com a

129
Rodigues. “E vai rolar a festa”, revista Enfoque Gospel, edição 19, ano 02, p.52-58, 2003.

158
religião, escolher e seguir de modo não definitivo um sistema de sentido (religioso, crença,
fé), desenhando percurso de não confronto com o vivenciado. Talvez seja o que Ynah,
Sérgio e o pastor e DJ tenham indicado. O registro desse cenário pode contemplar não
somente o fiel, mas os formuladores e apresentadores de novas vias ao campo religioso.
Eles podem promover encontros favoráveis a alterações do considerado tradicional. O
resultado pode ser o registro de segmento devotado a assegurar reelaborações,
entretenimentos e passam a figurar como “tipos e estilos de estratégias”.
Não há como fazer isso sem observar o conjunto e visualizar as categorias existentes
e componentes da black music gospel e da reunião, pois são muitos os presentes, alguns
mais visíveis, outros menos. Eles compõem uma “situação corporada” (Brandão,1981:88-
89), pois o efeito esperado não pode ser produzido por elemento isolado. São fundamentais
as atividades das equipes integradas por atuações distintas como as realizadas por
promotores, por pregadores, por freqüentadores e por colaboradores – seu cuidado com a
“segurança”, com a bilheteria e com a venda de bebidas e comestíveis -, por cantores e por
DJs, possibilitadores que a dança seja executada. Diferentemente do pagamento de alguma
promessa (Brandão, ibid.), o lugar fundamental é ocupado por freqüentadores, pois ali
estão para “adorar”, para “louvar”. Para tanto, existem as ações do pregador, do cantor, do
DJ. Os demais assumem lugares marcados pela importância auxiliar para que isso seja
efetivado e possam também evidenciar a diferença com a manifestação profana.
Tudo até aqui exposto tem relação com aquilo denominado “música gospel”,
especificamente com a black music gospel. Os capítulos anteriores evidenciam que a
“música gospel” - feita por empresas reconhecidas por igrejas – é a modalidade musical que
tem conduzido as alterações, posto que as produções são orientadas por determinações de
cada igreja ou gravadora. Isso ocorre apesar de se poder entender que reproduziriam o
conjunto de instruções há muito em vigor; mas são várias as igrejas, como as empresas, e
elas guardam diferenças entre si.
Por sua vez, a black music gospel e a “festa” parecem escapar das imposições e dos
controles oficiais e, portanto, quem sabe, não somente a forma mudaria, mas o conteúdo.
Isso decorreria do peso dado ao sensível, ao emocional, com o destaque dado à “carne”,
com o romper a madrugada dançando, de ouvir músicas desconhecidas. Os momentos
citados marcam o limite do controle institucional e familiar; também sublinham a crise das

159
oposições entre corpo/espírito e profano/sagrado. Deparamo-nos com combinações
personalizadas, com frágil direcionamento institucional; e elas colocam a “reinvenção da
tradição” (Steil, 2001:122,123).
No campo religioso e festivo, encontram-se as alianças, as tensões, as rupturas e os
interesses entre distintos grupos com a finalidade de construir algo. Por sua vez, as equipes
congregam promotores e colaboradores, todos com vinculação religiosa, estabelecem
relações contratuais e visam, conforme já foi enfatizado, deter reconhecimento e
legitimidade. Assim, esses “agentes de festa” (Brandão, 1981) apresentam inovações,
podem alterar a tradição. Porém há os líderes institucionalizados que podem ou não
incorporar os novos elementos e visões impetradas por aqueles. Há outros, defensores de
distâncias, detentores de certificados, de conhecimento da Palavra que desprezam a
produção e circulação dos bens apresentados. Mesmo assim, tentam disputar os fiéis e
entendem a importância em elaborar atividades distintas da “festa” e similares.
As propostas e as inovações apontam para certas tensões em meio religioso com
crescente número de agências - a partir de crises, de cortes e construções de igrejas.
Buscam constituir meios para atrair os leigos, formar o corpo de seguidores mesmo quando
no meio em questão contabiliza-se poucos cargos formais (Mafra, 1998:224-250). De modo
provável, os componentes da equipe não ocupariam cargos de direção dentro de seus
grupos religiosos – cabe saber se eles também estariam interessados -, mas poderiam criar
cargos e impulsionar percursos artístico e empresarial. Cada equipe tem sua peculiaridade
e busca atuar para dar inserção religiosa ou política. Para tanto, os promotores discutem as
estratégias e tentam estabelecer a eficácia do estilo por eles instituído, parecendo haver
constante negociação entre as visões do que seja sagrado e profano. Tudo isso pode ocorrer
apesar do parco reconhecimento das instituições e de seus líderes.
A disputa observada também se insere no campo religioso, pois há luta pertinente ao
monopólio pelo poder religioso, distinguindo-se, de um lado, instituições, líderes
(especialistas) e leigos e, de outro, estratégias e instrumentos. Sobre a concorrência entre os
especialistas, há a disputa por autoridade que envolve a “manipulação simbólica dos
leigos”. Existem aqueles que produzem certa visão de mundo e de existência, recorrendo à
força da palavra. Em oposição, estariam os agentes e instituições em cuidado da
reprodução de visão oficial a partir de método racional e cotidiano. Esses podem mobilizar

160
forças materiais e simbólicas com a finalidade de alcançar o monopólio do exercício do
poder religioso. Seus componentes exercem funções e enfrentam concorrentes; os dois
grupos desvelam as estratégias de manutenção e de transformação em vigor no meio
religioso.
Na concorrência entre os especialistas, as inovações podem ser apresentadas com a
finalidade de (re) conquistar autoridade, e isso pode ocorrer a partir de relações atualizadas
entre a demanda e a oferta de bens e serviços religiosos com vistas a alcançar os leigos. Os
agentes pertencentes ao corpo religioso institucionalizado e os produtores independentes de
bens e serviços, nem sempre reconhecidos, inscrevem duas categorias de agentes do
sagrado. Eles estabelecem relações concorrenciais com o uso da força das mensagens
proferidas e da força mobilizada pelos grupos (Bourdieu, 1992, 1996). Em disputado e
complexo meio, os promotores atuam, inserem seus objetos e serviços direcionados aos
leigos. O que mais pode ser colocado sobre a “festa” e as músicas?
No capítulo seguinte será visto que com a black music gospel emerge um debate
acerca da “música gospel”. Ao invés de ser sublinhada sua orientação no Evangelho, é
colocada em cena a temática da valorização cultural e da consciência da desigualdade
social. As propostas musicais das equipes também serão contempladas, visto que as
canções veiculam outros temas e elementos.

161
Capítulo 4

Outro registro do gospel – iniciativas e questões.

A modalidade de manifestação musical aqui ressaltada não deve ser vista como
isolada e sem correspondências com as alterações ocorridas no meio evangélico. As
apropriações musicais e sonoras – com experimentos de instrumentos e técnicas – e as
transformações comportamentais tiveram impulso na década de 1990 que, segundo
Nascimento Cunha (2004:138), foi demarcada com a vigência de um “modo de ser
evangélico com efeitos na prática religiosa e no comportamento cotidiano”. Além da
abertura musical, instrumentos musicais, shows e tecnologias estão presentes na
evangelização, com a finalidade de estabelecer formas mais antenadas com os diferentes
públicos (Burity, 1997), igrejas, produtoras, artistas e grupos independentes formulam e
apresentam seus bens musicais – e também eventos concebidos como complementares ao
empreendimento musical.
Os pontos até aqui destacados constituem aquilo denominado “música gospel”. Para
saber um pouco mais, um caminho pode ser tomado. Nesse caso, seria visualizar isso não
somente a partir das distinções entre as denominações, porém saber que evidenciam o
campo de forças que compreende igrejas, empresas e grupos minoritários. Estes tentam se
estabelecer em uma confluência entre o religioso e o empresarial, entre o religioso e o
entretenimento, entre a institucionalização e a autonomia.
Ao abordar a “festa” e as concepções sobre “música gospel” foi possível estabelecer
um modo de compreender certos aspectos das elaborações musicais, de eventos e
fonográficas. São realizadas por grupos não representantes de forças majoritárias. Os
organizadores da “festa” dizem atuar entre grupos juvenis urbanos e apresentam atividades
evangelizadoras não dissociadas da dimensão do entretenimento. Introduzem novas figuras
no campo religioso, como o DJ e o animador e pregador. Ao mesmo tempo, produzem,
distribuem, comercializam seus serviços e produtos (CDs, acessórios e programas
veiculados por estações de rádio ou via Internet), investem em recursos tecnológicos, em

162
meios de comunicação e objetos. Neste nível inscrevem certa via por meio da qual
dialogam com as empresas, com o “mercado”, com as igrejas, com os fiéis e, desse modo,
demarcam semelhanças e diferenças. É franqueado o reconhecimento de artistas capazes
de atrair os freqüentadores interessados na aquisição de bens sonoros, musicais, imagéticos
e/ou aquilo relacionado com a moda, que apresentem conformidade com as expressões
musicais privilegiadas.
Os promotores entendem ser a “festa” marcada e direcionada ao entretenimento e à
ação religiosa. É voltada ao investimento em expressões musicais contemporâneas e tem
inscrição política. As referências musicais e sonoras podem compor visões e propostas
questionadoras das relações sociais e valorizadoras de referenciais culturais. A
compreensão da “festa” e das canções pode ir além do entretenimento e visualizar a
realização de outra evangelização. Há a vigência de confecção musical disseminadora de
estilos – musical e corporal –, em consonância com expressões musicais contemporâneas.
No entanto, para além das semelhanças, existem diferenças entre as equipes e seus
objetivos. Assim, a validade da “festa” pode ser dada pelo entretenimento proporcionado
aos “jovens” – segundo uns - por viabilizar o questionamento do meio evangélico ou – para
outros - por valorizar o que entendem ser a “cultura do negro”. De acordo com alguns
idealizadores, a reunião contribui para mudar o modo como parte dos adeptos do
evangelismo é vista e percebida.
Aqui e nos capítulos seguintes, serão abordados alguns pontos sobre as inscrições da
black music gospel e da “festa”. Ver-se-á que ocorre a partir de diálogo estabelecido não
com o catolicismo, como ocorre com outras práticas religiosas (Carvalho, 1999), mas com
os grupos evangélicos no tocante à prática evangelizadora. Os pontos apresentados colocam
a tensão com o meio evangélico, distinto do meio secular. Nesse sentido, será apresentada a
vigência de outra concepção de “música gospel” para alcançar os arranjos, as proximidades
e os distanciamentos próprios a ela.

Nova cena musical

As produções musicais, de atividades e fonográficas são tomadas como partes


daquilo designado “gospel” ou “música gospel”. Como foi visto no primeiro capítulo, a

163
designação “música gospel” é corrente no meio evangélico e é utilizada para definir as
músicas produzidas a partir de formato considerado contemporâneo; elas possibilitariam
disseminar as visões dos grupos aliados ao protestantismo. As canções presentes na “festa”
também são assim concebidas, porém apresentam especificidades, porque privilegiam
determinadas expressões musicais contemporâneas. Seus formuladores dizem ter por
referência as igrejas negras norte-americanas e as populações negras urbanas.
A fim de legitimar aquilo resultante de empreendimentos independentes, é retomada
uma história acerca da musicalidade nascida nas igrejas protestantes e de freqüência negra.
Portanto, a origem religiosa é demarcada e pode assegurar o reconhecimento esperado. A
especificidade musical e sonora pode ser complementada com o material iconográfico
apresentado. Ele tem por finalidade divulgar os trabalhos artísticos; também veicula
imagens que permitem indagar sobre a noção de ser negro e sobre a visão acerca das
relações sociais.
Durante o período de investigação, o hip-hop, o r&b, o soul e outras expressões
musicais e sonoras eram constantemente citadas. Para os entrevistados, elas compunham as
atuações e os eventos direcionados aos grupos juvenis com vínculo religioso ou não. Pode-
se ter que essas canções, discos e outros bens são produzidos, têm por direção e, ao mesmo
tempo, estão inseridos no fluxo de formas culturais que constitui o “Atlântico negro”. Esta
noção será recorrente, pois, para Gilroy (2001:38), ela permite falar e refletir acerca de
fluxos e encontros culturais, ligados à diáspora negra, e adequados para a constituição de
bens e serviços. São formas culturais em movimento que trafegam, cruzam mares e
originam diversas culturas.
Nem sempre tais formas possuem uma origem uniforme e equilibrada; elas podem
compreender fluxos reveladores de desdobramentos. Nesse sentido, o processo cultural não
é linear, simples e, portanto, as culturas não são puras e estáveis. São complexas, registram
mobilizações e expansões propiciadoras de combinações, de novas percepções e
comunicações entre aqueles que as compõem (Hannerz, 1997:14, 15). Portanto, os eventos
pesquisados aqui são expressões musicais identificadas como black music gospel e, entre o
sagrado e o secular, possuem ampla circulação. Elas são reconhecidas pela relação com os
povos da diáspora e explicitam a criatividade cultural que caracteriza o “Atlântico negro”
(Gilroy, 2001; Sansone, 2004).

164
As músicas e as sonoridades são alteradas a todo instante, são fabricadas, sofrem
fraturas eletrônicas por parte de DJs. Na “festa”, esses evangelizadores contemporâneos
acreditam operar a ligação entre passado e presente, entre o templo e o “baile”. Fazem com
que a black music seja também gospel music. Aquela é vista como oriunda dos cânticos
entoados e do balanceio corporal que, para os promotores, emanavam das igrejas
protestantes norte-americanas. Com tal empreitada (de amplitude musical, empresarial,
religiosa e política) circulam também imagens de corpos negros e, ao lado da sonoridade,
divulgam outro ser religioso.

“Black gospel” – música de crítica e de fé

Nos capítulos anteriores, foram demonstradas as produções de “música gospel” e de


reuniões. A “música gospel” é efetuada por empresários e por pastores (ou reconhecidas
por estes) com a finalidade de oferecer bens religiosos porque divulgariam ou seriam
concebidos conforme as Escrituras. No entanto, estes bens podem ser tomados como
oriundos de atividades profissionais e objetivos produtivos; também podem ser tidos como
fundamentais para o alcance de um certo estado espiritual e de “alegria”. Tudo resultaria de
uma gama de ações inovadoras, porém estaria divulgando um “conjunto de instruções”, de
noção moral, de visão estética pertinente ou visto como certo e virtuoso.
Nesse caso, estariam incluídas a black music gospel e a “festa” consumidas nos
finais de semana, em bairros distantes de áreas centrais e/ou destinadas ao turismo. As
manifestações são organizadas e atraem numeroso público que almeja ouvir canções,
assistir os clipes exibidos, encontrar e fazer amizades, relaxar, divertir-se e também
expressar sua fé. Isso ocorre a partir da execução de canções que embalam a noite e parte
da madrugada dos presentes.
Os organizadores afirmam que as expressões musicais predominantes são o hip-hop,
o rhythm and blues (r&b), o soul, o drum ‘n´bass (db) e o techno. Para promotores e
freqüentadores, elas constituem a black music (pode ser designada por "música negra”).

165
Além delas, pode-se ter o registro de outras musicalidades como o reggae, o samba e o
pagode 130.
Um exemplo da especificidade da reunião e das expressões musicais encontradas
em seu interior pode ser dado pela apresentação do componente da equipe SC ao afirmar:
“Serginho DJ´esus – mostra o caminho que ao céu conduz! A essência da Black Music!
Soul * R&B * Hip-Hop”. O entretenimento não é o único aspecto contemplado. Pode-se ver
como um modo de conceber e experimentar o sagrado são dados pelo enlevo possibilitado
com a audição de certa sonoridade relacionada às populações negras. Principalmente certas
expressões musicais contemporâneas.
A produção e a organização de atividade musical, realizadas por promotores,
instalam tensões e distinções no meio evangélico não somente em decorrência, de um lado,
da dimensão do entretenimento e do sentimento e, de outro lado, pela sobreposição da
música em relação ao texto escrito. Para os promotores envolvidos, a black music gospel é
distinta da “música cristã”, pois esta última não teria relação com aquela oriunda das igrejas
evangélicas freqüentadas pela população negra norte-americana. Por exemplo, L´Ton, um
dos promotores, fala sobre uma confusão no Brasil que envolve o termo “música gospel”.
Segundo ele,

Para você ter uma idéia, a música gospel não era a música evangélica em
geral. Era, sim, a música evangélica cantada e tocada nas igrejas negras
norte-americanas. Música que começou nas lavouras, onde os negros
clamavam a Deus por socorro (Spiritual). Quando os negros conseguiram
montar suas igrejas, a música dos negros era chamada de godspel que,
mais tarde, viraria o gospel. Em sua grande maioria, a música evangélica
americana, cantada por um grupo de brancos, é chamada de Christian
music. Aqui no Brasil, se copia muito de lá de fora, foi passado pelos

130 A equipe GN realiza pesquisas sobre as opções de estilos musicais entre aqueles que conhecem sua
iniciativa. Os visitantes de seu site podem votar sobre a modalidade musical preferida. No entanto, existem
dois modos de divulgação: um pode ser acessado a partir da visita à página virtual; a outra pode ser recebida
por correio eletrônica após cadastro no site. Caso a opção seja a primeira, a pergunta existente é: “qual o seu
estilo musical favorito nas festas?”. Nesse caso, as categorias musicais são as seguintes: “dance e techno”,
“hip-hop, r&b”, “louvor e adoração”, “pagode e forró”, “rock”. O registro de votos é da ordem de 4.406
distribuídos da seguinte maneira: “dance e techno” com 1520 votantes; “dance e techno” com 1456 votos;
“louvor e adoração” com 700; “pagode e forró” com 268; “rock” com 462 votos. As categorias são: “charme e
techno”, “louvor e adoração”, “pagode e forró”. Os dados recebidos por correio eletrônico compõem a
“enquete”, cujo título é “qual sua preferência musical no Gospel Night?”, atualizada a cada dois dias. Nela, as
categorias são “charme e techno”, “louvor e adoração”, “pagode e forró”. No último registro atualizado, com
data de 11/05/06, são 547 votos distribuídos do seguinte modo: 367 (67,09%) optaram por “charme e techno”;
“louvor e adoração” conta 135 votos (24,68%); “pagode e forró” com 45 votos (8,23%). Ver:
www.gospelnight.com.br, acessado em 27/05/06; mensagem sobre enquete musical recebida em 12/05/06.

166
grandes donos de gravadoras e rádios evangélicas, que a música
brasileira, diga-se de passagem, que era predominantemente branca, era
gospel.

Vários dos entrevistados concordam com a observação do depoente, de que no


Brasil a apropriação do termo “gospel” teve por finalidade legitimar este tipo de música na
esfera religiosa. Manga diz ter participado do início do processo de construção dessa
musicalidade no país que aconteceu na década de 1990:

O nome gospel porque vinha da concepção americana da música gospel


que são as músicas mais spiritual, músicas mais negras, porque hoje nos
Estados Unidos o termo que eles usam é música cristã contemporânea.

Como determinado nome não alcançou êxito no país, outro deveria permitir fazer
imediata ligação com o Evangelho. Assim, “gospel” seria o adequado, seria possível porque
a gospel music compreende o southern gospel e a black gospel. Para Manga, foi possível
fazer isso porque “gospel seria alguma coisa ligada ao evangelho e uniu-se a música a isso.
Por isso que ficou gospel, que seria a música que tem um conteúdo do evangelho de Jesus”.
Então, como diz L´Ton, os “donos de gravadoras e rádios evangélicas” podiam afirmar ser
a música, recém-apresentada, possuidora de conteúdo e conexão com o Evangelho. Diante
da apropriação de expressões musicais contemporâneas, seria esta a articulação realizada
com a finalidade de assegurar a distinção com o secular. Talvez o termo “música cristã
contemporânea” não traduzisse a ligação com aquilo considerado sagrado, não permitiria
pontuar determinado sentido para o termo gospel (Evangelho), posto poder estabelecer uma
origem vinculada aos cristãos no Novo Mundo.
Tiago, negro, ensino médio completo, casado, 24 anos de idade, membro da Igreja
Batista Renovada, residente na Baixada Fluminense, freqüentador de “festa” e componente
da banda Acrisoul (presente nos eventos da Soul de Cristo e de outras equipes), entende
que atualmente a “música gospel” apresenta, diz, “várias vertentes. A gente tem música
rock, música country, black music ...” Sobre ela, o depoente expõe o seguinte:

A black music hoje, que no caso é a música negra, tem várias vertentes
tem o hip- hop, que é música negra, tem o próprio charme que é a música
eletrônica, música batida, mas com muita melodia, melodias elaboradas,
vocais harmonizados que é essa base de coral... tem o hip hop, que hoje
que é a grande coqueluche do momento. Hip-hop hoje, tu vai na Baixada

167
é hip-hop, tu vai na Zona Sul é hip-hop... Tem o r&b que é mais funk,
funk americano, aquela questão que a gente tava falando, né, um arranjo
bem trabalhado. E ... A música black hoje é isso, tem várias vertentes.

Como mosaico, o depoente destaca a particularidade da “música gospel”. A reunião


de distintas propostas musicais e dentre essas a black music e suas várias formas, mas
caracterizadas por certas batidas e harmonia. Sem ser relacionada com a dimensão
religiosa, a black music é apresentada como de visível presença na cidade e relacionada
com o entretenimento ou com a reivindicação política, no caso do hip-hop. Ynah, negra,
solteira, graduação em Turismo, 24 anos de idade, integrante da Comunidade Evangélica
Zona Sul, residente em Irajá, freqüentadora de “festa”, diz:

Eu chamo de black music todas as... o rock por exemplo ele veio do Jazz.
Black music pra mim é o soul, o rap... todos fazem parte do black music
que a própria palavra fala música negra. Que é esse tipo de som que
surgiu nos Estados Unidos.

Tiago e Ynah, como os outros depoentes, evidenciam ser a “música gospel”


integrada por sobreposição de expressões musicais, entre elas a black music, concebida
como formada por musicalidades produzidas por negros norte-americanos, mas com fraca
penetração no meio evangélico brasileiro. Nesse sentido, Nega, integrante da equipe Gospel
Beat (GB), observa que tal modalidade musical permite:

Resgatar e mostrar ao povo brasileiro – aí já vem pra cá – que tem essa


parte da música black. Essa música gostosa. Como também tem a música
africana. A africana é mais complicada. Porque na música africana, todo
mundo toca atabaque, aí é coisa do diabo. Entendeu? Porque aí tem o
“Xangô”, aquele negócio todo no meio evangélico. O meio evangélico
acha que ... Eu tenho uma fita de um coral africano que... é muito show.
É evangélico.

Com pouca penetração e visibilidade na esfera institucional evangélica, a black


music passa a compor o escopo de atuação de promotores. Esses são limitados por certa
concepção acerca da África e tudo a ela relacionado e disponibilizado por eles (Burdick,
1998). Talvez por isso as igrejas norte-americanas sejam recorrentes para construir uma
origem.

168
Os depoimentos revelam a construção de determinada black music gospel quando
um grupo passou a agir, a inovar e a apresentar músicas, porém de referência africana e
assim efetivar a ligação com o religioso. Remontar às igrejas norte-americanas é
fundamental e, assim, tenta-se demonstrar que essa música integra o “gospel”, pois as
expressões musicais privilegiadas são vistas como tendo ligação histórica com o cantado
nos templos. Essa referência estará presente e retomada na constante citação e
(re)construção de certa história da “música gospel”, de peculiar expressão religiosa negra e
sempre, como tudo o mais, capaz de mudar diante da realidade que se apresenta (Bastide,
1974:192 e 193).
As diversas expressões musicais são alocadas sob a designação “gospel” e a história
faz a ligação entre elas, a partir do sagrado criado e vivido nas igrejas. São formas não
puras e elaboradas, pois resultam de complexas realidades e transformações históricas e
políticas. Sobre isso, Hall (2003:343) visualiza que tais formas decorrem de

Sincronizações parciais de engajamentos que atravessam fronteiras


culturais, de confluências de mais de uma tradição cultural, de
negociações entre posições dominantes e subalternas, de estratégias
subterrâneas de recodificação e transcodificação, de significação crítica
do ato de significar a partir de materiais preexistentes.

Trata-se da introdução de elementos inseridos no fluxo de bens culturais, no jogo de


posições, interesses e objetivos capazes de figurar como significantes e marcadores de
campo de forças. Assim, no Brasil, o termo “gospel” pode designar tantas coisas como as
expressões musicais com inscrição secular e que demarcam as relações entre posições
diferenciadas. A partir dela, alguns promotores trilham caminhos e apresentam aquilo
denominado black music gospel. Com ela, falam sobre ser negro, tecem uma noção de
negritude 131 e questionam as relações existentes no meio religioso e no empresarial
voltados ao produzir musical.

131
Refiro-me à negritude como algo não essencial e fechado, mas uma construção reveladora da consciência
da diferença e do pertencimento a grupo incluso na diáspora negra (Gilroy, 2001:86-87). A noção de
negritude pode ser formulada e reformulada conforme o local, os interesses e os objetivos em jogo e, portanto,
resulta de especificidades temporais e espaciais, evidentes quando a “África” passa a ser recorrente em
discursos (intelectual e/ou nativo) para reconstruir a tradição ou o passado (Birman, 1989). Ou pode acontecer
de ser destacado os “poderes mágicos, o corpo, a sensualidade e a sexualidade como provenientes e
específicos àqueles que guardam alguma ligação com a “África” (Sansone, 2004: 9-35). Recorro a essa noção
porque cada grupo, cada ator envolvido na atividade musical, privilegia elementos e referenciais culturais

169
O apresentado delinea outro sentido para a “música gospel” e configura a dita black
music gospel que, para os produtores, deve inscrever uma noção de ser evangélico. Isto é
feito, pensado, ou seja, a idéia compartilhada entre todos e reatualizada nas narrativas
consolida e trafega determinado sentido. Isso ocorre porque circulam imagens, eventos,
histórias, sentimentos, símbolos e idéias com os quais têm-se a ligação entre os homens,
fornecendo significados à vida. Nessa esteira, a apresentação de origem, o apontamento do
surgimento e o recurso a um certo passado permitem compartilhar a narrativa fundacional e
a condição de expressão de um povo apresentado como desprivilegiado (Hall, 1999:50-57).
Portanto, as produções musicais, de atividades e fonográficas aqui abordadas veiculam
imagens e idéias que são compartilhadas e tal exercício contribui para que as canções
existam, sejam consumidas porque têm e carregam determinados sentidos.

Canções feitas e ouvidas – o que trazem?

Um dos sentidos atribuído à “música gospel” no Brasil passou a ser aquele


especificamente vinculado ao Evangelho. Nao obstante, os produtores de black music
gospel fazem relação entre as canções e as igrejas compostas por afro-americanos. Foi dito
no segundo capítulo que os promotores tiveram inserções em corais e isso seria
significativo ao desenvolvimento de seus gostos e consciência. Além disso, a influência
familiar e a participação em grupos de hip-hop também são citadas e surgem como
fundamentais aos percursos, ao construir atividades e inserção na esfera musical. Para os
entrevistados, essas vivências viabilizaram, de maneiras diferenciadas, conhecer as
expressões musicais e as histórias de populações de cor nos Estados Unidos, no Caribe, no
Brasil e em outras regiões. Eles citam cantores com inscrição religiosa 132 ou não 133 e

específicos a fim de falar do sujeito negro na sociedade e no meio evangélico contemporâneo. Nesses termos,
pode-se ver as expressões musicais apropriadas, componentes da black music gospel, e os encontros musicais
formulados.
132 Um dos cantores mais citado é Luiz de Carvalho; suas canções seriam ouvidas pelos pais dos
entrevistados. Braga (1961) coloca que Luiz de Carvalho, na década de 1950, já atuava na produção
fonográfica em estúdio de sua propriedade.
133 Além de cantores evangélicos, é destacado o ambiente familiar como fundamental ao ouvido e feito na
esfera musical. Promotores destacam que seus pais ouviam as big bands e cantores como Elvis Presley e Nat
King Cole. O sambista brasileiro Luiz Ayrão é citado como exemplo da ambiência musical familiar.

170
também falam de artistas com projeção nacional e internacional nos anos de 1970/80 134
com a já propalada black music, detentora de atenção da indústria fonográfica. Alguns dos
referenciais musicais são assim pronunciados e reconhecidos como fundamentais aos
arranjos propostos e realizados.
Parte das canções executadas na “festa” resulta de atividade de pesquisa de músicas
e de tendências sonoras. Os promotores, ao manipularem mídia adequada, transformam,
cortam, recortam, distorcem canções, sobrepõem e alteram as batidas e os vocais; também
acontece de haver a produção de suas músicas. Por fim, as duas atividades permitem obter
aquilo tocado nas “pistas”. Tudo isso revela redes sociais duradouras e efêmeras nas quais
gravadoras e, principalmente, iniciativas autônomas estão direcionadas para a produção
musical e fonográfica designada black music gospel.
A equipe GN produziu seu primeiro CD e este foi encomendado a Sonopress 135 pela
BV Films 136, também encarregada da distribuição. O segundo CD foi feito, encomendado e
distribuído pela própria equipe; a prensagem realizada pela empresa Novodisc 137 a partir de
encomenda realizada em nome de Charles. A divulgação é realizada no site e nas edições
da “festa” da GN. O procedimento de encomenda direta de prensagem fonográfica foi
utilizado na confecção do primeiro disco de Francisco JC, componente da GN, licenciado
em seu nome. A elaboração dos CDs levou a recorrer a estúdios particulares, destoando de
L´Ton, da equipe GB, cuja produção do disco da equipe e os trabalhos de outros cantores
são feitos em estúdio próprio.

134
Toni Tornado e Carlos Dafé são exemplos dos cantores nacionais ouvidos. Entre os norte-americanos, são
citados Barry White, os irmãos Jacksons e Diana Ross. A partir da década de 1970, com a consolidação do
long play (LP), capaz de conter mais faixas e produzido com custo mais baixo; os investimentos no setor
fonográfico aumentaram e diversas indústrias se instalaram no país e outras foram criadas. Houve
segmentação da música brasileira – regional, MPB, rock e samba, por exemplo, e produção estrangeira –
norte-americana, italiana e francesa -, diante do domínio tecnológico e vantagens obtidas no mercado, era
consistente. Assim, a black music teve presença no país e terminou inspirando a organização de atividades
juvenis denominados Black Rio. Algumas empresas como, por exemplo, a Top Tape, a Continental, a WEA e
a Phonogram investiram na atividade com a finalidade de descobrir novos talentos (Morelli, 1991; Dias,
2000).
135 A empresa atua no Brasil, desde 1987, e tem fábricas em Manaus e em São Paulo destinadas à fabricação
e comercialização de CDs. Além disso, realiza masterização, autoração, fabricação, comercialização de
DVDs etc. www.sonopress.com.br, acessado em 23/07/05.
136 Localizada na região central da cidade do Rio de Janeiro, a BV Films é distribuidora de produtos gospel
para o país. São CDs, DVDs, VHS, revistas e livros, ultrapassando 300 títulos. Maiores detalhes ver:
www.bvfilms.com.br, acessado em 23/07/05.
137
A Novodisc está instalada no Brasil desde a década de 1990, tendo surgido, na década anterior, na
Espanha, como parceira da gravadora Polygram, componente do grupo Phillips. www.novodisc.com.br

171
Os produtos elaborados são constituídos distantes de grandes produtoras e
gravadoras, e existe a colaboração entre as equipes e os artistas. Isso pode ser percebido nos
vocais das canções, em “remixes” realizados e na divulgação em programa de rádio e em
site na Internet. O trabalho de produção é feito em virtude da obtenção e uso de tecnologia.
Pode ocorrer a montagem de estúdios com a aquisição de computadores e manipulação de
programas específicos com produção e gravação a baixo custo. O uso de estúdios
particulares e a encomenda de prensagem por parte do artista ou componente do grupo – o
empreendimento é executado sob a figura de pessoa física – não são procedimentos
exclusivos aos promotores. Outros artistas recorrem a eles, como os cantores Feliciano e
Cláudia. Isso configura momento demarcado por iniciativas de pequenos grupos
especializados na produção e na gravação musical. Bandas e/ou artistas podem recorrer a
esses serviços e apresentam produtos ao público e às grandes empresas. Essas podem ter
interesses nos artistas e nos repertórios surgidos a partir de articulação independente (Dias,
2000).
Além da produção, a distribuição dos discos é realizada por canal próprio sem ser
necessário recorrer também às empresas. Nem sempre é possível encontrar os discos em
lojas especializadas ou de departamentos que comercializam CDs e DVDs. No Mercado
Popular, existe uma loja na qual os discos de black music gospel e convites podem ser
adquiridos 138. O valor dos CDs fica entre R$ 13,00 e R$ 18,00. Os promotores também
investem na venda realizada pela Internet ou disponibilizam canções em seus sites 139.
Apesar de vozes afirmarem não existir interesse empresarial por artistas de black
music gospel, convém frisar que os profissionais aliados a essa musicalidade não agem
independentemente, haja vista haver cantores vinculados a arranjos empresariais 140, são
convidados para apresentação em “festas” e atraem numeroso público. Há certa
organização de atividade empresarial capaz de assistir artistas como, por exemplo, a CON-
3. Ela, como será visto mais adiante, organiza festival de black music gospel e, por fim,

138 A venda ocorre no bazar Deus Proverá no qual são vendidos os convites para as reuniões das equipes aqui
tratadas.
139 A comercialização de bens pela Internet é presente e pode ser incentivada por crescente uso entre os
evangélicos. Por fim, os próprios locais de “festa” podem ser utilizados para a comercialização de produtos
como camisetas, chaveiros e discos. Já a divulgação pode ser realizada através da Internet e de programa
mantido pela equipe GN - nos finais de semana em rádio local.
140 Pode-se citar o grupo paulista de hip-hop gospel Apocalipse XVI, vinculado a gravadora 7 Taças,
fundada por seus integrantes, e o DJ Alpiste, integrante da gravadora Gospel Records.

172
uma produtora norte-americana designada You Entertainment 141, passou a atuar
recentemente no país.
As canções denominadas “gospel” podem abordar temas variados; seu foco está
concentrado naquele que, sob a ação divina, pode vencer o mal ou ter seu existir
transformado. Na “festa”, porém, estas canções nem sempre estão presentes, pois nela
vigoram outras modalidades de canções. São aquelas denominadas black music gospel ou
“música negra” que apresentam batidas e vocais peculiares - são citadas, ouvidas ou
adquiridas por diversos meios. Mas o que têm as canções? O que os cantores e os
compositores privilegiam para apresentar músicas cujo objetivo seria evangelizar?
Serão focalizadas três letras; a primeira de um componente da equipe GN; um da
equipe GB e outra do grupo paulista Apocalipse XVI ( presente nas “festas” da SC e
reconhecido pelo público).
¤

Francisco JC, componente da Gospel Night (GN), nas manifestações costuma


exercer a tarefa de apresentador, de animador e faz a oração da noite. Além disso, segue a
carreira de cantor, tendo lançado o CD solo “Minha vida não pára”, com treze faixas, de
produção independente. Outras composições suas constam no segundo CD da equipe GN.
Escolhi a letra da música “Minha vida não para”, por ser de autoria do cantor, ser a faixa
título do CD e, por fim, evidenciar as suas influências musicais; particularmante as
expressões r&b e hip-hop. A letra diz o seguinte:

Minha vida não para


Vou falar do JC outro cara que há muito tempo aqui
Se entregou, se humilhou, sua vida deu e vc o rejeitou
Mais de 2000 anos se passaram
Toda dor e sofrimento nos condicionaram
Agora obstáculo pra mim é nada
Se o inimigo se atrever hoje toma na lata
E digo: sai da minha frente
Hoje eu não vivo mais carente
Tô armado, tô de 12, tô de HK
Calibre unção vai te pegar

141
Leal. “You entertainment and You gospel”, revista Show Gospel , ano 05, nº 20, p.22-23.

173
Minha vida não para
Minha vida não para

Se vc bem deixar sua vida


Ele pode transformar
Mas se não pode crer
O inferno vai estar a te esperar
Saque isto, esse mundo é nada
O diabo é lixo e quer te levar pra lata
To te indicando a solução
Olha que o paiol está em suas mãos
E diga, sai da minha frente
Hoje eu nao vivo mais carente
Tô armado, tô de 12, tô de HK
Calibre unção vai te pegar

Se já sabe a diferença entre certo e errado


Toda influência de amor e pecado
E nao adianta me olhar de lado
Como se eu estivesse errado
(preste atenção) (não demore não)
Sua vida está por um fio
Aceite este desafio
Arme-se, prepare-se

E diga sai da minha frente...

A canção fala da caminhada realizada por alguém voltado a seguir certo exemplo de
vida de Cristo. Por isso, adquire força e é capaz de vencer as adversidades e os inimigos e
revela o pouco tempo para adquirir outro modo de vida. A linguagem utilizada é constituída
por sentido fornecido a elementos associados ao universo da criminalidade. Nesse caso, a
menção a tipo de armamento, calibre 142 e depósito de armas constituem recursos
lingüísticos. Do mesmo modo que a arma é capaz de disparar munição e ser letal, a música
teria a mesma potência de atingir com velocidade, mas para salvar. Também o cantor expõe
a Bíblia como fonte, o “paiol”, de sua força e com poder de destruir o mal e também
transformar e preservar a vida. Mas voltaremos a este ponto mais adiante.

142 As designações 12 e HK referem-se ao calibre de cartucho e tipo de arma; HK é um tipo de fuzil e de


submetralhadora.

174
¤

A outra composição é de L´Ton, da equipe Gospel Beat (GB), e deverá constar no


CD “Proceder”, produção independente, a ser lançado com treze faixas143. “Mãos pra cima”
é a canção de trabalho, disponível no site do grupo, exemplifica a concepção de
evangelização e da vida contemporânea. Combinação de hip-hop, r&b e outras
modalidades musicais, a composição focaliza situações consideradas peculiares a um
segmento da população que pode constituir o público da GB e do REP. Assim, a letra diz o
seguinte:
Mãos pra cima

(Intro)
Fibra (yeh) Sem Stress - Masta Basta
Nelboy Dasta Burtha (Nelboy) L-Ton (L-Ton)
GOSPEL BEAT

Mãos pra cima (É pra por a mão pra cima - Meu Deus)
Os caras as minas, eu quero ver (Mãos pra cima)
Nelboy, Masta Basta todo mundo (Mãos pra cima)
L-Ton (Gospel Beat)

Vem no clima (hã) vem curta essa batida


Feita pra você curtir e te deixar no clima
Geral de mão pra cima pois as bençãos vem de cima
Com esse som do céu quero te ver feliz da vida
Sem intriga sem problemas, sem cair o padrão
Sem tirar chapéu para comédia vacilão
Que vive de conversa, blábláblá - Caô
Que quebra a corrente em qualquer lugar que for
Aí acusador, me mira mas me erra
Pode atirar em mim quero ver se tu me acerta
Desvio da tua seta assim que nem matrix
pois não faz minha cara ter a vida por um triz
Diz, então me diz, o que eu posso fazer
Pra ajudar você mudar de vida e proceder
Te ajudar largar na vida tudo aquilo que não é bom
Te ver sorrir de novo então aumenta o som

Mão Pra cima


(How)Os caras e as minas, vem comigo aumenta o som geral de mão pra cima
(Ok) Os caras e as minas, geral de mão pra cima pois as bençãos vem de cima

143 Informação contida na entrevista “O ‘Proceder’ dos pioneiros do rap gospel carioca”, disponível em
www.enraizados.com.br, acessado em 22/06/05.

175
Essa é minha missão, o meu compromisso
Libertar você do inferno astral do mal do vício
Te avisar do precipício, pra (vo)cê não cair
Depois que caiu é mais difícil pra subir
Mas lembre-se que uma andorinha só não faz verão
Então chega junto aê, dê-me sua mão
Nossa união fortifica a corrente
Que contra o inimigo se torna mais resistente
Se quiser uma força anote aí, acesse
www.gospelbeat.com.br
E pros acomodados e traíras de plantão
www.solamento.com
Na era da Internet, mantenho o sonho vivo
Se quiser ajudar pra vencer conte comigo
Daqui "O.S.K 144” mandando idéia pra somar
Mesmo perdendo o jogo Deus dá um jeito de virar

Refrão

Aí, quem diria que um dia seria assim?


Tudo tranqüilo tanto pra vc e para mim
A gente brindando (tintin) pra comemorar a vitória
Esquecendo frustrações, medos e derrotas
Escrevendo uma nova história na canção
Sem treta, sem tiro e sem sangue no chão
Esse é o som, para alegrar a sua vida
Te fazer feliz e levantar sua auto estima
Sem abandonar o time, sem trair ninguém
Com os parceiros da G.B. (hã) eu vou além
Mantendo o respeito aí, daquele jeito
Tudo misturado sem caô sem preconceito
E aí? curtiu o som? quer algo mais?
Se quiser ajuda pode vir que eu sou da paz
Geral de mão pra cima sem perder o proceder
É isso que eu desejo para mim e pra você

Refrão

O aspecto moral aparece em destaque com a finalidade de apresentar maneira de


celebrar a vida na qual a traição, o “vacilo” e as intrigas são rechaçadas. Diante de situações
aflitivas ou consideradas impossíveis, têm-se a solidariedade, a “corrente”, mantida por
aqueles que compartilham de compromisso com a retidão e a felicidade. Os bens e a
tecnologia aparecem como os veículos da relação consolidada com o dar e o receber.

144 A sigla é uma menção ao site Os Karas, cuja atuação é divulgar eventos musicais no dito meio
evangélico.

176
¤

A última canção é do CD solo “Revoluoção”, do rapper Luo, com divulgação


independente e ligado ao selo 7 Taças 145, da qual faz parte o grupo APC XVI. O CD duplo
“Revoluoção”, contém 29 canções, foi lançado na “festa” da SC, sendo o hip-hop a
influência de Luo – essa expressão musical também é a mesma que está na base de
trabalho da equipe promotora do evento. A música “Mó blef”, uma das mais executadas, é
a 13 do segundo CD 146, cujo título é “Nova Ordem”, e revela a proposta do trabalho. A
Letra de autoria de Luo coloca o seguinte:

Mó blef
Têm vozes inimigos de você, uns ocultos, outros declarados
Mas não não tem nada não, o Senhor é por nós
Ouça minha voz e guarde ela até morrer
Lembra dela tipo um hino que foi feito em homenagem a você
Pra te proteger daqueles que querem te corromper
Em troca de dinheiro, em troca de status
Dizem ser seus parceiros, mas não passam de ratos
Atos, falhos, negros que na televisão fazem papel de otários
Tem vários, pagodeiros, rapper, jogador, roqueiro é tudo isqueiro
Pronto pra acender uma bomba que quando explodir só vai machucar você
Escravos da mídia, capitães do mato, trocam você pelo dinheiro dos brancos
Assistem mães aos prantos e, mesmo assim, entregam semelhantes pra sofrer no tronco.
Tipo igual aqueles roqueiros, maconheiros que eu não passo um pano
Em troca de dinheiro, eles viciam os próprios manos
E o hip-hop adere a toda essa patifaria
Cadê o amor eterno jurado à periferia
Se transformou em ganância, virou orgia
Você agora é menos importante que o produto da joalheria
Pensa nisso, você não é bandido, pensa nisso. Pra mim você é irmão
Esquece essa história de pagar pau pra ladrão
Pensa nisso, louvor a Jesus Cristo, pensa nisso
Bota fé em Deus, prestigie aquele que sincero no rap
Não perca tempo com outros lados, pé no breque
Pois o sistema, hum! É mó blef. Só te ama de verdade
Aquele que nunca te esquece e o resto, hum, hum, é mó blef
Blef, mó blef, é mó blef
A polícia ta programada pra matar, raramente ela vai dar boi pra você

145 A gravadora, fundada em 1998, é a primeira de hip-hop voltado ao segmento evangélico. O nome é
oriundo de certa passagem bíblica contida no livro de Apocalipse e, para os fundadores (dentre os quais está
Luo), tem a ver com a proposta de “simbolizar arrependimento e mudança de vida”. Maiores detalhes, ver:
www.7tacas.com.br, acessado em 23/08/02.
146 O primeiro CD é denominado “Arquitetura e destruição” e contém 18 canções.

177
A política ta cheia de ladrão que sempre vai mentir. O que não falta nesse
Mundo é safado. O futuro ta escuro, sendo que era pra tá azul
Era pra ter emprego pra todos, igual empreguei as vogais
Mas o sistema transforma uns em sofredores, outros em vagais
Estamos longe demais do conforto. Domingo à noite ele joga dinheiro no ar,
Enquanto a tiros outro irmão é morto. Passa um sufoco, viu a morte de perto
Será que agora vai aprender que o mal que você faz sempre volta pra você
Fomenta nos pobres a ganância pela grana, esbanja quem quer dinheiro, joga pro ar
depois não reclame ser um favelado, viver numas de querer te seqüestrar
(...)
blef, mó blef, é mó blef
Aquele maluco do rap ali é mó blef, aquele político ali é mó blef
Aquela mina ali é mó blef, aquele polícia ali é mó blef, aquele rico
Podre é mó blef. Mas eu vou citar quem é o blef pior mentiroso
Aquele que deu origem a todos os outros, tipo nojento asqueroso
Pai da mentira e de tudo que não presta
(...)
blef, mó blef, é mó blef

A crítica feita à sociedade integra aquilo propagado como “rap positivo”, cuja
peculiaridade é denunciar as injustiças, valorizar a imagem feminina e mostrar uma solução
para os problemas sociais. Estaria também alocado sob a rubrica o ato de divulgar o
Evangelho, como fonte de “redenção”, a não desvalorização de outras crenças e expressões
musicais 147. Na composição há a lista de atos possíveis de levar o homem ao sofrimento
como impor precária condição de vida: o desemprego, a exposição degradante em busca de
reconhecimento e o dinheiro como elemento mais importante. Nesse quadro ninguém fica
de fora, a polícia, os políticos, os traficantes, os usuários de drogas, aqueles que dominam a
mídia e o rapper, capazes de se opor à exploração, enfim, todos submissos ao poder do
dinheiro e também corruptores. O “sistema” e seus componentes constituem o “blef”, a
“goela”, a enganação exercitada por todos; nesse momento, uma gargalhada,
eletronicamente distorcida, integra o arranjo sonoro. Ela representa o engodo e, portanto, o
sofrimento impingido ao ser humano.
¤

Essas composições trazem à cena dois pontos. O primeiro tem a ver com outras
produções musicais e fonográficas apresentadas à sociedade brasileira e não dependem

147
Maiores detalhes, ver: www.7tacas.com.br, acessado em 23/08/02.

178
somente da transposição de referências sonoras e musicais. Diante de questões pertinentes
ao meio evangélico, os promotores utilizam técnicas digitais facilitadoras de combinação
ou transformação de sonoridades. Esse exercício depende do conhecimento de cada
profissional e da detenção de técnicas desenvolvidas globalmente. Resulta em inovações
digitais com cortes, com acelerações ou não das batidas, com o uso ou não de vocais e
demonstram as possíveis e, nem sempre, imagináveis recriações. Diria não ser isso
resultante do mero transplante das coisas, são sínteses de obras geradas localmente e aliadas
ao uso de experimentos vanguardistas que desvelam a capacidade de artistas em ação na
América Latina (Canclini, 1997:79/81).
O segundo ponto tem a ver com a disseminação de proposta de evangelizar ao falar
em problemas atuais e sobre as condições de vida. Ao combinar política e religiosidade, a
crítica é a característica do rap do APC XVI, e tem por recurso disseminar a idéia de que a
salvação e a danação são as alternativas. Ter-se-ia então a música de missão
evangelizadora, que visa cumprir o objetivo de pregar aos ouvintes. A letra apresenta
denúncias sobre a realidade, ao mesmo tempo, busca demonstrar o correto “proceder”,
concebido conforme as Escrituras.
Os trabalhos apresentados, independentemente da adesão ao hip-hop, têm por
característica denunciar as injustiças sociais, conscientizar os moradores de áreas não
centrais e, por fim, a missão evangelizadora (Novaes, 2003:29). A característica das
canções é a busca por contextualização e recorre-se a problemas contemporâneos ou aquilo
entendido como tal.
Do mesmo modo, o rap apresenta modalidades: existe o religioso elaborado por
evangélicos; há também outro que mistura “tradições cristãs e afro-brasileiras” e opõe
sagrado e profano ao usar símbolos religiosos sem vincular a instituição religiosa (Novaes,
2003). Esses rappers são os propagadores da fé cuja condição é a relação entre a visão
política e a religiosidade não voltada a enfatizar outra vida, mas aquela desenrolada no
cotidiano e sensível ao agir diário (Novaes, 2003). Ao observar as músicas, esses aspectos
estão presentes e também tecem um quadro da vida e da sociedade contemporâneas no
qual, para uns, o uso inadequado de recursos materiais conduz à desigualdade; outros
apontam não somente os problemas e as soluções, mas a tecnologia como canal para
alcançar estado de unidade na sociedade.

179
Como o rap, as músicas produzidas e executadas nos eventos revelam as
características e as distinções entre elas. Encontra-se aquela possuidora de conteúdo de
missão, ocorre junção entre crítica social e religiosidade e, por último, outra sublinhada por
discurso de valorização do fiel. Tocadas e dançadas a partir da combinação entre sagrado e
temas terrenos, as músicas revelam a coexistência de arranjos e concepções no meio
evangélico e não divulgam somente mensagem de salvação; não da salvação fora do
mundo. Então, os artistas procuram intervir no cotidiano de leigos e ouvintes.

Quem fala e faz o quê

Anteriormente foi vista a inscrição de grupos, de equipes voltadas a integrar o meio


evangélico. Apresentam ações pontuadas pela diferença e anunciam possuir base bíblica.
Ao aprofundar mais a observação desses grupos, foi possível ver que as alterações não são
pertinentes ao aspecto do entretenimento, não buscam proporcionar somente o
divertimento, apesar de não abdicar dele. As equipes expressam e os promotores tomam e
combinam vários elementos e estendem suas ações. Ao ter, por ponto de partida, como os
promotores entendem suas atuações, seja em relação à música, seja em relação às reuniões,
foi perguntado a TR qual seria a proposta da equipe SC. Sua resposta foi no tocante ao que
seria transmitido, pois:

A mensagem também é uma mensagem black; é uma mensagem mais


voltada pro negro. Não quer dizer que os brancos não venham fazer parte
do contexto, sendo que tudo que acontece nesse mundo, principalmente
no Brasil, no Rio de Janeiro, é tudo pros brancos. Então, eu quero
mostrar pro negro que ele também pode ter uma parada pra ele também
na igreja: ‘oh, isso aqui é teu, meu irmão, a parada também é sua’. Por
quê? O branco... O negro está sempre disposto a ta inserido no projeto do
branco, fazendo parte do projeto do branco e isso passou a ser natural.
Quando você faz uma parada às avessas nego já começa a dizer que tá
agindo de racismo, que é racismo ao contrário, e não quer mais. Pô, cara,
todo já se acostumou a ver o negro não reivindicar, quando reivindica
qual o motivo... ‘Mas o cara tá querendo, mas, o cara não sei o quê’. Pera
aí, meu irmão. O cara não tá na faculdade e você tá, o cara come mal e
você come bem. Tá errado, meu irmão. Tu tá errado, deixa o cara dá o
grito dele mesmo, tem que dá; eu bato palma do outro lado.

180
TR faz a relação imediata entre Evangelho, música e temática racial e reconhece a
pouca participação de negros 148 ou de iniciativas voltadas ao contingente formado por
estes. Assim, elabora a relação entre a desigualdade no meio evangélico e a existente na
sociedade brasileira, ao apontar as condições religiosas e sociais inadequadas. Também
relaciona as condições de vida, a incapacidade e/ou o não reconhecimento de reivindicação
quando realizada. Diante disso, considera a promoção de eventos como vetor de
valorização, no interior do cenário religioso e também artístico, da população negra e da
cultura a ela associada.
Sobre a proposta da SC, TR complementa que:

A única coisa que a Soul de Cristo quer fazer é dar voz a quem ainda não
tem. Existem excelentes e talentosos artistas negros no cenário
evangélico que não têm espaço. Porque cantam r&b, porque fazem blues.
Porque fazem tudo que não tá dentro do contexto que foi criado pelo
sistema evangélico, porque existe um sistema. Então, quer dizer, as
gravadoras não gravam esses artistas, as rádios não dão oportunidade a
essas pessoas; mal ou bem, elas têm um testemunho bom pra passar e
elas tornam referência justamente para aqueles que não são evangélicos.

Também ao falar da "festa", o depoente destaca o contexto musical associado ao


meio evangélico e indica que os cantores vinculados a determinados estilos musicais, não
encontram condições favoráveis ao desenvolvimento de carreira. Existem gravadoras e
emissoras de rádio que investem em outra inscrição musical – principalmente a balada
romântica. Então, seria uma organização empresarial excludente de artistas; isso ocorreria
por causa da associação com determinada inscrição musical, cuja ascendência seja
desprivilegiada. Para TR, existiria a necessidade em constituir canal alternativo de atuação,
de veiculação musical e de mensagens capazes de atender o âmbito da fé e o da vida
material.
Outro exemplo pode ser dado pela equipe GB, pois ela estabelece ser a "festa"
produzida verdadeiramente black, voltada a atingir público determinado. Assim, a
apresentação do grupo é a seguinte:

148 De acordo com documentos e discursos proferidos pelos entrevistados, o termo negro (s) define a
posição ocupada por alguém ou grupo em decorrência da cor da pele e da origem cultural. Estes elementos,
então, pesam na organização do meio religioso em questão. No decorrer deste trabalho, a aplicação da
categoria possibilita indicar a vigência de orientações entre determinados evangélicos que se apresentam
como conscientes das relações sociais consideradas desiguais, seja em âmbito político, econômico e
educacional.

181
Nosso ministério é restaurar vidas, utilizando a música para tocá-las,
buscando as impactar com a sonoridade black aliada a letras desafiadoras
e objetivas. Discursos abertos, retos e diretos enfatizando o
arrependimento e o relacionamento com Deus. Vidas transformadas é a
meta. DJ's, MC's, cantores, músicos, produtores e simpatizantes são os
soldados que formam esse ministério - jovem e ousado, onde a base é
muita oração e ação/ muito som e pregação; estratégias dadas por Deus
quando nos incumbiu de fazer sua vontade.
Uns pregam em hospitais para enfermos, outros pregam em cadeias para
os presos, outros evangelizam estrategicamente no carnaval, nós
evangelizamos a "GALERA BLACK". Onde essa galera estiver, ali
estaremos sendo luz para a vida deles 149.

Cabe conceder ao canto poder evangelizador; essa música é eficaz devido aquilo
definido black – letras, sonoridades e origem. Ela permite a realização de certa ação e
inscreve novos atores no cenário religioso. Sem a presença de autoridade legitimada
institucionalmente, o texto apresenta outras personagens aptas a compor o trabalho de
evangelização. Assim, profissionais como DJs, MCs, cantores, empresários e músicos
passam a ser os manipuladores de conversão sonora e musical.
L´Ton, componente da equipe GB, fala da importância da “festa” por ele produzida
na cidade do Rio de Janeiro e explicita ser ela percebida como algo além de um canal de
transmissão religiosa, pois, para ele:

Em sua maioria, os jovens que vão para essa festa são negros. Por isso,
tentamos passar para eles a cultura negra e gospel que não é muito
difundida no meio evangélico. Como nosso país foi colonizado por
europeus, o próprio evangelho que foi difundido por eles veio nos
“moldes” do homem branco. Por isso, nos bailes tentamos resgatar essa
cultura que se perdeu. Hoje os jovens e o público gospel já começam a
identificar essa divisa. Mas é um trabalho árduo. Por isso, damos
preferência a esse tipo de música, a nossa música. Afinal, hoje, os
principais produtores de bailes são negros e sabemos o que sofremos para
conquistar nosso espaço (de chamarem nossa música de música
mundana, diabólica e etc.). O trabalho que fazemos sem falar muito, mas
com muito som, clipes e etc, é justamente ajudar as pessoas a entender
que se louva a Deus com música negra (charme, hip-hop, samba etc),
assim, levantando o negro e colocando em seu devido lugar dentro das
igrejas.

149
Disponível em www.gospelbeat.com.br, acessado em 07/04/05.

182
O trabalho da equipe é alterar a concepção teológica norteadora dos evangélicos. O
depoente atribui a essa esfera e à empresarial o desconhecimento do negro. Empreendendo
ação também de ordem cultural, revela invalidar visões difundidas e informar o
freqüentador de que os elementos ali oferecidos devem estar presentes para que os próprios
adeptos possam se reconhecer como fiéis e integrar o meio religioso.
As propostas da SC e da equipe de L´Ton apresentam congruências. Busca-se ter
trabalho de transformação não do pecador, mas do submisso, do excluído, daquele sem
reconhecimento. Nesse sentido, a importância estaria em ultrapassar a evangelização
pautada exclusivamente na transmissão de concepção bíblica 150. Os DJs podem ser vistos
como os disseminadores de uma nova visão religiosa e visam alterar a sociedade. Suas
pregações destacam a vida cotidiana, as questões sociais, políticas e econômicas
(Thompson, 1987; Novaes, 2003). A partir da audição das músicas e da apresentação de
artistas, haveria a aquisição de subsídios sem visar o mercado musical abrangente e
consumidores não negros (Gillian, 1996). Para as duas equipes, sem dúvida, o
entretenimento é um atrativo. Não obstante, seria possível afirmar que a GB e a SC
vislumbram associação inovadora e sensível aos problemas sociais, políticos e materiais.
Concebem, admitem arranjos e combinações entre reivindicação política, recreação e
religiosidade (Bastide, 1974:188-192) 151.

150 Burdick (1998:119-147), ao estudar o cristianismo popular no Brasil, indica que, em São Paulo, certa
liderança em atuação no meio evangélico critica o racismo e reflete acerca da presença do negro na Bíblia e
também mantém proximidades com o movimento negro paulista.
151 Para o autor, a participação de negros no cristianismo, nas versões protestante e católica, não marca
somente o aspecto místico da religiosidade. Há de enfatizar o desenvolvimento de associações nas Américas,
reveladoras de reações das populações negras diante da nova realidade social e econômica e enfrentariam com
o fim da escravidão. Na América do Norte, principalmente com a migração para as cidades do norte, com
problemas característicos da dinâmica urbana, os negros encontraram na vida religiosa terreno ao
desenvolvimento de comunidades não restritas à esfera religiosa. Essas associações teriam interesses pelas
condições materiais e políticas que atingiam o negro. Portanto, cuidariam de questões como o desemprego, a
moradia e a discriminação social, atuando entre os jovens a fim de estabelecer grupos recreativos que
oferecessem alternativas aos atrativos da vida de rua. Na América Latina, o clero, ao afastar do âmbito da
igreja as cerimônias realizadas entre os negros, conduzindo-as às bordas do catolicismo, não eliminou as
associações nas quais um folclore negro e mestiço foi desenvolvido e continuou a dar aos seus freqüentadores
inserção comunitária. Ao lado de antigos agrupamentos, Bastide aponta que as associações desenvolvidas no
ambiente urbano permitiram o surgimento de entidades de caráter reivindicatório e recreativo. No primeiro
caso, estariam aquelas em atuação contra os preconceitos e na defesa de interesses econômicos e sociais. Ao
mesmo tempo, essas associações favoreciam o encontro entre os negros e, portanto, o fortalecimento de
valores e condutas importantes para a continuidade da vida comunitária. Já entre as organizações recreativas e
marcadamente urbanas, estariam as escolas de samba e os bailes, que figurariam como compensações diante
da situação de marginalidade social.

183
O arranjo proposto visa reformular o meio religioso ao colocar de modo, mais ou
menos, direto a diferença que envolve as relações entre brancos e negros no meio
evangélico e também do distanciamento dos traços da cultura brasileira (Novaes, 1985b).
Os articuladores de black music gospel e de “festa” surgem como os atuais propagadores de
religiosidade, de distinta religiosidade. Estabelecem um “campo de polêmica” com ênfase
não em outro mundo, não na salvação pós-morte, mas naquilo que seja imediato, real e
renova o lugar da religião no mundo contemporâneo. Neste sentido, há confluência com os
rappers brasileiros, envolvidos com o rap e a leitura bíblica, norteados por visão de uma fé
como expressão cultural, cujo destaque está em alcançar resultados de ordem política
(Novaes, 2003:43 e 35) e buscam atingir em relação a um segmento de receptores. No
âmbito musical, ocorre reinterpretação bíblica pontuada por crítica religiosa e social.
TR delineia sua proposta: questionar a esfera institucional e a própria sociedade a
fim de atingir parte da população. Diz também: "a Soul de Cristo não quer ganhar o espaço
dela dentro da igreja; ela visa ganhar um espaço na sociedade, ela quer abrir uma porta...".
Questionar as relações estabelecidas entre negros e brancos, seja na sociedade, seja na
igreja, parece ser o ponto para os disc jockeys da equipe. Como os componentes da SC, a
GB coloca o mesmo elemento em sua proposta, mesmo que L´Ton, um de seus
componentes, destaque o entretenimento, a equipe se apresenta como tendo objetivo
específico: atuar entre a dita “galera black”.
Anteriormente foi visto que os promotores de “festa” sublinham tratar de iniciativas
direcionadas aos jovens urbanos, enfatizando a dimensão do entretenimento. Porém, outro
contingente é privilegiado por suas ações. O empresário da GN especifica ser o seu público
formado por grupos juvenis urbanos, ao contrário das outras duas equipes. A temática da
desigualdade social, racial e arranjos que destaquem uma negritude não constituem seu
escopo de atuação. Apesar disso, o material promocional é construído sobre determinada
estética e, além das expressões musicais, contribui para indagar acerca da percepção de cor
e a concepção de ser negro.
Na "festa" da GN, negros e mestiços têm presenças significativas, sendo também
utilizadas expressões musicais que expõem as influências dos organizadores. São
vinculadas às populações de cor, seja no Brasil ou em outras paragens, principalmente nos
Estados Unidos. Porém, isso não significa existir imediata problematização das relações

184
sociais ou de os envolvidos relacionarem música e atividades como componentes daqueles
definidos negros.
No meio religioso e fora dele, as equipes realizam negociações, estabelecem
tensões, diferenças, alianças com outros atores sociais e ampliam o raio de suas ações. São
processados questionamentos acerca do meio evangélico e, desse modo, sobre a ambígua
presença do “negro”, haja vista compor boa parcela de fiéis e, ao mesmo tempo,
permanecer ausente na liturgia 152. Alguns promotores, como os da equipe SC e da GB,
apresentam críticas ao meio evangélico pela valorização e pela disseminação de prática
religiosa pautada na cultura européia – difundida por missionários - em detrimento de outra
expressão cultural. Assim, a distribuição de poder na esfera religiosa e na sociedade é
questionada por eles, pois visam transformar esse quadro 153; o começo pode ser pela
valorização de artistas e bens culturais.
Estes dois pontos não ficam restritos ao meio religioso, pois os organizadores de
“festa” e da black music gospel dialogam constantemente com outros formuladores de
eventos musicais e de black music. Quando aqueles falam de suas iniciativas apresentam
uma concepção de cidade, expõem outra topografia urbana. A despeito do traçado
administrativo, os integrantes da GB e da SC vêem a região a partir da concentração de
práticas culturais desenvolvidas fora do meio evangélico: o jongo, o samba e o “baile
charme”. Essas são algumas das expressões culturais citadas e viáveis para falar sobre a
importância de negros para a constituição histórica e cultural da sociedade.
As equipes podem apresentar proposta em atuar e conscientizar a população não
branca, valorizar expressões musicais e estéticas e constituir certa modalidade cultural e
religiosa. Não se trata de atuações encetadas por ativistas, mas elas também permitem
observar como certas questões podem estar presentes e não somente constituir meras

152
Existem outros grupos formados por leigos e líderes que discutem diretamente as desigualdades sociais e
raciais, principalmente as pertinentes aos direitos, à valorização e ao reconhecimento político da população
não branca. Tudo isso é realizado a partir de reflexões acerca do fluxo, de transposição de homens e mulheres
da África para terras americanas. A base dessa reflexão pode ser formada por escritos acadêmicos e literários
produzidos por estudiosos evangélicos ou não. A partir daí falam das constituições das igrejas e o que deve
ser cobrado delas.
153 Nas “festas” da SC foi possível encontrar freqüentadores que apresentavam uma reflexão mais elaborada
sobre o tema ou ostentavam objetos – camisas e boinas – com palavras, frases escritas ou compostas por cores
que remetem à Jamaica, ao rastafarianismo e ao som do reggae; estes são disseminados e marcam
mobilizações voltadas à crítica ou à exaltação da cultura relacionada à população de cor negra. Não obstante,
há de considerar que esses objetos podem constituir comunicação entre os presentes talvez porque sejam bens
produzidos e disseminados internacionalmente e desenham modo de integração ao mundo contemporâneo.

185
estratégias. Os promotores não são os únicos em falar e em produzir eventos viáveis à
inserção de discussões sobre ser “negro”, ser “afro-descendente”, bem como seu lugar no
meio evangélico. Existem outras iniciativas e elas compõem, juntamente com as “festas”,
pistas para entender as produções musicais, de reuniões e fonográficas e, assim, as
transformações do meio evangélico. Vejamos algumas delas.

Falas e ações: além do entretenimento

O meio evangélico brasileiro é caracterizado por determinada visão de práticas


culturais religiosas como a umbanda e o candomblé. Isso abrange os grupos pentecostais,
neopentecostais e históricos. Na Igreja Metodista, apesar da vigência do discurso de não
“acepção de pessoa”, não há valorização da cultura afro-brasileira ou afro-latino-americana
e são ressaltados aspectos da cultura anglo-saxã também difundidos por missionários
(Novaes, 1985b).
No pentecostalismo, não há tanta diferença (Burdick, 1998; Contins, 1995).
Também vigora o discurso de igualdade entre os adeptos e é expresso não ser a cor da pele
elemento determinante na construção de identidade religiosa. Isso está presente nos
“testemunhos”, nas falas marcadas por referências ao cotidiano, que ressaltam a sociedade
mais ampla e nela, aí sim, ocorrem as distinções relativas à cor da pele e de origem cultural
(Contins, 1995: 99,185). Como entre os históricos, no pentecostalismo é visto
negativamente aquilo considerado conectado à África - esta é concebida como região
tomada pela “idolatria” – e os cultos passam a combater os cultos afro-brasileiros. No
entanto, existem protestantes, e pentecostais também, voltados a desenvolver leitura bíblica
e, assim, negociar outros posicionamentos com os fiéis (Burdick, 1998: 144-146).
Durante o período de pesquisa deparei-me com ações empreendidas por leigos e
líderes religiosos que visavam valorizar e aproximar o repertório teológico com expressões
culturais negras. É feita relação entre crença, música e visibilidade social e religiosa. Cito o
Fórum de Música Negra e Evangelização (FMNE), elaborado pelo Fórum de Mulheres
Negras Cristãs (FMNC), e o Fórum de Lideranças Negras Evangélicas (FLNE).

186
O FMNC 154 visa conscientizar o meio evangélico e a música aparece como
importante condição. Para suas integrantes, o objetivo do fórum é desenvolver “o
conhecimento sobre nosso espaço histórico-social e teológico, e nos fortalecendo
mutuamente chegaremos a criar e recriar nossa identidade enquanto mulheres negras
cristãs” 155. Com a visão antenada com diversos movimentos de emancipação de grupos
politicamente minoritários, as integrantes do FMNC propõem a atuação feminina e de
negros a partir de concepção formada por três dimensões: o passado - pontuado por
desvalorizações; a atualidade social - com a exclusão; a teologia - com a invisibilidade. A
construção de agentes políticos recobertos por auto-estima exige a inversão de tal quadro
em relação às mulheres negras. Assim, está em andamento articulação para viabilizar uma
alteração do meio evangélico. Ela pode colocar em debate a participação em postos de
comando e de decisão na hierarquia religiosa (Machado e Figueiredo, 2000:127); neste
sentido, a inscrição feminina negra tece um diálogo indireto com a visão institucionalizada
de igualdade já que é buscado conhecer “nosso espaço histórico-social e teológico” 156.
Diante da dimensão legal defensora de inserção e da não discriminação de cidadãos,
de expressões culturais e religiosas, há de registrar também a ação do FLNE. Seu início se
deu em São Paulo, quando houve a reunião de líderes religiosos, leigos e pesquisadores
voltados ao desenvolvimento de ações no tocante “à questão da negritude nas igrejas
evangélicas”. Seus participantes enfatizam a necessidade de refletir a “questão do afro-
descendente” no âmbito religioso e, assim, buscar vias para efetivar “políticas de ações
afirmativas” 157. Estas devem abranger a teologia, as cotas e bolsas de estudos nas

154
Sua fundação ocorreu na década de 2000, em São Paulo, e reúne participantes de várias denominações
evangélicas.
155
Conforme mensagem recebida em 2004.
156
A inscrição do FMNC pode provocar uma reflexão sobre a “festa” quando é reconhecida diferença entre as
iniciativas. Nega – única mulher envolvida com as equipes organizadoras de “festa”. No segundo capítulo foi
visto aquilo como os promotores entendem a realização de “festa”. Nega falou sobre a importância para ela
em “...mostrar um ambiente em que você pode estar conversando sem precisar de prostituição. Sem precisar
de utilizar drogas”... O propósito nosso é isso. Você estar mostrando pra pessoa um evangelizar aquela pessoa
através da festa, mostrando o amor de Cristo por aquela pessoa”. Ao comparar com as integrantes do FMNC,
a reflexão de Nega coloca ênfase na exemplaridade moral e na força da oração como requisitos para atuação.
Eles figuram como os componentes da inserção e do reconhecimento feminino; portanto, a honra é fortalecida
e ampliada a partir da ligação com o divino (Gillian, 1996:233).
157 Sobre ação afirmativa e política de cotas, principalmente a medida federal e as ações implementadas no
Estado do Rio de Janeiro, ver: Ayres Machado, 2004.

187
instituições de ensino denominacionais 158. Além disso, observam que as igrejas
neopentecostais associam o mal aos cultos religiosos identificados com a população negra.
Isso ficaria visível nas doutrinas por elas pregadas 159.
O FLNE encaminhou reivindicação ao II Congresso Brasileiro de Evangelização -
CBE2 - como modo de questionar o meio religioso. A busca é pela alteração da vigência
das posições desiguais no âmbito religioso. Seus integrantes entendem a necessidade de
dar:

Um basta na omissão da Igreja Evangélica brasileira e quebre o silêncio


dos púlpitos com a temática negra e que não fique só nas palavras, nos
sermões e nas declarações, mas também através de ações concretas:
programas, campanhas, ações afirmativas e reparações 160.

Estas discussões apontam para a existência de um campo de diálogo do qual


participam alguns promotores de black music gospel. O FLNC e o FMNE colocam em
debate alguns direcionamentos doutrinários e mesclam com outros que permeiam a
sociedade abrangente com promoção da igualdade: as políticas de reparação e afirmativas;
assim, indicam a procura por caminhos de valorização do “negro” e do “afro-descendente”.
O primeiro é aplicado para denunciar e discutir aquilo que entendem ser a invisibilidade do
negro no meio evangélico, pois a teologia, a liturgia, a estética corporal e musical não
contemplam sua origem e presença; seu uso determina o grupo de fiéis identificados pela
cor da pele e identidade cultural. O segundo termo define o ser coletivo e remete ao âmbito
da luta política contra a marginalização econômica e política 161.

158
Ver: Relatório do Fórum de Lideranças Negras Evangélicas, disponível em
http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, acessado em 22/11/03.
159
Ver: Fórum de Lideranças Negras Evangélicas,
http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, acessado em 22/11/03 . O texto “A Ética e a
Igreja” veicula a crítica sobre a relação entre a cultura negra e o demônio, maiores detalhes:
http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, acessado em 02/04/04.
160
Ver: Manifesto do Fórum de Lideranças Negras Evangélicas para o CBE2, disponível em
http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, acessado em 22/11/03.
161 Entre os integrantes do FLNE, “negro” e “afro-descendente” são termos utilizados constantemente e, por
vezes, são intercambiantes. A aplicação ocorre para debater condições sociais e religiosas que consideram
pontuadas pela desigualdade e invisibilidade que atingem a população negra e aqueles que se reconhecem
tendo ligação com os antepassados escravos. Nesse sentido, os “manifestos”, “relatórios”, convites e
informativos produzidos pelo FLNE, pelo FMNC e grupos integrantes tentam atingir os “evangélicos”,
colocando em foco reivindicações de cunho religioso – as alterações do culto, a invisibilidade da população
negra – e outras de âmbito político – políticas de ações afirmativas e exclusão social. A utilização da categoria
“afro-descendente”, apesar de “negro” ser recorrente, é marcadamente em relação ao aspecto político; caso
seja visto o convite para a participação no “Encontro Metodista Afro-descendente”, do “Ministério de ações

188
A proposta dos fóruns é de haver releitura da teologia com a qual passe a ser
contemplado como sujeito do trabalho religioso. Essas mudanças são inscritas com
atuações de leigos e líderes religiosos no interior do âmbito institucional e demarcariam um
“movimento negro evangélico” voltado, como as ações militantes existentes na arena não
religiosa, às reparações de cunho social, político, histórico e econômico. Assim, os grupos
integrantes tentam mobilizar forças 162, congregar adeptos, estabelecer confrontos no
interior do próprio meio evangélico para aceitação de suas propostas por instituições
religiosas.
Além do FMNC e o FLNE, existem outras inscrições, não exclusivamente no
âmbito religioso, mas no empresarial, envolvendo produção musical e organização de
atividades. As articulações são veiculadas por certa imprensa e são vistas também no
ambiente virtual. O reconhecimento de artistas de canções constituem os temas das
atuações.

Exposição de uma polêmica

163
A empresa de divulgação CON-3 realizou, em 2004, na cidade de São Paulo,
festival voltado a premiar as bandas e cantores de black music gospel – rap, soul, r&b e
corais de spirituals - denominado 1º.B.Unit Festival 164. Sua organizadora diz ser a idéia
surgida do acompanhamento isolado de artistas e bandas. Muitas vezes, ela esbarrava em

afirmativas para afro-descendentes”, realizado em 2005, o informativo do FMNC, denominado “Ciranda de


Informações”, de 2004, noticia a presença do FMNC na “Conferência Nacional de Políticas Públicas para
Mulheres”. Neles, apesar de haver referência constante à participação das “mulheres negras”, ocorre o
destaque “às questões dos afro-descendentes” que atingem temas como “ações afirmativas”, “racismo” e
“preconceitos”.
162 No caso, há o Movimento Negro Evangélico – MNE –, formado por grupos oriundos de diversas igrejas
evangélicas. Os integrantes são: Grupo Evangélico Afro-Brasileiro; Simeão, o Niger; Cenacora; Sociedade
Cultural Missões Quilombo; Associação Evangélica Palmares; Fórum de Mulheres Negras Cristãs de São
Paulo; Fórum Permanente de Mulheres Negras Cristãs do Rio de Janeiro; Fórum de Mulheres Negras da
Bahia; Grupo de Reflexão Martin Luther King; Comafro; Comando Revolucionário Cristão; Ministério
Asuza; Coral de Resistência de Negros Evangélicos; Grupos de Cristão de Herança Africana; Grupo de
Negros da Escola Superior de Teologia; Ministério Internacional de Afro-descendentes; Pastoral de Combate
ao Racismo da Igreja Metodista. Maiores detalhes ver:
http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, acessado em 26/06/05.
163 A CON -3 tem ligação com a empresa AW Produções – esta é especializada na promoção de cantores e
bandas de black music.
164 “B.Unit Festival”, disponível em www.mundonegro.com.br, acessado em 25/06/05; “festival tem como
objetivo premiar o melhor da black music nacional”, disponível em
www.blackgospelbrasil.yahoo.com/groups/blackgospelbrasil, acessado em 05/08/04.

189
problemas pertinentes à divulgação de suas apresentações e de dificuldades em encontrar
investimentos 165. Para a premiação, foram estabelecidas diversas categorias como, por
exemplo, “melhor rapper”, “melhor coral” e “banda revelação”. Para a integrante da CON-
3, no festival seria possível premiar e também:

Trazer um reconhecimento do trabalho que eles têm executado pelo


nosso país. Inclusive para resgatar um pouco da história, pois está
chegando muita gente nova que faz parte deste ‘segmento’ e não tem
noção, nem respeito para com aqueles que começaram este
‘movimento’ 166.

Os diretores da CON-3 complementam com o seguinte:

Queremos através deste evento trazer uma unidade para o segmento e


prioritariamente trazer a essência da verdadeira missão dos músicos da
black music gospel, que vai muito além de cantar bem e saber improvisar
muito, é necessário ter uma vida de comunhão com Deus que é manifesta
através da vida diária destes músicos e perceptível através do louvor que
sai da vida deles quando sobem num púlpito ou num palco em suas
apresentações 167.

Dois pontos transparecem nas falas dos empresários. O primeiro diz respeito ao
reconhecimento dos artistas e de seus trabalhos; o segundo aponta para a capacidade
específica do artista negro. Os responsáveis destacam a ausência de interesse e organização
empresarial capazes de beneficiar os artistas componentes da black music gospel. Isso
ficaria explícito na falta de reconhecimento dos trabalhos e da história daqueles envolvidos
com a construção de parte da música em circulação. De acordo com componentes da CON-
3, são esses artistas, apesar das dificuldades enfrentadas, empenhados em manter contato
com Deus, não somente nas apresentações, mas em sua existência. Exatamente isso
demarca sua especificidade. Tratar-se-ia de dons, como a capacidade de improvisar e a de
cantar.
A atividade da CON-3, em promover o B. Unit Festival, não é a única iniciativa
voltada para a divulgação da black music gospel. Parte da mídia existente no meio

165 A direção entende que isso ocorre porque as empresas, em virtude do produto que comercializam –
bebidas alcoólicas e cigarros –, não têm interesse em associar seu produto ao segmento evangélico. Além
disso, o público tem em suas igrejas canais de execução musical sem que seja preciso mexer no orçamento
familiar porque nas igrejas a apresentação é franca. Esses pontos desencorajariam os investimentos.
166 Mensagem recebida em 29/08/04.
167 Depoimento disponível em: www.mundonegro.com.br/noticias, acessado em 25/06/05.

190
evangélico, principalmente aquela voltada à produção musical, veiculou matérias sobre o
tema. Elas indicam elementos para a reflexão das vias de visibilidade, de reconhecimento
de artistas e da black music gospel.
Em 2005, a revista Show Gospel 168divulgou a instalação do grupo You
Entertainment 169 no Brasil. A empresa atua nos Estados Unidos no setor da mídia impressa
e digital com produção de CDs, de DVDs e de shows. A matéria explicita ser o objetivo
da empresa instalar a gravadora You gospel e, diz Smith, mentor do projeto, “divulgar os
artistas em rádios e eventos não evangélicos, pois a forma na qual nossos produtos estão
sendo apresentados possibilita isso”. Para o fundador da You gospel, no Brasil o “gospel” é
“semelhante ao americano, principalmente os afro-descendentes se expressam de maneira
parecida. Espero contribuir para que haja uma proximidade entre os evangélicos de
diferentes raças...” 170. Outra matéria, voltada a temas gerais e sem vínculos religiosos ou
políticos, veicula o objetivo da empresa na voz de seu executivo-chefe que diz “nosso
negócio é música. Mas essa conexão existe porque vamos dar voz aos afro-brasileiros na
indústria do entretenimento” 171.
Na matéria, é possível ter acesso a depoimentos de alguns artistas contratados. Uma
cantora, iniciada no canto em igreja evangélica na favela do Jacarezinho, cidade do Rio de
Janeiro, diz o seguinte “acho uma pena a falta de investimento no negro brasileiro. É muito
interessante a You Entertainment abraçar a causa negra e a causa do artista
desconhecido” 172. Outro cantor observa: “todos nós, negros brasileiros, sentimos os limites
que a raça branca nos impõe. Precisávamos de alguém que advogasse em nosso favor com
expertise e dinheiro” 173.
O empresário e os artistas compartilham da visão de haver frágil visibilidade para o
artista negro e suas expressões musicais. Os artistas fornecem o tom da invisibilidade ao
apontar, “a causa negra” ou a relação social desigual, como causa do desconhecimento dos

168 Editada trimestralmente por Nova Jerusalém Pub. e Com., é uma publicação adquirida por assinatura e
especializada em divulgação da citada “música gospel”.
169 O grupo You Entertainment compreende a revista Essence, surgida na década de 1970, direcionada ao
público afro-americano, e organização de festivais nos Estados Unidos. No Brasil, além do setor musical, o
grupo registra empresa de turismo Avocet que atua no nordeste brasileiro e traz negros norte-americanos ao
país. Ver: Leal. “You entertainment and You gospel”, revista Show Gospel, ano 05, nº 20, p.22-23; Aziz.-
“Black money”, www.terra.com.br/istoé.
170 Leal. “You entertainment and You gospel”, revista Show Gospel, ano 05, nº 20, p.22-23.
171 Aziz – “Black Money”. www.terra.com.br/istoe, revista nº1844, 16/02/05, site acessado em 08/07/2005.
172 Idem.
173 Idem.

191
artistas, ou melhor, do “artista desconhecido” e, portanto, impeditiva da obtenção de
reconhecimento. O cantor indica as condições para a alteração do quadro: o investimento
econômico e o conhecimento empresarial. Esses seriam fatores para aproximar
“evangélicos de diferentes raças e que muitos tenham vontade de conhecer os artistas
brasileiros”, como coloca Smith 174. O problema pode ser histórico e a solução passa a ser
questão de organização empresarial, ao equacionar recursos – financeiro e humano – para
concretização.
Em portal da Internet, da produtora Mk Publicitá, duas matérias jornalísticas foram
veiculadas e tinham por núcleo a “música afro” e a “música gospel”. Essas definiriam o
rap, o hip-hop, o soul, as baladas e outras expressões musicais como “ritmos afro” 175. Para
um pastor metodista e compositor 176, a “música afro”, definida como “música negra”,
como black music, seria aquela oriunda da África. Assim, a posição da “música negra” se
deve ao fato de “o swing, as interações, a unção e a liberdade de se expressar faziam com
que o mercado não enxergasse esse tipo de música como um produto rentável”. Afirma
existir trabalhos de qualidade e artistas reconhecidos, porém não há interesse por essa
música. Todavia, na reportagem, o pastor vislumbra a saída ao sustentar que “devido a
trabalhos missionários e interesses dos governantes, o Brasil está mais próximo da África”,
concluindo que “nunca nós sentimos tão africanos, mesmo com tanta influência americana
(...) Seremos uma grande nação em termos de ritmo para a glória de Deus”. Então, as
dificuldades oriundas do desinteresse do mercado e da visão existente no interior das
igrejas seriam vencidas, pois o entrevistado afirma:

Eu sinto que vários intérpretes da música cristã têm recebido um novo


paladar e a Igreja está assimilando uma nova linguagem de adoração.
Foi-se o tempo em que podiam desdenhar da música gospel. Cada vez
mais ela está profética, poderosa e objetiva 177.

Ao opor mercado e “profecia” e, em segundo momento, juntá-las, o pastor termina


por indicar como o “mercado” se abre diante do poder da profecia, revelando a noção de

174
Leal. “You entertainment and You gospel”, revista Show Gospel, ano 05, nº 20, p.22-23.
175
Dias. “Música afro ainda enfrenta o desafio de não ser comercial”; “A origem da música gospel e secular
vem da África”. Disponível em: www.elnet.com.br, acessado em 11/02/04.
176
Dias. “Música afro ainda enfrenta o desafio de não ser comercial”.
177 Idem.

192
equivalência entre os dois campos. No depoimento também há referências a cantores não
negros e possuidores de receptividade no meio evangélico. Eles estariam ligados aos
empresários e apresentam trabalhos que contemplam expressões musicais relacionadas às
populações negras brasileiras e norte-americanas.
Em outra matéria, é demonstrada a origem da “música gospel” e são citados dois
pastores cantores e outros dois cantores de renome entre os evangélicos brasileiros. Vê-se a
tentativa em demonstrar como o desconhecimento foi um dos fatores prejudiciais ao uso de
certas expressões musicais em virtude da ligação e da imagem existente da África. Para um
dos entrevistados:

Cristo é capaz de resgatar as melodias que estão presas a conceitos culturais e, às


vezes, Deus quer usar exatamente o estilo que é discriminado. O ritmo pelo ritmo
gera incerteza e questionamento. Devemos saber a essência da motivação que é
engrandecer o nome do Senhor 178.

As reflexões sobre relações assimétricas ou aspectos que demarquem a percepção de


diferenças culturais entre o grupo de fiéis não são correntes, pois surge sempre afirmativa
de igualdade perante Deus. Em meu trabalho de campo tal posicionamento era corrente –
na “festa”, nas atividades do programa Explosão Gospel e do Encontro Nacional de Louvor
Profético - existindo cerimônias sempre falando no amor e no poder de Deus. Apesar disso
e da visão de não haver contemplação da cultura afro-brasileira, encontrei situações nas
quais existia referência direta a determinada musicalidade considerada de origem africana
ou com as comunidades negras norte-americanas.
Em 2002, estive no Encontro Nacional Louvor Profético – ENLP – no qual ocorreu
a apresentação de um cantor – também pastor - que dizia ser a sua canção possuidora de
mensagens em idioma umbundo 179. Entoou o cântico 180, utilizou instrumentos de cordas, e
desenvolveu coreografia logo seguida por todos os presentes. Ela era composta por

178
Dias. “A origem da música gospel e secular vem da África.”
179
Umbundu é a língua falada em Angola, na área situada abaixo do rio Cuanza, na região de Benguela.
Juntamente com outras línguas, tem-se o diversificado tronco banto. Miller (1997) destaca que o umbundo,
presente no altiplano central, era difundido entre agricultores que praticavam pilhagens de rebanhos bovinos.
Segundo Prandi (2000), existem estudos que confirmam a presença no Brasil de elementos lingüísticos dos
ramos umbundo, quicongo e quimbundo. Os termos congo, cabinda e angola marcam essas permanências no
país, sendo o último utilizado de modo ampliado e abarca o que seja considerado banto. Tal presença pode ser
focalizada nas dimensões cultural e religiosa.
180
A letra era a seguinte: Kakuli walisoka la Iesu (3x)- Ninguém é igual a Jesus (4x)/ Já procuramos por
todo lugar/ Já apalpamos por todo lugar/ Já rodeamos todo lugar/ Kakuli walisoka Ia Iesu.

193
movimentos pendulares, as mãos sendo estendidas como se algo fosse procurado; a seguir
uma volta inteira sobre os calcanhares e, por fim, um pulo para o alto. Enquanto a canção
era entoada, o cantor falava da vinda de Jesus, que mudaria o lugar com a glória divina.
Como aconteceu quando outros artistas e/ou pregadores se apresentaram, houve a
manifestação dos presentes, com muitos gritando, pulando, curvando-se ao chão e dizendo
“aleluia”. Isso perdurou todo tempo de execução da canção, cerca de 20 minutos.
Em reportagem, esse cantor e líder religioso depõe sobre suas composições e diz
“não fiz essas canções propositalmente, foi de uma forma espontânea. Está no sangue. São
minhas raízes africanas” 181. Na mesma matéria, conclui “o africano é muito criativo. A
forma como eles processam e sentem a música mexe com os sentimentos de quem
ouve” 182. A noção apresentada traz um arranjo nutrido por prática religiosa e contadas
capacidades favoráveis para desenhar determinada noção de negritude. Essa surge como
essencial com a relação entre “sangue” e “raízes africanas”. Esta relação desenha
rigidamente uma negritude composta pela “espontânea” criatividade conduzida
biologicamente. Nesse ponto, a biologia é recurso constante na reflexão acerca da diferença
e de demonstração de posicionamento.
Os materiais indicam relação entre cor e sagrado, cor e dom espiritual, com a qual o
“negro” daria demonstração e efetivamente teria modo de estar em contato com Deus. Isso
não é algo inusitado. No pentecostalismo, os cristãos definidos como negros teriam
capacidade natural para a música e, ao adotarem expressões musicais comuns ao meio
secular, alcançariam o objetivo de evangelização. Segundo Burdick (1998: 142, 143), entre
os pentecostais haveria a presença de uma visão ambivalente: o negro teria mais poder
espiritual – podendo ir do perigo à salvação, do sensual ao espiritual, permitindo visualizar
determinada diferença a partir da combinação entre cor, origem e espiritualidade.
Embora as situações aqui descritas apresentem diferenças entre si, elas resultam das
conexões estabelecidas. De um lado, os fóruns colocam ações de cunho político; de outro
lado, certa imprensa aponta para atividades pertinentes aos âmbitos musical e empresarial,
especificamente o mercado.

181
Dias . “A origem da música gospel e secular vem da África” .
182
Dias. “A origem da música gospel e secular vem da África”, disponível em www.elnet.com.br, acessado
em 11/02/04.

194
Líderes e leigos, pertencentes aos fóruns, falam sobre o meio evangélico e indicam
como as relações sociais e a noção de ser negro são concebidas e vividas. Fala-se nos
sentimentos, na invisibilidade do “negro” na teologia, na capacidade de cantar, em se
relacionar com o sagrado, sobre o poder das formas culturais relacionadas à população de
cor, de seu reconhecimento cultural e social. A partir disso, focalizam a religiosidade
concebida em tensão com a visão sobre as relações sociais, políticas e religiosas. Assim,
ocorre outra inscrição de um ser negro e os termos “negro” e “afro-descendente” confluem
para definir os níveis de ação do FLNE: as mensagens espirituais dos púlpitos; as “ações
concretas” próprias da política.
Por sua vez, os pronunciamentos de artistas e empresários apontam para as
oportunidades empresariais e as articulações econômicas. Estas são vistas como capazes de
findar a desigualdade e de abalar certa construção que tem tornado o negro historicamente
invisível no meio religioso, estabelecendo a comunicação entre os “evangélicos de
diferentes raças”. Assim, confrontam com a iniciativa política feita pelos fóruns e as visões
de pastores cantores, propagadores da herança espiritual ou sangüínea.
As situações relatadas permitem indicar como determinados bens musicais,
considerados inclusos em fluxo constituído por formas culturais negras, são tomados e
contribuem para desenhar a negritude (Gilroy, 2001:86,87). Esses casos franqueiam indagar
sobre a inscrição musical e, além de indicarem as inovações aplicadas na produção de bens,
integram forma de expressar a fé, contribuem para divulgar a visão da organização da
sociedade e do meio religioso. Também trazem elaborações paralelas e/ou mescladas sobre
cor, origem, posição, participação e reconhecimento de fiéis e artistas.
Assim, deparei-me com peças de quebra-cabeça não restritas ao entretenimento ou
ao político. Elas fomentam questionamentos acerca da presença de artistas e fiéis no meio
evangélico. Alguns responsáveis por organização de “festa” apresentam intenções e
preocupações em agir entre jovens urbanos, mas a “festa” revela outros elementos em
circulação que indicam ser possível compreender o que vem a ser a música ali presente.
O fim não é aqui, pois, para pensar mais acerca dessas diferenças, outros pontos
precisam ser abordados. O material imagético das equipes permite prosseguir com a
reflexão sobre as concepções de black music gospel, de negritude, de modos e inscrições no
âmbito religioso e artístico. Também a atuação em determinada área da cidade e o tráfego

195
de estilos - roupas e modo de apresentar o corpo -, compartilhados por promotores e
freqüentadores, podem estabelecer uma comunicação entre eles e, por conseguinte, uma
participação diferenciada no fluxo cultural de amplitude global. Bem, isso fica para o
capítulo seguinte.

196
Capítulo 5

Sobre cor e presenças - maneiras de falar

Até o momento, foram vistas as propostas das equipes produtoras de black music
gospel e de “festa”. A característica delas é aliar religiosidade, entretenimento e visão
política e, assim, oferecer canções com certo conteúdo. Isso é realizado por causa da
concepção acerca da “música gospel” e do trabalho evangelizador. Para alguns produtores,
a música veicula mensagens definidas biblicamente, “recebidas” e, como ato de “orar”,
enviadas ao divino. A peça da cadeia entre homens e deuses seria formada por aqueles cuja
atuação caracteriza a “música gospel” - portadora de “profissionalismo” e de “qualidade”.
Seu fazer escapa das mãos de sacerdotes, porém esses contribuem ao reconhecimento dos
encarregados e dos bens e serviços confeccionados.
Com a “música gospel”, diversas atividades têm lugar e, ainda assim, a black music
gospel compõe circuito específico, ações e arranjos peculiares. Diferentemente, seu
reconhecimento e de seus formuladores independem da esfera religiosa, pois outra conexão
é estabelecida. A música e a “festa” colocam em cena encontros com dimensões como o
entretenimento e a crítica política. Mas não são os únicos, há escola de samba e bloco
carnavalesco. Eles integram a relação entre religiosidade e diversão; também existem os
fóruns (Fórum de Mulheres Negras Cristãs -FMNC - e Fórum de Lideranças Negras
Evangélicas - FLNE). Eles colocam discussões sobre religiosidade e posicionamento
político e interesse por reformulações litúrgicas e doutrinárias.
A partir das afirmativas dos promotores, dos bens e atividades produzidas a procura
foi estabelecer a especificidade da black music gospel. Passei a indagar se as questões
indicadas estariam restritas ou não ao ato de falar. Se não, qual caminho poderia ser
seguido? É possível pensar que a música e o canal de registro de outros elementos, como a
dança, a moda, também a visibilidade do corpo, de comportamentos e de concepção de
cidade, explicitariam o diálogo político e outra dimensão da musicalidade.
O tema aqui disposto coloca certo percurso inevitável a fim de compreender as
especificidades das produções musicais e fonográficas direcionadas a black music gospel e

197
à promoção de eventos musicais. Para tanto, a opção foi analisar materiais imagéticos
produzidos para propaganda e permitem visualizar as representações acerca da iniciativa e
das influências culturais dos envolvidos.
Outro ponto tem a ver com o modo como a cidade é concebida, ao ser
operacionalizada a relação entre a black music gospel e iniciativas musicais não religiosas.
Os eventos são concentrados em determinada região e isso permite compor um ponto que
coloca não somente certa concepção acerca da cidade, mas também evidenciam como as
manifestações são distinguidas e relacionadas com outras atividades. A relação apontada
tece específica cidade quando ressaltadas proximidades culturais e históricas com outras
iniciativas.
Por fim, depois de demonstrar a existência de mobilizações com vistas a promover
o reconhecimento musical e cultural e a reformulação teológica e litúrgica, apresento a
existência de debate sobre a “validade” da black music gospel. Mesmo que existam
mobilizações no meio evangélico voltadas ao questionamento de condições de vida e de
reconhecimento cultural e social – já demonstrado no quarto capítulo -, registra-se tensão,
haja vista apontamentos de não haver conjunção entre os interesses de líderes e leigos
empenhados na produção e disseminação da chamada black music gospel.

Capas, cores e imagens

Existem penteados, pinturas, acessórios, roupas, objetos e estilos difundidos


internacionalmente e na “festa” adquirem outros sentidos. Isso permite indagar: em tal
meio, o uso desses bens pontua o que seja “negro”? Se sim, o que é selecionado?
Vários pesquisadores já apontaram que os blocos surgidos na Bahia, por exemplo,
são caracterizados por vestimentas, coreografias e pinturas corporais. Tais elementos
viabilizam construir a proximidade com o candomblé, expressar a peculiar inscrição da
África e repensar uma identidade negra (Guerreiro,1997; Hall, 1999; Agier, 2003; Sansone,
2004). Os objetos ligados ao corpo, ao comportamento e aos costumes materializam
determinada cultura – no caso a “cultura negra” -, caracterizam a moda de um período; para
isso, específicas roupas, acessórios e cabelos – penteados, cortes e submissão ou não a
tratamentos químicos – são elementos acionados (Sansone, ibid).

198
Ao tomar o diagnosticado sobre os blocos afros de Salvador, pode-se pensar nos
bens oferecidos ao público ouvinte de black music gospel e da “festa” no Rio de Janeiro.
Talvez seja possível compreender a produção, a organização e a concepção dos promotores.
O ponto de partida aqui estabelecido foi constituído por imagens confeccionadas,
divulgadas e relacionadas com as atividades musicais, fonográficas e de organização de
“festa”. Isso pode ser feito em decorrência de traços concebidos, associados e colocados em
circulação como o hip-hop, o “grafite”, o break, a black music e o rap. Além desses, outros
sinais são apresentados como, por exemplo, penteados e acessórios; eles integram a
composição de imagem do “corpo negro” (Sansone, 2004). Esse amplo conjunto poderia
apontar para a vigência de estéticas corporais e permitiriam entender a música e a “festa”
não somente como bem de consumo, mas também como cenário para a apresentação de
diferenças em constante construção.
Durante o trabalho de campo me deparei com o material promocional e de
composição de CDs. Esse conjunto de imagens pôde ser adquirido nos eventos
freqüentados por mim, outras vezes, recebia por correio eletrônico ou adquiria parte, fosse
em revistas, fosse por meio de CDs. Ao focalizar os materiais visuais das equipes, tentei, e
espero ter conseguido, organizá-los a partir das concepções estéticas, não no sentido da
publicidade. Assim, via, além de produto potencialmente consumível, objeto eficaz em
demonstrar níveis de expressão. Capas, encartes, filipetas e páginas virtuais veiculariam o
quê? Como e quais aspectos eram integrados? O que e como falavam da vida?
Boa parte não era constituída por fotografias na qual se procura registrar certa
imagem do cotidiano; estava diante de composições a partir do uso de fotografias, de
desenhos e de combinação dos dois a fim de comunicar algo. Além do falado e praticado,
havia outro modo de expressão, de explicitação de relações e também, por que não, de
ações. Não me ative ao produzido pela equipe GN, e contemplei as elaborações das equipes
GB e da SC. Diante de mim estavam materiais com duplo pertencimento: podiam expressar
concepção do real, podiam estar destinados ao âmbito artístico ou ao religioso, podiam ter
apelo artístico ou político.
As filipetas, os encartes de CDs e os conteúdos de páginas virtuais podem ser vistos
como parte de um todo, como algo concebido além da propaganda, além de objetivos
comerciais. Buscava compreender como os promotores atuavam, traziam semelhanças e

199
diferenças e, assim, explicitavam suas interlocuções e encontros capazes de recriar
pertencimentos e práticas religiosas. Essa possibilidade compreende o agir e as relações
estabelecidas e, assim, há inscrições de sentidos por parte dos praticantes envolvidos em
dado esquema cultural. Assim, os materiais imagéticos podem e comunicam algo aos
freqüentadores - os ouvintes e os visitantes.
As imagens evidenciam as influências, os estilos tomados para as composições de
representação do corpo. A noção de estilo viabiliza falar não somente do aspecto musical,
mas de concepções e imagens apresentadas e disseminadas com a diretriz de expressar a
inscrição do corpo e modo de ser. Contudo, não se trata de falar de um estilo negro, mas
como determinados elementos, idéias, valores e sinais são associados. Eles permitem
refletir a construção e a presença de um grupo na sociedade quando escolhe e se posiciona
diante de bens internacionalizados.
O material com o qual trabalhei não faz parte de organização particular, pois a
preocupação com esse tipo de comunicação está presente entre outros artistas. Estes,
mesmo tendo inserções diferenciadas no meio evangélico, consideram a importância, por
exemplo, de encartes de discos na relação com o público. Em entrevista, o cantor Feliciano,
um dos primeiros a gravar hinos religiosos, a partir de 1948, conta utilizar capas de LPs que
tenham por motivo diversas paisagens. Há um LP cuja capa tem a sua foto, porém o projeto
de veicular sua imagem não obteve êxito. Ele optou por compor as capas a partir do tema
desenvolvido na primeira faixa do disco e, desse modo, diz: “a gente procura, dá a idéia
daquilo que a gente vai cantar” 183. O título e o desenho do encarte formam representação
daquilo que o disco, o todo, é e deve transmitir aos fiéis.
Os encartes de CDs de Mara Maravilha e da banda Oficina G3 184 evidenciam como
os materiais são aplicados na produção do bem. O encarte apresenta fotos da cantora em
figurinos que exploram cores claras, tons suaves e tecidos leves. As montagens passam
atmosfera específica, onde ela aparece acompanhada da caixa de instrumento de cordas e
sua feição demonstra estado de enlevo; todas as fotos exploram seu sorriso, mesmo quando
ela parece reflexiva. Existem oito fotos nas quais a intérprete figura acompanhada de
microfone e, como se estivesse cantando, posa para as câmaras, ora como se estivesse

183
Entrevista concedida à autora em 2003.
184
Sobre os artistas ver o primeiro capítulo. Já os encartes podem ser visualizados em anexos I.

200
exultante, expressasse estado de ser agraciada, ora como se cantasse para alguém
posicionado acima.
O encarte do CD do grupo Oficina G3 é formado por fotos com os integrantes da
banda. Na parte interna, vê-se, em plano fechado, o grupo alinhado, com seus relógios
deixados evidentes; sua posição é de reflexão ou contemplação. A ênfase está em indicar o
peso do tempo e de coisa não realizada. O lado externo é formado por três composições,
todas em plano aberto. Todos aparecem diante de um portão, com tintura envelhecida, e
envolvido pelo nome do grupo e o nome do CD, grafados em cor branca. As outras fotos
estão centradas em ambiente composto por parede de tijolos maciços. Diante dela, todos
aparecem posicionados sobre um sofá, de desenho atual e, ao lado, um rádio,
provavelmente da década de 1940/50. A disposição indica para a noção de o som, tal como
o aparelho, ser fabricado, pois o nome do grupo, em tamanho ampliado, surge como ondas
projetadas pelo aparelho. Também a mescla entre objetos que expressam o novo e o antigo
aponta para uma noção de ser o tempo composto por sobreposição entre coisas passadas e
presentes, como surge na canção do grupo: tudo passa, porém algo permanece 185.
Pedro apresenta situação sobre a formulação da capa do LP “Mais doce que o mel”,
do grupo Rebanhão 186, gravado pela empresa Doce Harmonia, em 1985 187; O encarte
veicula as fotos dos integrantes em um quadro que limita suas figuras. A descrição
fornecida por Pedro permite extrair indícios sobre a importância da imagem e como ela
completa certa relação com o público. Nesse sentido, diz:

Geralmente, a capa era dada a profissional que estava acostumado a fazer


capa e eu conversava com ele e coisa e tal. Na época, a primeira foi uma
foto que a gente tirou e aconteceu uma coisa engraçada. O Janires saiu com
a camisa aberta na foto. Ai lançaram o LP com a camisa aberta, e deu um
polêmica. Daí botaram uma... no LP parecia que tinha aquele negócio de

185
Menção à canção “O Tempo”, contida no CD “O Tempo”, Oficina G3, MK Publicita 109-631, faixa 05. O
encarte fonográfico pode ser visto em anexos I.
186
Grupo muito citado no meio evangélico e reconhecido como sendo um dos precursores da transformação
sonoro-musical, a partir da década de 1980, com a utilização do rock e de expressões regionais como, por
exemplo, o baião e temas relacionados com a sociedade contemporânea, compondo “mensagem” a fim de
alcançar vários segmentos – etário e denominacional – presentes no meio evangélico. Atualmente, Pedro é
compositor e produtor musical e sócio de estúdio musical na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Ver:
Gadelha. “Talento e determinação”, revista Show Gospel, ano 03, nº11, p.36.
187
Em 1986, a banda Rebanhão gravou o LP “O Semeador” com a empresa Polygram. Na década de 1990,
com a compra da Polygram do Brasil Ltda, pela empresa canadense Seagram, a empresa passou a ser
conhecida por Universal Music. Informações em www.universalmusic.com.br, acessado em 23/05/06.

201
filme; tinha a foto e assim parecia que tinha um rolo de filme. Aí botaram
aquela tarja tampando a camisa dele, na segunda prensagem 188.

Não é seguido o corte evolucionista, pois o uso de paisagens, destacado por


Feliciano, e fotos de componentes e outros motivos coexistem e estão presentes em
diversos trabalhos. Isso ocorre porque os depoentes produzem antenados com as
tecnologias e guardam preocupações com as capas que acompanham seus trabalhos
musicais. As situações descritas permitem visualizar a história da produção fonográfica no
meio evangélico e revelam as concepções resultarem em bens distintos e visíveis quando
disponibilizados. Contudo, as distinções não podem ser ignoradas. No depoimento de
Pedro, vê-se a imagem como elaborada no interior de campo de forças, composto por
empresários e liderança religiosa. Seus compromissos contribuiriam para estabelecer
objetos e, assim, dialogar com o adepto e também com a sociedade.
Pedro coloca que a imagem foi submetida a último movimento porque a reação
revelou a dissonância com o pensamento predominante. Portanto, não poderia ser
enrijecida com a finalidade de materializar determinado modo de pensar (Farias, 2003:211).
A tarja utilizada para cobrir a camisa aberta pode ser vista como tentativa de comunicação
com os adeptos e demonstração de que o bem, o LP, apesar das inovações e aparências dos
artistas, vedaria transformações comportamentais e imagéticas. Era a tentativa de transmitir
a preservação da moral e dos valores em circulação. O depoente indica ser a capa tomada
como metonímia, que Feliciano também explicita. Assim, os encartes, as imagens, devem
veicular o que acompanha o modelo de adepto encontrado no meio evangélico, como é
possível ver no material do CD de Mara Maravilha e da banda Oficina G3.
É possível prosseguir um pouco mais. Segundo o depoente, o recurso da tarja não
constava no projeto gráfico inicial, porém foi acionado para compor determinada imagem.
A saída foi utilizar algo que parecia um rolo de filmes. O dispositivo seria viável para
resolver uma situação, porém coloca uma ambigüidade. De um lado, anteciparia o
congelamento de certa visão, de algo retido na memória; de outro lado, instala o

188
Entrevista efetuada pela autora em 2003. Convém explicitar que Janires, citado no depoimento, era
integrante e fundador do grupo. Pedro o lembra como alguém que não correspondia a imagem do evangélico
em vigência na sociedade brasileira. Segundo ele, Janires inovou sonora, musical e comportamental, pois se
apresentava com roupas e penteado distintos e, portanto, teria contribuído para posterior alteração imagética
do evangélico. O encarte fonográfico pode ser visualizado em anexos I.

202
movimento, a transformação com a sucessão de cenas. Com o depoimento, entende-se o
cuidado de produtores em veicular a noção de ser a imagem do evangélico, usuário de
roupas sóbrias e recatadas, preservada com o congelamento. Contudo, a fita é composta por
quadros, por imagens em sucessão e o entendido como conservado pode ser tomado como
passível de mudança. A possibilidade de sucessão dos quadros ocorreria com o tempo -
dispositivo de alteração.
Os depoimentos colocam a importância da imagem como a chave de divulgação, de
mediação com o fiel, com o consumidor. No caso da produção fonográfica e musical,
entrevistas feitas com os artistas e/ou releases, as montagens descritas não atuam
estritamente para despertar o desejo de aquisição de algo. Ao observar os encartes, vejo as
fotografias configurarem, juntamente com as canções, tipo de composição visual-auditivo
constituído a partir da vigência de imaginário com apelo no real (Spera, 1998), fundamental
para alicerçar o discurso destinado a afetar os ouvintes. As fotos, em dimensão expositiva,
adquirem e explicitam seu sentido ao se articularem com a imagem auditiva.
As imagens, de acordo com o estabelecido por Pedro, surgem a partir e em
decorrência de ações e sentidos em campo de forças. Desse modo, são estabelecidas
interlocuções entre os produtores, e entre estes e os consumidores que estão inseridos no
âmbito da publicidade, formando discurso destinado a dizer o que se consome “através dos
objetos”, sendo, por sua parte, também produto destinado ao consumo ao passo de ser a
“manifestação de uma cultura” (Baudrillard, 1972: 174-175). Então, a publicidade divulga
os estilos de vida, os modos de comportamento e valores de uma época (Canevacci,
2001:154-155). Talvez aí se entenda o lugar atribuído aos encartes de discos, a preocupação
com a imagem (alguém com a camisa aberta), expressão cultural, transmissor de valores e
de comportamentos.
O selecionado, organizado e tornado público não pode ser descartado, pois integra
um todo estruturado: a produção musical. Com ela, busca-se atuar na sociedade de modo a
converter e manter os fiéis. As composições de imagens de parte do material musical, com
a aplicação de técnicas como fotografias e desenhos, dão visibilidade às produções
fonográfica e musical e, ao mesmo tempo, permitem observar ser elas heterogêneas, como
o próprio meio evangélico.

203
Como Pedro e Feliciano, os promotores consideram poder realizar o trabalho
religioso; investem em fotos, em desenhos e em textos com a finalidade de compor
conjunto imagético voltado, de um lado, à definição de seus trabalhos musicais, de outro,
como parte capaz de antecipar o conteúdo do disco ou exemplificar o procedimento no
grupo religioso. Vários pontos podem ser observados, como as diferenças e as
equivalências existentes mediante as estratégias, as concepções, as propostas e as inserções
no meio evangélico, fonográfico e musical. O apresentado ultrapassa o objetivo religioso e
também o comercial, pois com as imagens produzidas, mesmo com referências e
concepções distintas, pode ser visualizado como entendem a realidade e dialogam com as
idéias vigentes. As composições resultam de imaginário com vistas a atuar no real porque
constituem discurso coerente e definido (Spera, 1998:73).

Ludicidade, força e confronto

As formulações iconográficas revelam os valores, os comportamentos e o meio nos


quais são formuladas e demonstram as orientações artística e social, haja vista agir na
realidade. Assim, pode-se entender aquilo designado estilos e visualizar as especificidades
das equipes em atuação. Não estou equiparando estilo à moda, pois não se trata somente de
usar roupas e acessórios eleitos para estação ou temporada. O estilo pode ser visto como
algo próprio a grupo para o qual objetos, posturas, ocupação e visibilidade no espaço
público são seus componentes.
A cultura urbana popular compreende saberes e relatos não dóceis à “colonização
tecnológica”. As operações efetivadas guardam ligações com a existência cotidiana, com
as trocas sociais, com as invenções técnicas e com a “resistência moral” (Martín-Barbero,
2003:126-127). Então, estilo também é aplicado para analisar as inserções de práticas
culturais na contemporaneidade. É entendido a partir da relação de oposição com a cultura
dominante ao acenar com possibilidade de subverter o modelo vigente (Hebdige, apud
Rose, 1999:194). Assim, o punk e também o hip-hop, vistos como estilos, participam da
formação identitária de jovens urbanos. Estes usam bens e formulam visibilidade,
negociam com a hierarquia e a desigualdade sociais e, ao mesmo tempo, usufruem
reconhecimento local (Rose, 1999:194). Os grafites, a dança, a música, a roupa e o

204
comportamento constituem esse estilo hip-hop. Os modos de falar, de vestir e de andar
apontam para a apresentação e a inserção do corpo na sociedade, porém não dissipam a
“condição social periférica” porque ressaltam essa condição no cenário urbano e em áreas
fora da periferia (Novaes, 2003). Portanto, não se trata de algo rígido e capaz de se impor
na sociedade. O que o faz existir e confere sentido ao estilo é o modo como é vivido, como
as biografias e o agir são marcados por ele. E os sentidos? São adquiridos conforme a
localidade e com aqueles que passam a atuar e a se posicionar socialmente ao aderir a um
estilo.
Estilo é algo construído por cada grupo, é modo de expressar valores, idéias e
crenças. Não somente como se dança, como se canta (o que é cantado) ou como se ore, mas
também o modo de vestir, de andar, de olhar, os gestos, os penteados, os acessórios, as
pinturas também constituem o estilo com o qual a comunicação é estabelecida. E no caso
pertinente aos materiais imagéticos em circulação no âmbito de elaboração e produção da
black music gospel e da “festa”?
Ao obter o CD da equipe GN, fiquei surpresa com a qualidade do material, com a
faixa multimídia, com as falas de seus organizadores. Acima de tudo, o encarte não poderia
ser ignorado. Não era somente por causa das cores vibrantes. Perguntei-me se aquele
engraçado boneco e os cenários nos quais perambulava poderiam revelar algo sobre o
grupo formado por cantor e DJs.
Sobre o assunto, conversei com um deles, DJ e empresário do grupo, e com o
desenhista, também músico e evangélico. Segundo eles, não haveria intenção em transmitir
“mensagens” com conteúdo favorável ao desenvolvimento de consciência social e tomada
de posição com valorização da origem social (e cultural). A intenção seria demonstrar que o
“evangélico não é quadrado”; isto é, interessava veicular certa imagem capaz de notificar
ser o fiel antenado com as tendências da moda sem ser necessário o desligamento do grupo
religioso. Assim, achavam ser possível atuar eficazmente entre os jovens urbanos.
Outra versão oferecida era de o desenho resultar de brincadeira, ser homenagem a
componente do grupo 189. Contudo, certa ligação entre o material visual e a problemática ao

189
Há controvérsia em quem seria alvo da homenagem, pois, em certo momento, foi-me dito que seria
Charles, o empresário do grupo; em outro, seria Francisco JC, cantor, animador e pregador. Não sei até que
ponto seria fundamental depurar essa informação, porém terminei optando por entender que alguém detinha
papel de destaque, recebendo tal reconhecimento.

205
redor da cor ou da questão racial começou a ocorrer. Isso aconteceu quando relataram a
preocupação com a aceitação do desenho. Por ocasião da composição, indagaram sobre a
reação de responsáveis daqueles que formam o público alvo. Além disso, ao contrapor os
materiais visuais confeccionados por outras equipes com os oferecidos pela GN, entendi
que as coisas começavam a ter sentido, pelo menos para mim.
O encarte do primeiro CD Gospel Night – A Festa – tem um boneco, que aparece
sorrindo e caminha por cenário integrado por ruas e edifício. Os desenhos mostram a
caminhada noturna finalizada em reunião na qual muitos dançam. Seu visual é formado
por penteado e roupas que ressaltam estilo corporal difundido na década de 1970 com o
black power - penteado que consistia em deixar o cabelo arredondado. Tal personagem ora
anda pela cidade, ora comanda o pick-up 190 e, ao fundo, um grupo dança. O segundo CD
veicula a mesma personagem já acompanhada por outras: uma menina mestiça, um rapaz
negro e outro branco (anexos I).
No site do grupo, há o mesmo boneco ocupado em aspergir spray e, com isso, faz
menção a um dos elementos do hip-hop. As referências ao hip-hop e ao estilo em vigor nos
anos 1970 são recorrentes para compor os materiais e, com eles, expressar a "festa" como
favorável ao encontro e caracterizado por adesões a estilos juvenis.
A primeira orientação de estilo é caracterizada por valorização de determinada
moda e modo social de ser. A orientação era oriunda da idéia black is beautiful, vigente na
sociedade americana da década de 1970 (Farias, 2003: 210-220). Todavia, não era restrita à
sociedade norte-americana, porque foi tomada peculiarmente no Brasil (Arce, 1999). Não
somente isso, haja vista existir outro direcionamento. Trata-se da noção de corpo instalada
pelo hip-hop, pela crítica social, pela dança e atenção ao consumo (roupas e bijuterias), que
aponta para a cultura e modo de presença pública marcadas por insubordinação, com
questionamentos e via própria de expressão de jovens urbanos e pobres (Rose,1999). Nesse
sentido, pode-se compreender não somente o consumo, mas são diferentes estratégias de
visualização elaboradas por grupos subordinados (Pardue, 2005).
O material visual dos CDs produzidos e a página mantida na Internet pela equipe
GN descortinam as vias de interação e de visibilidade. Eles veiculam as referências dos
integrantes da equipe, de suas propostas e como seriam compreendidas no meio religioso.

190
Trata-se de aparelho específico para tocar disco de vinil, mais conhecido por long play (LP).

206
Sobre esse trabalho de composição gráfica, Charles fala da reserva na adoção da primeira
personagem, pois:

Muita gente reclamou que não tinha imagem. A gente não queria fazer
uma capa com desenho que é pra não agredir muito.
Márcia: Como assim não agredir?
Charles: Pra não criar uma barreira. Criar um boneco black power com
uma beiça desse tamanho. Você há de convir que cria sim uma certa
barreira.Mas é um desenho bonito. Eu o acho lindo, mas há certas
lideranças e tal.... ia chocar um pouco.
Márcia: Chocar? Como?
Charles: É. Ia chocar. De colocar.... É não vai ficar muito legal mas
acabou quebrando a cara. Porque o pessoal... todo CD que a gente pega, a
capa do CD é essa. O pessoal inverte. Todo mundo quer colocar o Negão
na capa. Porque na verdade quem faz é um amigo nosso um cara super-
talentoso que é desenhista.

No meio evangélico, é corrente a visão de não existir distinção entre os adeptos,


haja vista a concepção de todos serem criados por Deus. Mesmo assim, o depoente revela a
precaução ocorrida entre os envolvidos com o projeto do CD. O temor da equipe esbarrava
na aceitação do material visual ao veicular imagem e certo estilo. Talvez ali não fosse o
lugar para veicular a personagem, apresentar trabalho considerado, por eles, inovador e
contrário ao pensamento dominante. Charles fala como o desenho entrou na composição
quando:

A gente colocou o boneco porque a gente achou maneiro, legal. A galera


pegou toda essa época de black power. Então vamos botar essa coisa
legal. Mas não teve essa intenção de colocar, de dar um suporte, de dar
uma base pra um ‘movimento black’. A gente achou o boneco engraçado
pra caramba.

O depoente observa que o grupo não estaria voltado à elaboração de questões com
apelo ideológico e político. O projeto do encarte teria seguido as referências afetivas e
experiências de alguns e, no caso, despertadas por viés lúdico. Isso pode ter encontrado a
aceitação de freqüentadores, que teriam achado o desenho “engraçado”. Robson, músico e
responsável pela concepção e confecção dos desenhos, fala que tudo começou em um clima
de descontração:

207
Foi engraçado. Na verdade, o desenho surgiu tipo numa brincadeira. O
desenho, assim a forma do desenho, porque o JC fez aniversário e aí a
gente fez um bolo pra ele. Aí eu desenhei em cima desse bolo, fiz um
muro pichado, aí eu coloquei esse boneco aí do lado assim. Ele lembra o
visual anos 80, visual black power, aquele movimento black power
americano e tal. Aí eu desenhei o boneco. Aí eles viram aquele boneco a
idéia: ‘pôxa, a gente pode articular ... a gente começou a bolar. Mas na
verdade, o intuito, era fazer desse desenho o ícone da juventude nesse
estilo de baile. Porque esse baile é mais focado em black music, música
americana, e o visual do boneco remete a esse período.

Robson expõe que a concepção do desenho se deu com a relação entre o grafite e o
estilo difundido no Brasil, entre os anos 1970/80. Refere-se ao black power, diretriz de
estilo, de expressão, de concepção política e relacionada com a população não branca. Sua
vigência teria ligação com a onda dos movimentos por Direitos Civis nos Estados Unidos,
com a contracultura e, conseqüentemente, com a inserção na cena política-cultural de novos
atores sociais: os hippies e os negros.
Estes, com o lema black is beautiful, procuravam mudanças na sociedade com a
visibilidade e tomada de posição com vistas à transformação de condições de vida. Essa
diretriz chegou ao Brasil com efeitos sobre a concepção e a expressão corporal. Surgiram
atividades pautadas no discurso de “resgate da auto-estima do negro” (Farias, 2003:219).
Isso se daria com os “blocos afros”, em Salvador, com referências ao “poder negro”
(Risério apud Farias, 2003:219; Guerreiro, 1997: 102-103; Godi, 1997: 76). Na cidade do
Rio de Janeiro, bailes eram organizados e atraíam numeroso público juvenil - cujo ídolo era
o cantor James Brown (Arce, 1999: 86-87).
Além do citado black power, Robson associa o grafite como indicativo do hip-hop e
aponta para outra inscrição política e de estilo, surgido, nos Estados Unidos, a partir da
década de 1970. Essa expressão musical não é restrita a uma sociedade e é, portanto,
disseminada entre outros como os jovens hispânicos, caribenhos e afro-americanos. Eles
simbolicamente tomam o espaço urbano com “atitudes”, danças, estilos, efeitos sonoros e
criticam as condições políticas e sociais. Ao mesmo tempo, possibilita a afirmação das
identidades (individual e de grupo) e experiências sociais. O uso de sprays viabiliza o
registro de escritos em paredes de transportes e de prédios, sendo uma peculiar forma de
grafia. Esta não torna somente o grafiteiro conhecido por toda cidade, mas é a via de
transmissão de crítica social efetivada (Rose,1999).

208
A combinação, oferecida por Robson – com o estilo black power e o grafite -,
desvela a dupla indicação política utilizada pelo depoente, ambas marcam momentos
históricos caracterizados por certa valorização do ser negro, realização de crítica à
sociedade e visibilidade de jovens pobres negros ou de outros grupos minoritários.
Posteriormente, sua composição ampliou os sinais do hip-hop e o boneco continuou a ter
presença. No entanto, os depoentes apontam para o esvaziamento da questão da cor, de
reflexão acerca das relações raciais e/ou o considerado próprio de modo de ser negro,
apesar de citarem constantemente artistas negros nacionais e internacionais e seus estilos de
vestir.
Os encartes e os depoimentos indicam as referências seguidas, onde o hip-hop é
recorrente. Não obstante, apesar de possibilidades de críticas e reflexões sobre as condições
de vida no mundo contemporâneo, na expressão musical sobressai traços e visões
valorizadoras do entretenimento e não da dimensão política, de crítica. Porém, em nível
menos consciente, os materiais da equipe podem transparecer outra diretriz e não somente a
diversão. Ou quem sabe, o entretenimento e o sorriso desvelem certas transformações.
Compreendo auxiliarem na visualização de sinais e elementos presentes nas formulações de
outras equipes.
Os materiais imagéticos da SC e da GB, empregados em suas divulgações, também
trazem elementos que permitem investigar suas orientações. O site da equipe Gospel Beat
(GB) veicula objetos, posturas corporais e desenham certo estilo contemporâneo. L´Ton e
DJ W aparecem vestidos com roupas coloridas e amplas, com bonés e lenços amarrados
nas cabeças. O pano de fundo é um equipamento de execução de discos, com uma mão em
cena, dando impressão de sua manipulação. Na extremidade esquerda do campo, há um
medalhão, preso com grossa corrente, e no centro o nome da equipe.
Essa composição é complementada ao ser explorada a posição ereta de seus corpos,
os braços cruzados ou flexionados, seja com as mãos unidas, seja com a palma aberta no
sentido horizontal, que é complementada com a outra em punho cerrado. Na filipeta do
grupo, vê-se o rosto de homem negro, vestindo casaco e a cabeça coberta por capuz. O
braço esquerdo estendido, o punho cerrado e anel no dedo mínimo 191.

191
Para visualizar o material descrito, ver: www.gospelbeat.com.br, acessado em 07/07/05. Pode ser visto
também em anexos IV.

209
Os materiais visuais da Soul de Cristo (SC) veiculam os artistas presentes em seus
empreendimentos. A divulgação do DJ Alpiste ressalta uma vestimenta indicativa de sua
adesão ao hip-hop, haja vista o pesado casaco, anéis e correntes utilizados. Em outro
trabalho, componentes do grupo paulistano Apocalipse XVI, sentados em lugar parecido
com palco, vestem camisetas e jeans. O líder aparece com o braço direito levantado, no
sentido horizontal, o punho cerrado e segurando o microfone; o braço esquerdo flexionado
e o punho também cerrado como se estivesse preparado para luta. Acima fica o nome da
equipe Soul de Cristo, com o “T” em vermelho como se fosse uma cruz 192; do lado
esquerdo dos rappers aparecem três letras alinhadas, em cor branca, formando a palavra
Luo 193. O outro componente é mostrado careca, igualmente sentado, com as pernas
abertas, cotovelos, mãos apoiadas e antebraços envolvidos por protetores esportivos.
As mãos aparecem sustentadas com a direita fechada encontrando à esquerda
espalmada. As imagens são construídas com a aplicação de três recursos: o uso de objetos,
referências a lugares e foco na figura humana. Com isso, demonstram representação de
corpo e demarcam discurso sobre as limitações e as possibilidades de atuação (anexos VI).
Esses quadros formam espécie de narrativas tanto sobre a percepção como sobre os
trabalhos executados. A observação de como o corpo é representado requer certa atenção,
haja vista a diferença com que é veiculado. A figura existente nos materiais da equipe
Gospel Night (GN) é a de um boneco cuja silhueta não é robusta, mas demonstra vigor. Vê-
se um andarilho desbravador e explorador das potencialidades noturnas da cidade. Esta
surge como o cenário de sua caminhada à diversão, onde é possível dançar, grafitar e tocar
para outros dançarem. Essa concepção é constituída pela ludicidade e o corpo, torcido e
retorcido, aparece como capaz de se adequar plasticamente às exigências da diversão.
Os materiais das equipes Gospel Beat (GB) e Soul de Cristo (SC) circulam outra
visão, pautada na virilidade das figuras. Elas compreendem posturas, objetos e sinais que
enfatizam posições de confronto, com olhares, mãos e braços associados a objetos –

192
As fontes utilizadas constituem recursos presentes – basta visualizar as capas de CDs – e integram
significativamente as representações visuais e permitem também conhecer a produção fonográfica (Pardue,
2005:14).
193
Luo é o nome adotado pelo líder do grupo. Segundo ele, trata-se de menção à tribo queniana luo e permite
fazer a ligação dele com a África. Considera fazer a distinção com os demais rappers que, para Luo,
desconhecem a origem de seus nomes.

210
protetores esportivos e microfones - e remetem a situação de luta. Em nenhum momento, os
olhares deixam de fitar frontalmente o observador.
Por esse prisma, ficam em destaque os elementos visíveis e favoráveis à
identificação das referências culturais. Eles integram uma publicidade de superfície, não
destaca certas áreas recônditas - nas quais seriam processadas a beleza e a limpeza. Nas
imagens, o corpo e os gestos são combinados e remetem ao clima combate, não executável,
como ocorre com os lutadores de catch (Barthes, 1982: 12-15,58-60).
Os promotores da GB e da SC, diferentemente dos integrantes da GN e a ênfase na
ludicidade, propõem o estilo do confronto com investimento em elementos orientados para
a composição de imagens desafiadoras e, ao mesmo tempo, de orgulho. As figuras de
corpos são exibidas não somente como parte dos cenários. As iconografias são centrais na
construção das propostas, do que podem e devem comunicar em relação aos artistas e à
população de cor. Elas constituem estratégias de visibilidade dos eventos e dos atores
sociais que ocupam posições subordinadas. Trata-se de desafios, não verbalizados, quem
sabe, dirigidos ao meio evangélico e à sociedade brasileira.

Participação, diferenças e modelos

Sobre o que foi exposto na sessão anterior, outra coisa pode ser apreendida e
relacionada ao falar em possibilidades de participação. Quando TR, da equipe SC, expõe
sobre a black music, discorre acerca da importância de sua auto-afirmação como negro em
decorrência da participação no hip-hop. Ele diz que a SC foi criada também para que seja
possível “... mostrar pro negro que ele também pode ter uma parada pra ele também na
igreja”. Em momento inicial, diz: “a gente começa mostrando pras pessoas que existem
artistas negros, são bons no que fazem, existe o rap, que ele é melhor porque ele não traz
só o conceito da crítica social, mas também traz Jesus como solução...”. O projeto da equipe
é constituir canais nos quais os artistas e a black music gospel possam ser apresentados e
adquirir reconhecimento 194.

194
A questão não é peculiar à equipe Soul de Cristo. Em 2003, fui ao “II Fórum de DJs de black music – RJ”,
realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no qual foi debatida a visibilidade a ser conquistada
pela black music e os Djs.

211
O depoimento do promotor é viável para compreender as imagens aqui tratadas.
Estas e outras falas apresentadas revelam proximidades e diferenciações entre as iniciativas
desenvolvidas ao redor da música ou de questões direcionadas a problematizar a presença
de negros no meio evangélico. O depoimento de TR é exemplo, pois aponta para
dificuldades sobre a existência de atividades que contemple determinado grupo no meio
evangélico. Trata-se de oferecer via de participação na qual e com a qual o fiel se sinta
representado. Não somente na assistência, mas em posto de liderança como, por exemplo, a
condução de serviço religioso. Isso não é algo restrito à equipe SC, pois está presente na
proposta da GB e nos fóruns formados por leigos e líderes religiosos. Todos voltados ao
questionamento da participação e da presença no meio evangélico daqueles considerados
negros.
A fala de TR, contraposta ao amplo registro de negros e mestiços nas igrejas
evangélicas (principalmente nas neopentecostais), permite indagar sobre a dificuldade de
obtenção de posto na hierarquia de denominação evangélica (Mafra, 1998), haja vista as
séries de limitações a serem vencidas. Isso desenha a direção religiosa como área “dura”.
Os entraves começam com a formação em curso em teologia 195, e continuam com as
limitações existentes em decorrência de doutrinas e visões cerceadoras da igualdade. Pode
estar em vigor a percepção da diferença na qual a cor e a origem constituem elementos de
limitações de reconhecimento e de ascensão (Burdick, 1998; Contins, 1995).
Apesar da constatação de haver fraco incentivo a cantores de black music gospel,
figura a esfera artística como aquela na qual, apesar das dificuldades apresentadas, pode-se
encontrar negros em posição de destaque. Nesse sentido, a arte e a dimensão do
entretenimento são reveladas como mais maleáveis e viabilizam novas frentes de ação. As
produções musicais, de reuniões e fonográficas apontariam para outras possibilidades de
ação dentro do campo religioso, para além da existência de restrição para ser pastor (Mafra,
1998).
Mas a inovação não está somente em apresentar outras inscrições musicais e de
atividades. Os promotores, mesmo não interessados em problematizar as relações raciais,
trazem e apontam vias alternativas de inserção e obtenção de reconhecimento. Elas podem
ser dadas com os exercícios de cantar e/ou organizar encontros, mas podem ser tomadas
195
O Fórum de Lideranças Negras Evangélicas pode vislumbrar uma “política de cotas” no interior do meio
evangélico para que os fiéis negros possam ter maior acesso às instituições religiosas de ensino.

212
peculiarmente por novas gerações em atuação e em processo de consumo de determinada
orientação. Esta contempla, de forma diferente da tradicional, os símbolos existentes e
marcadores de negritude (Sansone, 2004:78-81). Esta viabiliza compreender como é
operacionalizada a autopercepção dos jovens evangélicos, haja vista não se colocarem
como diferentes já que estão inclusos no moderno sistema de consumo. Isso fica evidente
com afirmativa muito recorrente entre freqüentadores e produtores musicais sobre a
participação no mundo, pois constantemente é dito que “o evangélico não é quadrado”.
Entre os promotores de “festa” e outros cantores em ação, as elaborações imagéticas
não formam caso isolado e não estão relacionadas ao objetivo de indicar a excentricidade
de empresários e de artistas. Como foi visto, os encartes e capas de discos fazem parte de
articulações voltadas a transmitir mensagens – não somente religiosas - ao receptor. Ele
pode visualizar o tema do trabalho; pode receber informações acerca dos valores e idéias ali
presentes.
Nos materiais imagéticos das equipes SC, GN e GB, a tecnologia, a moda e o uso de
cores fortes são explorados e viabilizam expor outras formulações. Diferenças são
estabelecidas entre estas e as imagens utilizadas por outros cantores evangélicos e os
promotores de “festa”, isto é, a diferença entre as produções musicais é visível no material
de divulgação – os depoimentos de Feliciano e de Pedro sobre as capas de seus discos são
reveladores.
As distinções são perceptíveis nos bens formulados para a divulgação das reuniões,
pois, além dos objetivos de suas iniciativas, pode-se relacionar a percepção dos corpos
expostos e as orientações dos estilos. Os encartes dos discos, as páginas virtuais, as
propagandas e parte significativa dos CDs veiculam imagens dos cantores e associam os
artistas com modo de vida contemporâneo. Seus articuladores, atentos aos avanços
tecnológicos e às tendências da moda, visam demonstrar nova concepção religiosa, cujas
características são a recepção de sons, de imagens, de sentimentos e de idéias. Todos
acionados não de modo isolado, mas inseridos no fluxo global do “Atlântico negro” e
localmente alinhados em uma posição de crítica que toca os contatos sociais, os
impedimentos enfrentados por artistas da vertente black music gospel – e aos evangélicos
dos fóruns quando discutem ações afirmativas.

213
Os componentes da GN investiram em composição caracterizada por múltiplas
informações, cuja principal referência está nos anos 1970, com a conhecida mobilização
definida como black power. Já o referencial e as concepções da GB e da SC são outros. Os
“corpos negros” estão majoritariamente presentes, marcando, guardadas as devidas
proporções, oposição com a publicidade na sociedade brasileira. Esta, durante a década de
1970, teria por característica pálidas imagens de mulheres e homens negros em situações
subalternas 196.
A particularidade dos materiais aqui focalizados é o investimento e o uso de
elementos diversos para compor outro discurso político. Ele abrange a participação e a
constituição de noção de negritude. Os encartes, as páginas virtuais e os panfletos
constituem narrativas organizadas, concebidas de acordo com os materiais musicais, e
podem ser confrontadas com aquilo que direciona a proposta da produção – seja política,
religiosa ou lúdica. Nesse sentido, os materiais das equipes SC e GB veiculam imagens de
corpos masculinos, compostas a partir da associação de elementos e posturas. Nas figuras,
os corpos são apresentados como diferentes e, ao mesmo tempo, pela associação a
determinados objetos, surgem integrados ao mundo contemporâneo. Trata-se de integração
negociada com bens e imagens consumidos por diversos grupos.

Consumo e presença social

Anteriormente foi descrita a opção de freqüentadores de “festa” por vestimenta em


conformidade com as tendências em vigor (Almeida e Rumstain, 2003). De acordo com o
destaque dado ao corpo e presente nas imagens em circulação, perguntei a alguns
freqüentadores e organizadores de eventos como gostavam de se vestir e em quais modelos
se inspiravam. Citaram vários artistas norte-americanos e brasileiros como exemplos de
bom gosto no vestir e se pentear. Entre os homens, foram citados cantores negros norte-
americanos e alguns brasileiros como, por exemplo, Luo, do APC XVI e Francisco JC, da
GN. As mulheres falaram gostar do estilo das artistas norte-americanas e citavam seus

196
As propagandas existentes estavam voltadas para enfatizar a nacionalidade com referência ao futebol,
também surgem quando se trata da diversidade da sociedade brasileira; nas divulgações de produtos e
empresas ligadas à moda; em promoções de festividades populares ou de turismo regional, como o carnaval e
a cidade de Salvador (Farias, 2003: 212-215).

214
longos cabelos, as roupas amplas e com brilho. A sensibilidade por modos de vestir e vistos
como próprios de artistas internacionais e nacionais, reconhecidos como modelos, e o
destaque dado ao corpo, perceptível nos materiais promocionais, podem indicar para o
predomínio do hedonismo.
Na sociedade contemporânea, o hedonismo não é constituído somente pela
satisfação das sensações, e sim pelo prazer alcançado com a criação ou a concepção de
imagens. Os produtos disponíveis e consumidos permitem o enlevo e promovem a
imaginação, podendo o consumidor identificar-se com os personagens ou acessar os artigos
componentes da moda de certo momento. A afluência de bens e imagens, fortemente
produzidos ou relacionados com o Ocidente, auxilia para o gosto de ser constantemente
atualizado conforme o “discernimento estético” do consumidor (Campbell, 2001:114-139).
Não somente centrado no indivíduo e na incansável corrida pela moda, o estudo de
Veblen aponta para o consumo como possibilidade de comunicação; indica também
semelhanças e distinções em virtude de objetos, de produtos, de serviços e, diria, de
imagens oferecidas. Tudo isso demarca gostos, modos de vida, grupos, perspectivas e
desejos dos envolvidos no ato de aquisição. Então, o que e como algo é consumido são
momentos, como as coisas adquiridas, reveladores não somente da capacidade pecuniária
de alguém (Rocha e Barros, 2003: 181-208).
Em países como Holanda, Brasil e Estados Unidos, há fluxos constantes de
símbolos, muitos oriundos do “Atlântico negro”, relacionados diretamente ao corpo, ou
melhor, ao “corpo negro”. Este passa a expressar modo de “se relacionar com a
modernidade” e, muitas vezes, é construído a partir de relações com objetos que veiculam
status. Tais podem estar ligados à Jamaica, ao reggae, aos Estados Unidos e ao Reino
Unido e possuem alcance global. Contudo, são e podem ser reinterpretados conforme as
experiências locais, fornecendo aos jovens vias de visibilidade e percepção de não
marginalidade (Sansone, 2004: 211-243).
Quando os entrevistados citam os artistas e descrevem suas roupas, ou têm nos
negros norte-americanos exemplos de modelos, revelam ser as imagens dos corpos negros e
os artigos oferecidos fundamentais ao ato de se imaginar ou se identificar com os usuários.
Os modelos exibidos contribuem para a disseminação de moda, diante da qual o
consumidor não deve ser visto como passivo, pois contribui para isso o gosto e a

215
imaginação. Além disso, o consumo permite estabelecer pertencimentos e distinções e os
produtos, as atividades – os serviços prestados -, as imagens produzidas e veiculadas, não
revelam somente o poder pecuniário. Trazem informações sobre os pertencimentos e fluxos
étnicos, com o corpo apresentado a partir de parâmetros assim formulados.
Cabe afirmar que a noção de participação em vigor na “festa” apresenta algo
específico, porque passa a ser revelado que não somente os princípios morais e teológicos,
difundidos no meio evangélico, são o critério orientador do pertencimento. A condição e o
lugar de fiel ocorrem a partir de tensão entre se ver como semelhante e, ao mesmo tempo,
distinto. Isso tem lugar em relação ao fiel voltado a exaltar a distância discursiva de
negação do “mundo”. As diferenças são repensadas e expressas diante de imagens de
corpos e de redefinição da participação. Isso é realizado com a associação e a apropriação
de sinais definidores de estilos culturais e de vivência religiosa.
Sobre os promotores, é possível dizer que avançam constantemente em direção a
outras esferas e produções, demarcam o feito, apontam convergências culturais e, assim,
procuram balizar suas atuações com referências não somente ao meio religioso. Desse
modo, as atividades, as músicas e as falas apresentadas descortinam a visão acerca da
cidade, redefinida a partir da sonoridade e da musicalidade, ao mesmo tempo,
descortinando outro nível de integração.

Onde tudo começa – bairros e encontros musicais

Para o elaborado e inscrito no meio evangélico, os promotores executam o reggae, o


soul, o samba, o r&b e o d&b. A adoção dessas expressões não é ditada pelo modismo, mas
figura dimensão entendida como importante ao efetivado. Os promotores afirmam ter por
opção atuar entre grupos juvenis, muitos não pertencentes às classes de maior poder
aquisitivo e, muito menos, residentes nos bairros mais abastados da cidade do Rio de
Janeiro. Sabedores haver parte significativa dos freqüentadores classificada como formada
por negros e mestiços, os promotores observam ser a “festa” e as expressões musicais
favoráveis ao trabalho de conscientização. Isso não é prerrogativa das equipes, pois há
outros arranjos em vigência fora do âmbito religioso. São vistos por alguns promotores
como afinados com suas propostas: divulgar a black music e atuar entre parte da população.

216
O resultado é o adensamento da discussão e do questionamento sobre as iniciativas em
destaque no meio religioso. Quando isso é realizado, apresentam a reconstrução da cidade a
partir da criação e recriação musical.
A cidade do Rio de Janeiro, localizada entre a montanha e o mar, tem na paisagem
um de seus destaques. Além disso, o balneário é conhecido por ser palco de atividades
culturais de repercussão nacional e internacional como, por exemplo, a bossa nova, o samba
e o carnaval 197. Este último mobiliza parte da população local na preparação de desfiles de
escolas de samba e atrai significativo contingente de expectadores - residentes e turistas.
Também existem os blocos que saem às ruas e são compostos por interessados em brincar o
carnaval.
Durante o ano, a música é o motor de tantos eventos produzidos em arenas
destinadas para esses fins – iniciativa pública ou privada -, em ruas e praças. Nelas é
possível ver exibições de trabalhos para público diversificado e presente nos logradouros e
casas especializadas. As expressões musicais e o desenvolvido ao seu redor como, por
exemplo, as relações entre os artistas, entre grupos e patronos, os eventos e a organização
de associações (Ribeiro, 2003; Fernandes, 2001; Cavalcanti, 1995; Vianna, 1995),
descortinam forças e interesses componentes da cidade e distinguem suas áreas.
A “festa” teve início nas dependências de igrejas e, posteriormente, passou a ocorrer
em outro tipo de construção. Assim, os promotores passaram a alugar clubes, “casas de
festa” e boates, durante os finais de semana em determinados bairros da cidade. Ali é
efetuada a montagem de palco, a instalação de equipamentos de som, de telão, de projetor
de imagens, de canhão de fumaça e de luzes, organiza-se bar e pista de dança. A
mobilização costuma ocorrer nas áreas Norte e Oeste da cidade, e nos eixos ferroviário,
metroviário e viário, formado pela Av. Brasil – estrada que liga a cidade do Rio de Janeiro
a outros municípios.
A preferência de todos é por Irajá e adjacências, com Madureira, Bangu e Campo
Grande citados constantemente. Sobre isso, DJ TR expõe que “... Irajá foi um ponto
197
A Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro – AESCRJ - , entidade em atuação desde
1975 (em substituição da União Geral das Escolas de Samba do Brasil, fundada em 1934), representa cerca
quatro dezenas de escolas de samba. A Liga Independente das Escolas de Samba – Liesa - , fundada na
década de 1980, concentra as catorze agremiações que integram o grupo especial. Suas componentes
desfilam em duas noites do carnaval na Passarela do Samba. Ligadas às agremiações do Grupo Especial,
existem as escolas mirins formadas por muitas crianças residentes nas comunidades. www.aescrj.com.br,
acessado em 13/07/05; www.rio.rj.gov.br, acessado em 13/07/05.

217
estratégico, por exemplo, próximo à linha do metrô, não muito distante de Madureira.
Então, as pessoas podiam ter acesso ali pra você chegar em qualquer parte do Rio”. Alguns
promotores justificam a seleção da região por ser próxima às suas residências e possuir
198
ampla rede de transportes - trem, metrô, ônibus e “vans” –, por atrair e assegurar a
circulação da população com as atividades musicais oferecidas. Por Madureira, caso seja
considerado a oferta de vias de transportes, chega-se à Zona Oeste, aos bairros do ramal
férreo de Leopoldina, à Av. Brasil e também aos municípios limítrofes, como Duque de
Caxias e Nilópolis, integrantes da Baixada Fluminense.
De acordo com o Plano Estratégico, realizado pela Prefeitura Municipal do Rio de
Janeiro, o espaço urbano é visualizado conforme semelhanças topográfica, populacional,
cultural, histórica e geográfica. Assim, a Região de Irajá é formada por oito bairros 199 e
alcança a extensão de 2.500 hectares e mais de 300 mil/hab. Destes, 42 mil moradores estão
empregados nos ramos de comércio e de serviços e geram aproximadamente R$ 200
milhões de ICMs 200.
Madureira, encravada nas margens da linha férrea Central do Brasil, de acordo com
o Plano Estratégico, integra a Região Norte, uma das mais populosas da cidade, juntamente
com outros vinte e três bairros. Os recursos econômicos movimentados são da ordem de R$
405,9 milhões de ICMs, provenientes de atividade comercial com cerca de 64 mil pessoas
empregadas 201.

198
Trata-se de transporte alternativo, nem sempre legalizado, realizado com o uso de utilitários, desenvolvido
em decorrência de insuficiência da rede de transporte.
199
São os bairros de Colégio, Irajá, Penha, Penha Circular, Vicente de Carvalho, Vila Cosmos, Vila da Penha
e Vista Alegre.
200
Dados presentes no Plano Estratégico da Prefeitura Municipal da Cidade do Rio de Janeiro e Instituto
Pereira Passos. Maiores informações ver: www.rio.rj.gov.br, acessado em 13/07/05.
201
A Região Norte possui mais de 6 mil/hectares e 700 mil/hab. É formada por 23 bairros: Acari, Anchieta,
Barros Fº, Bento Ribeiro, Campinho, Cascadura, Cavalcanti, Coelho Neto, Costa Barros, Engº Leal,
Guadalupe, Honório Gurgel, Madureira, Mal. Hermes, Osvaldo Cruz, Pq. Anchieta, Pq. Colúmbia, Pavuna,
Quintino Bocaiúva, Ricardo de Albuquerque, Rocha Miranda, Turiaçu e Vaz Lobo. Informações contidas no
Plano Estratégico da Prefeitura Municipal da Cidade do Rio de Janeiro e Instituto Pereira Passos. Maiores
informações ver: www.rio.rj.gov.br, acessado em 13/07/05.

218
Cidade do Rio de Janeiro

Fonte: Armazém de Dados/ Instituto Pereira Passos – IPP.

No mapa acima, aparecem as regiões de Irajá e Norte, limítrofes entre si, vistas
como distintas pelo poder público – os critérios são arrecadação, atividade econômica e
índice de empregos. No entanto, para os promotores, não existem somente
correspondências entre as áreas a partir de critérios oficiais. Visualizam os bairros como
algo único, o que fica evidente quando alguns aspectos são apontados. Eles viabilizam
compreender sua eleição para a efetivação das atuações. Ao lado da presença e do trânsito
populacional, além de condições de transportes, a característica cultural é decisiva para o
desenho do território. Sobre isso, TR enfatiza:

Não é que tenha muita gente de Madureira, mas Madureira é um foco de


concentração da massa negra no final de semana. Já foi lá no baile do
viaduto? Antes de fazer o Soul de Cristo, eu pude levar o Alpiste pra
tocar lá.

219
Madureira passa a ter prevalência na paisagem urbana a partir da presença de
interessados residentes na localidade, em bairros e em cidades consideradas vizinhas. Eles
são atraídos por eventos culturais, por exemplo, o “baile do viaduto”. Ele surge na fala do
promotor e permite imaginar a cidade de modo distinto da divisão espacial em vigor. Isso é
feito mediante a referência ao trânsito populacional e ao registro histórico-cultural com
escolas de samba, blocos de carnaval, jongo e outras iniciativas. As referências têm
permitido estabelecer concepção urbana própria. Nela, a cidade surge integrada, mesmo que
sejam registrados conflitos decorrentes do tráfico de drogas e políticas voltadas à região
(Ribeiro, 2003:80-93).
O citado “baile do viaduto” ocorre nos finais de semana, há quinze anos, sob o
viaduto Negrão de Lima. Reúne público considerável para dançar black music e hip-hop
202
. Segundo TR, seu surgimento se deu com a mobilização de alguns vendedores que
faziam ponto nas ruas e procuraram criar alternativas de diversão em adição ao baile
realizado no clube Vera Cruz, em Abolição. A seu ver, este “baile” “é uma prova real deste
relacionamento amoroso com o povo afro-carioca foi o nascimento de uma de suas filhas
mais novas: a ‘black music’” 203. Ocorre, assim, o desenho urbano, entendido por ele como
“afro-carioca”, cujos ingredientes são a música e a cor. Com esses, a cidade é inserida no
fluxo cultural comum aos povos da diáspora.
Para L´Ton, da GB, parte da cidade seria mais ampla, mas com fronteiras
demarcadas, pois afirma:

O público dele curte isso, que é um público mais do que... Mas lá para
cima, para Bangu, para a Zona Oeste é um lance mais de guetos, lá
predomina. A galera sai de lá pra ir ao Circo Voador, em Madureira 204.
Então, da fronteira de Madureira para lá predomina a música negra,
predomina a black music, o hip- hop, o samba, o pagode, isso predomina

202
Monteagudo e Motta. “Charme sob a ponte”, jornal O Dia, 24/03/04.
203
Ver: “15 anos de Rio Charme – o baile das escolas de samba tradicionais e do jongo comemora a
debutância de sua filha mais nova: a black music”. “happy hour à moda subúrbio”, informativo e-black,
materiais disponíveis em www.pcg.com.br/eblack, acessados em 14/07/05.
204
Convém frisar que em Madureira não há “Circo Voador” – espaço voltado à atividade musical -, porém
vigora em Marechal Hermes – integrante da Região Norte – e na Lapa, no centro da cidade, em vigência há
mais de 20 anos, contando com recursos da Prefeitura. Além disso, há as “lonas culturais”, projeto originado
do Teatro de Arena, criado em 1958. Seis bairros da cidade (Anchieta, Bangu, Campo Grande, Realengo e
Vista Alegre) contam com instalações da “lona cultural”, iniciativa surgida em 1993, com incentivo da
Prefeitura. Em Madureira, existem o “baile do Viaduto” e a instalação do Serviço Social do Comércio – Sesc
- que também registram apresentações de artistas e conjuntos musicais. Ver: www.lonacultural.com.br,
acessado em 15/05/06; www.circovoador.com.br, acessado em 15/05/06.

220
lá. Então, por isso que eu quis subir. ‘Bom, vamos subir, vamos subir
para lá para fazer um lance para um público que a gente curte’. E tem
aquela história, é toda uma... além de fazer para o público curtir, se sentir
legal, mas há todo um pensamento. Por exemplo, durante todas as festas,
nem vou dizer que todas, mas sempre eu vou estar. Mas, vira e mexe, o
REP vai trazer os convidados. E isso fortaleceu meu grupo. Porque eu
sei que meu público é lá de parte de cima, Zona Oeste, Baixada
Fluminense, é esse meu público, e de Niterói. Então, eu estou
fortalecendo o REP 205.

Nos depoimentos, os referenciais culturais passam a contribuir para outra


organização espacial, a despeito da concepção político-administrativa. Estes colocam a
cidade como paisagem cultural formada a partir da oposição entre alto e baixo. Madureira é
vista como “foco de concentração”, pois “uma de suas filhas mais novas” também constitui
a força de atração e, ao mesmo tempo, de delimitação, já que TR indica ser ali a inscrição
da cidade no fluxo mundial de bens culturais.
Desse modo, a fala de L´Ton contribui para descortinar que tudo tem início e centro
em Madureira; a partir dali a cidade é pensada como formada por dois mundos 206: aquele
posicionado acima e o outro localizado abaixo. Essa concepção não tem correspondência
com a topografia urbana 207. O mundo, de “cima” do qual Baixada Fluminense, Niterói e
Bangu fazem parte, é constituído por atividades musicais e sonoras ali presentes. Trata-se
de outra cidade, de pólo irradiador de poder. O mundo de “baixo” é aquele no qual são
encontradas maiores elevações topográficas e é formado por regiões próximas ao centro
urbano e à Zona Sul. A divisão é assegurada pelas presenças de manifestações musicais
associadas ao contingente populacional identificado com a “música negra”. O mundo de
“baixo” surge como sem força e sem poder; nele nada acontece pela ausência da música
demarcada por percussão. Isso imobiliza e enfraquece. A saída de tal estado é possível
quando se começa a “subir” para área na qual as elevações não registram altitudes

205
Trata-se do grupo de “rap gospel” formado pelo entrevistado. REP é abreviação de “Radicalizando,
Evangelizando e Politizando”, cujo nome foi alterado para “Radicalizando, Evangelizando e Profetizando”.
206
Cabral (1974:61) observa que, no início do século, poderia entender que a cidade do Rio de Janeiro
comportava outra cidade. Tratava-se da cidade do interior, modo de vida distinto daquele apresentado no
centro urbano.
207
O solo e a paisagem da cidade do Rio de Janeiro são irregulares com áreas planas e outras com alta
declividade. Nas regiões de Irajá e Norte o quadro é bem específico porque a primeira apresenta áreas com
suaves ondulações e outras planas; a segunda tem localidades planas, com ondulações inferiores a 50 metros.
Isso contrasta com as regiões sul, tijuca e centro onde são registradas altas e relativas declividades e também
áreas planas. Maiores informações, ver: www.rio.rj.gob.br, acessado em 13/07/05.

221
significativas, porém atravessada por expressões culturais formadoras e integradoras da
cidade.
Como ocorre a eleição das regiões Norte e de Irajá? A escolha não é orientada por
quantidade de templos evangélicos e/ou por predomínio de evangélicos na população 208. A
base de suas atuações é o encontro com público e com referências sonoras pautadas pela
percussão e capazes, assim, de assegurar a coesão do grupo musical. Com a oposição,
L´Ton define o território a partir da música, das batidas e da concentração de conhecedores
da linguagem sonora. Assim, por meio dela e com ela todos vivem e se comunicam. Sua
referência não é constituída pela seriedade oficial e distante de manifestações populares. Na
verdade, são essas, próprias do mundo de baixo, que definem certa vida citadina e
constituem um modo de expressão de fé.
A partir das falas dos depoentes, pode-se visualizar a organização urbana não
restrita ao planejamento e gerência institucional, nem tampouco definida pela divisão do
trabalho conforme os interesses de corporações econômicas. A reunião da população pode
ser orientada por sentimentos, gostos, temperamentos e qualidades dos habitantes, forma
conjunto com peso na caracterização de cada região (Park, 1976).
Não obstante, o modo e os elementos com os quais concebem, aproximam e
distinguem parte da cidade podem seguir ou não o registro de determinadas iniciativas
histórica, cultural e sonora. Madureira e adjacências figuram como pólo de atração de
populações deslocadas de seus bairros e cidades e dispostas em compor um centro no qual
as raízes são cultivadas e asseguram as identidades – de sambista, de rapper, de negro. A
tensão estabelecida com o ordenamento espacial oficial aponta a lógica em vigência. Há de
adicionar que as manifestações culturais registradas são concebidas pelos entrevistados
como “autênticas” como o samba, a black music gospel, a “música negra” por construção
histórica e territorial.

208
A opção pela região não é justificada pela presença maior ou menor de templos evangélicos. Conforme o
censo de 1991, cerca de 12% da população do Grande Rio seria evangélica e asseguraria a ida à parte das 52
denominações registradas no estado do Rio de Janeiro (Fernandes, 1998).

222
A terra do batuque e dos beats: passado e presente

Alguns grupos realizam determinadas produções musicais a partir de relação


estabelecida com certas expressões musicais de circulação global. A ligação apresentada
está na base de elaboração e de efetivação de reuniões voltadas aos populares. Além disso,
o entretenimento faz parte dessa proposta e ocorre adição de reflexões sobre o lugar e a
invisibilidade atribuída ao negro - e as práticas culturais a ele associadas. As atividades
ocorrem em parte da cidade vista por sua capacidade em atrair significativo contingente
interessado nas alternativas de diversão oferecidas. Irajá, Madureira, Bangu e outros bairros
são relacionados a partir da característica cultural. Mas como adquiriram essa
peculiaridade? Pode ter sido em decorrência do fluxo populacional? Seria em virtude das
atividades musicais?
Saber por que a área em destaque é considerada a “caixa de ressonância”, para
alguns entrevistados, tem relação com a própria construção musical da cidade. Tinhorão
(1988) observa que os folguedos realizados por negros e, posteriormente, por mestiços, nos
campos e nas cidades brasileiras, conservavam elementos das danças africanas. O próprio
samba, surgido no início do século XX, guardava componentes presentes nos folguedos,
denominados batuques. Segundo Fernandes (2001), no Rio de Janeiro, no século XIX,
ouvia-se lundu, modinha, polca, maxixe e choro, por exemplo, alguns deles transformados
e considerados possuidores de características brasileiras. Além disso, o carnaval contava
com desfiles de corsos, de “sociedades” e, no final do século, grupos de ranchos. Esses
grupos teriam surgido entre os moradores dos bairros centrais e possuíam por marca a
execução musical e a caminhada por ruas. Reuniões festivas na casa da baiana tia Ciata,
área central da cidade, teriam sido o sítio de “criação” do samba, no início do século XX,
com a gravação e repercussão da música “Pelo telefone” (Fernandes, 2001; Santos, 2004).
O samba estava presente na cidade e não era algo criado ou restrito a grupo ou
classe social. Isso se deu devido a complexo processo social pautado em encontros entre
artistas populares, intelectuais e políticos (Vianna, 1995). Além da “criação” do samba, a
forma de desfile alterou o quadro de carnaval, com o surgimento da “Deixa falar”, na
década de 1920, na área do Estácio, vista como a primeira escola de samba (Cavalcanti,

223
1995; Fernandes, 2001) 209. Os blocos, as escolas de samba, os grupos de frevo e rancho
foram se espraiando pela cidade, das áreas centrais aos morros, bairros e subúrbios,
acompanhando o crescimento da cidade (Vasconcellos, 1971).
Da Região de Irajá surgiram os bairros vizinhos a partir de desmembramentos
efetivados no decorrer do tempo 210. Eles não ficaram imunes ao crescimento urbano e a
diversidade cultural, possíveis com a presença de migrantes e ex-moradores do centro da
cidade. Esses se dirigiam aos bairros surgidos ao longo da ferrovia e passaram a compor a
população formada por negros, brancos, mestiços, pequenos funcionários públicos e
militares (Ribeiro, 2003). Tudo isso contribuía para a ocupação de bairros por uma parte da
população que, detentora de “maiores oportunidades no mercado de trabalho”, não se
dirigia diretamente às favelas. Porém isso não impedia de haver proximidades entre as
“manifestações culturais” presentes nessas áreas (Cabral, 1974:61). Além do jongo e do
samba, blocos e escolas foram criados em Irajá e adjacências; podem ser citados o
“Baianinhas de Osvaldo Cruz”, com sambistas da Portela, e o “Quem fala de nós come
mosca”, da baiana tia Ester. Os dois blocos foram fundidos e surgiu o “Vai como pode”,
que depois passou a se chamar “Portela”.
Irajá contava com as escolas “Unidos de Irajá”, a “Recreio de Irajá” e blocos como
“Bafo de Minhoca”, “Urubu Cheiroso”, “Dragão de Irajá”, “Onda Braba”, entre outros.
Mesmo com o fim de algumas destas agremiações, o bairro continua a apresentar sambistas
e sambas para as diversas escolas da cidade (Lopes, 2003).

209
Cavalcanti (1995) chama atenção para a importância de relativizar as afirmativas relacionadas ao que se
toma por “primeiro” na esfera do samba. Cabral (1974:62) afirma que o bloco “Vai como pode”,
posteriormente “Portela”, antecedia a “Deixa falar” em estrutura, mas o termo “escola de samba” estaria
vinculado aos “bambas” do Estácio.
210
A freguesia de Irajá surgiu por volta de 1647, como fornecedora de produtos agrícolas para a cidade e, anos
após a sua criação, originou as regiões de Jacarepaguá e de Campo Grande. No século seguinte, surgiram
Inhaúma e Engenho Velho. Com a instalação da ferrovia D. Pedro II e o desmembramento de fazendas e
engenhos, outros bairros também surgiram. A região experimentou mais modificações com a saída de parte da
população do centro da cidade, fosse em decorrência da reforma empreendida durante a gestão do prefeito
Pereira Passos, no início do século XX, fosse em virtude do aumento do preço do aluguel. Esse atingiu os
pequenos funcionários públicos e o contingente se dirigiu à região constituindo sua população, juntamente
com os negros já existentes. A área de Madureira e adjacências receberam migrantes de Minas Gerais, do
Norte Fluminense, do Vale do Paraíba e do nordeste do país (Ribeiro, 2003). O fluxo migratório,
principalmente daqueles oriundos de Minas Gerais, do Norte Fluminense e do Vale do Paraíba, pode ter
propiciado o surgimento do jongo a partir de relações entre famílias residentes (parentes e amigos). Música,
dança e religiosidade afro-brasileira seriam os ingredientes do jongo e da sociabilidade local. Além do
envolvimento com o jongo, as famílias participaram também de fundações de blocos e escolas de samba da
região (Ribeiro, 2003).

224
Já Madureira apresenta escolas como a Tradição, a Portela, a Império Serrano e a
Império do Futuro (Ribeiro, 2003). Na extensão do samba, outros bairros como Realengo,
Padre Miguel, Bangu, Campo Grande possuem agremiações carnavalescas e blocos que
integram a paisagem cultural da cidade (Vasconcellos, 1971). Além do samba, blocos
“afro” (Ayres Machado, 1996), grupos de jongo e outras iniciativas musicais, como
pagodes e “bailes”, revelam ser essa parte da cidade pólo musicalmente não homogêneo,
pois atividades ao redor de expressões como o “charme” (r& b), o funk (Cecchetto, 2004;
Ribeiro, 2003) e o hip-hop coexistem. Nos clubes ocorrem bailes “charme” e funk (este
último também vai movimentar as atividades de entretenimento nas comunidades).
Para TR, os “bailes charme” são reconhecidos como adequados para ouvir e
executar a “música negra” (nacional e internacional); a mídia também divulga que estes
bailes contribuem para a “...difusão da cultura negra no estado do Rio de Janeiro” 211. As
músicas asseguram a freqüência nos finais de semana em clubes e em encontros realizados
em áreas públicas. As atividades registram a concentração de interessados e são efetuadas
próximas a áreas de circulação das camadas populares como, por exemplo, estações
ferroviárias e viadutos. Há o baile “Rio Charme”, sob o viaduto Negrão de Lima, em
Madureira, o “Ponto Chic”, em Padre Miguel, o “Charme de Graça”, na estação ferroviária
de Vasconcelos, e o “Hip-Hop Novo”, sob o viaduto de Campo Grande. Para alguns
militantes, os bailes não teriam nada a ver com a luta pela posição de poder, mas o
“charme” é demarcado por “valorização da estética” sem que seja, em todos os termos,
considerado por seus freqüentadores uma “militância política” (Cechetto, 2004:206).
Apreciadores, dançarinos, DJs e cantores buscam constituir manifestação por eles
considerada popular e na qual muitos se apresentam e gozam de reconhecimento e
prestígio. Na rua ocorre a propagação musical, pois registra fazeres marcados pela
autonomia de seus realizadores. Estes contam com redes sociais favoráveis aos artistas, tal
como TR conduziu o DJ Alpiste, “rapper gospel” paulistano, para apresentação no “baile
do viaduto”. Atividade artística constituída desse modo não é novidade. Os “artistas
anônimos”, em atividade desde o século XVIII, faziam-se ouvir nas ruas e mobilizavam os
ouvintes (Tinhorão, 2005) 212. Nos primeiros anos do século XX, eram diversos os locais

211
“ 15 anos de Rio Charme...” disponível em www.pcg.com.br/eblack, acessado em 14/07/05.
212
Segundo o autor, os músicos tocavam a partir de seus interesses ou podiam ter seu tempo contratado para
apresentação. Além desses, havia na cidade os artistas que se apresentavam em salões e, mais tarde, nos

225
para execução musical com possibilidades de profissionalização para muitos artistas
(Travassos, 2000:12).

Territórios de visibilidade

Para os organizadores, algumas expressões musicais presentes nos “bailes” são


oriundas das populações negras norte-americanas, e outras são remanescentes de encontros
populares, com estreitas ligações com os negros brasileiros. Nos depoimentos, expressões
musicais são citadas e explicitam o vigor de batidas capazes de mobilizar a população e
formadoras de território definido por interação e, para tanto, a música e outras tantas
expressões culturais são fundamentais. Com isso, parte da cidade passa a ser o ponto de
referência dos promotores.
Alguns dos organizadores e também freqüentadores, com os quais pude conversar
mais demoradamente, citam o baile “Rio Charme” como a reunião mais conhecida e alguns
afirmam ter tido relativa assiduidade. Durante o meu trabalho de campo, encontrei com TR
e Sérgio da equipe SC no “baile charme Tangará”, na Cinelândia, centro da cidade. Nega,
Tiago e outros entrevistados afirmam ter deixado de ir aos “bailes charme” realizados fora
do meio evangélico à medida que a “festa” adquiriu consolidação e/ou eles passaram a
experimentar maior comprometimento com o grupo religioso.
Os depoentes repensam a disposição espacial da cidade a partir da associação entre
música e entretenimento, a partir da qual distintas sonoridades mobilizam moradores e
vizinhos para os eventos. Seu registro compreende ruas, escolas de samba e clubes. Por
outro lado, os organizadores de “bailes” de black music e de hip-hop inscrevem-nos a
partir da constante relação com os bairros negros norte-americanos, das reivindicações e
lutas políticas e sociais. Já alguns promotores de “festa” apresentam similaridades com os
produtores de “bailes charme” e vêem a cidade não somente a partir das diferentes e
potentes batidas de origem norte-americana. Percebem que está tudo relacionado ao que
consideram ter sido construído por negros brasileiros e de outras paragens. Isso viabiliza
apreender como as músicas e as manifestações são elaboradas e, para os organizadores,

teatros do Rio de Janeiro e Bahia, e que, portanto, podiam escapar da autonomia em virtude de arranjo
contratual.

226
tornam as populações e suas reivindicações também visíveis, assim como seus gostos,
temperamentos e sentimentos.
O “baile charme” e as expressões musicais são relacionados e demarcam a noção de
cidade e, com isso, é indicada a semelhança entre as iniciativas populares. Essas são
empreendidas fora do meio evangélico e caracterizadas por relação com sonoridades
oriundas dos Estados Unidos e também com o samba e o pagode. Esta inscrição da “festa”
e de black music gospel permite ser operada diferença com outras iniciativas correntes no
meio evangélico. Além disso, as formulações oferecidas contribuem para a montagem de
desenho no qual surge a subversão do desenho político-adminstrativo: o “centro” da cidade
é a região extensa que se estende de Madureira a Campo Grande, caracterizada por ações
alternativas, independentes e norteadoras de encontros e de execução musical. Com isso,
artistas e profissionais encontram condições adequadas. Eles trafegam sem vínculos com
empresas fonográficas e especializadas em organização de shows e outros eventos. Além
disso, contribuem para a representação de parte da cidade como “território de consciência
cultural” definido a partir daquilo posicionado na parte debaixo; assim, são circunscritos os
posicionamentos acerca da peculiaridade e ascendência cultural.
A cidade do Rio de Janeiro não é caso isolado em relação ao apontado. Os blocos e
os trios elétricos na Bahia redesenham a cidade e estabelecem territórios distintos. Isso
ocorre não somente em virtude das musicalidades pertinentes a cada um; muito menos em
decorrência da articulação entre música e entretenimento. Nos bairros de origem ou de
apresentação dos blocos, há atividades musicais e de cunho político-social marcadas pela
disseminação de expressões culturais formadas local e globalmente. Então, as danças, as
linguagens, os penteados e as vestimentas utilizadas caracterizam os grupos. A partir disso,
os jovens se identificam com bairros e áreas da cidade que inscrevem “fluxo de
“africanização”. Oferece-se outro desenho urbano, agora composto distintamente a partir
de específica relação afetiva e simbólica na qual sobressai a consciência da negritude
(Guerreiro, 1997).
Ao contrário disso, os trios, organizados por componentes das classes médias, são
marcados exclusivamente pela dimensão do entretenimento, e não ocorre a inscrição de
proposta étnica ou política. Com os trios, o centro da cidade e os clubes de bairros nobres
são ocupados durante todo o ano a partir de organização capaz de atrair jovens baianos e de

227
outras cidades e estados. Surge outro território, no qual não prevalecem relações de cunho
simbólico ou afetivo com os bairros, porém vigora a participação na carnavalização do
cotidiano e a garantia de diversão.
A África, as raízes ou origens negras são referências constantes e podem
caracterizar as atividades musicais cujo surgimento tenha ligação com a atividade religiosa,
com os organizadores ou com o local. Assim, pode-se ultrapassar a organização espacial
oficial e pautada em critérios objetivos. A delimitação pode ser feita na base dos
sentimentos ou ter a ver com os gostos, com os envolvimentos musicais e políticos de
organizadores e de públicos. A escolha pode estar relacionada com a busca do puro
entretenimento, com ideologias definidas e/ou ter diretriz religiosa (como a ligação entre
bloco afro e religiosidade como o Ilê Ayê e o Ara Ketu, na Bahia, e a “festa”, no Rio de
Janeiro).
Tais construções desnudam como os envolvidos recorrem às “fontes culturais”, aos
elementos de diversas origens, daquilo entendido como africano ou afro-americano para
apresentar algo próprio de “afro-baianos”, “afro-cariocas” ou “afro-brasileiros”. Tudo isso é
definido por músicas e sonoridades nas quais a percussão e as batidas eletrônicas são
componentes fundamentais, pois o modo como são concebidas permite compor território e
identificar seus integrantes. Portanto, esses empreendimentos colocam vinculações,
posicionamentos e interações que conduzem a existência de “ethos negro” (Frigerio,
1992:184).
A “festa” e a musicalidade como bens e serviços religiosos, de entretenimentos e,
para alguns, como forma de ser negro, colocam níveis de distinção e de semelhança. Nesse
sentido, observar o evento e as canções a partir de uma certa percepção da cidade, onde há
proximidade com algo não alocado no âmbito religioso; a ênfase está na oposição
alto/baixo registrada quando a cidade é representada. Ela revela as estratégias de construção
de sentidos, de contestação e de visibilidade (Hall, 2003:341). Esse é somente um dos
níveis inseridos por promotores, pois não voltados somente ao espiritual. Porém não há
como ficar aqui. Caso sejam tomadas a “festa” e a black music gospel, como componentes
de meio musical negro, entende-se dialogarem com outras iniciativas, enfrentarem
oposições e lidarem com as mesmas referências pautadas na música, nas temáticas da cor e
racial. Assim, será vista a tensão entre a black music gospel, suas estratégias de

228
visibilidade e de reconhecimento e a composição política do Fórum de Lideranças Negras
Evangélicas – FLNE.

Vozes dissonantes

As inscrições de certas expressões musicais contemporâneas e atividades são


criticadas por líderes religiosos. Estes duvidam de que tais expressões consigam manter a
desejável distinção com o “mundo” e também se as canções com referencial africano e
afro-americano viabilizam a “adoração”. As idéias, as músicas, os objetos e os lugares
expressam suas especificidades e, por outro lado, a proximidade e diferença mantidas com
iniciativas localizadas no meio evangélico.
As tensões não acometem somente os não comprometidos com as concepções
comuns aos leigos - religiosos e empresários – sobre a população de cor. Acusações e
críticas podem surgir e envolvem outras formações voltadas a certo segmento de fiéis;
dentro do grupo voltado ao tratamento das temáticas da desigualdade social e negritude,
sobressai polêmica sobre a black music gospel. De um lado, está o integrante do FLNE e,
de outro lado, em resposta, o promotor de “festa” da SC. Apesar da organização de
empresas e de atividades de disseminação de produções musical e fonográfica
especializadas em mensagens de cunho religioso, existem tensões. Elas surgem com
algumas vozes dissonantes e questionadoras, seja sobre a origem das expressões musicais
adotadas, seja sobre sua validade na conscientização de fiéis. Essas visões dissonantes serão
contempladas aqui.
Durante o meu trabalho de campo, encontrei defensores de experimentos musicais e
de interação, porém me deparei também com críticos. Um cantor declara ser a música
desenvolvida atualmente a imitação da “música mundana”. Para ele, a causa seria “um
relaxamento dos dirigentes” e a insegurança na manutenção do grupo juvenil. Por causa
disso, a apresentação de grupos musicais é vista com restrição porque, diz o depoente, “têm
grupos que toma a maior parte do tempo do culto”. O objetivo em manter e estender o
corpo de fiéis fez com que os dirigentes ampliassem a presença musical e diminuíssem
aquele tempo destinado ao sermão, à leitura de textos sagrados, por conseguinte, invertendo
a hierarquia do grupo. O resultado seria a música considerada de fraco conteúdo religioso,

229
mas eficaz, segundo o cantor, para atrair os jovens por ser “...chamado às emoções. A
emoção para o público, prazer do corpo...”. A crise é dada pela ínfima manifestação do
pastor diante da promoção da emoção e do corpo, cujo alcance é o desmantelamento do
culto baseado nas Escrituras.
O cantor não é o único a se opor e a fazer coro com o pastor em estado de alerta ao
constatar a invasão da igreja pelo “mundo”. Como foi visto no terceiro capítulo, vigora a
visão de inovações musicais carrearem perigo ao grupo religioso. A visão também é
encontrada entre os envolvidos com texto em circulação na Internet sobre a “música
contemporânea” nas igrejas evangélicas. No material, é expresso que as canções “populares
afro-latino-americanas” seriam possuidoras de estreitas relações com cultos de adoração a
demônios. Eles seriam oriundos da África e chegados às Américas com os primeiros
escravos. O rock, o r&b, o samba, a congada, o mambo, enfim, a musicalidade de origem
afro-latina-americana apresentaria ligações com atividades demoníacas e, diante disso,
seriam justificadas as oposições às expressões culturais 213. Sobre os cultos e as canções, é
demonstrado que:
A contextualização da música chamada falsamente de ‘contemporânea’,
pois tem sua origem na antiqüíssima música de invocação demoníaca
indígena e africana, tem introduzido na Igreja a sensualidade, o
paganismo, o misticismo, a atividade maligna, que através, dos ritmos,
tambores (bateria), e danças têm entronizado Satanás nas igrejas
mundanas, no lugar de Cristo – transformado o culto, aparentemente em
show, mas o que acontece é bem pior - a Igreja torna-se um templo de
Satã 214.

A música não somente leva ao enfraquecimento da autoridade pastoral como


também é aquela que veicula o mal - não por ser do “mundo”. Suas qualidades negativas
decorrem das ligações mantidas com os povos afro-americanos. Assim, o sensual, com a
dança, e o sentimento, frutos de músicas percussivas, são apontados como responsáveis por
estado de descontrole. Desconhecimentos, prazeres e distância do pólo do bem, ou daquilo
entendido como tal, são resultados de proximidade com os povos que contribuíram para

213
Maiores detalhes ver: http://solascriptura-tt.org/separaçãoeclesiastFundament/Laerton-crescIg3-
musicaPagaMilenar, acessado em 10/02/04.
214
III – Música contemporânea – instrumentos barulhentos e múltiplos tambores da bateria e dança como
atrativos para fazer a igreja crescer – por José Laérton Alves Ferreira, disponível em http://solascriptura-
tt.org, acessado em 20/07/05.

230
formar as culturas locais. Prossegue o distanciamento da proposta em estabelecer leitura do
Evangelho voltada à cultura de cada povo (Nascimento Cunha, 2004).
Existem manifestações de intelectuais evangélicos que pontuam para a inviabilidade
de adoção de determinadas expressões musicais. Ao apontar o curso da “revolução
litúrgica” em processo no cristianismo, Dornelles (2005b) indica a ruptura de fronteira apta
a separar o profano e o sagrado. A música popular tomada por igrejas cristãs transforma o
culto racional em emocional. O autor entende ser a música no Ocidente influenciada pela
“música africana”, conduzida do terreno orgiástico, mágico e maligno do “vodu” –
disseminado pelo Caribe e África –, presente no rock, no jazz e no blues. Essas formas
musicais são vistas como perniciosas, excitantes e descomprometidas com “idéias
espirituais”, como no “período clássico”, e pesa para a decrepitude da tradição no meio
religioso. Theodor (2005) destaca a inviabilidade do soul ser empregado na “adoração”,
porque estaria ligado à população negra norte-americana e oriunda do blues. Este é visto
como canto “melancólico” do negro escravo. Por sua constituição emocional e também por
não seguir o critério bíblico de “temor e reverência”, o soul e o blues são expressões
musicais consideradas inadequadas ao culto daquilo considerado divino.
Esses autores apresentam argumentos para criticar não somente as inovações
musicais, também preocupação dos críticos da “festa” e eventos similares. As expressões
musicais são condenadas porque estariam vinculadas a certas práticas religiosas ou
demarcariam modo de expressar os sentimentos comuns aos povos não brancos. O destaque
do perigo, do orgiástico, do emocional, da feitiçaria e da tristeza aponta para a concepção
na qual alguns povos, ou melhor, sua cultura, sua moral e sua religiosidade estariam
submersas em mundo de “idolatria”, de perigos e de irracionalidade. A sombra do perigo
paira sobre as canções e as atividades porque, para alguns, contemplam sensualidade,
sentimentos, paganismo e outros elementos delatores da impureza, da transformação do
“culto” em “show” e do domínio da “igreja” por “Satanás”. Ao contrário do observado até o
momento, a coexistência é vista como desestabilizadora e torna frágil o esquema
organizatório (Douglas, 1966) que teria regido as igrejas – fiéis e propagadoras do
considerado “original” e “puro”. São feitos alertas sobre os limites, as fronteiras, não
físicas, mas cósmicas, a serem resguardadas a fim de garantir a homogeneidade (musical,
cultural e religiosa), como se existisse de fato.

231
A visão apresentada por autores evangélicos não é inusitada, pois encontra respaldo
também nas reflexões do século XIX. Essas apontavam diferenças entre as raças, indicavam
a superioridade de brancos e a inferioridade de negros e indígenas. Esta visão ganhava
robustez com a vigência de reflexões científicas. Uma delas destacava o intelecto, as
manifestações morais e as propensões animais como qualidades que distinguiriam negros,
amarelos e brancos. O negro seria portador de débil intelecto, de acentuada animalidade e
pálida moralidade e, assim, seu lugar passaria a ser definido na composição da sociedade
(Da Matta, 1983:72). Nos aspectos religioso, moral e cultural, os povos negros, distantes
da divindade cristã, estariam condenados. Mesmo quando próximos da religiosidade
considerada adequada, poderia haver o culto equivocado. Os aspectos negativos estariam
em vigência, caracterizando, portanto, as manifestações culturais dos contingentes de cor
negra (Barbosa, 2002; Kidder e Fletcher, 1941).
Os pronunciamentos contundentes e preocupados com a continuidade da tradição
diante de reelaborações musicais e cultuais estabelecem confrontos e dão a proporção do
jogo de posições, de forças e de interesses entre componentes de grupos distintos. Os
líderes religiosos apontam o perigo da mistura não somente no plano terreno; também
alertam para inversões de poderes no plano espiritual. Isso ocorreria com aquilo
posicionado em nível inferior e conduzido para o serviço religioso e, ao mesmo tempo, seja
cultuado. Não obstante, não é aqui o fim dos confrontos. As enunciações em circulação
proporcionam descortinar a desvalorização de herança cultural e de fiéis com ela e por ela
definidos, principalmente por critério de cor de pele e pertencimento cultural. Por outro
lado, há o investimento em expressões musicais, em relacionar as canções a certa
ancestralidade – do considerado africano - e defender revisão da liturgia. Com isso, ficam
as tensões em decorrência de posicionamentos acerca do realizado.

Ações em confronto

O FLNE tem por proposta refletir a situação do “afro-descendente”, integrante de


igrejas evangélicas, e busca agir para reverter certa situação em âmbito educacional,
doutrinário e litúrgico, haja vista a situação material, a fraca participação em postos de
direção e a relação entre o mal e as expressões culturais com referência à África. Dentre os

232
componentes do FLNE sobressai Hernane, dirigente religioso em atuação no estado de São
Paulo. Ele critica as igrejas neopentecostais brasileiras porque contribuem para difundir o
racismo com a “teologia da prosperidade” e a “doutrina da maldição hereditária”. A seu
ver, a primeira defende o sucesso material como marca da benção divina; a segunda
sustenta ser o “povo negro” descendente de outro que teria recebido uma maldição divina:
sua libertação ocorreria com a aceitação de Jesus e a negação dos “antepassados”. Hernane
aponta ser a visão neopentecostal propagadora de visão restritiva, pois concebe ser
necessário que o negro “faça uma espécie de cura interior se desvinculando de todos os
seus antepassados, ou seja, não sendo mais negro” 215.
Em igrejas históricas como, por exemplo, na Igreja Metodista, o pertencimento
conduz ao “embranquecimento”, cujos componentes são a certificação da competência, os
títulos universitários e o distanciamento de “traços importantes” da cultura brasileira, com a
adesão a valores e elementos culturais em vigor no meio religioso. A música, o samba, o
“folclore nacional, a cultura afro-brasileira e afro-latino-americana” são preteridos em
benefício da “marchinha americana”, do “folclore americano” presentes no hinário do
grupo (Novaes, 1985b). No pentecostalismo, apesar da rejeição do considerado ligado à
África, existem iniciativas de líderes como a de Hernane, voltadas a desenvolver, a ampliar
o “discurso pentecostal afro-brasileiro” e contemplar os problemas que afetam os negros.
Nesse sentido, busca-se combater as associações entre negritude e mal sem que haja
proximidade com o movimento negro, devido a sua ligação com as religiões de possessão
(Burdick, 1998:205).
A polêmica entre o FLNE e igrejas evangélicas ressaltam a existência de campo
discursivo. Ele é composto por forças antagônicas e em confrontos posicionais e políticos
no tocante à ascendência cultural e à cor da pele (Hall, 2003:345). De acordo com a visão e
propostas encontradas no FLNE, seguidas por Hernane, outro confronto, outro jogo de
forças, é estabelecido. Hernane pondera em relação a black music gospel e, por sua vez,
encontra resposta e, assim, amplia as interlocuções.
De acordo com Hernane, no interior do “movimento negro evangélico” estaria o
“movimento black gospel”, surgido nas igrejas neopentecostais brasileiras no decorrer da

215
A reflexão de Hernane Quilombo, denominado “As igrejas evangélicas neopentecostais e os
afrodescendentes”, integra o artigo “Movimento Negro Evangélico - um mover do Espírito Santo”,
disponível em http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, mensagem recebida em 2004.

233
década de 1990. Para ele, não existe integração entre ambos. Isso ocorreria porque a
doutrina neopentecostal inviabiliza em seus adeptos a reflexão militante de “busca de
transformação social”. Critica, assim, a black music gospel, pois sua atuação fica restrita ao
canto, sem provocar reflexões entre parte significativa de seu público. As canções não
fomentariam questionamentos sobre o sofrimento, o cativeiro e a perseguição de liberdade
em Deus 216.
Ao contrário disso, o “movimento negro evangélico” busca transformar a sociedade
ao instituir a “teologia contextualizada e negra”. Apesar disso, Hernane aponta ser o
“movimento black gospel” integrante do “movimento negro evangélico” porque se
originam da mesma “raiz negra”, pois o “movimento pentecostal surgiu no mesmo
ambiente que gerou a música negra. Assim como o pentecostalismo é negro a sua música
também é”. Entende ele que a integração entre os dois “movimentos” seria interessante por
ser a música capaz de mobilizar significativo contingente 217.
O argumento do integrante do “movimento negro evangélico” suscitou resposta
entre os produtores de black music gospel e de “festa”, principalmente entre os
componentes da equipe Soul de Cristo. Sérgio, por meio do site e-black, argumenta existir,
há muito, aqueles comprometidos com a “música gospel” e divulgam a “Palavra de Deus”.
Para tanto, buscam em “nossas raízes africanas, conceitos de que Jesus veio para todos os
povos”. Assim, indica estar em andamento a conscientização e, para exemplificar, cita
vários cantores que valorizam a “cultura africana” a fim de divulgar a “mensagem que
Jesus nos deixou”. Para Sérgio, a proximidade entre os dois depende de o “movimento
negro evangélico se utilizar da música como elo de divulgação de seus conceitos” 218.
A partir de referências bíblicas e culturais, ocorre a reconstrução de uma África não
para procurar refúgio, porém para confrontar o considerado demasiadamente branco no
meio evangélico. A organização do “movimento negro evangélico” demarca como parcela
minoritária no direcionamento das igrejas busca construir a estratégia de visibilidade. Essa
incorre em ressaltar a origem a fim de visualizar o exercício de crença. Por isso, a “raiz
negra” remonta ao passado reinventado quando buscam a história protestante. Esse passado

216 Ver também: Burdick(1998).


217
Sobre o assunto, ver: “Movimento negro evangélico, um mover do Espírito Santo”,
http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, mensagem recebida em 23/05/04
218
“O movimento black gospel e o movimento negro evangélico, disponível em http://pcg.com.br/eblack,
acessado em 11/06/05.

234
é, em outro momento, conduzido para fora do âmbito teológico e alocado no cultural, haja
vista serem procurados nas “raízes africanas” os elementos para a consolidação de leitura
do Evangelho. Desse modo, Sérgio entende a peculiaridade da black music gospel porque
permite redefinir o que seja “negro” e evangélico.
Os materiais de divulgação revelam peculiaridades acerca do elaborado em direção
à música. Estilos são apresentados, povoam os empreendimentos musicais e de eventos e
transmitem imagens acerca do realizado. Surgem composições imagéticas do corpo e este
aparece como integrante de esquema de entendimento e de expressão das concepções das
equipes; também há arranjos com atividades musicais e expressões culturais não religiosas
por meio dos quais a cidade é repensada e suas áreas distinguidas.
As produções musicais, de eventos e fonográficas colocam como a dimensão da
música favorece a instalação de níveis de distinções e de proximidades entre as iniciativas e
os arranjos formados em seu interior e fora dele. As músicas e os eventos produzidos,
orientados por certa percepção de cor e origem, têm contribuído para o surgimento de
tensões, confrontos e forças com a mobilização de líderes religiosos e de leigos. Por último,
a tensão entre o “movimento negro evangélico” e a black music gospel denuncia a falta de
integração e fragilidade entre os leigos e suas propostas porque operam em condições
distintas. Em movimento pendular, os promotores polarizam entre o entretenimento e a
diretriz política; como a atuação da CON-3, o reconhecimento não decorrerá do meio
religioso. O FMNC e o FLNE confrontam a doutrina e a política para apresentarem o
direcionamento ao fortalecimento de fiéis, do contingente de evangélicos negros. Por isso, a
discussão e os arranjos estão orientados também pela dimensão legal e política com a busca
pela igualdade com a indicação de “estratégias compensatórias” (acesso às escolas
vinculadas aos grupos protestantes).
Até aqui foi visto o que é a “festa”, o que a constitui e como é organizada; também
foi apreciada a dimensão musical e apontado como é tida pelos envolvidos em sua
produção. As tensões e os arranjos viabilizam compreender ser o exercício musical
efetivado a partir de movimentos diversos. Esses podem ser complementares,
confrontantes, paralelos e cruzados. Isso envolve inscrições de vários grupos,
proximidades e distanciamentos de concepções institucionalizadas e de ações posicionadas
fora do meio evangélico e também em seu interior.

235
Também tem sido apontada a vigência de grupos independentes, designados pelo
termo equipe, compostas por cantores, DJs e empresários envolvidos com a produção e
execução musical. Esses promotores estabelecem redes para suas iniciativas e delas obtém
parcerias com colaboradores. Há igualmente os freqüentadores, consumidores de CDs, de
informações e que movimentam um circuito musical no qual interagem e exercitam sua fé.
Saber quem são os freqüentadores, como concebem a black music gospel e a “festa”, são
pontos fundamentais para conhecer mais sobre o exercício musical e de eventos. Ao
considerar as falas dos freqüentadores, serão focalizadas as características das atividades de
DJ, de pregador e de “segurança” a fim de compreender porque a “festa” e as músicas
constituem algo específico.

236
Capítulo 6

Da rua ao palco – presenças e sentidos

Nos capítulos anteriores foram destacadas as produções musicais, de reuniões e


fonográficas direcionadas aos adeptos de igrejas evangélicas. Também foram apontadas as
participações de empresas, de gravadoras e de emissoras de rádio. Além disso, há cantores,
DJs e produtores que agem fora da esfera institucional e passam a configurar mobilização
independente. Eles apresentam visões peculiares acerca da citada “música gospel”; para
alguns, esta pode estar vinculada à mensagem de cunho religioso; para outros, coloca certa
visão pertinente ao âmbito evangélico. As transformações não ocorrem por mera
apropriação de expressões culturais, porém a partir de relações com idéias e com bens. Isso
demarca os encontros estabelecidos e, por conseguinte, as vias de porosidade: o
entretenimento e a visão política.
As manifestações organizadas têm por objetivo divulgar os artistas, executar as
canções e, por fim, constituir meio no qual seja possível atuar entre os presentes e ouvintes.
Nesse sentido, trata-se de executar canções e também proferir “mensagens”, com conteúdo
evangelizador - religioso ou político, para confirmação daqueles inseridos em denominação
evangélica. As iniciativas também estão voltadas ao entretenimento e à divulgação de
artista, porém isso não está desvinculado e não deve ser visto isoladamente. Enfim, ouvir
música, cantar, tocar, dançar, proferir “mensagens” são momentos das atividades de artistas
e de empresários. A análise do fazer musical evidencia tensões, confrontos, lógicas e
coexistências que regem as combinações e os arranjos.
Foram vistas as propostas, as elaborações e as noções daqueles ocupados nos postos
de produção e de divulgação, seja musical, seja das atividades destinadas aos fiéis. Também
foram abordados os sentidos apresentados pelos envolvidos com a prática musical e tudo
atrelado a ela. Todavia, não foi contemplado o que os freqüentadores entendem sobre tais
iniciativas e seus resultados. Os promotores visualizam atingir os freqüentadores e, assim,
definem o que operacionalizam. No entanto, o sentido não é construído unilateralmente, e

237
muito menos, é algo cristalizado. As relações sociais não estão restritas aos envolvidos com
a produção e a organização musical e de empreendimentos, pois existem os receptores -
não possuidores de lugar passivo. Eles também formulam sentidos e dialogam com aqueles
apresentados por promotores e com os expressos por líderes institucionalizados.
A partir do exposto, buscarei me alongar mais em algo que já apontei em momentos
anteriores do texto, ou seja, as concepções entre os freqüentadores sobre a “festa” e as
músicas. Assim, será possível dar mais consistência a outro ângulo do que seja apresentado.
Também serão indicadas as semelhanças e a heterogeneidade do público – possuidor de
diversas experiências culturais, origens e inserções religiosas.
Foram ouvidos 23 freqüentadores, sendo que cinco depoimentos foram realizados
fora do âmbito da “festa” e são, portanto, mais extensos. Os demais aconteceram antes da
entrada do local de encontro e isso determinou o tempo e a profundidade das entrevistas,
porém permitiu alcançar suas visões acerca do disponibilizado.
Além de focalizar os receptores, será procurado definir outros tipos de profissionais,
pois além do cantor, existem posições-chave e, nesse caso, aparecem os pregadores e os
DJs, reconhecidos diante do elaborado, apresentado e alterado por eles no decorrer das
reuniões. Também será abordada a importância de colaboradores, especificamente aqueles
em atuação na área de controle (ou de “segurança”), haja vista que os freqüentadores e os
promotores ressaltam como característica da “festa” a tranqüilidade, a ausência de
confrontos físicos e de excessos generalizados. Para eles, isso conduz ao reconhecimento
daquilo produzido e recebido.

Quem e por que ir à "festa"?

Ao descrever a reunião 219, foi possível tecer um quadro a partir das ações e das
formulações dos organizadores. Vejo ser prática não dissociada da dimensão da fé e, em
princípio, sublinha participação marcada pelo entretenimento e por críticas e reflexões
acerca do fortalecimento político e de expressões culturais. Mas, para a tessitura ser
consistente, a abordagem passa a compreender também os participantes. O período de
observação e as conversas mantidas com os freqüentadores são dois pontos que permitem

219 Veja a descrição sobre a “festa” no segundo capítulo.

238
oferecer certo ângulo sobre as canções e os eventos. Saber quem e o motivo para ir à
“festa” são questões a serem respondidas.
Em uma noite de sábado a qual me dirigi à “festa”, realizada pela equipe Gospel
Night (GN), entrevistei um grupo de mulheres. As componentes do grupo eram irmãs e
amigas, solteiras, casadas, integrantes das igrejas como, por exemplo, Metodista,
Assembléia de Deus e Batista. Os filhos teriam ficado sob a guarda de parentes e, assim,
foram pela primeira vez ao evento, acompanhadas pelo marido de uma delas.
Segundo foi dito, todas as integrantes estiveram no serviço religioso de suas igrejas
e depois seguiram para a reunião; concebiam ser aquele momento diferente do que
costumavam realizar. Caso não estivessem ali - isso foi explicitado entre tímidos sorrisos -
teriam ficado em casa vendo televisão, ido à pizzaria ou estariam voltadas aos cuidados das
crianças. O que teriam ido fazer ali? Foi a pergunta que esperava fazer. Uma integrante
terminou por falar que, após a audição do programa de rádio, havia organizado grupo para
ir à “festa”, dizendo que todos esperavam ouvir música de “adoração”, “mensagens” e
encontrar membros de outras igrejas. Então, estava resumido o que a maioria diz encontrar
ou, ao menos, espera encontrar. Nele há possibilidades de interação, de entretenimento e de
vivência religiosa. Provavelmente tudo isso pode ser oferecido, procurado e construído por
todos os presentes.
Em outro encontro produzido pela GN, com o registro de numeroso público
interessado na exposição de fantasias, observava aqueles dedicados ao ato de dançar. Era
possível ouvir o barulho feito pelos mais próximos quando utilizavam suas máquinas
fotográficas; postada no fim do salão, próxima à escada de acesso – responsável pela
ligação entre o térreo e o segundo pavimento – encontrei Ynah, uma das entrevistadas, e
conversamos sobre o som, sobre os DJs, as fantasias. Foram ressaltadas a criatividade das
roupas e a animação dos presentes; depois, a interlocutora dirigiu-se ao bar e, pouco depois,
conversava com casal de freqüentadores. O grupo era acrescido por Nega, da equipe GB,
presente há muito no salão e que encontrara o grupo naquele momento; o grupamento
permaneceu em animada conversa.
Para mim, esse momento permitiu ver a "festa" como propícia ao encontro e não
restrita aos serviços religiosos. As canções e a “festa” promovem a inclusão porque
mesclam certos valores do grupo e interesses individuais: pode-se dizer que a adesão

239
religiosa é fortalecida sem abdicar da diversão, do encontro com amigos, da possibilidade
de ouvir música e dançar. Na "festa" ocorre inversão do definido como profano em algo
orientado para confirmar a integração entre os freqüentadores.
As conversas mantidas, apesar de rápidas, revelaram que os freqüentadores
associam diferentemente a reunião ao entretenimento, ao religioso, ao sagrado e ao
questionamento político. A condição de conexão é dada pela música, com o momento para
a audição de “mensagens” proferidas por componente de alguma congregação. Tudo isso
confere atmosfera peculiar, seja em relação aos serviços religiosos institucionalizados, seja
com o existente na esfera secular. A sua especificidade estaria nas músicas, no contato com
o que entendem ser sagrado, com o que caracterizaria o grupo religioso e, ao mesmo
tempo, na disposição para a diversão.

Retrato de uma fé

Como já citei, durante o trabalho de campo, conversei com 23 dos presentes e pude
perceber a distinção entre eles. Alguns estavam indo pela primeira vez, outros há um ano,
outros cerca de três anos e aqueles assíduos há seis anos. Muitos eram oriundos de
municípios vizinhos como Belford Roxo, Duque de Caxias, Nova Iguaçu e São João de
Meriti, localizados na Baixada Fluminense. Há também os moradores de bairros como
Méier, Centro, Acari, Jacarepaguá e outros. Muitos dos que vão à "festa" têm ensino
médio e graduação completa. Desses 34,8% cursaram o ensino médio, 17,4% concluíram a
graduação (pedagogia, análises de sistema, música e turismo), 4,3% possuem o ensino
fundamental e 43,5% não responderam. Parte dos entrevistados revelou ter tomado
conhecimento da atividade via programa de rádio, mas foi o contato pessoal o modo
preponderante na divulgação.
Existe consistência no tocante ao registro dos eventos, não somente pelo tempo de
realização, mas decorrente da manutenção de antigas e de recentes inscrições. Isso contribui
para desenhar a “festa” como propiciadora da interação. Nesse sentido, 21,8% estariam
marcando presença entre 1 mês e um ano; 21,8% pela primeira vez se dirigiam à “festa”; os
mais antigos, que oscilam entre quatro a seis anos, perfazem 17,4%; 13 % voltaram-se aos
eventos há três anos. O total de presentes há dois anos é de 13%; e 13% não responderam.

240
Antes de entrar no clube, nos locais das "festas", é possível abordar as pessoas e elas
falam, mesmo ansiosas para entrar e dançar. Isso talvez aconteça porque há compromisso
entre os evangélicos de ser a fala, o “testemunho”, eficiente instrumento de proselitismo.
Essa disponibilidade foi importante para coletar parte dos dados e ter conhecimento da
diversidade do público – alguns são de igrejas históricas e (neo)pentecostais. Há
freqüentadores convertidos há pouco tempo, outros de famílias evangélicas e outros têm
inserção em ministérios em igrejas nas quais congregam. Do Projeto Vida Nova de Irajá
foram inquiridos 17,4%; 13% são da Igreja Batista; 13% de membros da Assembléia de
Deus; 13% da IURD; da Igreja Nova Vida seriam 8,7% de depoentes; 4,4% da Batista
Renovada; da Comunidade Zona Sul encontramos 4,4%; 4,4% de filiados da Igreja
Adventista; 4,4% da Igreja Quadrangular; 4,4% são pertencentes da Comunidade Graça e
Verdade; 4,3% para a Metodista e Igreja Evangélica Pentecostal Cristã. Isso demonstra a
heterogeneidade dos freqüentadores de atividade voltada a atingir certo segmento dos fiéis
evangélicos.
Caso sejam confrontados, os dados revelam o predomínio de neopentecostais,
seguidos por pentecostais e históricos, respectivamente. A presença de membros de igrejas
históricas (batistas e metodistas) pode ser entendida em virtude de lideranças caminharem
em direção à renovação com ênfase no Espírito Santo como, por exemplo, o Encontro
Nacional de Louvor Profético (ENLP), surgido na Igreja Metodista e dirigido por pastor da
mesma denominação. Talvez a organização de atividades alocadas na periferia do meio
evangélico permita indicar a proximidade entre as propostas de “festa” e os
neopentecostais. Esses formulam e reformulam ações, estabelecem opiniões, oposições e
diálogos. Então, igrejas surgem decorrentes de rupturas, nem sempre por iniciativas
tomadas a partir de poder centralizado, mas, às vezes, reveladoras de carisma.

Causas para ir à “festa”, dançar e cantar

Os entrevistados disseram e demonstram ir às "festas" por causas diversas e suas


falas revelam as diversas maneiras de entender e atribuir sentidos aos empreendimentos. A
incessante música, em alto volume e com efeitos especiais, figura como o carro chefe de
algo orientado para atrair e reter os presentes.

241
Carlos, dançarino de break dance, convertido à Igreja Batista, solteiro, residente em
Belford Roxo, ex-freqüentador de “baile funk”, há 10 meses vai à “festa”; ele exemplifica a
importância de tais eventos e revela como a fé é vivida:

Porque o jovem cristão ele nunca tem lugar pra sair. Ele sempre fica
sexta, sábado e domingo dentro de casa. Às vezes, não tem culto... Pô,
você está acostumado a sair num baile e aí fica meio ocioso. Então, eu
fiquei sabendo pelos meus amigos que comentaram e eu vim pra cá.

Sobre o lugar, afirma ser:

O melhor lugar para o jovem esta porque quando eu tava lá fora eu nem
entrei, mas eu sei que aqui não rola; quando eu tava lá fora... sei que rola
muita droga e o cara não tem muita personalidade ... vai muito pela água
dos amigos. Inclusive eu mesmo fui um, mas graças a Deus conheci o
break dance e saí dessas paradas.

Ynah, graduada em Turismo, 24 anos de idade, negra, solteira, trabalha em empresa


de telemarketing, residente em Irajá, é assídua freqüentadora de “festas”; acompanha o
empreendimento da equipe Gospel Night há sete anos. Então, a depoente diz ir à “festa” por
ser:
Um motivo mais do que maravilhoso pra encontrar todo mundo que eu
amo e todo mundo que tem andado comigo durante todo esse tempo. O
pessoal do gospel, do charme, a Nega, o Serginho e outras pessoas que a
gente só se encontra – até porque a gente mora longe um do outro – então
a gente não tem muita forma de se ver. Então, a gente já sabe que nestas
festas a gente vai encontrar a maioria das pessoas, e é muito bom. E a
gente sempre que se encontra fala, “caraca, quanto tempo! A gente
quando começou não ia imaginava que ia dar nisso tudo, olha quanta
gente”. Sempre que eu me encontro com Marcelo, do charme, uns
meninos famosos, que está lindo, maravilhoso. Eu chamo nós porque foi
uma gama de pessoas que se insurgiram contra o tradicionalismo. O
próprio tradicionalismo das igrejas. Então, já foi tema de debate em
rádio. Já foi tema dentro da própria igreja, nos grupos jovens... É certo ou
não é: “ah, porque jovem evangélico não pode chegar em casa de
madrugada”. E a gente sempre foi contra isso de certa forma; contra entre
aspas. Porque passamos as madrugadas fora de casa, porque a gente gosta
desse tipo de música. E assim é um ritmo fora do tradicional. É um ritmo
que assusta. É um ritmo diferente da Cassiane e outros nomes
evangélicos que as pessoas estão muito acostumadas. Por exemplo, dar
num Kleber Lucas. Então, são músicas muito diferentes. Muito parecido
com o que a gente ouve no mundo secular; as igrejas, muitas fecharam as
portas, teve problemas porque o primeiro baile foi feito lá na Renascer,

242
em Jacarepaguá. Aí os meninos tiveram que sair de lá, aí tiveram que
fazer em Caxias, mas depois também não deu. Aí eles começaram a
procurar lugares que não fossem bater de frente com isso, que não fossem
na igreja. Então eles buscaram os clubes e as casa de festas 220.

Lena, outra freqüentadora, solteira, ensino médio, negra, funcionária pública,


moradora no centro da cidade, 25 anos de idade, visualiza a “festa” do seguinte modo:

No sentido evangelístico, é trazer os jovens para Cristo e, quem já está


em Cristo, tenta se alegrar e se divertir, dançar com Jesus.
Márcia - Isso é colocado o tempo todo, é enfatizado.
Lena - Para os jovens ? É que você pode se divertir, você pode ... Por
quê? Porque o baile não evangélico, ele tem a intenção de quê? De as
pessoas se encontrarem, fazer amizade, beber, fumar, prostituição... têm
vários objetivos e o objetivo da festa gospel é esse: é você encontrar
amigos, encontrar amigos de outra igreja, comunhão, lazer, adoração,
evangelismo ... Tudo isso.

Yara, outra participante, oriunda de família evangélica, solteira, graduada em


pedagogia, professora, branca, integrante da Igreja Quadrangular, residente em Realengo,
25 anos, há quatro anos circula por “festa”; diz ter sido convidada por duas amigas. Ao ir
pela primeira vez esperava encontrar:

Bastante pessoas de outras igrejas, denominações e me divertir porque é


uma festa, né? Pra dançar, me divertir e encontrar pessoas.
Márcia: Por que achou estranho?
Yara: Porque ... É meio que um tabu, né, no meio evangélico. Porque...
Por causa das danças, das danças e tal. Um tabu por causa da dança por
quê? Os evangélicos aqui no Brasil.. Pra você ver, tem evangélico na
Argentina que bebe cerveja, lá é normal. As tradições aqui no Brasil ... A
igreja que veio pra cá... As primeiras igrejas que vieram pra cá foram
muito tradicionais: Assembléia e tal. Então, não tinha esse negócio de
evangélico dançar e tal. Agora, como é uma festa que não tem drogas,
não tem álcool, todo mundo que tá ali é gente como a gente. É
evangélico. Então, faz a gente se sentir bem.
Márcia: E a diversão? Como é se divertir na festa? Como era antes?
Yara: A gente se diverte, como eu disse, com as pessoas da sua tribo, né.
Como eu disse, ali tem menos ... Vamos dizer: os pais e as mães dos
jovens que são evangélicos. Então, na igreja, a preocupação deles e deles

220
O leitor encontrará passagens no depoimento que podem ser explicados para alcançar uma leitura mais
consistente. Quando a depoente fala no “pessoal do gospel” ela compreende ser o meio evangélico possuidor
de diversas musicalidades e o “gospel” é algo peculiar. Ele tem referência cultural religiosa bem marcada: as
igrejas negras norte-americanas (abordado anteriormente). Assim, ela distingue os cantores de “louvor”
Cassiane e Kleber Lucas daquilo veiculado nas manifestações aqui tratadas.

243
começarem a ir para um baile e se viciar; como tem muito por aí. Ali não.
Ali você vai se divertir com pessoas como você que não vai ter droga,
não vai ter bebida, não vai ter prostituição, essas coisas.

Maria conta dois anos de participação em “festa”, é convertida, membro do Projeto


Vida Nova de Irajá; Ivo, há três anos marca sua presença nos locais onde os promotores
atuam, morador de Belford Roxo, também participa do Projeto Vida Nova de Irajá; Luís,
também há três anos vai aos eventos e é da Igreja Evangélica Pentecostal Cristã. Eles foram
ouvidos e observaram o seguinte:

Ivo: É muito importante, porque a gente pra poder curtir um ambiente


desse evangélico é muito difícil, entendeu? Conheço várias pessoas que
vem de vários lugares para curtir o Gospel Night.
Márcia: Por que é difícil?
Ivo: Não é uma coisa comum de ser realizada, principalmente pelo
tamanho que é o Gospel Night.
Márcia:Antes de vir para cá, o que fazia no tempo livre ?
Ivo: Como não tinha o Gospel Night a gente tentava reunir os amigos e
“poxa, vamos lanchar”. Simplesmente ir ao cinema. Nós evangélicos não
temos muitas opções de sair à noite, de poder sair... como os não
evangélicos que têm várias casas de shows ao mesmo tempo. Pô, isso
aqui foi um benefício muito grande pra nós que Deus abriu pra gente,
poder expor, dançar, curtir a noite na presença Dele, adorando Ele, em
espírito e em verdade.
Márcia: Mas se é para ouvir música e dançar não poderiam ir a qualquer
outro lugar? Qualquer outro clube? Qualquer outro baile?
Ivo: Depende...
Luís: Olha só. Nós seguimos uma religião. Nós somos evangélicos e a
gente, por ser jovens, a gente não gosta de um sábado à noite estar em
casa assistindo Zorra Total e A Praça é Nossa 221. A gente gosta de sair
também, gosta de se divertir. E pra gente não se misturar, porque o
mundo tem uma visão da gente, daquele povinho certinho. Aí, se por
acaso, estiver numa festa do Olimpo 222 agora vão dizer: “Poxa, aquele
cara é crente’, entendeu? Aqui é um espaço evangélico, onde todo mundo
é evangélico, a Palavra que a gente ouve aqui é a mesma coisa que a
gente ouve na igreja que nós freqüentamos. A gente aqui ... O pessoal
tem o mesmo pensamento, a mesma crença e se torna um ambiente legal
porque ... é tudo de cara limpa, não tem aquela coisa... Não rola bebida.
A gente não gosta. Eu, pelo menos, não sou contra, mas eu não gosto pra
mim. Não é porque o pastor falou, mas porque a minha pessoa mesmo,
Cristo tocou meu coração, não gosto disso. Então, se a gente começar a ir
pra outro tipo de baile ou qualquer outro ambiente que não seja
evangélico alguém que nos conhece vai ver e vai dizer: “ Pô, aquele cara

221 Programas humorísticos veiculados por canais de televisão no sábado à noite.


222 Casa de show localizada em Vila da Penha, Zona da Leopoldina da cidade do Rio de Janeiro.

244
é crente? Tá nesse lugar”? Aqui, entendeu, é um pedacinho da igreja, é
uma continuação da igreja.
Márcia: Como uma continuação da igreja?
Luís: Porque, quando a gente vai na igreja, é um ambiente um pouco
mais diferente. É um ambiente um pouco mais formal, vamos dizer
assim, cadeira, banco... Aqui não. Aqui a gente tem um ambiente um
pouco mais livre, entendeu?
Márcia: Como assim?
Maria: Tem mais liberdade pra se soltar, você pode conversar porque
geralmente na igreja você tem que ter reverência, você não pode bater
papo dentro da igreja. Não que você não possa se comunicar, mas,
enquanto tiver um culto, você tem que prestar reverência. Aqui não. Já é
pra isso. É um ambiente que você pode adorar a Deus, que você pode
ouvir a Palavra, mas, ao mesmo tempo, se divertir com moderação,
entendeu, dentro da presença de Deus, conhecer outras pessoas,
entendeu? É um ambiente onde todo mundo se reúne com um objetivo
só: ouvir a palavra de Deus, receber algo do Senhor, mas também se
divertir e passar alegria um pro outro.
Maria: Porque, antes de eu me converter, eu sempre fui... Eu era
funkeira. O que acontecia? Eu ia pro baile com uma intenção de me
divertir, de zoar, de fazer e acontecer. Hoje em dia a diferença que tem
entre antes e depois da transformação, é a seguinte: eu venho com o
objetivo de ouvir algo do Senhor, de me encontrar com os meus irmãos e
me alegrar na presença de Deus sem precisar beber, sem precisar cheirar,
sem precisar fumar, sem precisar fazer coisas que não convém aos olhos
de Deus, entendeu? Então, qual é a diferença? A diferença é que antes eu
dançava, como ele falou que acontecia; tudo o que eles falaram hoje é
verdade. Eu dançava para me satisfazer, eu tinha planos, eu tinha sonhos
e não tinha ninguém para adorar, não tinha ninguém para referenciar. Eu
não ia pra poder te rever porque estava com saudade dele ou dele, pra
brincar. A gente ia pra brigar, pra zoar, já era certa aquela coisa. Hoje em
dia já é diferente. A gente vem, viemos pra cá pra nos divertir, pra adorar
a Deus. Hoje em dia é diferente. Até o meu dançar, quando eu danço, eu
sinto a presença de Deus. Deus falando comigo. Quando você dança,
você também tá adorando Deus, como Davi. Davi dançou porque foi o
modo dele expressar sua alegria. Só que a diferença é que Davi tirou a
roupa e nós não podemos tirar, mas Davi dançou e Mirian também
porque era o modo de adorar a Deus com o seu corpo. Porque o seu
corpo é o templo do espírito santo, a Bíblia diz. Então, quando você
levanta as suas mãos você está adorando, quando você dança você
também ta adorando. A diferença é essa.

As entrevistas evidenciam a relação entre o entretenimento, a audição musical, a


dança, o encontro com os amigos – amizades provenientes de vizinhança, da igreja, do
ambiente virtual ou da “festa”, mas também indicam diferenças entre os freqüentadores e
caracterizadores do empreendimento. Esse adquire a dimensão de sagrado com o
pronunciamento do pregador, as “mensagens” por ele proferidas, as músicas tocadas

245
porque, ao lado de coisas, sons e palavras também passam a ter esse caráter (Durkheim,
1989: 369).
A especificidade da “festa” compreende a proximidade e o distanciamento com
aquilo próprio da ordem religiosa. Apesar da ênfase em demonstrar ser algo diferente,
quase insurreição contra a “tradição”, os entrevistados não consideram estabelecer
polarizações com o presente no meio religioso: a oposição com o considerado do “mundo”
é mantida. Nesse sentido, o “baile funk”, o uso de substâncias químicas e a liberalidade
sexual surgem como algo a ser afastado por ser próprio da esfera oposta, do “mundo”.
Isso compreende não somente a oposição entre deus e demônio, entre
comportamento eticamente dirigido e outro pontuado por excessos, para alguns,
dilapidadores da força e da razão humanas. Sem oposições absolutas, o arranjo apresentado
permite a percepção de estar inserido no grupo para diversão e para cultuar. O corpo e a
música são tomados como dimensões específicas do sagrado, sentido e vivido
diferentemente. Transparece outra noção de atividade religiosa e principalmente são
atribuídos poderes ao fazer juvenil, como explicitado por Carlos ao afirmar “mas graças a
Deus conheci o break dance e saí dessas paradas”; do mesmo modo, Maria ressalta “a
gente ia pra brigar, pra zoar, já era certa aquela coisa. Hoje em dia já é diferente. A gente
vem, viemos pra cá pra nos divertir, pra adorar a Deus”. Na fala de Maria transparece a
distinção entre a “festa” e o “baile funk” como o similar profano com a procura do prazer
alcançado com a integração e o reconhecimento de fonte de poder. Esse difere do prazer
individual e caracterizador do ambiente de desordem moral que, para ela, está associado ao
“baile funk”. A participação religiosa e o lidar com o sagrado ocorrem diante de
possibilidades inscritas pelos próprios crentes, que dosam os princípios institucionais e suas
experiências.
Foi explicitado ser nas edições da “festa” difícil ver alguém parado; todos dançavam
sozinhos, em dupla, em grupo, executavam coreografias mais simples ou mais elaboradas.
Além da dança, eles interagiam com o DJ, com o cantor, acompanhando as músicas, fosse
cantando, fosse dançando. E todos com os quais conversei destacaram os eventos como
algo importante por ser atividade social e, ao mesmo tempo, religiosa. O que é dito por
fiéis dançarinos e ouvintes que deslizam pela pista de dança? Muitas falas foram proferidas
e nelas razões ressaltadas para ir aos encontros. A partir daí, construiu-se um ranking das

246
causas mais citadas. Ele foi formulado ao contemplar o primeiro registro de cada
entrevistado, evitando-se repetições que contribuíssem para entendimento equivocado.

Ranking 1: Por que ir à “festa”?

Causas % casos
Diversão 26 6
Ouvir ‘mensagens’ 17,4 4
Encontrar amigos 13 3
Dançar 13 3
Ouvir músicas 8,8 2
Segurança 4,4 1
NR 17,4 4
100 23
Total

São vários os elementos apresentados e indicam a constante reelaboração do sentido


por não ser definido somente por promotores. Esses podem e apresentam diversas
construções, mas os freqüentadores visualizam algo além dos aspectos da evangelização,
do entretenimento e do político - conforme indicam os componentes da equipe Soul de
Cristo.
Anteriormente, foi visto como os apreciadores de “música gospel” percebem a
música. Ela conduz a estados individuais de “alegria”, de “emoção”, de alcance de
“espiritualidade” e também de introspecção do ouvinte. Parece não ser esse o caso dos
consumidores de black music gospel. Alguns vão com a finalidade de ouvir “mensagens”;
outros entendem ser a dança e a audição musical preferíveis; a diversão e o encontro com
os amigos são também elementos recorrentes. É defendida a ida à “festa” por ser lugar
seguro no qual não haverá brigas ou transações de substâncias consideradas nocivas –
álcool, cigarro e cocaína etc.
Pode-se observar o ato de “ouvir mensagens”, dita por componentes da equipe
organizadora, como registro significativo e confirma ser a “festa” tomada a partir da

247
concepção do grupo religioso. Portanto, é também concebida como canal com o sagrado.
Os registros viabilizam leituras distintas. Diversão é o ponto mais citado para 26%
dos freqüentadores. Há a confirmação e fortalecimento desse aspecto quando ocorre a soma
de 13% daqueles que vêem a “festa” propícia ao encontro com os amigos. Portanto, 39%
seriam suficientes para atribuir esse sentido como o definidor do empreendimento. Porém,
outra leitura é possível. Vejamos. Como a música é reconhecida como meio de transmissão
de “mensagens” e, por conseguinte, a dança passa a ser vista como meio de “adoração”,
pode-se relacionar a dança com 13% entre os depoentes, ouvir música com 8,8% e ouvir
“mensagens” tem 17,4%. O resultado é da ordem de 39,2%, que indicaria ser o religioso e o
sagrado também orientadores da adesão dos freqüentadores.

As informações permitem ver como a música e a "festa" são concebidas e fazem


delas extensão da atividade religiosa conforme suas experiências e expectativas. Como
atividades religiosas, também são marcadas pelo entretenimento, ampliando o leque de
participação, apesar das diferentes inserções religiosas. A "festa", ambiente privilegiado
para veicular música, para dançar, para encontrar amigos; também a proximidade física –
os contatos no salão, no bar, no banheiro, na rua - promoveria a sociabilidade223 entre
grupos juvenis evangélicos ou não. Além de qualquer objetivo ressaltado sobressai
interação na qual e com a qual possam se sentir iguais: dançarinos e ouvintes prontos ao
intercâmbio e ao diálogo, que, portanto, suplantam as barreiras espaciais e denominacionais
- vinculações que permitiriam estabelecer distinções no interior do campo religioso.
A compreensão das atividades e de tudo relacionado a elas pode contemplar o
grupo de freqüentadores; daí entender a dança, a “festa” e os efeitos sonoros que integram
os empreendimentos. Os freqüentadores demonstram ser a produção musical e a “festa” não
definitivamente acabadas, pois muito pode ser arregimentado para compor a “alegria”, a
“emoção”, para, como afirma Ivo, “curtir a noite na presença Dele”. Essa condição decorre
porque a todo instante, e pode ser encontrada em outros grupos religiosos, elementos e
situações são reinterpretados e constituem vias de fé (Amaral, 2000).

223 Simmel (1983) destaca a sociabilidade como uma interação não direcionada por “conteúdos”, e, portanto,
afirma: “...visto que é abstraída da sociação através da arte ou do jogo, a sociabilidade demanda o mais puro,
o mais transparente, o mais eventualmente atraente tipo de interação, a interação entre iguais. Devido a sua
verdadeira natureza, deve criar seres humanos que renunciem tanto a seus conteúdos objetivos e assim
modifiquem sua importância externa e interna, a ponto de se tornarem socialmente iguais ...”

248
Os depoentes indicam a existência de diálogo constante com as configurações
religiosas e culturais; a partir daí surgem derivações, recriações de ser religioso e de como
“lidar com o sagrado” (Sanchis, 1995:134; Brandão, 2004:7); as falas e as opções revelam
isso, indicam para o fluxo de valorizações capaz de redefinir o lugar do bem e do mal. Isso
seria próprio de época caracterizada não pelo fim, mas pela reformulação no trato com a
tradição, com o institucionalizado a partir da ação criativa dos fiéis (Sanchis, 1995; Velho,
1997; Brandão, 2004). A “festa” e a black music gospel não fomentam o levante, não há
complô contra a tradição, mas criativas composições com elementos de origens variadas
(Sanchis, 1995). Também por isso muitos vão à “festa” e vibram com as canções.
Os deslocamentos de ordem geográfica e simbólica (entre distintas áreas da cidade,
do culto à "festa", da razão ao êxtase), marcadores da passagem do profano ao sagrado, do
entretenimento ao político, do entretenimento ao religioso e ao sagrado, demarcam as
qualidades reforçadas, neutralizadas ou minimizadas. Isso pode ser evidente nos
empreendimentos dos promotores e também no agir do púbico. Os movimentos de saída de
casa ou do culto para o clube marcam alterações e pouco tem a ver com o que ocorre
quando se chega a casa ou ao local de trabalho. Nos deslocamentos realizados por
freqüentadores, algo ocorre e fica expresso quando os grupos são formados e acontece a
entrada no salão. Fica a pergunta: o que é buscado por todos? Nesse momento, o público
pode afirmar ser possível encontrar o sagrado, sentido para a existência, confirmação de fé
e estabelecimento de amizades. Trata-se de algo nada concreto e pode ser encontrado entre
aqueles com os quais se possui ou seja possível constituir laços de afeto e de fé por meio da
crença (Da Matta, 1979).

“Jovens” e procuras

Nas “festas”, o número de participantes pode variar, tendo-se centenas a cada noite.
Alguns são oriundos de famílias evangélicas, outros convertidos, outros estiveram afastados
e retornavam ao grupo de crença. Vê-se a diversidade dos freqüentadores e como as
atividades são por eles percebidas.
A questão passou a ser outra, porém nada distante do exposto até o momento. Ao
observar a diversidade própria ao grupo de freqüentadores, passei a indagar aos depoentes

249
sobre o uso do tempo livre. As respostas foram variadas; as mais recorrentes seriam a ida
aos bailes, aos shows de cunho evangelizador, a presença nas igrejas e visitas aos
domicílios de amigos. As respostas permitiram construir o ranking das atividades.

Ranking 2: Uso do tempo livre

Atividades % Casos
Ir às igrejas 21,7 5
Baile funk 13 3
Ficar em casa 13 3
Shows evangélicos 4,4 1
Estudar e trabalhar 4,4 1
Tocar em conjunto musical 4,4 1
Ficava na rua 4,4 1
NR 34,7 8
Total 100 23

O tempo livre pode estar comprometido com atividades diversas, e apesar do


registro de 13% em “baile funk” e 4,4% voltados à permanência nas ruas, termina por
serem recorrentes respostas vinculadas ao âmbito religioso. Nesse caso, 30,5% estariam
envolvidos com idas aos templos, presenças em shows evangélicos e participações em
conjuntos musicais vinculados ao meio religioso. Estudar teria escolha inferior ao registro
ida ao “baile funk” e equiparado ao item “ficar na rua”. Portanto, o entretenimento não
ficava ao acaso, mas vivenciado no disposto e presente em áreas populares: o “baile funk”.
Ainda assim, as opções no âmbito religioso eram vivenciadas como integrantes ou
propiciadoras de diversão, pois escapariam da formalidade do serviço cultual.

A pesquisa Perfil da Juventude Brasileira revela que 18% dos jovens entrevistados
utilizam o tempo livre para ir a bailes, outros 18% dirigem-se aos serviços religiosos e 10%
vão a shows musicais, predominando as atividades incentivadoras de contatos diretos entre
os jovens. Nesse sentido, Brenner et al (2004:175-214), ao analisar o uso do tempo livre e
as alternativas culturais voltadas aos grupos juvenis, observam ser o tempo livre entendido
além da perspectiva de entretenimento. Dá-se a construção de relações sociais que

250
viabilizam, devido aos interesses, o atendimento de necessidades, a efetivação de vínculos,
seja de ordem espiritual, seja social.
Carlos, Yara, Maria, Luís e Ivo colocam outro dado sobre a pergunta apresentada.
Entendem ser a “festa” alternativa de diversão, lugar no qual o jovem evangélico pode ir e
encontrar os amigos. Esse ponto também é sustentado por promotores que colocam
implícita ou, caso queira, explicitamente a percepção sobre os jovens e sobre a juventude.
Ao afirmar: “as baladas e shows de música gospel foram a solução para trazer o jovem de
volta à religião” 224, o pastor e DJ estabelece ser o “jovem” marcado por modo não
convencional de vivenciar o âmbito religioso. Também os responsáveis por efetivação da
“festa” da GN apontam ter por finalidade oferecer algo “descontraído e sincero para os
jovens” e, assim, “... as pessoas possam dançar e receber ministrações através das mesmas
(remixes), músicas internacionais e nacionais, fazendo uma programação jovem e
divertida 225”. Não somente os componentes dessa equipe, mas o de outras acenam com
visão acerca da experiência religiosa juvenil. Ela é apresentada como marcante na vida por
ser eficaz força de interação (Novaes, 2004; Santos e Mandarino, 2005).
Nas afirmativas dos promotores, “juventude” e “jovem” não são condições definidas
somente a partir do aspecto biológico, mas são apresentadas a partir de situações
consideradas comuns como, por exemplo, características comportamentais e de gosto. São
definidores da atuação no mundo e capazes de determinar o produzido, o oferecido e como
será feito 226. Trata-se de saber como um ciclo da vida é constituído e vivido (Abramo,
2005: 42-44), pois “jovem” e “juventude” são categorias sociais aplicadas para definir
coisas próprias de etapa da vida, diferente da infância e da vida adulta, concebidas como
naturalmente definidas. Desse modo, anulam-se as peculiaridades históricas e as condições

224 Semerene e Cunha – “O DJ é o meu pastor”, revista Capricho, 30/11/03 p. 38-41.


225 Ver: www.gospelnight.com.br, acessado em 15/02/05.
226 Pensar e falar sobre os “jovens” e as “juventudes” presentes no meio evangélico não são aspectos
restritos aos organizadores de eventos musicais. Diversos entrevistados falaram sobre o tema e ele está
presente entre líderes e leigos. Um exemplo pode ser dado pela reflexão de uma “professora de Escola
Dominical”, da igreja Projeto Vida Nova de Irajá – responsável pela escola de samba que desfila no carnaval
carioca. Muitos freqüentadores de “festa” são oriundos dela como também alguns envolvidos com o evento
na posição de organizador. A “professora” entende a “juventude” como “estado” marcado pela “alegria,
entusiasmo, beleza e sonhos” porque o jovem “é aquele que vive em novidade de vida”, podendo nunca
envelhecer caso não seja perdido o “encanto pela vida”. Maiores detalhes ver: Cristina Fontana – “Juventude
não é um período da vida”, disponível em http://www.projetovidanova.com.br, acessado em 07/08/05.

251
de classe que contribuiriam para evidenciar as diferenças e particularidades de alguém ou
de um grupo (Mauger, 1989).
Existem líderes que entendem a necessidade de a igreja acompanhar e participar das
peculiaridades de cada época da vida e, para tanto, precisam englobar o entretenimento em
sua ação. Com isso, os “jovens” devem ser visados, principalmente aqueles com
dificuldades para acessar as ofertas culturais e de diversão – teatro, cinema e shows, por
exemplo. A iniciativa das igrejas passa a ser vista como:

Muito interessante, muito interessante porque o jovem tá podendo ter o


seu espaço, tá podendo se expressar, tá podendo botar a sua adrenalina
pra fora, então, isso é muito interessante. Eu acho extremamente
produtivo e proveitoso aquilo que eles estão fazendo.

Não somente se explicita a missão evangelizadora, entende-se que os grupos juvenis


e os “jovens” passem a compor o cenário religioso. Este, em contrapartida, deve contemplá-
los em diversos instantes e necessidades, sejam de ordem cultural e religiosa. Nesse
aspecto, “jovem” e “juventude” são dois termos construídos a partir de visão pautada na
ausência. Eles definem momento da vida marcado por necessidades que devem ser
correspondidas institucionalmente com a organização de atividades direcionadas também
ao divertimento. Tal posição é compartilhada por L´Ton e demais promotores de “festa”.
A pesquisa realizada sobre o “funk” dirigido aos evangélicos, e que resultou em
minha dissertação de mestrado, registrou que as atividades elaboradas ao redor da música
traziam concepção acerca dos jovens, principalmente aqueles vistos como o alvo dos
objetivos de cantores e dirigentes de grupos juvenis. Para esses, havia conjunto de
elementos orientadores das ações direcionadas aos jovens ou à juventude de baixa renda.
Entendiam ter inscrição no espaço público e na mídia com a prática de certas incursões
criminosas, envolvimentos em conflitos e/ou fragilidade diante do nomeado como o mal:
uso de drogas, criminalidade e abusos diversos. Isto poderia decorrer por residência em
áreas consideradas perigosas ou participação em atividades ligadas a traficantes de drogas.
Os jovens e as juventudes eram vistos como “perigosos” ou integrantes de atmosfera
nociva. Para isso, práticas musicais e lúdicas eram incentivadas restritivamente e
integravam atividades ou momentos nas igrejas – o “culto da juventude” ou os ensaios da
banda. (Pinheiro, 1997 e 1998).

252
Quando se fala em música e em “festa”, as noções de “juventude” e de “jovens” são
diferentes daquelas apresentadas por quem produz “funk”. O “perigo” divide lugar com
outras visões, principalmente procura favorecer práticas incentivadoras da dança. A alegria,
o despertar da consciência, o fortalecimento de alianças, o prazer e a identidade são
aspectos citados. Isso não quer dizer que a figura do perigo esteja ausente, mas ela pode
estar alocada em outra dimensão, como no “mundo” (não envolto por concepção de
sagrado) ou na idéia de alguém invadir a reunião e introduzir modalidades de ameaças.
Contudo, não é o perigo a característica dos “jovens” e da “juventude”, pois ela
pode ser dada pela alegria de viver, por procura de diversão, de interação e de participação.
Porém aí o perigo ressurge. Pois não somente o que vem de fora, mas a curiosidade, a busca
por diversão pode conduzir ao afastamento do grupo religioso, de seu modo de vida, ao
experimentar estilo de vida dissonante.
As formulações musicais, de atividades e fonográficas contemplam o “jovem” e a
“juventude”, e isso instala também outro ponto. Os empreendimentos provocam
mobilização e circulação com variadas relações, interesses, objetivos e gostos.
Diferentemente de associações marcadas por procura de prestígio, de reconhecimento, de
experiências transcendentais ou devido a laços de parentesco (Fernandes, 1998), as
atividades musicais em questão, do ponto de vista do freqüentador, podem revelar outros
elementos: conhecer, fazer amigos e diversão. Para os promotores e freqüentadores, isso
coloca outro modo de participação por combinar, com variada intensidade, o controle sobre
a conduta – com a presença de seguranças e o encaminhamento a grupo religioso – e certo
relaxamento no posicionamento diante de tudo considerado não religioso ou próprio dessa
esfera. Isso é operacionalizado em meio demarcado por constante estímulo dos sentidos
(audição e tato), da inscrição do corpo e do diálogo com outros estilos de vida e com a
clássica imagem do protestante controlado e desprendido de elementos irracionais.

Entre o entretenimento, o estilo e a crítica

Os integrantes do público falam sobre a “festa” e afirmam ter se conhecido ali,


passeando juntos, conversando no ambiente virtual na busca de fazer mais amigos. O tempo

253
livre, parte dele, é dedicado à participação com os amigos em “festas” e em outras
atividades decorrentes daí.
Encontrei diversos freqüentadores firmes em divulgar terem ido à “festa” “para
adorar” a Deus, encontrar e dançar com os amigos. Durante o trabalho de campo, era
comum visualizar a formação e a manutenção de grupos para conversas, danças e risos.
Portanto, os promotores podem enfatizar a questão religiosa, mas há os sentidos dados por
freqüentadores. De acordo com eles, com os quais pude conversar ou observar os diálogos
mantidos na rede virtual, a “festa” é o local no qual o tempo livre favorece o encontro com
o outro, a participação em corpo interativo possível com a música, com a dança, com o riso
e com a fala. Com isso, ocorre a construção de relações sociais e de vínculos diversos
(Brenner et al, 2004:175-214).
Sobre a “festa” e a black music gospel, alguns promotores enfatizam que elas são
eficazes para possibilitar o entretenimento, uma vivência religiosa e favorecer reflexões
pertinentes ao lugar do negro na sociedade brasileira e no meio evangélico. Sobre este
aspecto, algo pode ser dito. Em reunião da SC, vi um grupo de jovens com camisas
portadoras de frases de conteúdo crítico, porém componentes de certa moda urbana.
Camisas semelhantes são encontradas no “baile charme”, realizado na Cinelândia, e em
alguns eventos da GN. Os dizeres ostentados constituíam, aliados a outros sinais, cenário
franqueador de reflexão sobre os empreendimentos e os presentes, interessados também nas
músicas executadas. Ainda há o registro de outros freqüentadores com roupas e acessórios
com as cores da Jamaica e vários sinais indicadores de proximidade com outras iniciativas
nas quais a visão crítica possa ser corrente. Lembro-me de estar na "festa" da SC e
encontrar grupo formado por três rapazes e quatro garotas; os primeiros portavam camisetas
com tais dizeres; perguntei se poderia fotografar o grupo e obtive permissão e logo
estabeleceram organização surgindo a frase: "poder para o povo preto, fé" (anexos VI).
Eles entenderiam a black music gospel e a “festa” tal qual os promotores?
Indaguei se as músicas veiculariam outra mensagem além da evangelização. Os
depoentes ofereceram respostas distintas e indicam aspectos como a diversão e o “louvor”.
Laís, Sidney e Carolina, componentes de pequeno grupo, com idades entre 17 e 21 anos,
estudantes do ensino médio, são integrantes de igrejas como a Adventista, a Assembléia de
Deus e o Projeto Vida Nova de Irajá, respectivamente - há um ano circulam por “festas” -, e

254
afirmam que aplicavam o tempo livre em bailes e em shows evangélicos. Colocaram o
seguinte:

Laís: Uma outra informação que a gente aprende aqui é que nada é do
diabo, entendeu? Por exemplo, a gente ouve pagode, hip hop, rap e não
é do diabo não. Se mudar a letra, colocar um louvor, entendeu, nada é do
diabo.
Carolina: Eu acho também que é uma mensagem importante, justamente
para quem não freqüenta. No meu caso, por exemplo, que não freqüenta a
igreja e que vem aqui, é que você pode estar se divertindo e louvando ao
mesmo tempo, né. Principalmente para quem está de fora, eu acho que a
mensagem mais importante é que você vem e se diverte de forma segura,
encontra gente com o mesmo propósito que você, sai bem daqui e você
tava louvando, tava orando, tava sentindo e assim por diante.
Márcia: Além disso, a “festa” e as músicas possibilitam uma reflexão
sobre a cidade e seus problemas ...
Sidney: A violência, tiros ...
Márcia: É. Vocês percebem isso aqui?
Laís: Não! Esse tipo de preocupação a gente tem a todo momento, mas,
como nós vamos lá para louvar a Deus, nós não vamos louvar a Deus
pensando em problemas, entendeu? Pensamos em soluções que Ele já
deu pra gente, entendeu? Sobre a violência, eu andei até pensando
ultimamente que as festas gospel não podem muito abrir mão da
segurança porque agora essa história de pit boys, excluídos de festas, eles
vão começar a procurar festa pra arrumar confusão, entendeu? Cristão
não é de arrumar confusão, mas se chegar batendo? Como é que vai ser?
A gente não vai poder devolver, como é que faz? Então, eu acho que tem
que ter uma segurança reforçada aqui também, mesmo não tendo pit boys
porque se eles procurarem lugar pra arrumar confusão.
Sidney: Antigamente aqui começava às dez e acabava às quatro e pouca;
agora já passou pra oito exatamente por causa disso.
Carolina: Mas, de qualquer forma, ainda é a forma de diversão mais
segura e pra quem tá em casa esperando você voltar é uma segurança.

O contato com o divino pontua as colocações dos depoentes; no entanto,


demonstram não abdicar da visão de as canções e a “festa” possibilitarem o entretenimento
e a interação. Essas não são coisas separadas do que entendem ser o exercício de cultuar.
Sobre as canções, Ynah diz:

É ótimo. Desde as músicas do tipo, desde as músicas do tipo black são


ótimas. Vários ritmos de vários grupos... são músicas americanas, mas as
letras são sempre voltadas para o gospel. Porque ... Também é muito
importante pra quem vai escutar porque é música americana ela coloca
qualquer música. Ah, todo mundo vai engolir essas músicas. Até porque
no meio secular toca muitas músicas evangélicas que em inglês as

255
pessoas, na maioria das vezes, não entendem. E toca no meio secular e
todo mundo gosta e quando vai tocar no baile todo mundo: “eu já ouvi
essa música na rádio tal”. O baile estava tocando exatamente essa música.
Não sabem que essa música é gospel, foi feita por uma pessoa evangélica.
Não entende a letra.... a preocupação dos meninos sempre foi levar a
música gospel em português ou em inglês. Desde que seja gospel. Tem
assim depois de meia-noite, tem as variações. Aí toca samba, toca rock,
essas coisas. Claramente eu e o pessoal, a gente esfria um pouco nessa
hora. A gente vai lá pra fora, a gente conversa mais. Porque, enquanto a
música esta tocando... a gente não consegue nem falar. Depois a gente
acalma, vai comer alguma coisa, vai conversar. Depois dessa coletânea de
música. Aí a gente já começa a ficar mais devagar.. Aí o Marcelo, ele
volta novamente as músicas mais do soul. Aí a gente volta de novo pra
poder estar mais dançando mais um pouquinho até acabar. Marcelo fala
muito isso. Por ele, ele tocava soul a noite inteira. Mas tem o público que
gosta do pagode. Gostam um pouco do rock, gostam um pouco do techno.
Eu também gosto de um pouquinho de tecno. Duas horas na minha cabeça
eu não agüento. Mas pelo menos uma horinha, uma meia hora... eu
agüento.
Márcia: Você entende que essas músicas fazem parte de black músic?
Ynah: Eu chamo de black music todas as... o rock, por exemplo, ele veio
do Jazz. Black music pra mim é o soul, o rap... todos fazem parte da black
music que a própria palavra fala música negra. Que é esse tipo de som que
surgiu nos Estados Unidos. Em muita igreja era proibido bater palmas.
Então, muitas pessoas ficaram com aquela coisa de que crente não dança.
E era um equívoco. Coisa do passado de muito tempo atrás. De uns anos
pra cá as coisas tem evoluído muito mesmo e teve a concepção, ela pra ser
bonita ela não precisa ser pornográfica, ela não precisa ser vulgar, não
precisa agredir ninguém. Dançar é você expressar com o corpo o que você
está ouvindo com os ouvidos, eu vejo dessa forma. Então, a maioria das
igrejas tem ministérios de dança. Que é uma coisa mais recente. Mas ele
tem se empenhado muito disso.

As características evocadas revelam o alcance de estado de excitação proveniente de


determinadas batidas, modulações e propiciadoras da distinção com o espaço secular.
Tiago, outro entrevistado, integrante da Igreja Batista Renovada, casado, morador da
Baixada Fluminense, 24 anos de idade, ensino médio completo, fala ser a “festa” eficaz ao
entretenimento e ao proselitismo. Afirma freqüentar porque:

Eu vou, foi aquilo que eu te falei, quando mais o tempo passa... O ser
humano tem essas necessidades. A própria Bíblia diz que tem tempo pra
tudo; tem tempo pra plantar, tem tempo pra colher, tem tempo pra
dormir, tem tempo pra acordar, tem tempo pra se divertir também. Então,
assim, eu vejo essas festas como um momento de diversão, pra mim é um
momento de diversão, mas também, em nenhum momento, tiro da minha
mente a necessidade ... tem pessoas ali que precisam ouvir do Evangelho
e que essas e uma das maneiras que eles têm pra pregar esse Evangelho.

256
Gospel Night mesmo teve, um momento lá, o bispo trouxe uma palavra e
várias pessoas ... muitos se converteram naquele momento a Cristo e
outros se realinharam nessa visão de Cristo, de estar em comunhão com
Deus. Isso é muito legal. Acho super importante, mas, no meu caso, eu
vou pelo divertimento, para curtir a música que eu gosto, poder dançar,
poder ver os meus amigos, tá no meio .... que é o meu meio mesmo,
assim, é onde eu me sinto legal, é onde eu tô bem com os meus amigos.
Da mesma forma que eu vou no domingo na minha igreja, em outros
cultos, durante a semana, na minha igreja eu me sinto bem. É meio que
isso. É uma extensão da minha igreja, é onde estão os meus irmãos, onde
está a minha galera, onde está o meu povo mesmo, aqueles com quem eu
me identifico. Já tive a oportunidade de estar em festa no meio secular e
não me identificar mesmo. Estar ali, curtir a música porque a música é
legal e tal, mas não me identificar com aquilo que estava sendo
participado ali naquele momento.

O depoente costuma ir ao “baile” realizado no viaduto de Madureira para dançar, se


divertir e ouvir black music. Para Tiago, o “baile” era local privilegiado porque:

Eu sempre fui muito musical. Então, eu curtia muito música de igreja,


mas só que na época a gente não tinha um leque de oportunidades de
música black dentro da música cristã. Ou era música tradicional ou era
música brega.

Mesmo que haja, entre alguns promotores, a concepção de as músicas e as


manifestações permitirem atuar com a finalidade de conscientizar os participantes acerca
das condições sociais vivenciadas, deparei-me com depoimentos que pontuam outros
sentidos. Em diálogo com o formulado por promotores e diante do estabelecido por líderes
religiosos, sobre o adequado exercício de fé, os freqüentadores apontam para a busca por
entretenimento e de interação. Esses não são percebidos em si mesmos, mas como
componentes de algo especificamente religioso; isto é, os depoentes ressaltam a música, a
dança, a diversão, o encontro com os amigos como momentos de exercício maior de
expressão de fé.
Por mais que os organizadores indiquem a proposta política com críticas ao meio
evangélico no tocante à visibilidade e oportunidade concedidas aos fiéis negros e, por sua
vez, outros destaquem a evangelização como próprios da “festa”, os freqüentadores
inscrevem o entretenimento, a interação, o culto, a excitação e, com isso, estabelecem ser a

257
execução e a recepção musical contíguas ao religioso, como Tiago expõe ao afirmar ser
“uma extensão da minha igreja”.
Então, “divertir” e “louvar” são momentos possíveis e demarcadores de experiência
que não contempla a separação entre essas esferas. Ao adicionar a manifestação de 30,5%
na relação entre o uso do tempo livre e de religiosidade, pode-se visualizar a convergência
entre diversão e culto diante do desmantelamento de posições valorativas pautadas em
polarizações destinadas a definir aquilo próprio ou não ao religioso e ao divino. Talvez o
encontrado no pentecostalismo, capacidade de apropriação, “inovações e transformações”
realizadas individual ou coletivamente, auxilie em outra relação com o sagrado (Brandão:
2004; Sanchis, 1995). Desse modo, as falas de Ynah e Tiago traduzem o espaço musical
como religioso e de identidade a partir da vivência no grupo de “irmãos” ali organizado ao
redor da musicalidade.
De acordo com suas inserções e experiências, os depoentes acenam para aspectos
diversos e indicam como a recepção pode ser distinta do visado por produtores. Os
sentidos, por vezes, são diferenciados e constituem o colocado em disponibilidade para o
consumo (Villas-Bôas, 1995:232,233).
O que falar sobre as canções e a “festa”? Elas atraem significativo público, não
somente, mas marcadamente afro-descendente. No entanto, podem ser concebidas de modo
específico. Os receptores dialogam com as propostas correntes e, antes de tudo, apresentam
permeabilidade. O conhecimento de outras atividades de produção e de divulgação de bens
culturais internacionalizados ou o conhecimento de determinada origem musical e de culto
podem contribuir para conceder outro sentido ao ouvido e visto. Isso ocorre pela não
passividade, haja vista as conexões realizadas com a experiência cotidiana (Jauss, 1993). A
despeito do enunciado por alguns promotores, os depoimentos descortinam suas
experiências, suas informações culturais fundamentais para seus entendimentos 227.

227 Recorro à noção de “horizonte de expectativas” formulada por Jauss. O "horizonte de expectativas"
delineia a recepção interpretativa que se concretiza quando o público recorre a experiências anteriores,
explicitando que toda obra está inserida num processo constante de criação e transformação do "horizonte de
expectativas" e circunscreve a relação da obra com as outras que perfazem determinado gênero, sua
significação histórica, e as obras anteriores do autor. Desse modo, tem-se um "critério de apreciação" não
determinado pela mera sucessão de fatos, mas o reconhecimento, a apreciação de algo que ocorre a partir da
conexão e da comparação entre a obra em foco e as demais que contribui para constituir a experiência do
leitor, do autor e de críticos contemporâneos, anteriores e posteriores.

258
A experiência permite interpretar o apresentado, pois a capacidade e a sensibilidade
não estão dissociadas da cultura de época, fazem parte dela. O homem cria e o faz ao operar
em meio no qual o “instrumento de sua arte” possui reconhecimento e significado ao estar
inserido em época própria, faz parte dela, como também a capacidade e a sensibilidade para
compreender (Geertz, 1998:150, 1765). Pois bem, experimentar não é algo exclusivamente
individual, é também social, por estar inserido em universo de significação compartilhado
por artistas e público. Nesses termos, as experiências dos freqüentadores de "festa", seu
conhecimento musical, sua participação na esfera religiosa, o conhecimento e/ou presença
em “baile funk” ou “baile charme” não são fatores favoráveis para a circulação de visões
distintas. São pertinentes aos cantos, aos empreendimentos e aos deslocamentos por parte
do público, já visto como não homogêneo.
Sobre os freqüentadores, ficarei por aqui, porém alguns pontos sublinhados serão
tomados. Foram deixados para agora porque surgem também nas falas daqueles e não
somente emitidas por promotores. Os entrevistados (os freqüentadores) falaram sobre o que
concederia certa atmosfera à “festa”: a pregação, a música e a segurança. Os três são vistos
por freqüentadores como os zeladores daquilo que coloca a black music gospel e a “festa”
como componentes do meio religioso. Assim, o pregador, o DJ e o colaborador na área de
segurança participam da composição da “festa” e também da música; eles e seus feitos são
igualmente reconhecidos. Os promotores são os mediadores daquilo vivenciado por todos
como religioso, porém o que caracteriza essas posições e faz delas algo fundamental ao
produzir e ao ouvir musical? Como são elaboradas e contribuem para demarcar o
encontro?

Animar e converter – momentos do pregador

Nos encontros caracterizados por execução e recepção de canções, há intervalo para


a realização de oração ou pregação. Um dos integrantes da equipe GN é o responsável em
proferir mensagens aos presentes. Trata-se de Francisco JC, também cantor, integrante da
Igreja Renascer. A partir de 2004, a GN tem contado com pastor da Igreja Renascer. Já a
SC registra a presença de diácono também da Igreja Renascer, negro, convertido, cerca de
25 anos de idade, proprietário de microempresa de reciclagem de cartucho de impressora,

259
que atualmente integra grupo de pagode voltado ao meio evangélico. Por fim, na equipe
GB o pronunciamento fica por conta de L´Ton, também integrante do REP, oriundo de
família evangélica, 25 anos de idade, morador de Vila da Penha. Eles mantêm certa ligação
com as organizações religiosas, haja vista exercer ou ter exercido alguma posição na
hierarquia.
Quem veicula mensagem exerce certa capacidade, já que deve paralisar a dança e
deter a atenção do público durante 10-15 minutos. Para todos, esse momento de
manifestação consolida o reconhecimento de identidade religiosa e não secular ao
empreendimento.
A investigação de atividades programadas e devotadas à execução musical
evidenciou o destaque dado ao pregador. Isto terminou por fomentar três perguntas. O que
é veiculado nesse momento? O que demarca a presença do pregador? Quais as
peculiaridades do DJ e do colaborador? Como os freqüentadores participam?
Apesar das vinculações formais dos promotores, seja como fiel, seja como leigo
(por atuar próximo ao dirigente religioso), suas iniciativas aparecem como independentes.
O mesmo pode ser dito acerca daqueles que dividem o palco com os DJs. O tempo
concedido à veiculação de mensagens constitui um dos pontos esperados e de efeito entre
os presentes.
Uma característica dos protestantes está no relevo dado ao "ritual da palavra". Esse
é constituído por sermões, tratados e textos das Escrituras e destinados ao uso cotidiano por
fiéis (Bercovitch, 1988). A fidelidade aos livros sagrados e o saber teológico são elementos
centrais do culto, sendo o último legitimador da posição do dirigente (Rivera, 2001:146).
Qual a importância do sermão?
A prédica consiste em transmitir saber contido nos livros sagrados com a finalidade
de educar os adeptos. A ênfase no discurso pode ser mais acentuada em grupos com
ausência de dispositivos sacramentais e mágicos. O sermão é momento específico,
realizado por sacerdotes, porém leigos podem formular e disseminar mensagens voltadas ao
ensinamento e divulgação de ética peculiar ao meio. Portanto, aquele encarregado da
mensagem pode estar vinculado à esfera tradicional ou a meio independente, laico, com o
qual os seguidores do saber oficial deverão lidar (Weber, 1998:373-376).

260
Conforme a realidade, o pregador não teria sua ação voltada somente à formulação
de prédicas restritas a temas religiosos. Sua atuação pode contemplar aspectos políticos,
sociais e condições materiais da comunidade e, assim, passar a organizar associações
destinadas a atender os membros em vários campos – recreação, falta de emprego e contra a
discriminação (Bastide, 1974:188,189). Pode-se destacar o estilo desenvolvido por
pastores, cuja pregação não pode ser vista independente de gestos corporais, de temas
abordados e do tom de voz. Prédicas sobre moralidade, sobre questões práticas e vida
adequada são pontos presentes e integram a autoridade do dirigente.
Em meio às manifestações dos presentes, os pregadores inscrevem variações de
culto mesmo quando a mensagem do oficiante é proferida após execução musical. O
serviço religioso registrado na Primeira Igreja Batista (Pib) do Rio de Janeiro, dedicado aos
jovens, teve início com a execução de canções, depoimentos de componentes da Mocidade,
por fim, do pastor e depois outras canções. Essa estrutura está presente em outros serviços
os quais tenho presenciado. Nas edições do encontro Explosão Gospel (EG) havia momento
destinado à oração, realizado pela organizadora do encontro, e depois as apresentações dos
concorrentes e de convidados. No tocante à “festa”, não há divergência, pois seu início
também é demarcado por execução musical e em seguida a manifestação de alguém com a
finalidade de falar aos presentes. Nesse caso, o oficiante não precisa ser legitimado
institucionalmente, mas pode sair do grupo de organizadores - como no caso da equipe GN;
ser convidado, como no evento da SC; ou o articulador da equipe também estar
encarregado, como ocorre nos eventos da GB. No caso da equipe GN, o executante da
“mensagem” também atua como animador de programa, dirige as brincadeiras, os jogos, o
cantar e, por fim, veicula mensagens consideradas de teor religioso.
Em outros momentos, essas características não estão concentradas em única
personagem; são encontrados componentes que figuram como apresentador e alguém fica
incumbido de enunciar prédicas e orações. No caso da equipe GB, o articulador pode ficar
encarregado pelo momento de demonstração de fé e pela execução de canções.
Concentrando as atividades ou não, ocorre, como no “funk”, a invenção e consolidação de
tipos relacionados com os trabalhos registrados (Souto, 1997:62), seja no tocante ao campo
profissional, seja no campo religioso.

261
Mesmo em domínio marcado por ações formais na figura de sacerdotes, com seus
estilos, temas e atuações entre os membros, pode-se ter a presença de leigos que cooperam
para a consolidação de atividades e também direcionam sermões aos participantes. Isso
pode ocorrer paralela ou complementarmente ao trabalho do dirigente. No segundo capítulo
foi vista parte da mensagem proferida por Francisco JC – encarregado também da prédica.
Atualmente, a “festa” da GN registra a presença de pastor da Igreja Renascer228. Sua
participação está mais centrada no pronunciamento de mensagens, podendo contar com
mixagens ou com recursos sonoros. Em noite marcada pela apresentação dos conjuntos de
black music gospel Templo Soul e REP, o pastor tomou o palco, passou a gesticular, andar,
balançar o corpo, subir ou minimizar o tom de voz. Desse modo, demarcou o que seria o
ponto alto da noite. Em certo momento do evento, disse o seguinte 229:

Hoje é dia de você, então, declarar: eu preciso me entregar


completamente pra esse amor que vem de Deus. Tem muita gente aqui
que precisa desse encontro. Sabe por quê? Para encerrar o que tô falando.
Tem muita gente que confunde e não sabe o significado da palavra
conversão. Até religiosamente virou uma babaquice “você é convertido”?
E o cara não sabe o que significa isso. Conversão é mudança de direção,
é você está no âmbito da morte e, de repente, você entra num evento
como esse e muda de direção e começa a rumar para a vida. Você ta na
maior deprê porque alguém meteu um pé na sua bunda, tava no chororó ‘
ah, eu não sei o que vou fazer’. Aí você vem numa festa como essa, agita
pra caramba e sai daqui cheio de energia porque encontrou ... Saiu de
casa tava a maior discussão, a maior confusão, a maior baixaria, os seus
pais não se entendem. É a maior loucura a sua casa, você entra aqui e a
paz de Cristo está com você e você sai daqui cheio de reconciliação. É
essa conversão que to dizendo pra você. Hoje você tem que sair daqui
convertido e esse papo de você ta indo à igreja não significa nada, xará.
Porque, às vezes, você freqüenta um grupinho X ou A; por que, às vezes,
você ta no meio de uma galera, da igreja mesmo, mas você não tem uma
experiência profunda de amor. Não existe conversão, mas um desrespeito
com o declarante e como as cadeias estão quebradas ali. E você vai sair
dali com uma experiência de conversão, não pra mim, nem comigo, não
uma conversão religiosa, farísaica, não uma religião cheia de dogma,
cheia de preceitos. Uma conversão de você mesma declarada a si: ‘eu não
posso mais dar passos em direção ao caminho que tenho escolhido; eu
não posso mais dar passos em direção a essa loucura que tenho
experimentado, está na hora de um basta’. Então, xará, eu digo pra você,

228 Talvez a presença de um dirigente religioso possa ser atribuída ao relativo afastamento de Francisco JC
para a divulgação de seu CD solo. Em 2004, entrei em contato com ele e soube do investimento destinado à
divulgação de seu trabalho, apresentando-se em outras cidades e estados.
229 No site da equipe, pode-se ver a participação do pastor e parte da “festa” com a edição preparada por
promotores. Ver: www.gospelnight.com.br, acessado em 07/09/05.

262
com toda autoridade que Deus tem colocado sobre a minha vida. Hoje à
noite é a sua hora...

No evento da SC, o diácono da Igreja Renascer realiza a pregação e afirma:

Estamos aqui, nesse evento maravilhoso, mas o que eu tenho para lhe
dizer, meu irmão, que você não está aqui à toa. Vocês estão aqui porque
Deus tem uma ação em suas vidas. Vocês podem até estar pensando
assim: Pôxa, lá vem aquele cara querendo nos convencer”. Não, irmão!
Eu não vim aqui para oferecer uma religião. Porque a religião não leva
ninguém a lugar nenhum. Muito pelo contrário, a religião faz o homem
entrar dentro de um avião e voar em direção a um prédio gigantesco. A
religião faz o homem colocar uma bomba no próprio corpo, se matar e
matar várias outras pessoas com ele. A religião faz uma pessoa, em
determinada época do ano, sair cortando seu próprio corpo para ficar
livre dos pecados. Eu não vim aqui oferecer uma religião. Eu vim
apresentar Jesus Cristo. Aquele que veio para te dar vida e vida em
abundância. Ele vai transformar a sua vida independente da (...). Sabe
aquele problema que não tem jeito? Ele tem a solução para você. Sabe
aquela doença que o médico falou que já era? Ele tem a cura. Sabe
aquele sonho que você deseja viver há muito tempo? Ninguém acredita
que vai acontecer na sua vida, nem mesmo você acredita. Ele pode
realizar . Pode ser que você tenha (inaudível) a Jesus porque você já
aprontou tudo aquilo que você tinha que aprontar na sua vida. Mas, sabe
o que Ele disse? De que adianta o homem ganhar o mundo inteiro e
perder a sua alma. Então, eu te pergunto amigo. O que adianta você ter
casa, carro , dinheiro, do que adianta você desfrutar de todos os prazeres
que o inimigo pode te oferecer se você não pode conquistar a maior
vitória que o homem pode conquistar na sua vida que é a vida eterna em
Jesus Cristo. Eu queria convidar a todos, por favor todo mundo, vamos
fazer uma oração, prometo ser rápido, por favor. Vamos ouvir a palavra
do Senhor. Ó, Meu Deus. Você está aqui, irmão, não foi à toa. Eu sei de
experiência própria porque Deus transformou a minha vida. Eu era um
cara que andava em perigo o tempo todo. Não tinha nenhuma perspectiva
de vida. Então, Deus transformou toda essa situação. Deus me fez um
homem feliz, alegre, um empresário que está, cada vez mais, protegido.
Isso tudo tem acontecido em minha vida porque um dia eu decidi fazer
uma guinada para Deus. E muitas pessoas estão pensando que nós
fazemos esse evento aqui porque nós queremos encher nossos bolsos de
dinheiro. Isso é uma grande mentira. Nós fazemos isso aqui porque nós
nos preocupamos com a sua vida que é muito preciosa para Deus. É a sua
vida que Ela ganha hoje, amém?! Por favor, coloque a mão no coração
esse momento. Por favor, eu gostaria que todos, todos repetissem
comigo. Senhor Jesus, por favor, todos. Senhor Jesus, muito obrigado
porque nessa noite eu ouvi a Sua Palavra e, por isso, eu declaro, confesso
com a minha boca, que o Senhor é o Salvador da minha vida. A partir de
hoje, viverei a Sua vontade que é boa, perfeita e agradável para a minha
vida. (...) Senhor eu quero te entregar essas vidas, em seu altar, ter essas
vidas transformadas, sair daqui e viver um novo tempo e, como está
escrito no livro da vida, encontrar a Ti, meu Pai, para viver aquilo que o

263
espera, muito mais aquilo que espera, e está reservado ao lado de Jesus.
Que ele saia daqui marcado, meu pai, pelo seu poder para viver uma vida
diferente. Em nome de Jesus, amém. Vamos lá, uma salva de palmas pra
Jesus. Glória a Deus. (palmas e assobios).

As duas transcrições explicitam os elementos constitutivos das atuações dos


pregadores. Não se pode deixar de registrar a participação dos freqüentadores que
gritavam, assobiavam e aplaudiam, fosse a pedido do encarregado pela pregação, fosse
espontaneamente em certa parte da atividade 230.
Dois pontos são proeminentes; o primeiro tem a ver com a capacidade de
231
mobilização ; o segundo tem relação com a estrutura dos discursos oferecidos. O
efetivado pelos pregadores é visto como o exercício de dons, capacidade fundamental no
momento da pregação. Este constitui o ponto nevrálgico, no qual o carisma é fundamental
para mobilizar os freqüentadores e, ao mesmo tempo, pode prescindir ou ter a participação
do disc jockey (DJ). Assim, o que é alcançado por Francisco JC entre os presentes tem a ver
com o que fala e a atuação daquele encarregado em produzir novas sonoridades e efeitos e,
assim, compor a base para ressaltar a fala do oficiante. Já no encontro da SC, a ausência da
ação do DJ é absoluta; fica o pregador com o objetivo de anular o clima de dispersão e
enlevo dado pela condição de entretenimento. Ele deve conduzir todos, em certo instante,
para atmosfera de compenetração e, em outro momento, busca fomentar estado emocional
com palmas e respostas aos discursos proferidos.

230 Rivera (2001:166, 170, 230) observa que na América Latina a característica do protestantismo foi
também o sectarismo. Apesar da ênfase na razão presente nos momentos de instrução (próprios de escolas
dominicais, de estudos bíblicos, de jornais e de revistas), o sermão marcaria o primeiro momento de ação. Ele
estaria centrado na disseminação da noção de “experiência fundamentalmente emocional” como marcadora da
conversão. Com isso, o sermão conduzia e marcaria o distanciamento da “explicação racional” sobre o
sagrado e sobre a conversão. Esta era obtida em decorrência da capacidade e habilidade oral do oficiante.
Apesar de a emoção estar presente, posteriormente havia o destaque a razão. Efetivamente o discurso era
destinado ao intelecto para ocorrer um convencimento sobre a existência cotidiana, resultando em “crise
emocional”. Isso tudo ocorria conforme a doutrina e a Bíblia, esta como fonte da instrução. Segundo o autor,
o pentecostalismo inaugura outro momento com ênfase nas “experiências espirituais” sem existir preocupação
com uma futura instrução, com a transmissão do texto escrito. O sermão deve promover o êxtase e é
alcançado com as atividades de exorcismo ou de cura.
231 Campos (1997: 401-406), ao focalizar a Igreja Universal do Reino de Deus – IURD -, constata que o
dirigente em atuação no púlpito pode ser visto como um ator no palco. Sem a exigência de uma formação
escolar, mas baseado em um treinamento cotidiano, não voltado à ruptura com “as raízes sócio-culturais”,
segue um script definido formalmente, podendo ser relacionado com o já vivido. Desse modo, pode-se
conceder aos fiéis um espetáculo com fins práticos, ou seja, a assistência aguarda ser o pastor eficaz na
condução de desafios a um Deus e também oferecer novos sentidos para a vida e apontar soluções para os
problemas vividos.

264
As duas intervenções contribuem para compreender o proposto e o realizado por
promotores. Destinadas a atingir os presentes, no que comunicam não há referências a
qualquer fonte escrita; os discursos enfatizam a transformação do modo de vida, pois é
ressaltada a possibilidade de “mudança de direção” como, por exemplo, é dito “Deus
mudou a minha vida”. Nesse sentido, há o distanciamento de conhecimentos teológicos e
proximidade de interpretações individuais, pois é afirmado que “Ele tem a solução para
você”, como diz o diácono em atuação na “festa” da SC.
O foco está na experiência, na exemplaridade, sem citar os atos coletivos, sem
reflexões pertinentes a dimensão política. Isso transparece quando os depoentes falam que a
conversão não está atrelada ao “dogma” e ao “preceito”, ou quando é afirmado: “a religião
não leva ninguém a lugar nenhum”. Passa a ser sublinhado o vivido, ao ser registrado “eu
não posso mais dar passos em direção a essa loucura que tenho experimentado” ou “Deus
transformou a minha vida. Eu era um cara que andava em perigo o tempo todo”.
Os discursos são compostos por falas acerca de problemas individuais, com
destaque de efeitos sonoros – mais utilizados por membros da equipe Gospel Night -,
alterações constantes do tom de voz, gestos e empenho em movimentar os ouvintes de seus
lugares. Não há preocupação em estabelecer noção de comunidade. Os apelos visam
fomentar a manifestação individual. Tudo isso é destinado a exacerbar estado emocional
entre os presentes, conduzindo-os a atmosfera individual de contato com o sagrado, mesmo
que efêmero. Estaria explicitado o carisma do pregador por ser o regulador desse
momento, chegando ao ápice com muitos se “entregando” ou “aceitando a Palavra”.
Promotores e freqüentadores afirmam ocorrerem na “festa” numerosas adesões no
momento da prédica.
Este é considerado o momento eficaz para (re)conversões 232, com o direcionamento
aos presentes de mensagens litúrgicas que confluam com as propostas de “festa”. A fala
marca e legitima os valores da ordem social; o pregador surge como o representante
religioso, o detentor dos meios e dos modos legítimos de manipulação local do sagrado
(Brandão, 1987).
Isso tudo é realizado e não ocorre a separação do caráter informal e mediador
comum à “festa”. Como etapa combinada, a pregação integra o encadeamento do som, da

232 Alguns presentes podem ser levados pelo apelo e querer integrar o corpo de adeptos de alguma igreja;
outros afirmam ter presenciado o retorno de alguém ao grupo religioso.

265
música, da dança e dos equipamentos, componentes do fazer musical. Isso, por ora,
consolida a imbricação entre os aspectos da festa e do religioso. De um lado, a festa
evidencia o popular, pelas manifestações espontâneas; de outro, é marcada por atuações,
cujos executantes são possuidores de autoridade. Estes podem ser representantes do
sagrado, compõem os vários momentos da “festa” e contribuem para neutralizar as
diferenças entre eles como, por exemplo, formalidade/informalidade, seriedade/diversão,
oração/jogos (Alves, 1980:26,28).

Suprimir, colar, repetir e compor: fazer sonoro

Fui a diversos eventos musicais e pude verificar a visível heterogeneidade que


demarcava as propostas, as iniciativas e as concepções vigentes. No Encontro Nacional de
Louvor Profético – ENLP – o destaque era dado ao pastor e ao vocalista, e esses
mobilizavam a audiência. Quase sempre o cantor reunia a posição de pastor e de ser
reconhecido por sua capacidade de compor e de cantar. Os músicos figuravam de acordo
com os comandos emitidos pelo vocalista, pois cabia a ele o papel principal. Distante do
palco, em atuação na mesa de som, ficava o grupo de técnicos responsável pela estabilidade
do show-culto.
Nas edições do programa Explosão Gospel (EG) não havia preocupação com a
qualidade e a estabilidade sonora. Os candidatos se apresentavam com acompanhamento
sonoro, normalmente uma banda possuidora de equipamentos e/ou de músicos; caso
233
contrário, o recurso do playback era acionado ou, por fim, um componente da banda
Explosão Gospel poderia acompanhar, utilizando o violão ou a guitarra.
Nos demais momentos, o destaque sempre era concedido ao vocalista que poderia
ser designado para transmitir “mensagem” aos presentes. Assim, a oralidade figura como
fonte de criação e transmissão de visão destinada a evocar nos presentes estado de
disposição. Diferentemente da “festa”, a prédica era marcada pela introspecção e, como a
“festa”, ocorria procura por intensificação dos laços de fé e o contato com o divino. A
diferença entre as iniciativas realizadas por empresas, por fiéis ou por igrejas é dada com a

233 Trata-se do uso de gravação prévia de trilha sonora para acompanhar a execução de alguma letra musical.

266
“festa”. Nela não somente o pastor tem visibilidade, pois o DJ também tem sua inscrição
no palco e atua para que os presentes alcancem certo estado emocional e/ou espiritual.
O DJ é figura com crescente visibilidade na cena de entretenimento contemporânea,
caracterizada por produção, execução e recepção musical. No final dos anos de 1960, na
Jamaica, a retenção de sons das músicas de reggae em detrimento das letras continuou com
a remontagem não linear, a combinação de sons e, assim, caracterizou outro modo de fazer
e de pensar a música (Vianna, 2003). Nos guetos de Nova York, na década de 1970,
passou-se a disseminar o modo de produzir sons com a operação marcada por repetição,
algumas vezes, de frase contida na música; também era buscado girar a agulha em sentido
oposto ao da rotação do disco e extrair sons variados. O operador do equipamento musical
passou a ser fundamental para os empreendimentos (Vianna, 1988; Arce, 1999; Dayrell,
2005).
A presença do DJ em eventos voltados ao entretenimento não é algo recente. Os
anos de 1970 marcaram a presença de bailes black, realizados na Zona Sul e depois na
Zona Norte, do funk e do hip-hop, conduzidos às áreas ocupadas por camadas populares na
cidade do Rio de Janeiro. Esses não foram fenômenos restritos e são registrados em outras
localidades (Arce, 1999; Dayrell, 2005).
O profissional não toca somente as canções e permanece oculto por equipamentos.
Ele passa a ser a principal atração234, a atrair significativo público, sendo que muito disso
se deve à capacidade de (re) criar sonoridades e canções (remix) 235. Ele não é
especificamente músico ou engenheiro de som, não exercita atividade excludente por
operar toca-discos e específicos equipamentos, expressões de tecnologias musicais. Ele
pode desmembrar e reconstruir composições musicais e sonoras, quebrar a concepção linear
com colagens, repetições e distorções. A (re) construção de canção compreende colagens de
palavras, frases e inclusões de sons nem sempre existentes na versão original (sampler).

234 Os sites especializados, as sessões de jornais e revistas voltadas à divulgação de entretenimento


desvelam o lugar que possui a figura do DJ com encontros que conta com sua presença ou foram organizados
exatamente para sua atuação. Como exemplo, a excursão de Moby, cantor e DJ, por cidades brasileiras, tendo
participações de DJs brasileiros. Ver: “Moby, um gênio da música eletrônica”; ver: www.estadao.com.br,
acessado em 19/09/05.
235 Do mesmo modo, as atividades, realizadas por membros de grupos evangélicos, também apresentam esse
desenho. Um DJ pode ser a atração da noite, esperado pelos presentes e obter reconhecimento. A equipe
Gospel Night (GN) organiza um encontro cuja atração vêm a ser a apresentação de alguns DJs; a Gospel Beat
ressalta a presença de DJs como, por exemplo, na divulgação da black gospel party, ocorrida em 2005, que
apontava a participação de dois reconhecidos DJs, integrantes da produção musical no meio evangélico, como
as atrações da noite.

267
Essas possibilidades são peculiares ao agir do DJ e colocam indagações sobre autoria
musical (Santos, 2004).
As (re) criações, as experimentações, as colagens e as combinações de sons
conduzem a estados alterados porque a música passa a ser condutora de estados de êxtases
e de relaxamento (Lasén, 2003), haja vista a sonoridade compor a exaltação do divino ou as
transformações ocorridas na vida do fiel, resultado de sua subordinação. Os sons, as letras e
as danças são componentes de “experiências religiosas transcendentais” (Barros, 2000:56,
57), porém, no caso da “festa”, a sonoridade pode e deve ser constantemente alterada a fim
de alcançar efeitos no ato de “louvar”; situação distinta ocorre nos cultos de candomblé,
pois, nesse caso, as canções obedecem a uma “seqüência musical” mantida constante, e
ordenadora das partes de um discurso religioso. No entanto, as alterações dos cânticos
podem ocorrer por causa da linguagem da comunidade, da “nação” do grupo religioso, ou
do “virtuosismo” do especialista musical – mas são raras.
O fazer caracterizado pela inscrição de algo voltado à transformação, como o do
bricoleur 236, usuário de componentes disponíveis, muitas vezes díspares, torna-se
específico por estar fundamentado no uso de técnicas e de recursos tecnológicos com os
quais dialoga. Também guarda algo de magia, posto possuir conhecimento com o qual pode
alterar a realidade, contando que o grupo reconheça sua capacidade (Lévi-Strauss, 1997:
247; 1996:195). Capacidade incontestável de conduzir ao êxtase.
Em relação às tecnologias sonoras, o DJ pode ser editor voltado a mixar e a colar as
diversas partes constitutivas de composições. Ele pode surgir como “educador”, porque os
eventos executam as músicas eletrônicas resultantes de nova concepção, não somente de
música, mas de mundo. A velocidade de transmissão de informações e a incorporação de
elementos diversos são pontos integrantes de mundo cada vez mais complexo no qual a
música é marcada por beats (batidas) mais rápidos, distintos, que expressam a tecnologia
existente. Portanto, a música e as sonoridades em circulação contribuem para ampla
educação, pois os sentidos, o físico, a percepção e a técnica a constituem e caracterizam o
presente da crescente velocidade tecnológica (Vianna, 1997).
Ir à “festa” exige breve preparo, para adaptação ao clima - formado por intensas
luzes especiais, por canhões de fumaça e por sons eletrônicos em constante aplicação. A

236 Sobre a noção de bricoleur, ver: Lévi-Strauss (1997:32, 33).

268
escuridão do salão é cortada pela iluminação; os passos são conduzidos por intensas batidas
e distorções musicais. No palco ou entre os equipamentos, fica o DJ, em movimento
frenético; como os dançarinos, mexe os braços para alcançar os efeitos desejados, e o corpo
se movimenta com a mesma intensidade. A cada instante, os presentes gritam ou silenciam,
sem deixarem de executar a dança, expressão de certo estado de êxtase. A partir do exposto,
pode-se indagar sobre as composições dos DJs.
Em primeiro lugar, tem-se dito sobre a (re)criação como característica do
apresentado pelo DJ, independente de ter ou não inserção religiosa. Durante o trabalho de
campo, não foi possível coletar as canções, mas há edições em CDs e constituem acesso ao
produzido por componentes e convidados das equipes GN, GB e SC. Além do som
percussivo, as músicas podem ter vocais que, em geral, para o que esteja sendo dito, dão a
impressão, ao ouvinte, de registrar variações “sobre um único tema”: a ordem para que a
insistente batida domine a cena, o corpo e a mente dos presentes (Vianna, 1997).
Muitos dos freqüentadores entrevistados afirmaram ser a “festa” não somente lugar
de mera execução musical, mas seria momento marcado por contato estabelecido com
Deus. Os DJs apontavam perseguir isso e, portanto, ir além do alcance de estado de euforia
não transitório. Então, o que constitui suas (re) construções, colagens e repetições musicais
e sonoras?
No CD Gospel Night – a Festa (vol. II), da equipe GN, existem duas canções e aqui
podem ser demonstrativas. Uma foi realizada por DJ Marcelo, a outra por DJ Charles,
ambos da equipe. A primeira faixa é intitulada “Desejamos a Tua Presença”; a segunda é
“We found a cure”. A composição de Marcelo possui o fragmento da gravação em fita K7
de um culto, há muito esquecida 237. “Desejamos a Tua Presença” tem 4:15s de execução,
possui duas linhas de sons, entremeadas por batidas variáveis, cortes e sons mais longos e
batidas mais rápidas. Seu início é constituído por batidas repetidas e graves; a seguir outra
linha sonora é instalada, e contabiliza batidas invariáveis e menos repetidas. Após 1:30s de
linhas sonoras é introduzido o vocal 238, de voz feminina distorcida. A letra é a seguinte:

237 Informação presente na entrevista com o DJ Marcelo Araújo, em www.louvor.net, acessado em 11/08/04.
238 De acordo com Marcelo Araújo, apesar da gravação não possuir boa qualidade, a opção foi aplicar o
vocal original, para preservar a intensidade da oração no momento de sua realização.

269
Nós estamos aqui reunidos debaixo do nome de Jesus. E nós não
poderíamos estar reunidos debaixo de outro nome. E nós não poderíamos
querer outra voz que não fosse a voz do Senhor. Por isso, nós vamos
declarar: Senhor, desejamos a tua Presença.

O tempo é de 17s; durante 7s a frase “Desejamos a tua Presença” é repetida e


distorcida. Mais um tempo de som e introdução de vocal distorcido com a frase (isso ocorre
quatro vezes). A faixa tem cerca de 40s de vocal, e o tempo restante é constituído por linhas
sonoras, graves e agudos, e tantos efeitos.
A composição de Charles tem o título We found a cure, possui 3:46s de duração e
possui três partes integradas. A primeira apresenta três linhas de batidas e efeitos: a
primeira é formada por batidas agudas, rápidas e variadas; a segunda é instalada aos 28s de
execução juntamente com o vocal “Jesus Christ” (com duração de 5s); soma-se então a
terceira parte com os efeitos. Em seguida, a primeira parte é alternada com a segunda,
formada por batidas rápidas, graves e altas. Novamente a primeira parte, entrando o vocal
“We found a cure” (com duração de 22s) caracterizado por voz grave e distorcida. Duas
linhas de sons são executadas e o vocal “Jesus Christ” (tem a mesma duração).
A música da equipe GB, cuja letra foi transcrita no quarto capítulo, intitulada “Mãos
pra cima”, com 3:40s de duração, tem início com batidas mais sincopadas e entremeadas
com outras mais graves. A música apresenta duas bases sonoras, executadas em tempos
distintos, e apresenta efeitos sobrepostos. No início e no final, introduz batidas mais
intensas.
As composições conduzidas pelos DJs não são pautadas por única linha sonora
contínua que juntamente com o vocal resulta na música, cuja execução exige a expressão
verbal; muitas vezes, sublinha excessivamente a palavra com a finalidade de expor a
“intenção” da composição (Barthes, 1982:109-111). Isso não caracteriza a produção
musical aqui abordada, que é integrada com várias linhas, numerosas e dinâmicas.
Subvertem a ordem musical, nem sempre há fim e começo, mas possibilidades de fusões
(Vianna, 1997). Nesse caso, trata-se de outra concepção, pautada na inscrição de base
sonora sobre a qual sons são mesclados, construindo–se camadas sonoras sobrepostas
(Silva, 1998).

270
Quem transforma fala

Diante disso, as perguntas se tornaram inevitáveis. A primeira tem a ver com a


demarcação do fazer do DJ no meio evangélico. Já a segunda diz sobre a concepção dos
entrevistados sobre suas práticas.
O DJ tem lugar, ora como produtor de bailes, ora como produtor musical, ora como
(re) construtor de sons 239. As festas, os bailes, os shows, as casas destinadas ao
entretenimento e a indústria fonográfica não prescindem do profissional. De um lado, sua
atividade assegura a atração de público disposto ao entretenimento; de outro lado, a técnica
e o conhecimento permitem-no atuar juntamente com músicos e cantores.
Muitos são apenas DJs, alguns cantores e todos estão envolvidos com a organização
de “festa” – propícia às suas atuações. Eles passaram por aprendizagem informal, atuam no
meio secular ou se aproximam de DJs não evangélicos. Marcelo, da equipe GN, antes de se
converter, apreciava o trabalho de alguns DJs, sentindo-se estimulado a seguir o mesmo
caminho 240. Charles, criado na Igreja Presbiteriana, conta ter recebido educação musical na
igreja e na família, pois seu pai é cantor profissional e isso facilitou seu contato com a
música popular norte-americana. A mudança para a Igreja Renascer possibilitou o
desenvolvimento de trabalho musical, ocorrendo o encontro com Marcelo e Francisco JC.
Deu-se início a atividade de evangelização. O resultado posterior foi o surgimento da
equipe Gospel Night. Para Charles, essa iniciativa marcou seu início como DJ.
O percurso de TR, integrante da equipe Soul de Cristo (SC), foi diferente. Sua
família é da Igreja Batista e reside na Cidade de Deus, Zona Oeste. Diz ter recebido
influências musicais dos pais e das irmãs consumidoras de música popular nacional e norte-
americana. Na localidade integrou grupo de hip-hop constituído por alguns adolescentes,
cujo nome era “Geração Futuro”. A partir daí, passou a atuar como DJ e, com o objetivo de
conscientizar os jovens da região, interagiu com outros grupos. Com o tempo, estes foram
contatados pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas – CEAP – e,
posteriormente, constituída a Associação Atitude Consciente – ATCON – voltada a

239 A descrição de Arce (1999) sobre o funk e a visão que fornece sobre a atuação do DJ Marlboro, visto
como peça chave na articulação do estilo musical, fundamenta a afirmativa realizada.
240 Entrevista de Marcelo Araújo, disponível em www.louvor.net, acessado em 11/08/04.

271
fortalecer os grupos disseminadores da expressão musical, cuja característica era realizar
crítica social.
Nesse período, L´Ton, da equipe Gospel Beat (GB), aproximou-se da Atcon e
aprendeu a construir bases sonoras para as músicas do grupo REP – Radicalizando,
Evangelizando e Politizando. DJ W, também da GB, entrou para a Igreja Casa de Oração,
juntamente com sua mãe. Lá passou a operar o som e aprendeu a tocar bateria. Afirma ter
sido influenciado por um primo e, a partir daí, começou a apreciar a black music. Sua
entrada no REP se deu quando Nega apresentou-o a L´Ton; com isso, W e L´Ton
construíram bases sonoras para as composições do REP.
No meio evangélico, a figura do DJ surge como central no intercâmbio entre o
público e a esfera religiosa. Ela teve condições favoráveis em igrejas que tentam disseminar
suas ações entre grupos juvenis presentes na cidade. Para tanto, composições são veiculadas
em CDs, em estação de rádio, em eventos e disponibilizadas na Internet. Trata-se de
possibilidades de audição e de aquisição de outra modalidade musical.
Uma revista destinada ao público juvenil fez reportagem sobre os encontros
musicais destinados aos evangélicos. Um pastor e DJ delineia não somente o realizado, mas
a concepção acerca do apresentado. Assim, especializado em trance e em drum´n´bass, o
depoente diz que “dar som é oferecer um louvor a quem está dançando. Sempre faço uma
oração antes de cada composição” 241. A matéria de outra revista, voltada ao meio
evangélico, veicula a fala de outro DJ, de São Paulo, que diz: “gosto de ver essa molecada
divertindo-se sem desviar-se dos caminhos do Senhor” 242. Os depoimentos coletados não
demonstram posições divergentes com aqueles apontados anteriormente. DJ Marcelo, da
GN, afirma ser necessário ter o “´feeling´ do que a galera quer escutar e não o que ele quer
ouvir”; mais adiante coloca:

Quando comecei a tocar, gostava de ver as pessoas cansadas das lutas da


vida em uma festa, depois de algum tempo, via as mesmas pessoas
cantando e dançando. Aquilo era o meu combustível acima da grana ou
de qualquer outra coisa. Por isso, não me importo em toca ‘qualquer’
coisa, mas, é claro, tudo tem limites 243.

241 Semerene e Cunha. “O DJ é o meu pastor”, revista Capricho, 30/11/2003, p.41.


242 Tavolaro. “Gospel na pista”, revista Enfoque Gospel, 04/2002, p.24.
243 Entrevista de Marcelo Araújo, disponível em www.louvor.net, acessado em 11/08/04.

272
W atua nos eventos promovidos pelas equipes GB, SC e GN, além de outros
organizados no meio secular. Para ele:

O DJ basicamente é o animador da festa. É o cara que vai trazer


novidades pro público. Vai mostrar o que está acontecendo na parte
musical gospel, no caso. Como vários estilos que não são divulgados no
meio evangélico. Essa é a situação do DJ nos eventos. É mostrar a nova
roupagem da música evangélica e também animar o público do evento.

Mais adiante, W expõe sobre a atuação entre o público:

Eu acho que no meio evangélico rola até mais do que no meio não
evangélico. Porque há a vontade de falar da mensagem. Como aquele
estilo é novidade, há muita necessidade do DJ falar com o povo e animar
a galera. Acho que o DJ evangélico é até um pouco mais, como posso lhe
dizer, mais sugado em seu trabalho do que o DJ de um baile não
evangélico. Muitos bailes aí o cara vai só tocar e acabou. Ali não. A
gente tem que ter aquele lance de entretenimento da pessoa senão o
pessoal se dispersa um pouco. Tem que ter aquela conversa, aquela
atenção com a galera senão não flui.

Ao entender a música como marcador de um entretenimento e de inserção religiosa, W


diz:
Eu acho legal porque é legal tu ver quando um ex-drogado fala ‘pô... eu
fui pra igreja por causa daquele evento’. ‘Eu sou um cara que tinha um
certo estigma e não fui para a igreja por causa daquele estigma’. O
mundo, às vezes, chega na porta da igreja pela dor. ‘Ai meu Deus me
ajuda’. Mas é muito bom que a pessoa vai à igreja quando está bem,
quando ele não precisa de dinheiro, quando não tem problema da saúde. E
aí nós entramos. Mostramos que ele pode ir à igreja não só pela dor, mas
pela alegria também. Porque, basicamente no mundo hoje, a pessoa vai na
igreja pela dor mesmo. Nós estamos propondo outra coisa. Que ela vá por
ser uma coisa prazerosa de ir. Não por ela ser forçada porque ela precisa
de alguma coisa. Mas porque ela quer ir. Ela quer estar lá.

L´Ton ao falar sobre o público e o consumo registrado coloca:

No gospel ... o meu público são os ... o público evangélico, enfim. Mas
eu percebi o seguinte: o público evangélico que consome rap, que
consome CD, tem, posso dizer assim, tem vinte por cento, por exemplo,
até consumiria Apocalipse 16. São aquelas coisas mais, pô, são negros
que já têm uma cabeça, entendem as dificuldades, passaram por
dificuldades, esses consomem. Agora o restante, os oitenta por cento, é o
seguinte: ‘vim para cá para curtir! Já passei a semana toda na maior
ralação, cara! A melhor coisa do mundo é vir para cá, para esse baile
gospel curtir, estar feliz e dançar tranqüilo’. Pô, você tem que adaptar a
música para esse pessoal, senão os DJs mesmos, os próprios DJs gospels,
não vão tocar. Ele não vai tocar uma música que a pista murcha.

273
Na faixa multimídia do CD Gospel Night, os três componentes estão presentes e
falam sobre a equipe. Charles e Marcelo apontam os elementos necessários utilizados no
direcionamento do grupo. Assim, o primeiro enfatiza:

Gospel Night – a festa – é realizada no Rio de Janeiro, já tivemos a


oportunidade de visitar outras cidades também levando, através da
música, com muita iluminação, telão, com toda essa infra-estrutura, a
preocupação de estar levando a Palavra, acima de qualquer coisa. A festa
é uma celebração onde, através da dança, nós levamos, nós celebramos
Nosso Senhor Jesus Cristo e vários jovens, através disso, têm se
convertido (...) 244.

O depoimento de Marcelo é constituído por imagens alternadas e tem início com


imagens das pick-ups 245, de aparelhos de efeitos, de imagens de danças executadas. Tudo
isso no decorrer do depoimento e, assim, os equipamentos e o efeito de sua ação são
apresentados. Em seu momento, Marcelo explicita a iniciativa do grupo ao afirmar:

Esse é o nosso objetivo causando no jovem esse impacto. É um


evangelismo de impacto. O jovem que não é evangélico sente a música:
‘pôxa, que música legal, gosto de ouvir esse som. Mas quando ele ouve a
letra, ele recebe uma mensagem vinda diretamente do trono de Deus para a
vida dele. Esse é o nosso objetivo. Então, a gente começa com essa idéia de
tocar uma música dançante, com luzes, com caixa de som, com todo esse
aparato ministerial para quando chegar a hora certa. E quando chegar a
hora certa, quando chegar a hora de parar e a Palavra do Senhor é
ministrada (...) 246.

De um lado, há o destaque dado aos equipamentos como efetivos meios de


realização do encontro; porém, de outro lado, os instrumentos são definidos como “aparatos
ministeriais”, pois são eficazes na disseminação de estado de recepção. Nesse sentido, a
partir do exposto até o momento, o DJ, como produtor de sons, surge não somente como o
operador de equipamentos e discos. Na fala de L´Ton, o entretenimento aparece também
nas elaborações dos DJs evangélicos, não sendo momento profano, mas parte do todo
concebido sagrado.

244 Depoimento contido no CD Gospel Night – A Festa, vol I, BV Music 029.


245 Aparelho específico para tocar discos de vinil (conhecidos por long plays ou LP).
246 Depoimento contido no CD Gospel Night – A Festa, vol I, BV Music 029.

274
Os depoimentos apontam elementos específicos e marcam a distinção com a noção
de protestante apresentada por Weber (1998). Ele enfatiza o comportamento ascético e a
distância de atividades condutoras do êxtase ou disseminadoras de modo de ser distinto da
sobriedade e do autocontrole. Os discursos oferecidos revelam a organização do
pensamento dos DJs. Nas falas de Marcelo, W e L´Ton surgem os pares constrastivos com
os quais suas concepções são sustentadas como, por exemplo, “lutas da vida”/“festa”,
“cansaço”/“cantar”, “dançar”/“falar”, “tocar”/“falar”, “dor”/“alegria” definem as propostas
e as ações. As oposições colocam questões terrenas com as quais tecem negociações e
tentam auferir posições no campo religioso.
As falas enfatizam a alegria, o relaxamento, a diversão como os condutores eficazes
de “mensagem” e componentes de estado diferenciados. Os equipamentos são utilizados
contra a “ordem da produtividade industrial” e, por que não dizer, também protestante
ascética. É feita a promoção de êxtase coletivo no qual o DJ é a figura central, pois voltado
à “educação dos sentidos, educação física, educação filosófica” em tempo de velocidade
inimaginável do som, da informação, da interação entre homens e máquinas (Vianna,
1997).
Nessa temporalidade, estaria também o DJ no meio evangélico pronto a preparar os
presentes para a religiosidade, para certo modo de expressão de fé não negadora de
sentidos, do êxtase, do transe alcançado com a velocidade das batidas eletronicamente
produzidas. Muito mais do que operadores de instrumentos sonoros, os DJs são os
sacerdotes e os manipuladores específicos de “aparatos ministeriais” capazes, como os
violeiros, de conduzir os homens à dança e marcar o sagrado também quando se toca e
dança para Deus e para os santos (Brandão, 1981:65,66,153). O estado de exaltação
produzido entre os freqüentadores de “festa” é caracterizado por dança, alegria e fruição;
não há a separação do sagrado e do profano, não distingue os presentes, como também não
opõe diversão e sagrado. Dançar por diversão não circunscreve o profano; diversão é parte
do sagrado.
O êxtase proporcionado é registrado no “baile funk”, marcado por interação entre os
presentes - os DJs, os MCs e o público – conformado por negociações de “códigos de
violência”. O DJ surge como o detentor da capacidade de potencializar a tensão e conduzir
às brigas (Cecchetto, 1997:100,101). Ao contrário disso, os depoentes apontam para a

275
capacidade de o DJ aliar relaxamento, proselitismo e contato com o divino. Charles e
Marcelo trazem a relação complementar entre preocupação e celebração, palavra e dança,
música e “mensagem”. Com isso, ocorre a integração e a excitação visíveis quando L´Ton
afirma que a pista de dança não pode "murchar", ou seja, não deve ocorrer desinteresse e
dispersão dos presentes. Portanto, ao DJ cabe proporcionar o encontro com a música; daí a
excitação e a felicidade (Lasén, 2004).

“Segurança”: o outro lado da força

A realização de reuniões orientadas à execução e à recepção musicais exige a


articulação de outro grupo e revela a divisão de tarefas para sua efetivação e condução. No
caso da “festa”, os promotores ocupam o palco, cantam, tocam e discursam para o público.
Por sua vez, o encontro registra a presença de manipuladores de equipamentos fotográficos
e de filmagens; há também o grupo destinado ao controle e responsável por resguardar a
manifestação de excessos cometidos pelo público. Além desses, registra-se vendedores de
CDs e acessórios com a marca de um dos grupos – a GN tem produtos como CDs,
camisetas, chaveiros e etc -, de bebidas e comestíveis e divulgadores de cursos de
informática. Esses colaboradores evidenciam as múltiplas relações mantidas e contribuem
para os envolvidos afirmarem ser a “festa” eficaz para a audição de canções, porém distinto
e semelhante com o existente no meio secular.
Um ponto constante nas falas dos freqüentadores é pertinente ao controle ou à
“segurança”. Essa é constituída por grupo cujos componentes, em sua maioria, são do sexo
masculino e utilizam coletes com a palavra “Apoio” ou camisetas com o nome da equipe
organizadora. Eles têm por atividade circular pelo local, enquanto muitos dançam; também
devem guardar a bilheteria 247 e controlar o fluxo de entrada do público. Em alguns
eventos, o grupo chega a revistar os freqüentadores e utilizar detector de metais.

247 A composição da equipe que cuida da bilheteria depende da rede relacional do grupo. Em visita à rádio,
na qual a equipe GN estava realizando o seu programa semanal, encontrei uma das mulheres que vira outras
vezes na bilheteria da "festa", cujo valor do ingresso é de R$ 5,00. Na atividade da SC, estava Sérgio no caixa
do bar. Esse aspecto do evento é pouco visível e dificilmente é percebido, inclusive porque a bilheteria fica
atrás de uma parede que possui pequenos retângulos por onde o dinheiro e o ticket passam. Já os caixas ficam,
como nos bares, distantes da pista de dança e ninguém costuma fica perto deles, mas do balcão. Não poderia
dizer que isso ocorre pela dissociação entre dinheiro e religiosidade, mas a questão financeira é um tema que
até aqui se mostrou intocável – é uma parte da "festa" que não se vê e não se fala e, curiosamente, aqueles que

276
Segundo os promotores, esses colaboradores são originários do próprio meio
religioso e são encarregados em exercer o controle. Trata-se de serviço de segurança, não
exclusivo ao tipo de evento observado, pois presente em atividades públicas e privadas
religiosas ou profanas. Ele pode ser oriundo de ação voltada a racionalizar a atividade com
predomínio do controle moral e corporal, perfaz o lado harmonizador e educativo da
proposta salvadora.
Nos empreendimentos seculares, também é aplicado naqueles voltados aos grupos
juvenis, como o “baile funk”, atividade na qual sua presença circunscreve certo tipo
profissional em mercado (Carrano, 2002; Souto, 1997) de bailes e similares. Essas
iniciativas também compreendem outras inscrições profissionais como iluminador, técnico
de som e dançarinos (Souto, 1997). Porém, o serviço de controle é parte constante da
organização de bailes e de diversos outros empreendimentos. Pode ser que em alguns,
caracterizados por confronto entre grupos opostos, o serviço de segurança não coíba a
bélica manifestação; então, quando ela ocorre, não por falha, talvez confirme algo
celebrado e próprio da concepção local (Cecchetto, 2004:115-126).
Os depoimentos coletados nas “festas” mostram, para os envolvidos, que a presença
de cantores, de DJs e a realização de pregação é vista como constitutivo do grupo religioso;
como diria Geertz (1989:147), seus valores, sua moral e a compreensão que afirmam acerca
das coisas. Nesses termos, a presença de colaboradores com a finalidade de agir como força
de controle foi, para mim, significativa. Fui tomada por dúvidas sobre sua presença,
principalmente diante da afirmativa de a “festa” ser segura, de ninguém se sentir
incomodado devido o comportamento excessivo, de não haver o consumo de drogas lícitas
e/ou ilícitas.
Alguns freqüentadores enumeravam a especificidade da música, da “mensagem”
veiculada e sublinhavam a sensação de “segurança”: “você vem e se diverte de forma
segura” ou “festas gospel não podem muito abrir mão da segurança”. Outra entrevistada
afirmou que “... ali você vai se divertir com pessoas como você que não vai ter droga, não
vai ter bebida, não vai ter prostituição, essas coisas”.
Controle, resguardo do ambiente e do corpo perfazem os enunciados. Repousa no
corpo aquilo próprio da atmosfera de “segurança”, distinto do abuso, do desrespeito, pois

lidam com o dinheiro, seja na GN ou na SC, se tornam invisíveis durante a "festa"; enfim, todos da equipe
são vistos, menos eles.

277
regulado e com a intimidade vigiada (Douglas, 1998:26, 27). Neste sentido, para os
entrevistados, a atuação do grupo de segurança é pontual e tem relação com a manutenção
de um estado considerado chave na condução do proposto e realizado.
Após ter ido à “festa”, perguntei-me quem seriam aquelas pessoas e o que faziam.
Lembro-me de dois episódios. Certa vez, em uma “festa” da equipe SC, os colaboradores
utilizavam camisetas de malha na cor preta com a inscrição Soul de Cristo. Depois de
algum tempo, fiz o movimento de ir embora. Muitos entravam no salão e foi preciso tomar
o caminho no contra-fluxo. Eu e Geraldo atravessamos com demora os poucos metros até o
exterior do prédio. Entre o salão e a rua, ouvi de um dos colaboradores: “a irmã já vai
embora”?
Outra vez, fui a um bairro pouco conhecido por mim e não sabia a direção a ser
tomada para chegar à Avenida Brasil 248. Indagamos a um dos responsáveis pelo controle da
entrada, como chegaríamos à estrada. A informação foi obtida e, ao fim, uma saudação, não
me lembro literalmente dela, mas sei que remetia a vínculo de fé. Os dois momentos e as
falas dos freqüentadores aguçaram a curiosidade em saber o motivo de suas presenças.
No site da equipe Gospel Night imagens das atividades são veiculadas em formato
de fotografia e filmagens, com duração de alguns minutos. Nesse material é possível ver o
momento de preparação daqueles responsáveis por atividades realizadas durante a “festa”,
principalmente os encarregados pelo “Apoio”. Antes da entrada dos freqüentadores,
aparecem em formação circular, de mãos dadas e, apesar da canção que serve de fundo à
cena, parecem realizar orações.
Segundo alguns promotores, os colaboradores fazem parte de suas redes relacionais
e possuem vínculos com igrejas evangélicas. No encontro da SC, os homens encarregados
da portaria e do controle no interior do salão vestiam camisetas com nome da equipe: Soul
de Cristo. No decorrer da noite, houve a apresentação do diácono da Igreja Renascer que
participara do controle do público no salão. Dada a especificidade do empreendimento, os
promotores afirmam que não poderiam contratar qualquer pessoa para impedir as brigas e o
comportamento não adequado ao evento: momento de diversão e religioso. Portanto, os

248 Por via terrestre a av. Brasil é uma importante via de acesso e saída da cidade do Rio de Janeiro. Por
ela, chega-se à rodovia Presidente Dutra, destinada a ligar os estados do Rio de Janeiro e o de São Paulo. O
plano urbanístico, surgido no governo do prefeito Henrique Dodsworth (1937), compreendia a construção da
av. Presidente Vargas, a esplanada do Castelo e a av. Brasil. Maiores informações: www.bperj.rj.gov.br,
acessado em 23/09/05.

278
integrantes que fazem parte da “segurança” são membros ativos de denominações
religiosas, principalmente aquelas de filiação dos organizadores. Isso fica evidente no
seguinte depoimento de Charles:

A gente tem algumas pessoas que fazem a segurança... que não são
seguranças.
Márcia: Uma empresa?
Charles: São pessoas do próprio meio. Irmão de um, primo de outro,
justamente pra cuidar. Pessoas que são do gospel. A gente não coloca
seguranças...
Márcia: São evangélicos?
Charles: É. Porque tem que saber abordar. É diferente de você colocar
um segurança e o cara chegar ali e dar um tapa num garoto.

Como o controle do evento é exercido por aqueles oriundos do meio religioso,


Charles expõe as orientações passadas aos encarregados da tarefa e evidencia:

A gente coloca: concentração de jovens, aglomeração de pessoas,


sempre tem que ter esse cuidado. Pra não ter tumulto... esse empurra na
hora da fila. Graças a Deus, até hoje a gente ainda não teve nenhuma
confusão... Ou então, o cara chega lá dentro, não sabe que é um evento
cristão, quer namorar, quer fumar, quer beber ... Então, a gente chega e
conversa numa boa. Por isso, que a gente chama a pessoa que é do
gospel, que é pra saber abordar. Porque se a gente coloca um ex-policial
ou cara que não é do meio, o cara vai chegar abordando, vai dar um basta
ou vai fazer alguma coisa, que é normal de você ver: o cara pega pelo
braço, suspende o cara e bota pra fora. A gente não faz isso.

A importância também de ter adeptos de igrejas evangélicas é por acreditarem na


preparação espiritual, no autocontrole que assegura modo distinto de lidar com o público. A
distinção na relação com o público é esperada, pois, se houver caso de conversão entre os
freqüentadores, será preciso realizar abordagem capaz de amparar e conduzir o novato ou
aquele que estiver em momento de dúvida no tocante à fé. Sobre isso, o mesmo
entrevistado expõe que "... a gente sempre tem a nossa galera que sempre anda identificado
nas nossas festas com blusa ou um crachá. Justamente pra pessoa abordar e saber que é
gente de nossa equipe".
Charles focaliza o uso da força como qualidade do trabalho realizado por alguns
com a finalidade de preservar a integridade do empreendimento e de seus freqüentadores.
Diante de ação destoante, o diálogo é preferencial ao invés de aplicação de abrupta
abordagem feita por alguém despreparado para lidar com específico público. Ao enfatizar o

279
trabalho de condução inteligente da proposta de execução musical, a atividade de
“segurança” não está voltada somente a impedir os conflitos fortuitos; ela visa dar suporte
aos promotores em conduzir um ato, marcado pela dança, pela presença juvenil e muita
música. Isso revelaria o momento de fiscalização exercido pelo grupo sobre os corpos dos
freqüentadores.
A presença do consumo musical e da dança contribui para a liberalização do corpo,
para a mudança de comportamento entre os evangélicos (Almeida e Rumstain, 2003).
Todavia, há a preocupação com a disciplina, com o controle, pois interessa aos promotores
o reconhecimento do que realizam como atividade religiosa.
Nega, freqüentadora e também promotora de "festas" da GB esclarece sobre a rede
relacional e o serviço de “segurança”. Diz:

Isso é o principal, mas também pra ter um local para a juventude cristã
estar junto sem precisar de estar no mundo. Às vezes não tem nada a ver
estar lá. Mas aí quando sai uma briga aí você está ali. Não vou falar que
nas festas gospel, não tem, mas a gente tem uma cobertura, a gente olha.
A gente pede ao Senhor que guarde as pessoas que chegam àquela festa.
As pessoas que vão chegar, as pessoas que vão sair.

Mais adiante, afirma:

Eu ficava muito em arrumar um convidado... um convidado você


arruma... você enfeita.... às vezes fica atrás fazendo um evangelismo,
orando. Tem uma parte das pessoas que ficam orando né, na hora do
apelo ou até na hora do baile. Você ser um segurança feminino, você fica
nessa área.

Os colaboradores devem controlar o ambiente e os comportamentos, mas isso não


ocorre somente no aspecto da força física. A atuação está subordinada ao exercício da
força da oração, em pedir proteção a todos. Mais do que vigilância ostensiva dos
comportamentos, os colaboradores devem ter o preparo espiritual para orar e, assim,
resguardar a reunião e os freqüentadores. A força exercida não é a mesma acionada em
iniciativas seculares com a finalidade de coibir excessos, de frear a disposição de alguém,
de controlar a celebração da violência com violência (Cecchetto, 1997). A eficácia de sua
ação está na força da oração e na proteção divina capazes de assegurar a “cobertura” e a
“guarda”.

280
Assim, ao invés de demarcar a “festa” e a recepção com dualismo entre sagrado e
profano, os depoentes confirmam os momentos formadores do sagrado, tudo balizado pela
força emanada por aqueles em trânsito silencioso entre os alegres brincantes. A atuação é
complementar no que toca à realização e em assegurar o sagrado; o público interage com os
promotores e com o grupo da “segurança” a partir da oração, da intercessão e desenha a
reunião. Nesta pode existir configuração na qual os colaboradores da “segurança”, que
contribuem para dinamizar o ato, primar pelo controle emocional.
Ao ouvir as falas dos entrevistados, é possível visualizar o que atrai os
freqüentadores. Além da audição musical, outros fatores são destacados para que o
momento seja extensão da atividade religiosa. No tocante a isso, as experiências e as
expectativas viabilizam o estabelecimento de outras formas de participação – esses pontos
também fazem parte da agenda dos promotores. As "festas" formam tipo de participação
religiosa e inscrevem possibilidades de sociabilidade entre os jovens evangélicos, os não
evangélicos e aqueles em processo de conversão. Os eventos não estabelecem radical modo
de vida e visão de mundo, pois é possível se sentir evangélico e não oposto ao que
transcorre no "mundo". E tudo isso é visto como válido por disseminar a crença e modo de
vida. Desse modo, as distintas inserções religiosas contribuem para formar algo não
homogêneo, mas eficaz no fortalecimento de suas inserções.
A investigação permitiu compreender certa prática musical, certas atividades,
arranjos, sentidos e lugares atribuídos à música, às juventudes, ao divertimento, à dança e
outros elementos. Ao mesmo tempo, eles evidenciam a constante mudança do meio
religioso e é possível observar as viabilidades comportamentais de promotores e
freqüentadores. Assim, pode-se perguntar se há mudanças.
Ter ido aos encontros, conversado com os integrantes do público, com os
promotores, evidenciou ser o meio evangélico visto como integração absoluta (Brandão,
2004). Deparei-me com redes relacionais e biografias que o extrapolam, enredam relações,
idéias, ações e introduzem vários elementos no campo de diálogo e, desse modo, compõem-
se dualismos como, por exemplo, negros/não negros, “festa”/serviço evangelizador, black
music gospel/“música gospel” e carne/espírito. Destaco também que, apesar das relações e
das biografias, os eventos pesquisados fornecem meios para os fiéis se sentirem integrados,
participando dos grupos institucionalizados e de outros que exploram o tempo livre.

281
Outro ponto foi composto pela identificação dos tipos-chave existentes no universo
pesquisado. As mensagens, o som e a segurança são pontos sublinhados, apresentando o
pregador, o DJ e os colaboradores na área de segurança. Falar e ouvir são momentos
singulares de produção e recepção musical. Quem fala, deve e pode falar.
O uso de tecnologias da comunicação está inserido no meio evangélico, cujo
exemplo é dado por grupos neopentecostais. Rádio, televisão e, principalmente, a Internet
são os meios mais utilizados. Falar é o ponto. Na “festa”, destinada à execução musical, a
palavra não está e não pode estar ausente. Ela é elemento constitutivo de algo religioso; ela
perfaz momento de conexão com o sagrado. A ênfase não recai sobre as Escrituras porque
elementos da experiência são feitos presentes. Gestos, sons, tons e falas são componentes
da atuação daquele que fala aos presentes, também ali para ouvir música e para dançar.
Todos aguardam o momento. Ele é breve e seu realizador precisa suplantar, por
curto período, a capacidade do DJ. Para promotores e freqüentadores, não se trata de
momento menor, pois o objetivo é evangelizar, é divulgar outro modo de vida, é indicar o
caminho da “transformação”. Quem faz isso possui certo reconhecimento no grupo, pode
ocupar posto institucional, tem o dom da fala. Ela procura se tornar oficial, legitimada, e,
para isso, é fundamental a presença de locutor com reconhecimento institucional (Bourdieu,
1998:85-87). Também quem enuncia, mesmo não legitimado institucionalmente, pode e
faz. Seu fazer igualmente é caracterizado pelo dever, dever de falar. Tem obrigação e seu
reconhecimento repousa não somente sobre o dom, porém sobre esse exercício feito
premente. Trata-se de demonstrar “domínio sobre as palavras” e, assim, causar
“embriaguez” nos ouvintes (Clastres,1978:107, 113).
Outro momento de demarcação do sagrado é, sem dúvida, a execução musical, e na
“festa” ele é constituído, muitas vezes, com a atuação do DJ. É o manipulador de
determinados “aparatos ministeriais”, precisa “falar com o povo e animar a galera”. Nesses
termos, é sacerdote e manipulador de coisas e objetos possuidores de caráter sagrado. Seu
fazer demarca culto de confirmação e de renovação do sagrado. Os “aparatos” utilizados
eliminam a escrita, subvertem a ordem existente, pois apelam aos sentidos e reconhecem na
perícia do DJ, na tecnologia e nas máquinas os componentes de canal de conexão com o
divino. DJ Marcelo afirma que com a música o ouvinte e dançarino “recebe uma mensagem
vinda diretamente do trono de Deus para a vida dele”. Isso ocorre como se os gestos,

282
seguidos pelos presentes, produzissem atualização e renovação do pensamento oferecido ao
divino (Durkheim, 1989:393-420). A conexão enfatizada por DJ Marcelo ocorre com a
tomada do corpo e da mente por potentes sonoridades que permitem a mediação. Por isso, o
DJ não pode prescindir da tecnologia, ela própria mediadora, chave de circuito de
comunicação. É a partir do DJ que a música constitui o liame entre homens, Deus e a
máquina, e ocorre a “mensagem vinda diretamente do trono de Deus...”.
Um pastor e DJ afirma que “as baladas e shows de música gospel trazem o jovem
de volta à religião”. E, mais adiante conclui “ (...) a carne também deve louvar ao
Senhor” 249. Como se vê, não há a busca pela descorporificação com vistas a alcançar o
êxtase, não divorciado de prazeres e de satisfações, comum, por exemplo, na mística
vigente no ciberespaço (Felinto: 2001). A presença do DJ coloca as máquinas como
companheiras do homem em empreitada espiritual, possível com a ruptura entre o
tecnológico e o biológico (Vianna, 1997). Isso ocorre porque vivemos em mundo no qual a
política, a economia, a medicina e o cotidiano revelam o acoplamento entre o humano e a
máquina, de estado de transe com a intrínseca relação entre os dois.
Os equipamentos e a tecnologia constituem a ação do DJ, sua extensão. Ele é o
produtor de velozes BPM – batidas por minuto -, componentes da fé, de valorização
cultural e de definição territorial. Isso exige a manifestação corporal, certo estado de
excitação dos sentidos e de disposição provocados com as máquinas e a tecnologia
(Haraway, 1991).
Como os freqüentadores, os pregadores e os DJs, os colaboradores da área de
“segurança” fazem parte dessa peculiar produção musical, fonográfica e, por que não
afirmar, de expressão de crença, de participação caracterizada por integração entre homens
e tecnologia. É uma atuação não dependente de força física; trata-se de força espiritual
acionada sob a voz do pregador, sob os beats (batidas sonoras) e orações de bastidores.
As experiências de lidar com o sagrado, individual ou coletivamente, reinscrevem
um “campo religioso mais plural e competitivo” (Brandão, 2004). Nele é possível se
deparar com possibilidades de escolhas, com encontros transformadores, com passagens,
com reinterpretações diante de contatos estabelecidos (Sanchis, 1995). Esses integram
práticas subterrâneas, mas, nem por isso, menos potentes na transformação religiosa.

249 Semerene e Cunha. “O DJ é o meu pastor”, revista Capricho, 30/11/03, p.38 e 39.

283
Surgem arranjos e rearranjos entre elementos de crenças ou espiritualidades específicas e
demarcam as “possibilidades sincréticas” (Novaes, 2004). Portanto, a visão daqueles
voltados a black music gospel e a “festa” é pautada por viabilidades de conciliações,
integrando o fazer (re) criativo comum aos promotores e aos freqüentadores.

284
Intervalo – considerações sobre um tema

A fim de tecer comentários sobre aquilo tratado até o momento, retomo o ponto
condutor da tese. O objetivo era indicar como as produções musicais, de atividades e
fonográficas contribuem para a transformação do meio evangélico brasileiro. Recorri às
noções de “encontros transformadores” e de “porosidade” para falar sobre o confronto entre
percepções e bens.
Para Sanchis, as atuações são sublinhadas por contatos, entre sistemas simbólicos,
que não provocam confusões. As elaborações ou as percepções de elementos – bens, idéias,
sentidos e ações – existentes em outro universo e os contatos viabilizam transformar o
próprio meio e construir reinterpretações daquilo posto em conexão.
Os contatos são demarcados por dupla desigualdade, pois, primeiro, ocorre no
interior de um campo de relações de poder entre líderes que impõem algo e outros que
resistem em nome daquilo considerado “puro” ou “autêntico” (as posições de “prestígio e
rejeição” podem ser invertidas em outras realidades históricas e culturais).
A segunda desigualdade ocorre com a valorização contrastiva dos elementos vistos
como integrantes do universo do outro. Seu sistema simbólico é constituído por certas
relações que podem ser utilizadas para a percepção das coisas e do vivido. Nesse sentido,
os grupos em situação de contato na sociedade ou no meio religioso estabelecem
posicionamentos diante dos elementos externos. Essa situação de confronto é demarcadora
da reinterpretação, da percepção e da própria alteração do entendimento do mundo e das
coisas.
Os pontos acima foram condutores da abordagem da “música gospel”, da black
music gospel e dos eventos, permitindo refletir sobre os posicionamentos de crítica social,
de busca por visibilidade de fiéis e da dita “cultura negra”. A reflexão acerca de encontros e
de porosidade proporcionam o entendimento do âmbito musical religioso. Como uma via
de mão dupla, viu-se que a “música gospel”, a “festa” e a black music gospel propiciaram
investigar os posicionamentos de artistas, de empresários e de igrejas diante do
entretenimento e da política. Foram apontadas proximidades e discussões com práticas
culturais não religiosas; igualmente a construção de modos de visibilidade da black music
gospel e de seus artistas.

285
Foi observado que a “música gospel” evidencia organização de rede formada por
ações e empreendimentos institucionalizados ou não e peculiares por inscreverem
combinações e arranjos feitos por empresas, igrejas e leigos em conformidade, mais ou
menos, com as regras estabelecidas (Becker, 1977). Isso é realizado ao serem adotadas
algumas expressões musicais, tecnologias e organização empresarial para a criação de um
bem religioso (cabe lembrar aqui que os entrevistados sublinharam a “comunicação
vertical” e a “horizontal”, a “qualidade” e o “profissionalismo”). Para falar sobre isso,
foram ressaltados momentos diferentes demarcados por rupturas, por continuidades e por
contatos com elementos apropriados e que passam a constituir o âmbito musical e também
religioso. Tais momentos têm a ver com aqueles produtores de “música gospel” e também
com os de black music gospel, pois ocupam posições e defendem visões diferentes.
Os especialistas, os pastores concebem e/ou reconhecem as canções abrigadas sob a
categoria “música gospel”. Elas falam de elementos diferentes; trazem concepções
distintas: uma pode falar sobre as vitórias e a prosperidade alcançadas; outra enfatiza a
transformação interior com a adesão e manifestação de fé. A capacidade dessa modalidade
musical está em transmitir a visão de mundo e o ethos religioso (Geertz, 1989). Apesar das
inovações, as canções não colocariam o esquema de pensamento em risco, a organização e
os sentidos não seriam confrontados (Sahlins, 1999), pois ocorre o cuidado com a
disseminação das visões institucionais.
A atividade de cantar não está mais restrita ao agir missionário, como parte da
inserção religiosa. Diferentemente disso, há outro ato de cantar, e este exige atuações
especificamente técnicas. Ocorre a reconfiguração do meio religioso, pois profissionais da
música também ficam encarregados da produção e da manipulação do sagrado. Têm-se
contatos e conciliação entre “mercado” e religiosidade. A liderança religiosa posiciona-se,
valoriza a proximidade com o mercado, reinterpreta a relação e sua composição.
Entre técnicos e pastores, o destaque é dado ao “mercado” como instância de
formulação daquilo considerado religioso e sagrado. A ligação advém do produzir o
destinado ao âmbito religioso e os encarregados possuem dupla inserção: estão “recebendo”
e, embaixo, no “vale”, elaboram o que esteja destinado ao alto, à “montanha”. Com a
produção musical, ocorre tentativa em reverter valorativamente a tensão entre mercado e
atividade religiosa. A formulação de canções constitui nível de passagem com práticas,

286
conhecimentos e produtos apropriados e capazes de ligar esferas opostas. Nesse sentido, o
encontro produtivo figura como contribuinte da estabilização.
Outras iniciativas foram abordadas e descortinaram um conjunto delas, ainda com
pouca visibilidade na sociedade e no meio religioso; trata-se da “festa” e da black music
gospel. Elas colocam o relaxamento das orientações comuns ao cotidiano – com cultos,
ensinamentos religiosos e trabalho voluntário –, e expressam a junção entre religiosidade,
entretenimento e política. Sua relação com o mercado resulta de arranjo cultural não rígido,
pois coloca relações de (re) combinações e de alterações de conceitos e da realidade
(Sahlins, 1999: 16, 185, 193).
É possível entender, assim, a black music gospel e a “festa” como viabilizadoras e
resultantes de ações produtivas de bens e de sentidos. Acontece a inserção de expressões
musicais de circulação mundial associadas aos povos da diáspora. Com isso, são
redesenhados os limites do grupo religioso a partir de diálogo entre distintas culturas. A
“festa” circunscreve novas possibilidades de associação, principalmente aos residentes em
áreas não centrais da cidade. Ela permite indicar que as influências musicais invadem o
meio religioso, compõem a percepção dos envolvidos acerca do mundo e dos problemas
sociais. Nesse sentido, há a inscrição de possíveis vias de proximidade e distanciamento
com o meio evangélico e com a esfera secular, seja em relação ao trabalho de
evangelização, seja com adoção de expressões musicais contemporâneas.
Fruto de iniciativa autônoma, a black music gospel coloca tensões, pois os
produtores buscam indicar sua raiz religiosa e, ao mesmo tempo, fortalecer segmento
artístico e concepções culturais. Com ela e com a “festa”, são visíveis os sentidos e os
lugares que a música, as juventudes, o entretenimento, a dança e outros elementos passam a
ter. Para alguns, os eventos e as canções formam atmosfera favorável ao desprendimento
das preocupações imediatas, das exigências da "vida séria" e vivência de fé. Também a
evangelização pode sobressair nas falas e ser cumprida com o investimento no
entretenimento, com a busca de bens inseridos em circuito internacional.
No entanto, as apropriações divergem, porque evangelizar não é o único objetivo;
ou melhor, evangelizar é tomado peculiarmente, pois proporcionar diversão, investir no
tempo livre e compor modo de entretenimento são pontos associados. Visto por esse
ângulo, pode-se compreender porque a adesão é constante e revela mudança no meio

287
evangélico, pois com a inscrição de relaxamento comportamental, de práticas e bens
inovadores, o proselitismo e a moralidade religiosa são repensados, reescritos.
A black music gospel revela não existir integração absoluta entre as diversas
atividades musicais, como com a “música gospel”. Deparei-me com redes relacionais e
biografias que extrapolam a atividade musical, pois enredam tantos elementos, colidem
com os consensos e inscrevem outras oposições. Digo isso ao focalizar o público e os
promotores. Sobre os freqüentadores, chamou-me a atenção saber como percebem as
músicas, os discursos, as imagens e a interação. Somente assim foi possível saber como as
canções e a "festa" constituem a “pista” de dança na qual ocorre o encontro entre os
dançarinos – de diferentes igrejas, com os artistas, com os DJs e, principalmente, com o
sagrado. Apesar das críticas feitas por líderes institucionalizados, muitos fiéis ultrapassam
as imposições.
Os produtores de "festa" e de música agem à margem do contexto institucional, e
atuam independentemente de suas igrejas de adesão. Alguns são diáconos, outros dirigem
grupos juvenis, porém, no tocante à formulação das atividades, não recebem apoio explícito
de suas denominações. O modo de tornar legítima sua iniciativa é investir na articulação
com alguma igreja ou contar com a presença de algum pastor ou possuidor de cargo na
hierarquia religiosa.
Os formuladores de black music gospel mantém contatos diferenciados com o meio
evangélico, exercem atividades profissionais, buscam converter e também refazem, como
os freqüentadores, os dualismos como, por exemplo, sagrado/profano, religião/mercado
bem/mal, igreja/ "mundo", alto/baixo, espírito/corpo, eles/nós. As ações de produção são
capazes de instaurar novas oposições (nunca definitivas), permitem inscrever outras vias de
interações, como novos produtores e manipuladores do sagrado.
Com isso, ocorre a redefinição e separação dos pólos sagrado, puro e superior
daquele tomado como comum, impuro e inferior. Isto é, a festa revela uma transformação
com a qual a “carne”, como diria certo pastor e DJ, e a “festa” são alçadas ao pólo superior.
Desse modo, é dada demonstração do modo de fé. Não é a fé exclusiva, não proponente de
“mundo” radicalmente invertido, pois desliza por entre as amarras das instituições (Sanchis:
1994). Assim, em nome da fé, para dar “testemunhos” dela, os leigos produtores e os
fiéis/receptores também desmontam as oposições vigentes (Velho, 1997) e, assim, indicam

288
que o “tradicionalismo” deve ser discutido. Para alguns pastores, as iniciativas colocariam
em risco constante, enfraqueceriam os limites com o “mundo”, debilitariam a “tradição”.
A apropriação de bens internacionalizados e as práticas registradas descortinam a
relação entre igualdade e desigualdade. Há tentativas em difundir a consciência crítica entre
os ouvintes de black music gospel. Deve contribuir para isso a produção imagética que
desenha o estilo do confronto apto a fazer frente não somente ao meio religioso, mas ao
empresarial. Isso indica a condução de um circuito artístico independente. As canções
trazem críticas à sociedade, às condições de vida, adicionam à linguagem elementos antes
incompatíveis com a proposta de uma distinta religiosidade Seus elaboradores, apesar de
não ocuparem postos de liderança, posicionam-se, valorizam aquilo produzido fora do meio
religioso, porém apropriado e reinterpretado no âmbito da crença.
Os organizadores de “festa” e de black music gospel e outros interessados na
conversão política e valorização cultural dialogam, buscam construir ambiente comum com
as atividades musicais existentes na cidade. Assim, apresentam outro desenho urbano, ao
ressaltarem áreas consideradas periféricas como dotadas de poderes. Os produtores
descortinam possibilidades de diversão resultantes de arranjos distintos daqueles em
vigência na Zona Sul da cidade. Além disso, não figuram somente como incentivadores de
práticas musicais, mas suas ações são concebidas com vistas a alterar a realidade com a
disseminação de crítica social; seriam os propagadores de nova maneira de expressão e de
conscientização para a qual a arte, elementos religiosos, visão política e valorização
territorial são fundamentais (Novaes, 2003).
Questões políticas estão em outras manifestações e não limitadas aos
empreendimentos musicais, mas podem contemplá-las. Elas têm lugar com aqueles
interessados também em questionar a organização do meio evangélico e articular
posicionamento político. Suas atividades apontam as assimetrias que envolvem as relações
sociais e divulgam suas exigências que tocam os níveis doutrinário e litúrgico. São inscritas
denúncias de discriminações e requisições de medidas favoráveis ao atendimento dos
interesses do segmento de fiéis composto por afro-descendentes 250. Porém, o confronto
entre os evangélicos com inserção política e os produtores musicais escreve um impasse.
Os artistas são apontados como distantes de ações “militantes”, pois estariam preocupados
250
Em 2005, ocorreu no estado de São Paulo, o “Encontro Regional Afro-descendente” realizado pelo
“Ministério de ações afirmativas para afro-descendentes”, da 3ª região eclesiástica, da Igreja Metodista.

289
com a musicalidade (possuidora de “raiz negra”; a mesma das igrejas neopentecostais) e
integrariam um meio não favorável à transformação social. Nesse sentido, a black music
gospel não teria ênfase política, seu âmbito seria exclusivamente o da cultura; mesmo
assim, teria importância para os militantes por sua capacidade em atrair o público.
A modalidade black music gospel e seus artistas enfrentam ainda outro impasse. O
reconhecimento não depende da esfera religiosa, dos pastores e das igrejas. As ações não
são reconhecidas institucionalmente; no entanto, seus produtores divulgam estar tudo
relacionado aos textos sagrados. Mas não parece ser isso que é entendido. Os promotores de
“festa” indicam o desconhecimento, o não reconhecimento da black music gospel. São
propostas contrastantes, pois a black music gospel não transmitiria aquilo peculiar ao meio,
mas contribuiria para sua alteração, desestabilizaria o ethos e a visão de mundo, já que seus
elaboradores instalam a “festa”, uma peculiar manifestação considerada inadequada ao
protestantismo. Também seria introduzida uma musicalidade não compatível com o serviço
religioso moldado em hinos e cantos produzidos por missionários europeus e norte-
americanos.
O surgimento de empresas, o questionamento de alguns produtores, a participação
de certa mídia são demarcadores de uma discussão que passa a ser alocada na dimensão do
mercado, mas de modo diferente daquele que atinge a “música gospel” - feita por
detentores de postos religiosos e que podem ocupar posições na ordem produtiva. Por sua
vez, os materiais investigados indicam que na esfera do mercado a black music gospel e os
artistas podem ser reconhecidos. O contato é diferente, pois a submissão ao princípio do
mercado define o caráter não sagrado da música e da “festa”; isso indica para posição de
poder e de status no meio religioso. Os pastores decidem como algo adquire
reconhecimento. Foi visto que o mercado e a política surgem como a esfera de
determinação de diálogo, de visibilidade e de valorização da black music gospel, de artistas
e de fiéis negros. O mercado e a política seriam os ordenadores da vida social, cabendo ao
primeiro a capacidade de reconhecer a black music gospel e os artistas. Diferentemente, a
“música gospel” é concebida fora do mercado, por ele produzida, mas não legitimada; não
obstante, depende do mercado em ver a black music gospel, a “música afro”, como
modalidade viável aos seus interesses. Então, aquilo que se deseja ser religioso somente
assim será declarado pelo equivalente profano.

290
Tudo isso abre caminhos que podem ser explorados e permite saber sobre as
transformações, e como os envolvidos percebem os bens, os serviços, as atuações, os
conflitos e as tensões com as atuações empresariais e artísticas. Os empreendimentos são
formulados por promotores detentores de técnicas, de inserções políticas e, assim,
inscrevem fluxos e nós. Desse modo, atuam no meio evangélico, estabelecem proximidades
com produções e idéias externas, igualmente integradas em fluxo internacional de bens
culturais e políticos e, assim, procuram angariar reconhecimento.
A sociedade brasileira possui pontos de porosidade, registra tantos encontros. Ao ser
visto o meio evangélico, as práticas estudadas resultam de encontros culturais produtivos
viáveis às continuidades, e fundamentais à diversificação do meio evangélico. Tudo isso
ocorre a partir de conflitos explícitos e velados, com proximidades e “rejeição”, com tantas
reinterpretações e valorizações. Assim as canções são feitas e circulam e, por fim, tantas
festas são apresentadas.

291
Bibliografia

ABPD – Relatório anual da Associação Brasileira de Produtores de Discos 2002; Rio de


Janeiro, 2003.

ABRAMO, Helena. Condição juvenil no Brasil contemporâneo. In: ABRAMO, Helena,


BRANCO, Pedro Paulo (orgs.) Retrato da juventude brasileira - análise de uma pesquisa
nacional. São Paulo: Instituto Cidadania: Editora Fundação Perseu Abramo, 2005. p. 37-72.

AGIER, Michel. Exu e o Diabo em ruas de carnaval: as identidades negras em questão


(Brasil, Colômbia). In: BIRMAN, Patrícia (org.) Religião e espaço público. São Paulo:
Attar, 2003.

ALBERT-LlORCA, Marlène. Regards anthropologiques sur la fête. Parcours, 25,


2001/2001.

ALMEIDA, Ronaldo e RUMSTAIN, Ariana. O gospel como sociabilidade religiosa.


Encontro Anual da RAM, Florianópolis, 2003.

ALMEIDA, Renato. A recreação popular, suas formas e expressões. História da cultura


brasileira. Vol. I, 1976. p.201-213. MEC/FENAME – Conselho Federal de Cultura.

ALVES, Isidoro. O carnaval devoto - um estudo sobre a festa de Nazaré em Belém.


Petrópolis: Ed. Vozes, 1980.

ALVES, Rubem. A empresa da cura divina: um fenômeno religioso? In: VALLE, Êdenio,
QUEIROZ, José. J.(org.) A cultura do povo. São Paulo: Educ, 1982. p.111-117. (texto
resposta).

AMARAL, Leila. Carnaval da alma - comunidade, essência e sincretismo na Nova Era.


Petrópolis: Ed. Vozes, 2000.

ANDRADE, Oswald. Manifesto da poesia Pau-Brasil. In: Obras Completas VI... Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. p.03-10.

ARAÚJO, Samuel. Louvor, música popular e moda evangélica no Rio de Janeiro:


utilização de músicas tradicionais em determinado contexto de globalização. Revista
Transcultural de Música (2) 1996.

ARCE, José M.V. Vida de barro duro: cultura popular juvenil e grafite. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 1999.

AUBRÉE, Marion. Tempo, história e nação. Religião e sociedade 17/1-2. p.76-88.

AYRES MACHADO, Elielma. Desigualdades raciais e ensino superior: um estudo sobre a


introdução das “leis de reserva de vagas para egressos de escolas públicas e cotas para
negros, pardos e carentes” na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2000-2004). Tese

292
de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004.

____ O ritmo da cor - raça e gêneros no bloco afro Agbara Dudu. Ciec/UFRJ, Papéis
Avulsos, 1996.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de


François Rabelais. São Paulo: Hucitec: Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.
4ª edição.

BARBOSA, José C. Negro não entra na igreja - espia da banda de fora: protestantismo e
escravidão no Brasil Império. Piracicaba: Ed. Unimep, 2002.

BARROS, José Flávio P. O banquete do Rei…Olubajé: uma introdução à música afro-


brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 2000.

BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Ed. Difel, 1982.

BASTIDE, Roger. As Américas negras. São Paulo:Difel, 1974.

BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.

BECKER, Howard. Mundos artísticos e tipos sociais. In: VELHO, Gilberto (org.) Arte e
Sociedade - ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977. p.9-26.

BERCOVITCH, Sacvan. A retórica como autoridade: puritanismo, a Bíblia e o mito da


América. In: SACHS, Viola (et al) Brasil & EUA: Religião e identidade nacional. Rio de
Janeiro: Graal, 1988. p.141-158.

BIRMAN, Patrícia. Cultos de possessão e pentecostalismo no Brasil: passagens. Rio de


Janeiro, Religião e sociedade v.17 nº1-2, 1996. p. 90-109.

_____ Construção da negritude: notas preliminares. In: SILVA, Jaime, BIRMAN, Patrícia
e WANDERLEY, Regina. Cativeiro e liberdade. Rio de Janeiro: UERJ, 1989. p. 191 - 198.

BLANES, Ruy Llera. Un mercado musical gitano Cristiano: una reflexión desde la Iglesia
evangélica Filadélfia en Espana y Portugal. Apresentado no X Congreso de las FF.AA.EE,
Barcelona, 2005.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar e dizer. São Paulo: Ed.
Universidade de São Paulo, 1998.

________ Regra da arte. São Paulo: Cia das Letras: 1996.

___ ____ A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1992.

293
BRAGA, Henriquetta R. F. Música sacra evangélica no Brasil. Contribuição a sua história.
Rio de Janeiro, Livraria Editora Cosmo, 1961.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Fronteira da fé – alguns sistemas de sentido, crenças e


religiões no Brasil de hoje. Revista Estudos Avançados, v. 18, nº 52, 2004.

______ O festim dos Bruxos: estudos sobre a religião no Brasil. Campinas: Ed. Unicamp;
São Paulo: Ícone, 1987.

____ ____ Sacerdotes de viola: rituais religiosos do catolicismo popular em São Paulo e
Minas Gerais.Petrópolis: Vozes, 1981.

BRENNER, Ana Karina et al. Culturas do lazer e do tempo livre dos jovens brasileiros. In:
ABRAMO, Helena, BRANCO, Pedro P. Martoni (orgs.) Retratos da juventude brasileira –
análises de uma pesquisa nacional. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.

BURDICK, John. Pentecostalismo e identidade negra no Brasil: mistura possível? In:


MAGGIE, Yvonne, REZENDE, Claudia (orgs.) Raça como retórica - a construção da
diferença. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p.186-212.

_____ Blessed Anastácia: women, race, and popular christianity in Brazil. New York:
Routledge, 1998.

BURITY, Joanildo. Cultura e identidade no campo religioso. Estudos Sociedade e


Agricultura. nº 09 1997. p. 137-177.

BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras,
1995. 2ª edição.

CABRAL, Sérgio. As escolas de samba. – o quê, quem, como, quando e por quê. Rio de
Janeiro: Ed: Fontana, 1974.

CAMPÁ, Wânia A. Homens de negócio, homens de fé: novas formas de participação


religiosa. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Instituto Universitário de Pesquisas do
Rio de Janeiro, 1998.

CAMPBELL, Colin. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Rio de


Janeiro: Rocco, 2001.

CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de um


empreendimento neopentecostal. Petrópolis: Ed. Vozes; São Paulo: Simpósio Ed.:
Universidade Metodista de São Paulo, 1997. 2ª edição.

CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997.

294
CANEVACCI, Massimo. Antropologia da comunicação visual. Rio de Janeiro: DP&A,
2001.

CARRANO, Paulo C. R. Os jovens e a cidade - identidades e práticas culturais em Angra


de tantos reis e rainhas. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Faperj, 2002.

CARVALHO, J.Jorge. Um espaço público encantando. Pluralidade religiosa e modernidade


no Brasil. Série Antropologia, nº 249, 1999.

CAVALCANTI, Mª Laura V.C. Carnaval carioca. Dos bastidores ao desfile. Rio de


Janeiro:Funarte: UFRJ, 1995.

CECCHETTO, Fátima. Violência e estilos de masculinidade. Rio de Janeiro: Editora FGV,


2004.

_____ As galeras funk cariocas: entre o lúdico e o violento. In: VIANNA, Hermano (org.)
Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 1997, p.95-118.

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. Rio


de Janeiro: Francisco Alves, 1978.

CONTINS, Márcia. Tornando-se pentecostal. Um estudo comparativo sobre pentecostais


negros nos EUA e no Brasil. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em
Comunicação Social, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 1995.

CUNHA, Olívia Mª Gomes da. Bonde do mal – notas sobre território, cor, violência e
juventude numa favela do subúrbio carioca. In: MAGGIE, Yvonne, REZENDE, Claudia
(orgs.) Raça como retórica - a construção da diferença. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002. p. 83-153.

_____ “Fazendo a "coisa certa": reggae, rastas e pentecostais em Salvador”. Revista


Brasileira de Ciências Sociais, nº 23, ano 8, 1993. p. 120-137.

DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis:


Vozes, 1983; 3ª edição.

_____ Carnavais, malandros e heróis – para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de
Janeiro: Zahar, 1979.

DAYRELL, Juarez. A música entra em cena: o rap e o funk na socialização da juventude.


Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

DIAS, Márcia T. Os donos da voz - indústria fonográfica brasileira e mundialização da


cultura. São Paulo: Boitempo editorial, 2000.

295
DOUGLAS, Mary. Estilos de pensar – Ensayos críticos sobre el buen gusto. Barcelona:
Editorial Gedisa, 1998.

_____ Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 1966.

____ ____ Implicit meanings. Essays in anthropology. Routledge & Kegan Paul, 1975.
p.83-229.

DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa - o sistema totêmico na


Austrália. São Paulo: Ed. Paulinas, 1989.

FARDON, Richard. Purity and danger - Revisited. In: Mary Douglas: an intellectual
biography. Routledge. London and New York, 1976. p.75-101.

FARIAS, Patrícia Silveira de. Belezas negras à vista: presença negra na publicidade. In:
TRAVANCAS, Isabel, FARIAS, Patrícia (orgs.) Antropologia e comunicação. Rio de
Janeiro: Garamond, 2003. p.209-224.

_____ Pegando uma cor na praia: relações raciais e classificação de cor na cidade do Rio
de Janeiro. Tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1999.

FELINTO, Erick. Tecnognose: tecnologias do virtual, identidade e imaginação espiritual.


Artigo apresentado no encontro da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da
Comunicação – Intercom/ 2001, disponível em http//www.rizoma.net, acessado em
27/09/05.

FERNANDES, Nelson da Nóbrega. Festa, cultura e identidade nacional. As escolas de


samba do Rio de Janeiro (1928-1949). Tese de Doutoramento. Instituto de Geociências,
Universidade Federal de Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Junho 2001.

FERNANDES, Rubem C (et al). Novo nascimento - os evangélicos em casa, na igreja e na


política. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

FERRETI, Sérgio. Estudos de festas populares e do sincretismo religioso. Palestra


apresentada no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de
Pernambuco, 2001; disponível em www.ufma.br/canais/gpmina.

FONSECA, Alexandre B. Evangélicos e mídia no Brasil. Dissertação de Mestrado,


Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, Universidade do Estados do Rio de Janeiro, 1997.

FREDDI Jr., Sérgio. Música cristã contemporânea – renovação ou sobrevivência. São


Paulo: Editorial Press, 2002.

FREYRE, Gilberto. O Manifesto. In: QUINTAS, Fátima (org.) Manifesto regionalista.


Recife: Editora Massangana: Fundação Joaquim Nabuco, 1996. p.46-75.

296
FRIGERIO, Alejandro. Artes negras: uma perspectiva afrocêntrica. Estudos Afro-Asiáticos,
nº 23, 1992. p. 175-190.

GARMA, Carlos N. Del himnario a la industria de la alabanza: un estúdio sobre la


transformación de la música religiosa. Revista da Associação de Cientistas Sociais da
Religião no Mercusul, Porto Alegre, ano 02, nº 02, 2000. p. 63-85.

GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis:


Ed. Vozes, 1998.

_____ A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara Koogan, 1989.

GILLIAN, Ângela. A ideologia do crossover e a sua relação com o gênero. Cadernos Pagu
(6-7), 1996. p. 227-240.

GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34;
Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.

GLUCKMAN, Max. Les rites de Passage. In: GLUCKMAN, Max (ed.) Essays on the ritual
of social relations. Manchester: Manchester University Press, 1962.

GODI, Antônio J.V. dos Santos. Música afro-carnavalesca: das multidões para o sucesso
das massas elétricas. In: SANSONE, Lívio, SANTOS, Jocélio Teles (orgs.) Ritmos em
trânsito: sócio-antropologia da música baiana. São Paulo: Dynamis Editorial; Salvador:
Programa A Cor da Bahia e Projeto S.A.M.B.A.,1997. p. 73-96.

GOFF Jr., James. Close harmony – a history of southern gospel. The University of North
Carolina Press, 2002.

GONÇALVES, Tânia Mª. O grito e a poesia do gueto: rappers e movimento hip-hop no


Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Antropologia, Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro, 1997.

GUERREIRO, Goli. Um mapa em preto e branco da música na Bahia: territorialização e


mestiçagem no meio musical de Salvador (1987/1997). In: SANSONE, Lívio, SANTOS,
Jocélio Teles (orgs.) Ritmos em trânsito: sócio-antropologia da música baiana. São Paulo:
Dynamis Editorial; Salvador: Programa A Cor da Bahia e Projeto S.A.M.B.A.,1997. p. 97-
122.

HALL, Stuart. Da diáspora – identidades e mediações culturais. SOVIK, Liv (org.), Belo
Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da Unesco no Brasil, 2003.

_____ A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.

297
HANNERZ, Ulf. Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras-chave da antropologia transnacional.
Mana vol. 03 nº 01, 1997. p. 7-39.

HARAWAY, Donna. A Cyborg Manifest: Science, Technology, and


Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century. In: Simians, Cyborgs and Women: The
Reinvention of Nature. New York: Routledge, 1991. p.149-181.

HINSON, Glenn. Fire in my bones: Transcendence and the holy spirit in African America
Gospel. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 2000.

HOLANDA, Sérgio B. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993. 25ª ed.

JAUSS, Hans R. A literatura como provocação. Lisboa: Passagens, 1993. p.5-139.

JUNGBLUT, Airton Luiz, Os evangélicos brasileiros e a colonização da Internet. Revista


da Associação de Cientistas Sociais da Religião no Mercosul, Porto Alegre, ano 04, nº 04,
2002. p. 149-166.

KIDDER, Daniel e FLETCHER, James. O Brasil e os brasileiros. Rio de Janeiro:


Companhia Editora Nacional, 1941. vol. 1.

LASEN, Amparo. Notas de felicidad extrema, en papeles del CEIC, nº 09, Universidad del
Pais Basco, http://www.ehu.es/CEIC/papeles/9.pdf, acessado em 20/09/04.

LEACH, Edmund. Antropologia. In: DA MATTA, Roberto (org.). São Paulo: Ática, 1983.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas, SP: Papirus, 1997. 2ª


edição.

_____ O feiticeiro e sua magia. Antropología estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1996. 5ª edição. p. 193- 213.

LÜHNING, Ângela. Música: palavra-chave da memória. In: MATOS, Cláudia Neiva de,
MEDEIROS, Fernanda T., TRAVASSOS, Elizabeth (orgs.) Ao encontro da palavra
cantada – poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001. p.23-33.

MACHADO, Mª das Dores e FIGUEIREDO, Fabiana. Gênero, religião e política: os


evangélicos nas disputas eleitorais da cidade do Rio de Janeiro. Ciências Sociais e Religião,
ano 04, nº 04, 2000. p. 125-148.

MAFRA, Clara. Os evangélicos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

_____ Gênero e estilo eclesial entre os evangélicos. In: FERNANDES, R.C.(Org.) Novo
nascimento - os evangélicos em casa, na igreja e na política. Rio de Janeiro: Mauad, 1998,
p. 224-250.

298
MAGNANI, José G. De perto e de dentro: notas para etnografia urbana. Ver: www.n-a-
u.org, acessado em 06/03/05. Publicado originalmente na Revista Brasileira de Ciências
Sociais, vol.17, nº 49, SP/ jun. de 2002.

_____ Festa no Pedaço: cultura popular e lazer na cidade. São Paulo: Hucitec/Unesp,
1998; 2ª edição.

MALINOWSKI, Bronislaw. Objeto, método e alcance desta pesquisa. In: ZALUAR, Alba
(org.) Desvendando máscaras sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1975. p. 39-
61.

MARIANO, Ricardo. Análise sociológica do crescimento pentecostal no Brasil. Tese de


doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação do Departamento de Sociologia da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2001.

MARTÍ I PEREZ, Josep. Musica y etnicidad: una introducción a la problematica. Revista


Transcultural de Música.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia.


Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.

MAUGER, Gerard. La ‘jeunesse dans lês ages de la vie’. Une definiton préalable.
Temporaliste, 1989.

MAULTSBY, Portia. The impact of gospel music on the secular music industry. In:
CAPONI, Gena (ed.) Signifyin(g), sanctifyin´,and slam dunking: a reader in African
american expressive culture. The University of Massachusetts Press, 1999. p.172-190.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo:EPU, 1974. vol.II.

MILLER, Joseph C. Angola central e sul por volta de 1840. Estudos Afro-Asiáticos, nº 32,
dez./1997. p. 07-53.

MONTEIRO, Duglas. Igrejas, seitas e agências: aspectos de um ecumenismo popular. In:


VALLE, Êdenio, QUEIROZ. José. J.(org,) A cultura do povo. São Paulo: Educ, 1982. p.81-
111.

MORELLI, Rita C.L. Indústria Fonográfica - um estudo antropológico. Campinas, SP:


Editora da UNICAMP, 1991.

NASCIMENTO CUNHA, Magali. Vinho novo em odres velhos - um olhar comunicacional


sobre a explosão gospel no cenário religioso evangélico do Brasil. São Paulo, Doutorado
em Ciências da Comunicação, Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo,
2004.

299
NOVAES, Regina. Os jovens ‘sem religião’: ventos secularizantes, ‘espírito de época’ e
novos sincretismos. Notas preliminares. Revista Estudos Avançados, v.18, nº 52, 2004. p
321-330.

______ Errantes do novo milênio: salmos e versículos bíblicos no espaço público. In:
BIRMAN, Patrícia (org.) Religião e espaço público. São Paulo: Attar, 2003.

____ ____ Ouvir para crer: os Racionais e a fé na palavra. Religião e Sociedade, vol.20 , nº
01, 1999. p.65-91.

____ ___ Apresentação. In: FERNANDES, R.C.(Org.) Novo nascimento - os evangélicos


em casa, na igreja e na política. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. p. 7-10.

____ ____ Os escolhidos de Deus - pentecostais, trabalhadores e cidadania. Rio de Janeiro:


Marco Zero, 1985a.

NOVAES, Regina e FLORIANO, Mª Graças. O negro evangélico. Rio de Janeiro: Iser.


1985b.

OLIVER, Paul. Gospel. In: OLIVER, Paul, HARRISON, Max, BOLCOM, Willian. The
new grove: gospel, blues and jazz with spirituals and ragtime. London: MacMillan, 1986. p.
189-222.

ORO, Ari. Neopentecostalismo: dinheiro e magia. ILHA - Revista de Antropologia, vol., 03


nº01 2001. p.71-85.

_____ "Podem passar a sacolinha": um estudo sobre as representações do dinheiro no neo-


pentecostalismo brasileiro. Cadernos de antropologia, n. 09, 1992. p. 07-44.

ORO, Ari Pedro e STEIL, Carlos Alberto. O comércio e o consumo de artigos religiosos no
espaço público de Porto Alegre –RS. In: BIRMAN, Patrícia (org.) Religião e espaço
público. São Paulo: Attar, 2003. p.309-332.

ORTIZ, Renato. Anotações sobre religião e globalização. Revista Brasileira de Ciências


Sociais, vol.16, nº 47, out./2001. p.59- 74.

_____ Religiões populares e indústria cultural. Religião e Sociedade, nº 05, 1980.

PARDUE, Derek. Brazilian hip hop material and ideology: a case of cultural design. Image
and Narrative. Image & Narrative (10) 2005, disponível em
http://www.imageandnarrative.be, acessado em 22/07/05.

PARK, Robert Ezra. A Cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano


no meio urbano. In: VELHO, Otávio (org.) O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar
editores. 1976, p.26-67.

300
PEIRANO, Marisa. Rituais como estratégia analítica e abordagem etnográfica. Série
Antropologia, nº 305, UNB, 2001.

PEREIRA DE QUEIROZ, Mª. Isaura. Identidade nacional, religião, expressões culturais: a


criação religiosa no Brasil. In: SACHS, Viola (et al) Brasil & EUA: Religião e identidade
nacional. Rio de Janeiro: Graal, 1988. p.59-83.

PINHEIRO, Márcia Leitão. Da Pacificação - o ‘Basta!Eu quero paz’ e suas inscrições


artísticas. BIRMAN, Patrícia, LEITE, Márcia (orgs.) Um mural para a dor – movimentos
cívicos-religiosos por justiça e paz. Editora UFRGS, 2005. p. 287-311.

_____ O proselitismo evangélico: musicalidade e imagem. Cadernos de Antropologia e


Imagem, 7 (2): 1998. p. 57-67.

____ ____ A linguagem do funkeiro: inovações e estratégias conversionistas em igrejas


neopentecostais no Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1997.

PRANDI, Reginaldo. De africano a afro-brasileiro: etnia, identidade, religião. Revista


USP, nº 46, jun-ago 2000. pp.52-65.

REAGON, Bernice J. If you don´t go, don´t hinder me: the African American sacred song
tradition. Lincoln: University of Nebraska Press, 2001.

RIBEIRO, Ana P. Alves. Samba são pés que passam fecundando o chão... Madureira:
sociabilidade e conflito em um subúrbio musical. Dissertação de Mestrado em Ciências
Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2003.

RIVERA, Paulo B. Tradição, transmissão e emoção religiosa: sociologia do protestantismo


na América Latina. São Paulo: Olho d´Água, 2001.

ROCHA, Everardo, BARROS, Carla. Cultura, mercado e bens simbólicos: notas para uma
interpretação antropológica do consumo. In: TRAVANCAS, Isabel, FARIAS, Patrícia
(orgs.). Antropologia e comunicação. Rio de Janeiro: Garamond, 2003. p.181-208.

ROSE, Tricia. Flow, layering, and rupture in postindustrial New York. In: CAPONI, Gena
(org.) Signifyin(g), santifyin´, and slam dunking: a reader in African American expressive
culture. Amherst, University Massachusetts Press, 1999. p.190-221.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1999.

SANCHIS, Pierre. Desencantamento e formas contemporâneas do religioso. Revista da


Associação de Cientistas Sociais do Mercosul; Porto Alegre, ano 3, nº 3, out. 2001. p.27-
43.

_____ Da quantidade à qualidade – como detectar as linhas de força antagônicas de


mentalidades em diálogo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 33, ano 12, fev. 1997.

301
____ ___ As tramas sincréticas da história. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº. 28,
jun.1995. p.123-138.

____ ___ Será o catolicismo “naturalmente” propenso ao sincretismo? (Base para um


debate). Rio de Janeiro, ISER, 1994.

SANSONE, Lívio. Negritude sem etnicidade: o local e o global nas relações raciais e na
produção cultural negra do Brasil. Salvador: Edufba: Pallas, 2004.

SANTOS, Edmilson, MANDARINO, Cláudio. Juventude e religião: cenários no âmbito do


lazer. Revistas de Estudos da Religião, nº 03, ano 05, 2005.

SANTOS, Nilton Silva. Cantores e compositores da música popular brasileira ou Da arte


de comprar e vender autoria. Tempo e Presença nº 338,
Ano 26; nov/dez. de 2004. p.36-40.

SEGATO, Rita Laura. Formações de diversidade: nação e opções religiosas no contexto da


globalização. In: ORO, Ari Pedro, STEIL, Carlos Alberto (orgs.) Globalização e religião.
Petrópolis, RJ: Vozes; Porto Alegre, RS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
1999. p.219-247. 2ª edição.

SIEPIERSKI, Carlos Tadeu. "De bem com a vida": o sagrado num mundo em
transformação. Um estudo sobre a Igreja Renascer em Cristo e a presença evangélica na
sociedade brasileira contemporânea. Tese de doutorado em Antropologia Social,
Departamento de Antropologia Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, 2001.

SILVA, José C. Rap na Cidade de São Paulo: Música, Etnicidade e Experiência Urbana.
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Campinas, Unicamp, 1998.

SIMMEL, Georg. Sociabilidade: um estudo de sociologia pura ou formal. MORAES


FILHO, E. (Org.). Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p. 165-181.

_____ A metrópole e a vida mental. In:VELHO, Otávio (org.) O fenômeno urbano. Rio de
Janeiro: Zahar Ed., 1976. p. 11-25.

SOUTO, Jane. Os outros lados do funk carioca. In: VIANNA, Hermano (org.) Galeras
cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997. p.
59-93.

SPERA, Enzo. A 'presença' dos personagens nos ex-votos fotográficos do sul da Itália.
Cadernos de Antropologia e Imagem, Rio de Janeiro, 7(2):71-91, 1998.

STEIL, Carlos Alberto. Pluralismo, modernidade e tradição – transformações do campo


religioso. Revista da Associação de Cientistas Sociais do Mercosul; Porto Alegre, ano 3, nº
3, 2001. p.115-129.

302
THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987. vol. II.

TINHORÃO, José R. Os sons que vêm da rua. São Paulo: Editora 34, 2005.

_____ Os sons dos negros no Brasil. Cantos – danças – folguedos: origens. São Paulo:
Ed.Art, 1988.

TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar


Ed., 2000.

_____ Redesenhando as fronteiras do gosto: estudantes de música e diversidade musical.


Horizontes Antropológicos/ UFRGS.IFCH. Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social ano 05, nº 11, 1999; p.119-144.

TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.

_____ The Forest of symbols – aspects of Ndembu ritual. Ithaca: Cornel University Press,
1967.

VASCONCELLOS, Francisco. Agremiações carnavalescas da zona rural da Guanabara.


RJ: Ministério da Educação e Cultura, Departamento de Assuntos Culturais, 1971.

VELHO, Otávio. Globalização: antropologia e religião. Revista Mana, 1997, v. 03, nº 01, p.
133-154.

VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: ED. UFRJ,
1995.

_____ O mundo funk carioca. Rio de Janeiro, 1988.

VILLAS-BOAS, Glaucia. Recepção, cultura e público. In: VILLAS BOAS, Gláucia e


GONÇALVES, Marco A. (orgs.) O Brasil na virada do século: o debate dos cientistas
sociais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O nativo relativo. Mana: 8(1): 113-148, 2002.

WADE, Peter. Compreendendo a ‘África’ e a ‘etnicidade’ na Colômbia: a música e a


política da cultura. Estudos Afro-Asiáticos, ano 25, nº 01, 2003. p. 145 -178.

WEBER, Max. Economía y sociedad - esbozos de sociología comprensiva. México: Fondo


de Cultura Económica, 1998.

____ A ética protestante e o espírito do capitalismo. Lisboa: Editorial Presença, 1996.

303
WIRTH, Louis. O urbanismo como modo de vida. In:VELHO, Otávio (org.) O fenômeno
urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976. p. 90-113.

YOUNG, Alan. Woke me up this morning: black singers and the gospel life. Jackson:
University Press of Mississippi, 1997.

Materiais fonográficos

FELICIANO AMARAL - LP “O Filho Pródigo”, Favoritos Evangélicos 008.

FELICIANO AMARAL - LP “Sou de Jesus”, Favoritos Evangélicos 043.

FRANCISCO JC - CD “Minha vida não para”, licenciado por Francisco Onorato Fº.
2205741108796.

GILBERTO GIL. CD “Unplugged’, Warner Music Brasil Ltda. 092746048-2.

GOSPEL NIGHT - CD “Gospel Night” - A Festa, Vol. I BV films 029.

GOSPEL NIGHT – CD “Gospel Night” - A Festa. Vol. II, licenciado por Charles Duarte.
750.255.

MARA MARAVILHA – CD “Deus de Maravilhas”, Records Produções e Gravações -


LRCD 197.

OFICINA G3 – CD “O Tempo”, MK Publicitá 109.631.

PREGADOR LUO - CD “Antigas idéias novos adeptos”, 7Taças/ APC 16 007-3.

ZECA BALEIRO – CD “Por onde andará Stephen Fry”?, MZA Music 011241-2.

Periódicos

AZIZ Fº. “Black money”, Isto é, edição nº 1844, 16/02/05, disponível em


www.terra.com.br/istoe.

CINTRA, Mônica R. Editorial, revista Show Gospel, ano 03, nº 13, 2003.

COIMBRA, Isabel. “A dança no louvor e na adoração”, revista de Encontro Nacional de


Louvor Profético, 2002, nº05, p.17.

DAVET, Stéphane. “Le rap français, entre rébellion et moralisation”, Le Monde, 09/05/02,
disponível em http://www.lemonde.fr, acessado em 11/05/02.

304
DIAS, Juliana. “A origem da música gospel e secular vem da África”, disponível em Portal
Elnet, acessado em 11/02/04.

_____ “Música afro enfrenta o desafio de não ser comercial”, disponível em Portal Elnet,
acessado em 11/02/04.

FRANÇA, Jamari. “Spirituals – a alma negra da canção”, Veredas, dez. 2001. p. 25-29.

GADELHA, Silvia. “Gospel Line agora no Rio”, revista Show Gospel, ano 03, nº 11. p.27,
03/2003.

_____ “Talento e Determinação”, revista Show Gospel, ano 03, nº 11. p.36.

KIKUTI, Vera. “De volta à TV”, Show Gospel, ano 03, edição 09, set.2002. p.14,15.

LIASCH, Jonas. “Músicos do palco x ministros do altar”. Revista Show Gospel, ano 04, nº
13. p.22.

LEAL, Isabel. “You entertainment and You gospel”, revista Show Gospel, ano 05, nº 20,
p.22-23.

LOPES, Nei. “Os orixás saúdam os evangélicos de Irajá”, disponível em


http://clipping.planejamento.gov.br, publicado em O Globo, 16/01/04, acessado em
07/08/05.

LOPES, Nei. “Irajá dá samba, sim!”, disponível em: http://jbonline.terra.com.br, publicada


em 02/03/2003, acessado em, 15/07/05.

MARSALIS, Wynton. “Living the music: brazilians and americans Exchange traditions”,
The New York Times, 17/05/2002.

MONTEAGUDO, Clarissa e MOTTA, Flávia. “Chame sob a ponte”, O Dia, 24/03/04.

MUNDO NEGRO. “B.Unit Festival”, disponível em www.mundonegro.com.br, acessado


em 25/06/05.

RITA DE CÁSSIA, NORONHA, Silvia e OLIVEIRA, Tetê. “Cultos ocultos”, disponível


em www.vivafavela.org.br, acessado em 25/08/04.

RODIGUES, Virgínia. “E vai rolar a festa”, revista Enfoque Gospel, edição 19, ano 02,
p.52-58, 2003.

SANCHÍS, Ima. “Emmanuel Pierre Djob, cantante y guitarrista de gospel. ‘Valíamos


menos que una silla’”, La Vanguardia, acessado em 20/08/2002

SEMERENE, Bárbara e CUNHA, Gustavo. “O DJ é o meu pastor”, revista Capricho,


30/11/03.

305
SUPER GOSPEL. “festival tem como objetivo premiar o melhor da black music nacional”,
disponível em www.blackgospelbrasil.yahoo.com/groups/blackgospelbrasil, acessado em
05/08/04.

TAVOLARO, Douglas.“Gospel na pista”, revista Enfoque Gospel, ano 01, edição 09,
04/2002. p.24.

TR. “Happy hour à moda do subúrbio ...”, disponível www.pcg.com.br/eblack, acessado


em 16/07/05

TRISTÃO, Nelson. “Mercado Cristão”, revista Show Gospel, out. 2004, ano 05, edição 17.
p. 32.

VIANNA, Hermano. Filosofia do dub, Folha de S. Paulo, 2003.

_____ Tecnologia do transe, Folha de S. Paulo, 06/04/97.

Textos não acadêmicos

ALVES, Laérton Ferreira. “III – Música contemporânea – instrumentos barulhentes e


múltiplos tambores da bateria e dança como atrativos para fazer a igreja crescer”,
disponível em http://solascriptura-tt.org, acessado em 20/11/03.

CIRILO, Antônio. “As duas montanhas”, revista Show Gospel, out. 2004, ano 05, edição
17, p. 30.

DORNELLES, Vanderlei - Liturgia pentecostal rompe barreiras entre o religioso e o


popular. www.musicaeadoração.com.br/artigos/meio/liturgia-pentecostal.htm, acessado em
19/07/05.
_____ Sagrado e profano na religião e no carnaval. www.musicaeadoracao.com.br,
acessado em 19/07/05.

FLNE. “Manifesto do Fórum de Lideranças Negras Evangélicas”, disponível em


http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, acessado em 22/11/03.

FLNE. “Relatório do Fórum de Lideranças Negras Evangélicas”, disponível em


http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, acessado em 22/11/03.

FONTANA, Cristina. “Juventude não é um período da vida”, disponível em


http://www.projetovidanova.com.br, acessado em 07/08/05.

Serginho DJ´esus. “O movimento black gospel e o movimento negro evangélico”,


disponível em www.pcg.com.br/eblack, acessado em 11/06/05

306
SILVA, Hernane F. “Movimento negro evangélico, um mover do Espírito
Santo”.http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, em 23/05/04.

_____ “As igrejas evangélicas neopentecostais e os afrodescendentes”, disponível em


http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas.

THEODOR, Adrian. “O uso da música soul na adoração”, disponível em


www.musicaeadoracao.com.br, acessado em 19/07/05.

TR. “15 anos de Rio Charme – o bairro das escolas de samba..., disponível em
www.pcg.com.br/eblack, acessado em 14/07/05.

Sites consultados

http://www.aescrj.com.br, acessado em 13/07/05.


www.afroreggae.com.br, acessado em 16/06/04 e 12/11/04.
http://agrocon.sites.uol.com.br/index2.htm, acessado em 24/02/05.
www.amar.art.br, acessado em 06/12/04.
http://br.nusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, acessado em 22/11/03 e
23/05/04.
www.cese.org.br/campanhas/juventude.doc, em 06/11/04.
http://www.cmal.org, acessado em 12/10/2005.
www.dicionariompb.com,br, acessado em 09/05/06.
www.dughettu.com.br, acessado em 24/02/05.
www.ecad.org.br, acessado em 06/12/04.
www.elnet.com.br, acessado em 25/11/02 e 11/02/04.
www.enraizados.com.br, acessado em 22/06/05.
www.estadao.com.br, acessado em 19/09/05.
www.gospelbeat.com.br, acessado em 07/04/05.
www.gospelnight.com.br, acessado em 15/02/05.
www.igrejauniversal.org.br, acessado em 27/10/05.
www.imusica.com.br, acessado em 28/01/05.
www.linerecords.com.br, acessado em 22/04/02.
www.lonacultural.com.br, acessado em 15/05/06
www.mkpublicita.com.br, acessado em 11/07/02.
www.mundonegro.com.br/noticias, acessado em 25/06/05.
www.oficinag3.com.br, acessadas em 19/05/02.
http://ospiti.peacelink.it/zumbi/memoria, acessado em 06/11/04.
www.portalgeo.rio.rj.gov.br, acessado em 12/05/06
www.paulinas.org.br , acessado em 28/01/05.
http://www.pcg.com.br/eblack, acessado em 25/06/05.
www.projetovidanova.com.br, acessado em 27/04/05.
www.portalafro.com.br, acessado em 8/07/05.
www.7tacas.com.br, acessado em 23/08/02.
www.tribuna.inf.br, acessado em 09/10/04.
www.vineyardmusic.com.br, acessado em 09/10/04.
www.vivafavela.org.br, acessado em 25/08/04.

307
ANEXOS I

i - Encartes Fonográficos

Apocalipse XVI

308
309
Feliciano Amaral

310
Feliciano Amaral /verso

311
Francisco JC

312
Francisco JC / verso

313
Gospel Night I

314
Gospel Night I/ verso

315
Gospel Night II

316
Mara Maravilha

317
Oficina G3

318
Oficina G3 / verso

319
Rebanhão

320
Rebanhão / verso

321
Anexos II

ii - Encontro Nacional de Louvor Profético

Revista

322
Cartão de identificação

323
Cartão de identificação

324
Cartaz

325
Salão de vendas
Empresas

326
Freqüentadores

327
Freqüentadores

328
Anexos III

iii - EXPLOSÃO GOSPEL

Propaganda

329
Convite

330
Ficha de Pontuação

331
Apresentação de candidato

332
Apresentação de candidato

333
Público

334
Anexos IV

iv - Gospel Beat

Componentes

www.gospelbeat.com.br

335
Panfleto / frente

336
Panfleto/ verso

Mensagem

Assunto: Gospel Beat - Black Gospel Party - 19 de agosto

Fala Povo Black...

Dia 19 de agosto, a Zona norte do Rio de Janeiro vai ferver movida a


sonoridade black gospel. É a segunda edição do ano da Festa Black
"GOSPEL BEAT".

Estamos na sexta edição da festa, segunda nesse ano. Em junho o salão


de festas Paraná balançou ao som dos melhores DJ's cariocas de black
gospel apresentando as novidades e seus remixes exclusivos e da Jam
Session do Grupo R.E.P e convidados.

Seguindo a mesma fórmula com muito som e unção, estaremos de volta no


dia 19 de agosto pra fazer você dançar e curtir um bom som, uma boa
música com gente bonita que ama a Deus.

Nas pickups os DJs:


Dj "W" (R.E.P), Marcelo Araujo (Gospel Night).

Dia 19 de agosto, o povo black do Rio de Janeiro se encontra na Gospel


Beat - Black Gospel Party.

Gospel Beat (Black Gospel Party)


Dia 19 de agosto às 21hs
Av. Vicente de Carvalho, 80 - Vaz Lobo.
Ingressos a R$ 5,00
Paz a todos e vejo vcs lá.
L-ton "O.S.K"
www.gospelbeat.com.br
PS.: Segue em anexo a filipeta da festa

337
Convite – frente/verso

338
Mensagem

Olá a todos,

Enquanto o site do G-hertz não sai, estou disponibilizando abaixo o


link do "My Space" do G-hertz, estúdio de produção de black music no
Rio de Janeiro.

Lá você escutará 04 poup porri's de alguns trabalhos de produção que


desenvolvemos nesse ano:

- Rapper Fydell (FWOS)


- Bossa Rap / Vinicius Terra
- R.E.P
- Geração Hip Hop (SESC - Rio de Janeiro)

Aproveitamos para informar que o cd do R.E.P está pronto somente


aguardando resolução de algumas burocracias para prensagem.

www.myspace.com/visioghertz

Paz a todos,
VISIO
www.gospelbeat.com.br

339
Convite

340
Anexos V

v - Gospel Night / cartaz

341
Ingressos

342
Entrada de “casa de festa” /Irajá

343
Clube / panorama Irajá

344
Freqüentadores /Irajá

345
Freqüentadores

Gospel Night Fantasy

346
Gospel Night Fantasy

347
Anexos VI
vi - Soul de Cristo

Panfleto – frente

348
Filipeta

349
Cartaz /Irajá

350
Cartaz de bar

351
Panfleto – frente/verso

352
Freqüentadores

353
Freqüentadores

354
Freqüentadores

355
Pregador

356
Conjunto Musical

357
Divulgação

358

You might also like