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NA MESMA TECLA

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Délcio Vieira Salomon, IWA
Andersen, Roberto
Viravolta/Roberto Andersen. – São Paulo
All Print Editora, 2007.

ISBN 85-7718-058-1
1. Romance brasileiro I-título

06-8757 CDD-869.93

Índices para catálogo sistemático:


1. Romances : Literatura brasileira 869.93

NA MESMA TECLA

2007
SÃO PAULO - BRASIL
NA MESMA TECLA
Copyright © 2007 by Délcio Vieira Salomon, IWA
Todos os direitos reservados.
Edição única – proibida a venda e reprodução
parcial ou total sem autorização do autor.

Capa, projeto gráfico, editoração e impressão:

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(11) 5574-5322

CAPA:
RODRIGO LIMA DE ANDRADE

À Lena
companheira e inspiradora

Aos filhos
Tânia, Carla e Leo

Aos netos
Luana (in memoriam), Raissa, Tassila e Ian.
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS:

À Terezinka Pereira,
por ter acreditado, em pouco tempo de convivência, no “poeta”
e por tê-lo projetado internacionalmente (quem dera fosse
verdade tudo que escreveu a meu respeito!)

Á Clara Grimaldi,
amiga de longa data e professora aposentada da UFMG
pela paciência em rever os poemas, sugerir alterações e, so-
bretudo, pelo incentivo jamais esquecido

Ao Wilson Salgado,
colega desde o primeiro ginasial (1942) até o final da Filo-
sofia em Lorena, SP (1949), grande amigo, cujos comentários
sobre os poemas convenceram-me a não abandonar o sodalício
com as musas.
A gente às vezes canta
para sentir-se existente
(João Cabral de Mello Neto – O relógio)

(...) em sua luz se banha


a solidão cheia de vozes que segredam...
(Manuel Bandeira– Paisagem Noturna)
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO...................... 13 Paralelas do destino.......... 66


PREFÁCIO ............................. 17 Vida nova ......................... 67
À GUISA DE INTRODUÇÃO ......... 19 É mesmo assim ................. 70
ANTES DO BAR ...................... 21 Aqui e agora ..................... 71
A louca da torre................ 23 Responda por favor .......... 72
Pingo do i......................... 24 Minitratado da infelicidade. 73
Na ponta do lápis ............. 25 Proibido procurar ............. 74
Ponto marcado ................ 26 Amigos............................. 76
Brinco .............................. 28 NO BAR .............................. 77
Água ................................ 29 Copo de whisky ................ 79
Ar .................................... 31 Copo vazio ....................... 80
A pedra ............................ 34 Música ao vivo.................. 82
A bola .............................. 36 A deusa da boate .............. 84
Moderno/antiquado ......... 37 Noite criança .................... 85
Qual delas me responderá? 39 Canibalismo tropical ........ 87
A rua onde moro .............. 40 Velhos companheiros velhos 89
Hospitali dade .................. 41 DEPOIS DO BAR I ................. 91
Ano novo ......................... 42 Amor ............................... 93
Voz da consciência............ 43 Gramática do amor .......... 94
Voice of the conscience ..... 44 Novas formas de poetamar . 96
Poliglota de uma só língua 45 Amor impossível ............... 97
Ode ao abraço ................. 46 Sem ela ............................ 99
Inocência perdida ............. 47 Olhos negros .................. 101
Ocupação preocupante .... 50 Se me deres tua alma ...... 102
Zoón politikón (animal Detalhes ......................... 103
político) ........................... 54 Na mesma tecla .............. 104
Menino Deus ou de rua? ... 57 O datilógrafo ................. 107
Meninas prostituídas ........ 58 Rua do Ouro .................. 111
Esperança ........................ 59 Thauma ......................... 115
Sem palavras .................... 60 Saudades de ti ................ 117
Revolução cósmica ........... 61 Declaração de amor por
Demônios soltos............... 64 e-mail ............................ 119
Empinando ilusão............. 65 Beijo roubado ................ 120
Pura e dura .................... 121 Oração entrelaçada ........ 158 APRESENTAÇÃO
Por trilhos e trilhas.......... 122 Feitura da vida................ 159
Na Estação da Luz .......... 123 Seguro de vida ................ 161
Por seguir teus passos ..... 125 O mal da vida ................. 162
Fratura exposta .............. 126 A vida continua .............. 163 Li com particular atenção o “Na mesma tecla” e depois o reli
A palavra é que magoa.... 127 A vida passa ................... 164 com imenso prazer. Confesso que foi agradável surpresa recolher
Shopping das paixões ..... 128 Nada se pierde ............... 165 conceitos de alto teor filosófico, de observações do cotidiano,
O amargo de meus olhos .. 130 No mapa da vida ............ 166 temperadas com irretocável forma, pródigo em expressões lapi-
Noite de lua cheia ........... 132 Não maldigo a vida ........ 167 dares e palavras respigadas a dedo. Embora seja minha vontade,
Tempo perdido ............... 134 Viver em paz ................... 168 não há como criticar tudo o que foi concebido, pois teria que to-
Tempo: verbal ou real? .... 135 DEPOIS DO BAR III: ............ 169 car muito mais teclas que o autor, e isso resultaria num novo livro,
Lugar comum ................. 136 Entre a vida e a morte ..... 171 talvez maior que o dele. Dei-me, então, o prazer de ver as palavras
Poema da espera ............ 137 La nave si va ................... 172 fugindo da caneta para o papel, com tranqüilidade e certeza de
Mão – flor ...................... 138 De senectute................... 174 que jamais faria justiça numa análise fria. Seguem, pois alguns co-
Trovas de amor............... 139 Saudade ......................... 176 mentários, alguns até carregados de lembranças, que os poemas
Haicais de amor ............. 141 Tempo sem relógio ......... 178 em mim despertaram.
DEPOIS DO BAR II .............. 143 Solidão e poesia ............. 180 Acredito que Délcio Salomon teve a dádiva da auto-superação
Leitura sem fim ............... 145 Simplesmente isto........... 181 no “Ode ao abraço”. Para mim, uma obra prima pelos sentimen-
Setenta anos .................. 147 Vida sem presente ........... 183 tos que evocam. Os braços, a cruz, os abraços e apenas braços
Sou livre? ....................... 151 APÊNDICE........................... 185 para abraçar a esperança e debelar os traumas da infância que
Sina e perdição ............... 153 A porta se abriu .............. 187 gritavam em nossos ouvidos o pecado, o fogo e o inferno antes
Legado ........................... 155 A Olavo Bilac ................. 188 mesmo de sabermos o que é culpa. Optei, agora, em ver o boi
Penso, logo..................... 156 Reforma do mundo ........ 189 voar, como fez Tomás de Aquino. Como não crer no amor, no
perdão e no dom da vida?
Grego! Quem diria! Valeu a pena a verdadeira oração para o
pobre versus a concentração de tanta riqueza com o inútil esforço
de atingir a lua. Ao ler, em português, seu poema eu me perguntei:
O que é que eu vou fazer com uma selene tão cara e tão desprovi-
da da poética inspiração para todos os que a admiram.
Creio com animo e firmeza no aqui e agora o nosso antigo hic
et nunc. Num poema está consolidada minha tese de que o tem-
po não existe. Ele é sempre agora e, se é sempre agora, é eterno.
Responda-me... Deus realmente existe? Esse poema trouxe-
me uma antiga memória, uma poesia de “nosso passado”. Se
me não engano é de Amélia Rodrigues e Aristóteles a endossaria:
“Ainda há quem dê, triste miséria,/como causa das causas a matéria,/
muda, cega, inconsciente”.

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Pergunta é dúvida e dúvida é o primeiro passo na busca da certeza. Quanta lembrança de dias idos e vividos nas dobras do destino escondidos. E
Nel mezzo del camin di nostra vita esta: Tinha escolha? Mesmo que tivesse sei que gostaria de me repetir.
Mi ritrovai per una selva scura O seu Legado é bilaquiano como poucos. Não menos que o
Che la diritta via era smarrita”. poema dedicado ao próprio alexandrino Bilac.
O Dante Aleghieri bem lembrado trouxe-me, também, uma Penso, logo... excelente entrevero com Descartes: “Je pense,
terna lembrança. Lembro-me que em 1947 recebi de um colega donc je suis”. “Cogito, ergo sum”.
nosso de Mato Grosso uma edição do “La Divina Commedia”, que   
em 2005 fez cem anos e está comigo há sessenta anos.
Não obstante as placas, seu pessimismo intelectual e poético Caro Délcio, por favor não arquive em nenhum baú seus ex-
não logra ocultar a esperança do verdadeiro caminho, pouco im- celentes poemas, como costumava fazer o Fernando Pessoa, que
porta o seu é proibido procurar. revivi em muitos de seus versos.
Não raro buscamos no fundo de um copo a juventude que se Não espere o ouro, que, quem sabe, até poderá aparecer em
está diluindo e, no desespero inconsciente, enchemos outra vez o sua bateia, pois não é ele o seu prêmio maior. É um simples aci-
nosso copo na mesma tentativa de Francisco Alves que cantava dente que morre enquanto a essência permanece brilhando. Espe-
“E no anseio da desgraça re, sim, o feliz sentimento de que você está tangendo os corações
Encho mais a minha taça de quantos o lerem.
Para afogar a visão...” Não exija de seus poemas a herança que o filho pródigo exigiu
Talvez tudo seria mais ameno se pudéssemos reencontrar nos- de seu pai, mas a sublime contemplação fraterna e amiga dos
sos velhos companheiros velhos, que só Deus sabe onde se encontram. que tiverem a ventura de saboreá-los em clima de meditação e
Adorei a figura do amor intransitivo a dois, sempre no plural. de se transportarem para o patamar de suas saudades e de seus
Talvez seja essa a forma jamais concebida de poetamar. conceitos.
A tecla “fá”, me enveredou para meu primeiro livro, onde defi- As lembranças, os copos, a mãe, os beijos, o amor, as fraturas
no: “Saudade é a presença constante da ausência” e fiquei feliz de expostas, a palavra que faz feliz ou que magoa, amor feroz ou platô-
ver a mesma idéia brilhando no poema. nico, tudo é forma de rebobinar a vida. Pouco importa o que se per-
A vida passa, mas o poema fica. Incorporei em mim o “Ars longa, deu no tempo. E daí? O tempo é o agora, e o agora, reitero, é eterno.
vita brevis”. A excelente versão da Teresinka estende, ainda mais, a Meus sinceros parabéns! Gostei, mesmo. Gostei muito!
longevidade do belo poema, todo ele eivado de nobres sentimen-
tos e de estímulo a ler com atenção a magia do cotidiano. Ribeirão Preto, 24 de fevereiro de 2007
Vi, também artística e filosófica ponderação: a vida é tão
curta, não merece ser abreviada pelo remorso de não termos vi- Wilson Salgado
vido sempre em paz. ARL – Academia Ribeirãopretana de Letras.
É um otimismo contra os que alimentam remordidas sauda-
des do que nunca aconteceu.
Reitero que me encantaram as frases e figuras lapidares que
envolvem os poemas de Na mesma tecla: Qual grafiteiro, roubo a noi-
te madrugada para garatujar e embaraço a vista no deciframento de mim
mesmo. Ou: Vejo que até hoje não paguei a infância truncada. E, ainda:

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PREFÁCIO

O poeta Délcio Vieira Salomon sabe passear por todos os cen-


tros culturais do mundo, indagando e aprendendo sobre literatu-
ra, filosofia, poesia e cultura sem precisar de sair de seu escritório
em Belo Horizonte.
Todo o universo que conhecemos está aí em seus versos, em
linguagem direta, clara, contundente de verdades e evidências.
Procurou, encontrou talvez coisas de que não precisa e agora usa o
velho Nietzsche para explicar: “Só acha quem parar de procurar”.
O amor, esse eterno tema universal, penetra toda sua poesia
e aparece na forma, no tema, nas imagens, nas pessoas (perso-
nagens), nos santos (Santo Agostinho), nos verbos, nos neologis-
mos e nas soluções: “Amando se aprende/a criar/novas formas/
de poetar”.
Pessoalmente um pouco tímido, mas como poeta sua voz tem
projeção internacional pela ampla cultura que recolheu no seu
bom tempo de estudante da Faculdade de Filosofia, Ciências e Le-
tras e na de Direito e que ainda aprende por esse mundo tão glo-
balizado onde seleciona temas e sua predileção pelas leituras em
livros de alguns escritores e poetas internacionais como Sarama-
go, Fernando Pessoa, e outros menos visíveis em sua poesia como
Pablo Neruda e os poetas franceses, principalmente os futuristas.
Na pátria recolhe lembranças de Carlos Drummond, Vinícius
de Morais e Manuel Bandeira, estando na altura de qualquer um
deles. Entre os tons da terra vizinha aparece alguns gritos de Gar-
del e todos aqueles que na geração anterior se destacaram pela
musicalidade lírica assim como os velhos poetas do modernismo
europeu, cuja poesia chegou formalmente ao Brasil e, no nosso
país, floresceu e murchou.
Délcio Vieira nasceu e cresceu nos anos mais difíceis para a
literatura no Brasil, quando seus modelos intelectuais foram para
outros países, os grandes poetas conhecidos fizeram sua definitiva
despedida e a literatura cheia de “ismos” e tendências políticas
foi protelando a chegada dos jovens, talvez mais agigantados e À GUISA DE INTRODUÇÃO
irreverentes.
Convivendo com eles agora, Délcio Vieira Salomon continua
lírico, evolutivo e tranqüilo no sentido clássico da perfeição na
forma de seus versos e de questionar a cada passo o status quo (...)e aprendi na mesa dos bares (...)
da poética como obra de arte. Sendo único e isolado de tantos Mas há uma hora em que os bares se fecham
grupos, o poeta mineiro recusa a ter ponto de referência do estar- e todas as virtudes se negam.(Carlos Drummond de Andrade
dalhaço de originalidade formal. Também já fui brasileiro em Alguma poesia)
É bastante óbvia na sua poesia a presença da cadência lírica
aprendida em criança educada em escola religiosa, e o gosto pela Bar: este lugar, eu o amo/ou não se fala mais nisto?
linguagem poética de cancioneiro sem rima ou com rima assonante. (CDA – Bar – Boitempo)
Consultando a biografia de Délcio Vieira, pude localizar a ori-
gem e a razão de sua ampla intelectualidade. Foi recebedor de Páginas em branco pelo tempo convertidas em pátinas para
vários diplomas universitários no campo da filosofia, ciências e receber tênues raios de luz enfeixados com a mesma dedicação e
letras, de direito e leis e uma livre docência ou doutorado, além de prazer com que foram captados.
muitos cursos pós-graduados. Desde alguns anos surgiram para clarear noites insones e a
No mais, sua poesia confirma, como a poesia de Carlos Drum- solidão da velhice aposentada de seu autor.
mond de Andrade, sua personalidade como mineiro e como bom Ao iluminar-lhe o tempo e o espaço de sobre – vida metamor-
homem de família, embora tenha seus compromissos com a poe- fosearam-se em escrevinhaduras e estas em companheira inseparável.
sia da liberdade essencial da vida. A elas se juntaram lembranças do passado que em “versos”
entre guardados se guardaram.
Toledo, Ohio, USA Diante da premência da organização dos textos, percebi que a
em 05 de janeiro de 2007 verdadeira origem dessa “vocação tardia” foi a mesa do bar.
Certa noite da década de noventa, à mesa do bar comecei a
Teresinka Pereira lançar no guardanapo rabiscos, uns em forma de desenhos, ou-
– presidente da International Writers and tros com jeito de poemas. Foi o início da exteriorização de outro
Artists Association – IWA lado de meu mundo interior. Em casa, e reiteradamente varando
a madrugada trabalhava melhor a expressão das reflexões e obser-
vações oriundas e motivadas pela inspiração etílica.
Em reconhecimento a esta laica epifania sob o halo dionisía-
co, decidi estruturar a presente comunicação tomando como re-
ferencial o topos da revelação: o bar.
Quanto à temática, a insistência em tocar a mesma tecla faz de
quem ama poeta e de quem canta sofredor: – o amor – a saudade
– a beleza – a mulher – a amizade – o tempo – o destino – a Natu-
reza com seus elementos, a Vida com seus detalhes, suas perdas

18 ™ NA MESMA TECLA
e ganhos, no velho conflito com seu próprio fim, sobretudo o “eu
com suas circunstâncias”.
Até coisas aparentemente banais, mas com o infinito poten-
cial de proporcionar lições.
Enfim tudo que aparenta ser eterno, enquanto de inspiração
sempre renovada.
Transformados em poemas

são teclas batidas/por uma vida/em duas partida:


uma nas brumas do tempo/perdida/outra qual fênix
de cinzas renascida:/dois elos que clamam/por nova
fusão/da corrente rompida.

Se é verdade que de poeta e louco todos temos um pouco, quanto


então não terá um aposentado/vagabundo como certo presiden-
te o tachou?!
No fim da jornada surgiu o desafio de o saber. Não custa nada
experimentar.
Se para críticos esta experiência não valer, para o autor signifi-
cou muito, sobretudo diante da declaração de Quintana em uma
de suas entrevistas: “Eu acho que todos deveriam fazer versos. Ainda que
saiam maus. É preferível para a alma humana fazer maus versos, a não fazer
nenhum. O exercício da arte poética é sempre um esforço de superação e,
assim, o refinamento do estilo acaba trazendo a melhoria da alma”.

ANTES DO BAR

O eterno cotidiano, a sociedade


em que se vive, nos levam a
pensar coisas...
encontrando assuntos
sem os procurar
ou como diz Drummond:
“sem ser à procura de objetos: achando-os
(CDA– Ficar em casa)

20 ™ NA MESMA TECLA
A louca da torre
No desvario seu,/na torre pôs-se a cantar
(Alphonsus Guimaraens – Ismália)

“entre as duas janelas da torre, prisioneira (...)/miravas


para lá do horizonte (Gerardo Mello Mourão – Santa Bárbara)

.No.
.alto.
.da torre.
.ela vivia só.
.N a verdade.
.tinha de dia.
.a companhia.
.do rei Sol.
.e à noite.
.a claridade do luar.
.Está.
.tica.
.ficava.
.toda.
.noite.
.pálida.
.donzela.
.no vão do esguio.
.campanário.
.o céu.
.a contemplar.
.Da ‘louca da torre’.
.certo dia.
.ouviram falar.
.para lá.
.subiram.
.Derramadas pelas paredes.
.e pelo chão.encontraram somente réstias de luz.
.entrelaçadas em colar: a luz do dia com a luz do luar.

DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 23


Pingo do i Na ponta do lápis
Pingo de letra Na ponta do lápis
não é letra. se limita o desejo
Pingo de gente de começar e prosseguir.
não é gente. O infinito espaço
– Preconceito ali se concentra
ou menosprezo para o tempo congelar.
singular? Sem passado e sem futuro
Pingo d’água o presente se esgota
não é água no limiar daquela ponta.
não é lago
não é mar... Agride a alvura inocente
É verdade sempre da página que a acolheu.
ou nunca será? Cessa o fluir do imaginário
Sem soma e se dá o paradoxal
de pontos início da escritura
letra alguma mesmo sem ter em seguida
se faz. meio, desenvoltura e fim.
Sem soma
de pingos Sobre a folha em branco
nem lago a ponta do lápis
nem lagoa revela todo seu poder
nem rio de estancar o pensamento.
nem oceano
se terá. Estática a ponta do lápis
se deixa ficar
Entretanto no mesmo lugar
pingo é ponto, à espera do nada
mas em lugar nenhum transformar-se em ser.
se lê:
“no começo era o ponto.” Mas tudo que merece registro
Ponto só se conta é confiado a esta ponta
se vier depois que sempre ameaça
ou então se for final revelar o que oculto está.
e pronto.

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Ponto marcado Na folha branca
possibilidades se pontilham,
Procurei na folha branca
probabilidades se apontam.
o ponto que lá deixei.
Naquele ponto marcado
Até no branco da vida
o ponto já não estava.
marca-se ponto
No branco daquela folha
para tudo recomeçar.
o ponto se perdeu.
Mas com tantos pontos
Recorri á memória,
e desapontos sem conta
Mas deu branco
ficamos quais andorinhas
E no branco da memória
em brancas nuvens a voar
nem ponto, nem história
sem parar em ponto algum
de algum ponto para se contar.
a fim de algo pontuar.
A vida é página branca
a receber os pontos da existência.
De ponto em ponto
formamos a mancha
de nossa presença.
Com pontos ela se tece,
sem pontos ela se desmancha.

Para não passar a vida em branco


marcamos encontros mil
em determinado ponto.

Cientes somos:
sem ponto
não há encontro
e sem encontro
não há história
para se contar
nem vida
para se viver.

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Brinco Água
Brinco? Água morna
brinco! água quente
Eu brinco água fria
mas ela brinco gelada água
quer.
Se brinco Água mole
por que brinco a bater
vou lhe dar? em pedra dura
a espirrar
Brinco com o brinco até que fura
mas gostaria mesmo
era com outro brinquedo Águas claras
(o proibido) águas turvas
brincar. água parada
que bicho cria
– Com a mulher sem brinco
sem blusa Água que mata a sede
sem saia e apaga o fogo
sem sutiã do incêndio das matas.
sem calcinha
nua Água da fonte
como que vira rio
a lua a correr para o mar.
na cama
a brincar... Água das nuvens
em chuva desce
No dia seguinte para despertar
lhe levaria o brinco a vida na terra.
que ela na saída
esqueceu Água benta
de usar quebrantos cura
e as almas salva
do original pecado
Água que boi não bebe
sempre apreciada

28 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 29


na mesa do bar. Ar
Água de cheiro
Nenhum sábio
perfume vira
o define
p’ra o disfarce
mas todos sabem
do transpirar
o que é.
Água viva
O que seria
a sede de justiça
de todos nós
mata
se não fosse o ar?
e contra maus olhados
protege.
Sua ausência,
   gera o vácuo
No início era a Água o desespero
e a água virou Vida. a morte.
   Sua presença
a Vida, o nascer
Mas de todas as águas e o renascer
prefiro a cristalina “aguinha
das grotas a “gruguejar sozinha” O que seria
como o jagunço Riobaldo dizia de todos nós
se não fosse o ar?

Tudo no ar
se faz e desfaz:
o sólido
o bólido
a água
a mágoa
o som
o tom
da voz
o sussurro
lento
do vento
a notícia
a malícia

30 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 31


da trama O que seria
que clama de todos nós
e reclama se não fosse o ar?
do que se passa
de dia Sem ar
e à noite não há o que respirar
se repassa nem água
na rua a beber
na mesa nem comida
na cama a comer
dentro
ou fora O que seria
do lar. de todos nós
se não fosse o ar?
O que seria
de todos nós Sem ar
se não fosse o ar? só resta o nada
a ocupar
O que pesa, todo lugar.
o que não pesa
se esboroam
no ar.

O que seria
de todos nós
se não fosse o ar?

Até o sucesso
do artista
a fama
da dama
a honra
do velho sisudo
ou do juiz posudo
tudo no ar
se faz e se desfaz
menos o próprio ar.

32 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 33


A pedra onde se reúne a multidão
para a Divindade adorar.
Na extensão do deserto
Base da humilde morada
por leito o imenso areal
como de arranha-céus
e por teto o azul do céu
sobre moles erguidos
jaz a solitária pedra.
milhões delas consumidos
para em fileira
No meio do entulho
brutas selvas se formarem.
fruto de repetidos destratos
sem da sujeira se impregnar
Ei – la que surge
qual virgem abandonada
sob aplausos,
a pedra reluz aos raios do sol.
bandeira no mastro erguida
banda, foguetório
Encostada ao muro
discursos e louvações
a prostituta aguarda a pedra fatal.
lançada no vão cavado
Instrumento de sanguinária mão
fruto de deslavada corrupção
Incapaz de cumprir por si
para ser de novo evento
hipócrita sentença, por sinal
o marco inaugural.
reveladora de empedernida mente.

Arma para ferir e matar


não por ser o que é,
mas justo por ser presa fácil
de quem a pega
pr’a desejos inconfessáveis
satisfazer.

Nesta hora todos esquecem


da pedra em que Jeová
escreveu os mandamentos
e a confiou a Moisés.
Ninguém nesta hora se lembra
do sacrifício a ara sagrada
onde o cordeiro se imola
para o fiel das trevas libertar.
Há séculos foi ela
o fundamento da igreja

34 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 35


A bola Moderno/antiquado
No campo a bola rola. minha porta
Diante de olhos atentos tem puxador
cada astro do futebol (“mão estendida da casa”
em deus se converte. como Saramago o chamou)
A multidão transforma
a arena em templo o puxador abre a casa
para os novos ídolos adorar. para o abraço
acolhedor
No jogo da vida
a própria vida rola carinhosa
pois seu destino é rodar. ou educadamente
A Terra gira em volta do Sol recebe o dono
e não sabe ir em frente ou a visita
sem rodar em torno de si que chegar

No primeiro big bang do universo dizem: – puxador


de Aristófanes a esfera é coisa antiga.
com quatro braços moderno
e quatro pernas é maçaneta.
em alta velocidade girou mas para porta
até com os Titãs chocar que se preza
e partida em dois pedaços mais moderno ainda
fez surgir o homem e a mulher. é knob
que se aperta (“push”)
Sonhei um dia e no sonho vi (como no elevador)
infinita Bola a rodar sem parar. para a porta
> automática <
No sideral espaço
se abrir.
se Deus – a infinita Bola
apertar...
rola sem parar,
sinônimo: empurrar
por que logo eu
antônimo: puxar
vou deixar de rodar?
Assim pelo universo a fora,   
antes da partida terminar o antigo de hoje
em boa ou má hora outrora foi moderno
vou – me embora. sim moderno

36 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 37


é a negação Qual delas me responderá?
da negação
Assim que chega a noite
acabaram com o puxador
pergunto pelo luar.
e knob introduziram no seu lugar
Assim que vejo a lua
push não é puxar
pelas estrelas estou a indagar.
é empurrar ou apertar...
E por tudo que há
não para a porta trancar
por trás do céu escuro
mas para a casa
a se ocultar:
sem cerimônia
– se lá se esconde o dia
descerrar
ou se o sol se esconde lá.

Assim que amanhece


pergunto pelo que virá:
dia claro, tarde de céu puro?
– virá a noite?
virá a lua?
As estrelas virão também?
E qual delas me responderá?

38 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 39


A rua onde moro Hospitalidade
Na rua onde moro, Entra. A casa é tua
toda noite passa Nela encontrarás
a carruagem da esperança. a fragrância do carinho,
Mas ninguém o nota, o cheiro de roupa
ninguém a alcança. recém lavada
toalhas floridas
Esta a rua que me conduz alvos lençóis no leito.
para tudo que me seduz. Rosas no jardim,
Nela encontro a firmeza à borda da janela
que a presença da lua me traz. gerânios em profusão.
Comerás do pão
Nela sempre estou voltando beberás do vinho
para o mesmo lugar. e partirás
quando quiseres.
Esta a rua dos meus sonhos
horizonte sem começo nem fim.
Sem percurso nela se anda
Calçado ou descalço
sobre etéreos flocos
que os ventos agrupam
para o céu sustentar.

À procura da própria sina


onde ninguém pára,
ninguém pergunta,
vivo a percorrê-la mesmo assim.

40 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 41


Ano novo Voz da consciência
Num instante Não desças, não subas, fica.
o ano velho O mistério está é na tua vida!
novo vira. (Mário Quintana)

Num instante Não vás em frente,


tudo que fez feliz Para!
o tempo vivido Pensa e reflete:
habitas o presente,
é por todos esquecido. na casa do fundo
jaz o passado
Num instante e qual sol diante de ti
só desejos brotam brilha o futuro.
dentro da gente Estás em ponte suspensa
na esperança entre dois abismos:
de que tudo à esquerda
seja diferente. ilusão
à direita
No momento ameaça e terror.
Continuarás
em que tudo muda no mesmo lugar?
para que o novo surja Pensa e decide.
sobre a carcaça do velho Não há como voltar
nos mergulhamos atrás.
de corpo e alma Olha em redor
na imensidão do novo tempo. antes de seguir.
Não negues a ti
Congelamos a expectativa a decisão
de novos sonhos se cumprirem de te deteres.
e dentro de nós erguemos Sê cauteloso.
Onde te encontras
a bandeira a anunciar outros já se encontraram também.
qual navegante descobridor Neste mesmo lugar
o novo mundo juras se fizeram,
de repetidas ilusões. mas promessa alguma se cumpriu.
Repetirás a mesma história?

42 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 43


Este poema foi traduzido para o inglês por Teresinka Pereira, presidente Poliglota de uma só língua
da IWA – International Writers and Artists Association (Ottawa Hills,
Ohio – USA): Minha mãe falava várias línguas numa só.
Falava a língua da mentira
Voice of the conscience quando me consolava em minha dor.
Falava a língua do conformismo
Don’t go ahead. quando dizia tudo para ela estava bom.
Stop! Falava a língua da fé quando me convencia:
Think and reflect:
– “Deus tudo vê e tudo há de prover”.
You inhabit the present,
Falava a língua do medo quando me confidenciava:
In the house on the back
lays the past – “se houver fila pr’a morrer não quero acordar cedo prefiro o
in front, like the sun último lugar”.
Shines the future. Falava a língua do destemor quando jovem viúva ia fora trabalhar
At left para não deixar o pão faltar.
Illusion. Falava a língua da esperança quando me prometia:
At right, – “a paciência tudo alcança”.
threats and terror. Falava a língua da caridade ao dar a sobra de comida
You are in a drawbridge ao pobre faminto a sua porta sempre a implorar.
between two abysms. Sim falava todas essas línguas:
Are you going to remain a da fé
in the same place? da esperança
Think and decide. da caridade
There is no way to go da mentira
back. do conformismo
Look around do medo
Before you go on. do destemor
Don’t deny to yourself
até da autopunição
the decision
falava.
to stop.
Be cautious.
There, where you are Mas todas numa só:
Others have been before you. a do amor
In the same place que em seu coração
others promised pulsava sem parar
but they did not honored
their promises.
Are you going to repeat
the same old story?

44 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 45


Ode ao abraço Inocência perdida
Se os braços – reflexão sobre os 500 anos da descoberta do Brasil
não se estendem
jamais formam cruz. “Daqueles reis que foram dilatando
Sem cruz inútil A Fé, o Império (...)” (Camões: L. 1, 10-11)
a redenção.
Inocência nasce com a gente
Se os braços mas um dia se é obrigado a perdê-la
não se comprimem para colocar em seu lugar a “razão” e a fé
jamais abraçam. e transformar-se verdadeiramente em gente.
Sem abraço Deixar de ser gentio pagão
inquieto ficará Inocente
o coração. para tornar-se
simplesmente
Se os braços gente
não se estendem – este o projeto
nem se comprimem comprometido
monumento à inércia com a dominação
se tornam para a ferro e fogo
ou simplesmente dilatar a fé e o império.
à estática esperança Desde então
que nunca virá gente é quem carrega consigo
a culpa de não ser mais inocente.
Nem estendidos
nem comprimidos Mas a “não ciência” (dos outros)...
prefiro braços – inocência –
apenas braços é a certeza de si mesmo
com o poder e de em tudo acreditar
de tudo abraçar até em boi voar!...
até a própria Com a perda da inocência
esperança brota a dúvida, a interrogação
e com ela como brota a certeza
a redenção da perda, da existência,
alcançar. da vida, de tudo
que somos e o que não somos.
Com medo da eterna perdição

46 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 47


surge após a culpa a fé. colocaram em seu lugar
Mas inocência continua mistério de três em um
liberdade sem culpa e me obrigaram
certeza sem fé. a acreditar...
Do contrário morreria
Com o tempo perdemos a fé devorado pelo fogo
e nos encontramos do inferno
perdidos do lado de lá.
sem inocência ou pelo da Inquisição
sem medo do lado de cá.
sem nada
para acreditar.
  
No princípio
era Deus?
... não sei
só sei que eu
era inocente
(passei a nele acreditar
depois d’a inocência perder).

Hoje sou gente.


O Princípio já não é
ou existe em mim
desde o princípio
a certeza
d’Ele não ser?
  
Inocente
só sabia existir
Tupã
(e com ele
meu panteísmo particular).
Tiraram-me a crença
e em troca
da inocência perdida

48 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 49


Ocupação preocupante Mercúrio, Marte, Júpiter, Saturno...
e se descuidarem
No princípio
até o Sol
tudo era nada.
pretende ocupar
Para nada
mesmo sabendo que lá
nem tempo
irá se danar
nem espaço
se derreter
havia.
se fundir
e em lava
Mas o tempo se colocou
se decompor.
começo de tudo
o espaço ocupou.   
(Enquanto isso pela posse
E caos tudo virou. dum pedaço de espaço
os sem-terra lutam)
Veio o homem   
ocupou o caos.
E o caos em mundo Não se preocupem
se transformou. “é conversa p’ra boi dormir”
(em qualquer tempo e espaço):
Desde então a nada e a ninguém
cada qual constrói nem a si mesmo
seu espaço o homem consegue ocupar....
seu topos   
seu mundo Ele espaço ocupa
para nele o tempo ocupar. ela o tempo culpa.
Ele se culpa
Os homens passaram ela se preocupa
a fazer do tempo ocupação e ambos se desculpam.
e a não tolerar em seu espaço ocupado
ver o tempo passar. Com ela ele se preocupa
   com ele ela se ocupa.
Os astros ocupam o universo.
A Terra ocupa um ponto no sideral espaço. Com a ocupação de ambos
O homem ocupa a Terra ele e ela se preocupam.
Não contente Por se ver sem ocupação
quer ocupar a Lua ela o culpa.

50 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 51


Desde quando o trabalhador
Se ele o tempo não ocupa passou a preocupar-se
ela se preocupa... com a propriedade e o capital,
transformou a preocupação em ação
Até quando haverá na vida e provocou a luta de classes.
ocupação com preocupação e culpa? Mas classe
   é o único espaço
que o trabalhador
A ocupação do tempo virou trabalho com propriedade
a ocupação do espaço propriedade virou. ocupa na escala social.
A partir de então Quem está em cima
a propriedade ocupa/culpa o trabalho não se preocupa
e ao trabalho a propriedade preocupa. com quem
em baixo está
A propriedade gerou o capital. só se preocupa
O capital da propriedade tomou conta. quando ele quer
E acorrentado na prisão de velho “ismo” seu lugar ocupar.
em sistema converteu a grande ocupação
para em cartório se registrar.
Assim se fundou
o capitalismo
para tudo
até o homem
violentar
expropriar
e
depois
despreocupado
cinicamente
o ocupar.

(Capitalismo com impropriedade se proclama


defensor da ocupação da propriedade)
  

52 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 53


Zoón politikón se esqueceu de dizer:
(animal político) – tem tudo de politikón,
mas só o pior do zoón.
– lição de pai para filho –
Não habita a selva
Como é comum dizer: não devemos generalizar...Mas em se nem em jaulas,
tratando dos nossos políticos, de algum tempo a esta data, são em viveiros
tão poucas as exceções, que é difícil não declarar com Virgílio: ou gaiolas
“ab uno disce omnes” (o que se diz de um se estende a todos). Ou, vive.
então: a exceção atingiu o limite e virou regra. Não se alimenta
de carne ou de ervas;
Quero que tenhas nem bebe
a rapidez do cervo a água cristalina dos rios.
a bravura do leão
a ferocidade da hiena Sim, meu filho
a argúcia da águia, este animal
a valentia do galo só mora em palácios
a generosidade da galinha. cercado
de pestilentas feras
Mas jamais copiarás – outros tantos
do cervo a concessão corruptos
do leão a arrogância espertos
da hiena a sordidez e bajuladores
da águia a ostentação que com ele
do galo a esporada mortal formam
e da galinha a falta de compostura especial família
(embora desta se salva e “sui generis” espécie.
a postura que tem).
Em vez da admiração
Sobretudo, filho meu, que os animais
evitarás te tornares um dia de todos nós
o pior dos animais: arrancam,
o zoón politikón. ele só provoca
O mesmo desde o asco
por Aristóteles ao ódio mortal.
descoberto Banqueteia
mas, ao registrá-lo, da miséria alheia
no Index da zootecnia, bebe
até a última gota

54 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 55


o suor Menino Deus ou de rua?
de quem trabalha.
Locupleta-se Se o Natal lembra, entre festa e toca-sinos,
das facilidades o mais desamparado de todos(os) meninos,
conferidas por que estes meninos tão desamparados
pelo Poder. nas ruas, um minuto sequer são lembrados?

Todos os dias se banha Voltasse hoje à Terra o mesmo Deus menino


nas águas de falsos Nilos um berço na sarjeta logo escolheria.
e poluídos Ganges. Por certo abraçaria o infeliz destino
das crianças de rua e da periferia.
Sim meu filho
escolhe qualquer animal Há por acaso quem acha filho seria
e nele te projetes. de rico empresário ou mesmo de deputado
Menos no político presidente ou juiz? Oh! sórdida ironia!
que da pura animalidade
nada tem... Se tal acontecesse, então Cristo estaria
a si mesmo negando! E o amor manifestado
Acredita à criança de rua triste hipocrisia
– teu pai com autoridade
te diz –
diante do político,
porcos
antas
capivaras
rinocerontes
até as hienas
sentem-se tímidos
e constrangidos
quando com ele
disputam
o lamaçal
da podridão.
É que aqueles alimento
procuram.
E este, o vil metal
que no pantanal
do poder
se oculta.

56 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 57


Meninas prostituídas Esperança
Não era sexo o que ofereciam Enquanto os astronautas
essas meninas mal e mal crescidas no seu vôo cósmico-sideral
matar a fome é só o que queriam, depois de pisarem na Lua
sendo por vis canalhas seduzidas. colocam a esperança
pendurada na estrela Alpha
Dos sentimentos não sei qual maior: como alvo a alcançar
o ódio mortal com asco misturado aqui no ômega da vida
à hiena transformada em sedutor sentado no meio-fio da rua
ou o dó em meu peito já sangrado o pobre mendigo espera
migalha para a fome matar.
por essas criaturas desprezadas E o aposentado
nesta sociedade em que nasceram na fila da previdência
e pela mesma cedo despejadas morre de tanto esperar.

sem futuro nas garras dos chacais. Este poema foi traduzido pelo poeta grego Dionísio Constantino
Não lhes posso oferecer o que esperam. ΔΙΟΝΨΣΗ ΚΟΨΑΕΝΤΙΑΝΟΨpara o grego e publicado no caderno da
Apenas compaixão e nada mais. IWA (International Writers and Artists Association em Number 12,
November 2005, p. 9):

ΕΛΠΙ ΔΑ
´Οταν οι αστροναúτες
Με το διαστημóπλοιο
Αφοú περπ′ατησαν πα´νω στη Σελη´νη
´Εβαλαν σαυ ελπιδα και σκοπóτους
Το ’Aλφα αστε´ρι να κατακτ×η´σουν
Εδω´ στη Γη στο Ωμε´γα της ζωη´ς
ΚαΘισμε´ηοι με´σα στην καμπι´να...,
Οι γεροντóτεροι πολι´τες
Πον η Κοινωνικη´ Πρóνοια συντηρει´
ΠεΘαι´νουν περιμε´νοντας
Τα φα´ρμακα της σωτηρι´ας.
Μετ.: ΔΙΟΝΨΣΗ ΚΟΨΑΕΝΤΙΑΝΟΨ

58 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 59


Sem palavras Revolução cósmica
As palavras já não dizem Num repente
e o dizer não tem palavras. apago o sol.

As rosas não têm nome No breu da escuridão


Nem os nomes nas coisas colam. astros e planetas
luas e satélites
Palavras são “flatus vocis” subverto
em abismo sideral
que se perdem ao vento.
Já sem luar
Em grande número no céu
deixaram de ser conceitos negras
estrelas
reduziram-se a meras siglas penduro.
para ocultarem o pensamento.
Convoco
Na lata de lixo. tufões
jazem dicionários. terremotos
hecatombes
A fala se limitou ao sinal, para o cataclismo
sem ouvir a voz do silêncio. universal.

Nem declarações de amor Arranco dos códigos


se fazem com sentido. todas as regras;
as leis imutáveis
A realidade perdeu sentido em exceções transformo.
Até a procura de sentido
Misturo galáxias
perdeu sentido.
quebro a ponta do infinito
e na ampulheta do tempo
Nada faz sentido. espremo a eternidade
até seu núcleo
Na moderna torre de Babel para os segundos
impera apenas a virtual em sais cristalizar.
taquigrafia social. Com indomadas mãos
reduzo num só bagaço
tempo e espaço.

60 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 61


Ao lume de vela Ao novo deus adorarei
montanhas de minério e o resultado do novo apocalipse
derreto; em tributo lhe imolarei.
chumbo, cobre, manganês e ouro Em seu templo dormirei
tudo em lamaçal ainda que seus arautos
converto. venham ao fim do pesadelo
declarar que tudo está
A fogo no mesmo lugar.
mares em desertos
transmuto.
Os ventos
as florestas
faço arrancar
para na profundeza
dos oceanos
as precipitar.

Fervo a água
de todos os rios
com a liberação das lavas
dos vulcões.

Trago da celestial abóbada


nuvens e nevoeiros
para deles fazer lençol
por onde peneiro
à boca do Averno
todo sólido que restar.
Por simples ímpeto
de soberana vontade
extingo da face da Terra
toda manifestação de vida.

Em infernal amálgama
ergo monumental
estátua
à Insensatez.

62 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 63


Demônios soltos Empinando ilusão
Enquanto os homens dormem De cima do monte
os demônios libertos antes d´o sol se por
da prisão da noite recolhi a linha do horizonte
agridem anjos e mulheres e em sua ponta amarrei
com seus tridentes. meu papagaio furta-cor.

Zombam da inércia Empinei aquele colorido losango


e da resignação como nos tempos de criança.
da humanidade anestesiada Sob a lápide do presente,
pela fé nos deuses portador de verde esperança,
na ressurreição da carne o passado ressuscitou.
e na recompensa eterna. Alçou vôo e como flecha
varou o futuro céu.
No leito da morte
escondem a última esperança Mão firme na manivela
da Vida. entre nuvens pendurei
qual rutilante estrela
Profanam os santuários, meu desejo de voar.
arrancam de seu pedestal os sacrários; Com toda corda sôfrega pedida
iconoclastas, arremessam ao chão ele subiu, subiu, subiu
estátuas à Divindade erguidas. até desaparecer.
Como a elogiar
tanta violência, De repente senti a linha partida.
no fundo do palco Minha mão ficou vazia.
toca o bandâneon E órfão ficou todo meu ser
o último tango de Paris.
Desesperado, ainda hoje
em inútil angústia
procuro aquele solitário fio
que cruel cerol partiu.

64 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 65


Paralelas do destino Vida nova
Correm soltas as linhas do destino Aos nubentes
sem nunca se encontrarem.
Por elas passam o fado e a desventura A nova vida se faz
a sorte e o infortúnio o acaso e o azar pela união de vocês dois.
a ocasião à espreita do ladrão Não pela soma
a desdita do condenado. do que ganham
Até a ventura desta vida do que usam
cantada pelo apaixonado e às vezes se entranha
trafega por lá... no próprio ser.
Sem esquecer que também
anda solta A nova vida se faz
a mentira da vidente não pela realização
que a mão insiste em ler de desejo alheio;
para revelar o mistério mas pela transformação
de quem tudo tem para esconder... em atos do próprio querer
Nada disso se oculta entre as linhas de vocês dois.
pelo destino traçadas.
Tudo transita em paralelas A nova vida se faz
sem jamais uma na outra se tocar. inteiramente
Verdade seja dita, para todos refletirem: por doação total
capricho ou fatalidade, de um ao outro.
jamais os deuses escreveram certo Não pela mera junção
em linhas tortas. de corpos
Torta é a escrita humana em paralelas existenciais. prenhes de atração.
Mas se os fados não permitem
o cruzamento de suas linhas A nova vida se faz
por que na vida homem e mulher como tessitura
lado a lado insistem ou construção:
as paralelas do destino – juntando pedacinho
em ziguezague percorrer? com pedacinho
de cada um a dois...
De dia com dia
de hora com hora
semana com semana
mês atrás de mês

66 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 67


ano pós ano... e dedicação
Mas constantemente pensamento no alto
tendo na cabeça sentimento no peito
o projeto pés no chão
de cada ligação. não procurando
o que é ilusão,
A nova vida se faz antes reproduzindo
amarrando não só cada dia
flor com flor cada hora
amor com amor o que de comum
suave com terno têm dentro
bom com belo do coração.
sincero com verdadeiro.
Esta a vida nova
Mas flor com não flor que hoje começa
amor com dor diante do juiz
cheio com vazio ou ao pé do altar
ruído com silêncio e se constrói
delicado com áspero e se evolui
mentiras com verdades. neste mistério profundo
Enfim o barro maior que o mundo:
que nós somos para a fusão
com o não-barro constante
que queremos ser. de vocês dois
Com o que vem do outro numa vida só.
com o ideal
que da gente brota.

A nova vida se faz


com muita luta
muito estar junto
e muita solidão
porém preenchida
com a paz dos sonhos.

Assim se faz a nova vida:


muita entrega

68 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 69


É mesmo assim Aqui e agora
Minha vida é mesmo assim: Viver o presente
um dia eu faço isso de costas para o futuro
outro dia faço aquilo e de olho no passado
e todos os dias da vida é o mesmo que procurar no passado
na verdade, nada faço! a história do futuro.

No entanto pareço ocupado É preciso viver o aqui e agora


cheio de coisas pr’a fazer. sem revolver o passado
Se me perguntam o quê para projetar o futuro.
logo respondo: – minha agenda está cheia
não dá tempo pr’a responder. Por que beber a água
pensando no copo
Sou que nem balaio furado de que é feito e donde veio
cheio d’água a escorrer: e preocupado com o efeito
minha vida é catar as gotas que a água produz?
pr’o balaio tornar encher.
Por que comer o pão
pensando no trigo
que lhe deu origem
ou na fome que vai matar?

É preciso viver o tempo – agora


e a vida aqui – neste limitado espaço
em que sou e estou
[afinal “a longo prazo
já não serei mais nada”...]

70 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 71


Responda por favor Minitratado da infelicidade
Você que tudo sabe “o homem é um ser que projeta tornar-se Deus”
e filósofo se intitula
me responda por favor: (Sartre em “O ser e o nada”)
– por que nesta vida
uns sofrem e outros não? Infelicidade?
Uns amargam a tristeza de viver É o que o poeta cultiva:
e a arrastam até morrer – sensibilidade!
outros a vida abreviam
antes mesmo de a conhecer?
Sensibilidade?
Uns estão contentes com a vida
outros só vivem para a amaldiçoar? – cerne de todas as artes
Uns têm prazer de viver sem mediocridade!
outros matam por prazer?
Uns trabalham e não têm casa Sem mediocridade
outros sem nunca trabalhar revela-se o bom artista:
até mansão têm? – imortalidade!
Uns tudo procuram e nada encontram
outros nada procuram e tudo alcançam?
Uns perdoam e esquecem À imortalidade
outros esquecem e não perdoam é o que aspira o ser humano
e há os que de perdoar se esquecem? ou à divindade.
  
À divindade? – oh! Deus!
Não, não sabe? Não será esta a razão
Ao menos esta pergunta
em que todo mundo insiste, da infelicidade?
filósofo e sábio,
responda-me por favor:
se este mundo é tão complicado
com tanta violência
tanta miséria
tanta dor
e sofrimento
e tanta injustiça
a imperar
responda-me com convicção
e sem tergiversar:
– Deus realmente existe?
  
Ah! não sabe?
Também por que vivo a perguntar?
72 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 73
Proibido procurar no fim
no meio
“nel mezzo del camin di nostra vita” (Dante – Divina Comedia) ou no começo
“no meio do caminho tinha uma pedra” (Drummond – Alguma poesia) não mais estava a pedra...
“é pau é pedra é o fim do caminho (Tom Jobim – Águas de março)
“depois de estar cansado de procurar aprendi a encontrar” Estava a água
(Nietzsche – A gaia ciência) estava o amor
estava o consolo
Desde o início não mais a dor.
da caminhada
procurei o amor Tudo que procurava
e encontrei a dor. e eu não vira
estava lá
No meio do caminho
procurei contornar a pedra   
e não encontrei saída. Como roda viva
o tempo passou
No fim da jornada
procurei repouso e encontrei
  
cães latindo. Hoje de novo
no meio do caminho
Diante da bica me procuro
procurei matar a sede procuro a pedra
e encontrei a secura procuro a bica
da última gota. procuro a saída
o consolo
Desesperado procuro o amor.
procurei rever
o tempo perdido E de tanto procurar
e encontrei gargalhada de repente encontro
escondida atrás
de velho sobretudo no início
guardado a mofo no meio
a servir de espantalho e no fim
na moita do mato de cada jornada
à beira da estrada. placas fincadas
A desilusão obrigou-me por ambos os lados
parar de procurar. com os mesmos dizeres
Era preciso voltar. a me admoestar:
De retorno – é proibido procurar.

74 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 75


Amigos
Amigos os tenho
de todo tipo e qualidade.
Sinceros há muitos
a eles com prazer avalizo
mesmo sabendo
quase sempre sou eu
quem o empréstimo
irá pagar...

Há os aparentes
proclamam até amor
mas deles
estou sempre
a duvidar.

Enfim
há os falsos amigos
como Judas
cujos abraços
e beijos na face
nada mais são
que a senha
da traição.
  
Ia esquecendo de dizer:
NO BAR
– há também
o amigo oculto
que só aparece Bebendo
no Natal observando,
p’ra (segundo dona Isabel) conversando
disputar comigo sempre pensativo.
o sorteio do nome Afinal a bebida
a quem anônimo presentear. “ bota a gente comovido como o diabo”
como diria Drummond.
(CDA – Poema das sete faces)

76 ™ NA MESMA TECLA
Copo de whisky
Eis um copo de whisky
com gelo diante de mim
como sempre
gostei
e quis.
Mas se bebo reclamam
se não bebo falam mesmo assim.

DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 79


Copo vazio sai cantarolando
noite a dentro
À mesa
pela rua afora
ele estava só.
e só com sons
e melodias
Aliás sempre
vai enchendo
ficava só.
a taça da vida
na espera
Bebia... curtia...
do dia em que ela
o prazer de beber.
se quebrará.
Distante
contemplava
o infinito horizonte da rua
sem se preocupar
com o céu
ou se nele estava o luar.

Se era dia
se era noite...
por que se preocupar?

Até que
certa vez
ao olhar
o copo vazio
viu
que o vazio estava
dentro de si!...

E de vazio
em vazio
não conseguia
encher
seus dias!
Hoje ainda
depois do bar

80 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 81


Música ao vivo a troca que faz
do ritmo caribenho
Eles cantam
com o samba canção.
e dançam.
Eu os contemplo
Se a admiram
sentado no bar.
que importância faz?
Se tocam
Homens e mulheres
samba
se agitam
bolero
batem palmas
rumba
à dança?
ou um tango de Gardel?
à música?
ou ao par?
Ela quer é dançar
“e nada mais”
Pedem bis.
como todos acabam
A música querem
de ouvir.
repassar.
Para si ou para o par?
Ela é assim
O cantor atende:
Por que querê-la diferente?
“Fica comigo
Sobretudo agora
mais essa noite”
que a música
volta meu amor
chegou ao fim
fica comigo
e todos vamos embora?
Mas será
que só no bar?

Enquanto sentado
bebo,
ela ao ritmo
de mais um bolero
desliza pelo bar
a cintura agita e balança
e olha ao redor
pra ver o aplauso,
sentir a admiração geral
à arte de seu gingado tropical.
Pouco lhe dá conta

82 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 83


A deusa da boate Noite criança
Ela dança A noite é criança
requebra mas enquanto no bar
saracoteia se bebe e se canta
e balança. a noite cresce
Na penumbra o tempo passa
da boate e criança
impera a noite
qual deusa deixa de ser.
dona
eterna Lugar dos solitários
do tempo mas enquanto se bebe
e do infinito se canta e se dança
espaço a noite os faz crianças
sem limite pois só a solidão
por onde os faz crescer.
desliza
corpo Rola a noite,
alma mas a criança a bola rola.
e vontade E enquanto bola e noite rolam
de ir e vir a boemia enrola a noite
saracoteando, e acorda a criança
balançando que há dentro de nós.
e requebrando
ao ritmo da dança. Rola a noite
Enquanto isso rola a criança
nossos olhos mas parada fica
fascinados diante do copo
se convertem
a esperança
em trono e altar
da madrugada
para esta deusa
que virá.
entronizar.
Mas ela está lá
O bolero toca
e eu aqui estou
o coração
o quinto whisky
de quem canta
a saborear.
e de quem ouve.
Por quê será?

84 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 85


Ao ritmo caribenho Canibalismo tropical
ele e ela
Ela é arisca
abraçadinhos
e sedutora.
dançam
Esbanja forma
pernas, seios
“Ninguém é de ninguém”
e brilhantes olhos
canta a cantora
– estrelas negras
e o salão confirma
em noites de luar.
pois solitário
com solitário
Como suportar
nenhum contrato
tanta exuberância
à noite firma.
de beleza fêmea
e tanta vontade
“Amanhã é outro dia”
de sua carne devorar?
todos repetem
Desejo tenho
com o cantor à mesa
de lamber
Enquanto todos se agitam,
comer
no ar paira a pergunta:
mastigar
- a noite é criança?
engolir
mas a criança está dormindo
sem pausa
e o boêmio esquece
e sem fim.
a hora de ir embora.
É o que sinto
ao vê-la
nesta penumbra
do bar.

Um dia voltarei aqui


e lhe direi:
– lembras de mim?
Por ti
corri ruas
percorri
estradas
e vielas.
Por ti

86 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 87


subi Velhos companheiros velhos
e desci
Velhos companheiros
montes
depois de longos anos
e serras.
decorridos desde a infância,
Por ti
no bar se encontram.
fiquei
exausto
Um lembra o dia em que..
de tanto desejar.
O outro, a noite, na qual...
Por ti
Quatro doses de whisky
me exauri
e ninguém se lembra
na noite escura
do quê e da qual...
à espera
Apenas que sempre foram e são
do luar
velhos companheiros velhos.
que nunca veio:
– prato pronto
Mas o dia em que e a noite na qual
pra sozinho
como molduras aguardam
te devorar.
os dois velhos companheiros
para num quadro se postarem
à mesma cena da mesa
diante dos copos de whisky
ora bebendo, ora pensativos
e sempre a conversa
em risadas arrematando.
Assim passam a noite,
passam o resto da vida
para regularmente no mesmo
antigo bar se encontrarem
os velhos companheiros velhos.

88 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 89


DEPOIS DO BAR I

Vem a noite
e com ela a plenitude do pensar,
a solidão
que nos faz
valorizar a Vida, sobretudo o Amor.
Como diz o poeta:
“Vem o tempo e a idéia do passado
visitar-te (...)
vem a recordação e te penetra (...)subitamente”
(CDA – Versos à boca da noite)
Amor
Em homenagem à filósofa existencialista,
Jeanne Delhomme, que o inspirou.

Além da afirmação e da negação


além do imediato-mediato
sempre a transformar-se
em incerteza e interrogação,
além do sofrimento
e de tantas preocupações
a estreitar a vida
e reduzir o humano
à finitude de apenas ser
além da liberdade
de ser e não ser
além da atenção ao agir
além da loucura do sonho
reside o amor.

Voltado sobre si mesmo,


rompe a eterna presença
do tormento do pensar
a insensatez da ausência
que a lembrança leva e traz

Alarga os parâmetros do viver


na dilacerada manifestação
do real e do irreal
no limite do finito
e desemboca na eternidade.
Liberto das obrigações e dos mitos
transcende a humana existência
e desta se torna a própria razão de ser.

DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 93


Gramática do amor e nossos corpos
estão
a Lena
colocados
corretamente
amar se aprende amando (Drummond)
ou fora
amar verbo intransitivo (Mário de Andrade)
de lugar.
Como todo amor Nossa gramática
nosso amor por não ter
também exceções
é diferente. não precisa de autor
para a regular.
Fizemos dele Cada dia
“verbo intransitivo” é nova descoberta
e pronominal nova aprendizagem
que se aprende nem carece publicar.
por si só
e só se conjuga Foi escrita
na primeira pessoa a duas mãos
do plural embora nela
num tempo só em mão única
eternamente presente. é permitido transitar...
Não nos preocupa Em segredo
modo estamos
concordância a cada dia
gênero inventando
número só p’ra nós dois
grau outras
fonética formas
morfologia de amar.
sintaxe
nem se
nossos (pro)
nomes

94 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 95


Novas formas de poetamar Amor impossível
ama e faze tudo o que queres Ay! Ese camino largo y distante
(Santo Agostinho) no llega todavía a su final…
(Terezinka Pereira – Nada se pierde)
Amando se aprende
a criar Viver com sua imagem só na mente,
novas formas sem querer dela nunca se livrar,
de poetar. apenas conservar eternamente
o brilho a marcar aquele olhar.
Poetando se aprende
a inventar É um tal de gostar e desejar
novas formas um ao outro, mas sem se envolver,
de amar. de querer cada vez mais se amar
sem poder um ao outro se dizer.
Amando e poetando
se descobre Beijar insaciável no escuro
como se criam a boca que real já não existe.
e se inventam No fundo é um amor gostoso e puro,
novas formas paixão que no silêncio inda insiste,
de poetamar.
solitária, em vencer tantas barreiras
só impostas por leis e convenções.
Vontade de cerrar muitas fileiras,
mas se perde no pó das intenções.

É um segredo guardado em sacrário:


mistérios tão rezados com paixão
percorrendo as contas dum rosário
sem chegar ao gozoso da união.

Um desejar de velho à donzela


para cama levar sem convidar.
Um depender do apelo simples dela
sabendo que este nunca se dará.

Nele não entra Eros nem Cupido.

96 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 97


Nada tem de Romeu e Julieta. Sem ela
Grito a cortar a noite, mas contido
Percorro o cancioneiro popular.
como areia do tempo na ampulheta.
Nele encontro: Maria, Carolina
Rosa, Lígia... até a doce Yolanda.
Amor tão diferente de outros tantos,
E sinto o odor das flores das colinas.
de se realizar não há esperança.
Tantas e tantas para se arrolar.
Tortura sem causar dor; no entanto,
Mas entre tantas ela não está.
deixa cravado o espinho da lembrança.
Nomes rolam na lista do guiatel
Amor mudo, além de confessado
ao dela parecidos ou iguais.
incompreensível para o ser humano.
Milhares com endereço se repetem.
Mesmo assim hoje como no passado
Às vezes penso não serem reais.
diz a amada ao amado: eu te amo.
Vejo-os como miríades no céu.
Sem nada compreender... não vejo o dela.
Tudo nele e por ele é possível.
Até o ritual do próprio amor.
Mulheres cujos nomes hoje honram
Menos ele, apesar de inconcebível
o país pela ficha ilibada,
entre racionais tal amor se impor.
seja no setor público ou privado
profissionais de vida celebrada
Impossível amor! Nem Shakespeare
em número a granel já se encontram.
em todos seus poemas o cantou.
Mas entre tantas ela não está.
Mas ele existe. Em terra ou no ar,
só pode falar quem o exp´rimentou.
No Guiness ou no Prêmio Nobel
dezenas delas já se registraram
pelo talento ou pelas descobertas.
E sempre pelas obras que deixaram.
Entre os nomes dignos do troféu,
sem nada compreender...não vejo o dela.

A sentença de Nietzsche me alertou:


“Só acha quem parar de procurar”
Foi o que fiz. Sustei toda pesquisa.
Senti logo uma voz a sussurrar:
– Mulheres!? Mais de mil já procurou,
mas entre tantas ela não está.

98 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 99


E prosseguiu em ritmo satânico: Olhos negros
– A mulher que procura só em sonho
“Sus dos ojos parecen
encontrará. Me vi frente à aporia:
Estrellas negras:
Se todas que procuro em sonho ponho,
Vuelan, brillan, palpitan,
como ela não está? Entrei em pânico.
Relampaguean!”
Ou paro de sonhar ou fico sem ela?
(José Marti – primeiro poema de Ismaelillo).

Teus olhos negros,


sob a moldura de teus cabelos negros,
escurecem, cada vez mais, a negritude
de minha solidão.

Quero teu brilho


de estrela negra
em meu céu escuro
carente do plenilúnio
de teu olhar.
Quero tua luz negra,
a iluminar meu caminho
de nuvens plúmbeas carregado.

Olhos negros
a envolver-me
a mergulhar-me
em mares negros
em mares mortos
de ondas
soçobrantes
de mim e
de meu ser
nas praias negras
de negras areias
de minha negra solidão.

100 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 101


Se me deres tua alma Detalhes
Se me deres teus olhos Se enumerar detalhes,
iluminarei a noite detalhes deixam de ser.
de meus sonhos. Mas de nós dois não só importam
o geral e o comum.
Se me deres tua boca Importa muito mais
clamarei aos céus todo teu ser que em detalhes se desfaz.
contra a insensatez humana. E de todos aquele especial
por ser detalhe teu, me satisfaz.
Se me deres teus seios
espalharei uberdade Ele se encontra em cada parte
nas terras que meus pés pisarem. de teu corpo, de teu ser:
em teu rosto a cor de teus olhos,
Se me deres teu corpo mais abaixo o rictus de teu sorriso,
célula por célula em teu peito a singular arte
transmudarei todo meu ser de teus seios ao se manifestar.
Pulo o mais atraente e reservado
Mas se me deres tua alma para em especial deleite saborear.
subirei aos céus E me detenho, ao cabo,
com saudade no belo torneado de teus pés.
de teus olhos
de tua boca Mas o principal detalhe
de teus seios está neste quê a fugir do caçador:
de todo o cheiro em te vendo assim tão detalhada
de tua existência sinto que estou te declarando
única e sempiterna. sem rodeios e sem detalhes
o mais profundo amor.

102 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 103


Na mesma tecla de te deixar assim:
eu sem ti
em homenagem aos
e tu sem mim.
separados e aos solitários
Ora o mi
I
mi mi mi mi mi mi mi
Tecla batida
mi de minha
por uma vida
em duas partida: que foste
uma nas brumas do tempo e não és mais.
perdida Com tanto espaço
outra qual fênix não podem os dois ocupar
de cinzas renascida o mesmo lugar?
dois elos que clamam Por que será?
por nova fusão
da corrente rompida. Ora o fa
fa fa fa fa fa fa fa
II fado meu
Vivemos sempre fado teu
batendo na mesma tecla fado tão fatal:
sem sair do lugar. Oh! minha fada
Distantes um do outro tanta falta
sem ultrapassar fazes em minha solidão.
a barreira Não reclamo de ti
do mesmo som reclamo da saudade
a densidade da constante presença
do mesmo tom. de tua ausência
que só tormento traz.
Ora o dó
dó dó dó dó dó dó dó
Ora o sol
dó de ti
tão sozinha sol sol sol sol sol sol sol
dó de mim sol que iluminou
que vivo só. felizes dias
ainda estás a aquecer
Ora o ré meu ser
ré ré ré ré ré ré ré em busca
ré sem culpa de amor sem fim
quando culpa tenho eu

104 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 105


Ora o la O datilógrafo
la la la la la la la
Ela se queixou que precisava de um datilógrafo,
lá reinas
logo a mim que tanto a admirava.
soberana
aqui padeço
a lembrança Deixe-me ser seu datilógrafo.
de ti todinha Assim, ao menos
a ocupar sob o pretexto
dias sem noite de copiar-lhe o texto
e noites sem luar. ficarei a seu lado.

Ora o si Da máquina de escrever


si si si si si si si farei extensão de mim
Si de sina. letra a letra
Sina cruel por longo tempo
viver em dois lugares cobrirei
sem em nenhum estar. comum espaço.
Mas, se me for dado
o dom da ubiqüidade, Olhos fechados
não haverá (o bom datilógrafo não olha para o teclado)
mais lugar no écran de minhas retinas
onde tu e eu vejo fila imensa
não possamos de candidatos...
sempre juntos estar. um a um, todos se vão;
firme a esperar
Nem haverá somente eu
a monotonia e você não vê.
da escala Por que será?...
que vai e volta De repente
para repetir dedos atentos
com insistência olhos fixos em seus lábios
a mesma nota estou a recolher
no teclado da vida cada palavra
para se deter naquela de seu dizer.
que só reflete
esperança vã. Quero ser seu datilógrafo
e em letra de forma

106 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 107


gravar Lentamente
seu jeito gostoso espaçadamente
de falar. em letras
em sílabas
A folha em branco por inteiro
recorda-me como é gostoso
o “tanquam tabula rasa digitar seu nome
in qua nihil scriptum” no teclado
a retratar de meu sonho
a mente humana ao nascer. a cada toque
Tal qual a vida recomponho
receberá as manchas seu gesto
que a identificarão seu semblante
quando crescer. seu jeito
seu porte
Estas teclas não comprimidas seu corpo inteiro:
ocultam coisa estranha K.... doçura
(sinto que nelas K.... ternura
mistério se entranha... K.... segura
ou será que é dentro de mim?) K.... madura
K.... mulher.
Deixe-me ser seu datilógrafo
adoro ouvir seu nome No vai e vem
e no papel gravá-lo deste cilindro
lembra carinho com papel enrolado
e tudo que é caro sem tabulador
lembra rir mais envolvido
(e é tão lindo seu sorriso!) fico eu
lembra também ninho com medo de ir
paraíso... e K.... não vir.

Veloz, vibrantemente Mesmo assim


quero escrevê-lo de uma só vez quero datilografá-la
para não perder a cada toque
um só minuto de você. (como em lâmpada de Aladim)
   surgirá você
a dizer-me inteligentemente

108 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 109


(mente?...sei que não!) Rua do Ouro
as coisas
Meu amor
que careço ouvir...
mora na Rua do Ouro
Ser seu datilógrafo
no bairro da Serra
copiar suas memórias
em BH.
escrever suas histórias
Hoje ao chegar em “noite boa”
transcrever o manifesto
em casa... ao abrir Pessoa
discurso
como sempre costumo fazer
ou simplesmente
eis o que me oferece a ler:
aquele
que a latência
“sei que me amaste também, que me
do silêncio
conheceste, e estou contente
encerra
sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nas-
e só sua leitura
cer, quer pela Rua do Ouro acima pensando em tudo que não é a Rua do
revela.
Ouro. E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo e cá estamos de mãos dadas,
(...) dançando o universo na alma”
Ao menos
(o que é tudo)
Fui tomado de espanto revelador.
com dedos trêmulos
Afinal tinha acabado de chegar
reteclar
da Rua do Ouro, onde por longas
seu nome:
(na verdade ligeiras)
horas ficara a namorar.
Primeira letra – com o “pai de todos”
Corri ao papel e nele escrevi
Segunda – com o “mindinho”
o que me pareceu
de minha timidez
de Pessoa a mensagem ditada
Terceira – com o mais forte e da esquerda
para copiar:
Quarta – novamente o decidido e protetor
Última – com o vigoroso “indicador”
Se a Rua do Ouro
e da direita.
não existisse
de ouro a mandaria
Kerida,
calçar
deixe-me ser seu datilógrafo
só para nela
prometo
o meu amor
cento e vinte
poder morar.
toques
de karinho
por minuto.

110 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 111


Misteriosa ladeira Vizinhos
a Rua do Ouro: entregadores
se a subo não canso carteiros
se a desço não ando... transeuntes
e ali estando – desatentos –
na rua não penso dizem a desconhecer.
(não me toca o ouro Seu nome oculta
que seu nome contém o verdadeiro
só me comove o tesouro de uma rainha deusa
que a.....70 que veio do oceano
ostenta).
ou do céu
talvez do arco – íris
Nesta rua
não mora um anjo para ali ficar.
mora Thauma Se parado
a deusa me encontrarem
Admiração. na Rua do Ouro
saibam todos
Quando de propósito escolhi
subo aquele lugar.
a Rua Não parei por parar
do arrebatado fiquei
Ouro janela iluminada
não a contemplar
penso (coisas de amor!)
na
rua Se um dia
não. a Rua do Ouro
Só de nome trocar
numa (ao menos entre Bandeirantes
dona e Muzambinho)
de garanto
casa
descobriram o segredo
que
o mistério ali encerrado
a
Rua e em placa
do por certo estará:
Ouro rua de Thauma
tem. entre a do Amor

112 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 113


com Capricórnio Thauma
e a da Admiração
Thauma: – que nome e que mulher!
com Gêmeos.

Esta a Rua do Ouro   


de que falava Pessoa “não era mau genealogista quem disse
– “onde tudo se sente que Íris – o mensageiro do céu – é filho
e se está de mãos dadas de Thauma (Admiração, Maravilha)“
dançando o universo na alma”. – (frase pronunciada por Sócrates)
(Teeteto de Platão – Theiat. 1550)
Se subo
se desço Voando juntos
não penso na rua não à procura de Thauma
só em meu amor Thauma e eu.
estarei a pensar! Mistério de viagem
de inquirição
Acaso um dia enigma
esta rua for minha maior que o mundo:
ninguém ali Thauma presente
jamais poderá passar e Thauma se procura.

Thauma – visão
da Thauma real
da Thauma mulher.

Deusa Admiração
filha do assombro
irmã gêmea da duplicidade
mãe de Íris – a mensageira da paz.
Flecha da felicidade
a varar-me o destino
a penetrar
o infinito do céu
a imensidão do próprio pensar.

No princípio era Thauma


– a deusa

114 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 115


e Thauma se fez mulher Saudades de ti
amor
dentro de mim. Saudades de ti
Na fusão do bom – belo – admirável amor.
nos tornamos De teu olhos
o arcano de três em um. com sua cor estranha
que combinada com a castanha
   sempre impregna em seu brilho
Hoje luz de sol em noite de luar
ao contemplar-te
com a luz de meu olhar Saudade
prenhe de admiração do sorriso
te visto mulher. de teu olhar
por si só
Tua força formulador
me prostra de frases inesperadas
arrebatado a ultrapassar o limite
a teus pés. da inteligência vulgar.

Thauma Saudade
te quero do rictus
te desejo em teu rosto moreno
te adoro a revelar-te inteira
te amo e a traduzir
thumaticamente toda a sensibilidade
Thauma – deusa – mulher.
de tua agudeza espiritual.
Na mitologia grega, independente de Thauma ter sido o persona-
Saudade
gem masculino que casa com Electra, (o que vim a descobrir muito de-
de ti todinha
pois de ter escrito o poema acima), para todos efeitos continua para
mim, a deusa ADMIRAÇÃO. Creio estar correto, pois o próprio Camões
teu jeito de ser
se refere a Íris não como filho mas como filha de Thauma (por ele cha-
de falar
mada de Taumante), conforme se lê: ”Tal o fermoso esmalte se notava/Dos até de suspirar.
vestidos, olhados juntamente,/Qual aparece o arco rutilante/A bela ninfa, filha de Saudade
Taumante”. (Lus.: 2, XCIX, 789 – 793) de dias intensos
de vida
Afinal consta que os mitos antigos não tinham sexo. a dois.
Saudade

116 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 117


da troca Declaração de amor por e-mail
da companhia
Declaração de amor
do carinho
por e-mail
repartido
é tão virtual
jamais dividido.
quanto o próprio meio
em que se faz.
Saudade
É como beijo
de tudo por ti
na boca
dito ou feito.
separado por vidro.
É como chupar
Saudade
bala sem tirar
do “oi”
o papel.
do “pode ser”
É como esperar
do “bobinho”...
que toda luz se acenda
por si só.
Saudade
É como acreditar
até do “boa noite”
que promessa
invertido
de político
só para me desejar
se cumprirá...
mais do que
É como brincar
mero e convencional
na vitrine da loja
cumprimento
com o carrinho de corrida
noite peculiar.
que lá dentro está...
Saudade
É como
sobretudo
ver
do calor
o
em tua boca
nada
da palavra
escondido
amor.
atrás do
ícone
do
ser.

118 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 119


Beijo roubado Pura e dura
Naquela noite te assustaste Ela é pura e dura.
quando te beijei, Pura quando diz: – sim!
sem pedir permissão. dura quando diz:– não!
Dura porque nega dizer...
Volto hoje para devolver-te pura se nada diz
o beijo que roubei e sorri!
Receba-o como reparação Dura quando se fecha
pelo crime cometido. e não ri.
Pura – em seu todo e sempre
Se beijo devolvido dura – de quando em vez.
é novo beijo roubado, Dura por nada prometer
de devolução em devolução em nunca se comprometer.
vou tecendo infindável corrente Pura porque não sabe remeter...
que começa e só termina Dura no exigir
em incontrolável paixão. pura na doação
Enquanto dura
pura não se corrompe.
Enquanto pura
dura até morrer.
Pura na procura
dura na recusa.
No tempo dura
no espaço pura.
Dura no sofrer
pura no viver.
Mas...
nem infinitamente pura
nem dura eternamente
apenas duramente pura
e sempre puramente dura!

120 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 121


Por trilhos e trilhas Na Estação da Luz
Só para mim Como lâmina
ela é assim... O vento corta fundo
esta estação
Por mais que me esforce de luz chamada.
por ser diferente Parece surgido
ela continua assim! lá do fim do mundo
em plena primavera
Amo-a porque ela é assim. a congelar o tempo
e retirar de suas entranhas
Se um dia da trilha sair, o adormecido inverno.
sei que no terminal da ferrovia
estará a esperar por mim Sem brilho
simplesmente porque ela é assim! o vento fica
cinza como chumbo.
Por mais trilhos e trilhas Chumbo de bala
que percorra, a penetrar profundo
ela sempre estará no fim o descampado de meu corpo
da mesma linha aqui exposto
a me esperar. já em sua essência nu.
Porque ela é
e sempre será Nesta noite gelada
assim. posto-me na soleira deserta
da estação
à espera de outra luz:
– aquela que eternamente
me seduz.

Em pé e solitário
– rígida sentinela –
sobre a fria plataforma
aguardo o clarão
da possante locomotiva
a anunciar a esperada
inesperadamente
ausente passageira

122 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 123


que jamais desembarca Por seguir teus passos
nesta estação tão escura
Por seguir teus passos
pois de luz
rompi todos os laços
só o nome tem.
que me prendiam ao passado.
Passa um trem
Emaranhei-me em teus braços
outro passa...mais outro
somei a meus problemas
só não passa aquele
novos embaraços
que em seu leito traz
por seguir teus passos.
a doçura de meu bem.
Num cipoal pendurei ideais,
Todos deslizam soturnos
desprezei conselhos.
carregando multidões
e da vida correta
a seu destino.
todos os rituais
Somente eu
abandonei
estático aguardo
sem tergiversar jamais,
balbuciando o nome
por seguir teus passos.
daquela que não vem.
Qual Prometeu
Entrei em noite escura
tiritando fico eu.
e na madrugada,
Ele na “rude penedia”
antes de o sol romper
eu numa estação
despejei na praia
cujo nome não lhe convém.
sonhos de construir
Ele devorado pelo abutre da vingança
vida nova
Eu – oh! triste ironia –
e novas ilusões,
pela pomba que de esperança
tudo simplesmente
o nome tem.
por
seguir
teus
passos.

124 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 125


Fratura exposta A palavra é que magoa
infinito enquanto dura Visto não ter ela vindo
(Vinicius de Moraes) ao encontro marcado
pedi-lhe perdão
Não foi cruel por não se ter lembrado
a nossa separação! como quem pensa com receio
Justo por não ter havido no comportamento alheio
ofensas e nele vê o próprio esquecimento.

nem recíprocas acusações. Alívio senti


por sermos todos iguais
Vinte e cinco anos feitos do mesmo barro:
de união “eterna” mentir por acreditar
foram simplesmente que a verdade dói...
a preparação e pensar: a palavra não o fato
para o último ato é que magoa!
de repetida representação.

Num só momento
fizemos das bodas
de nossas vidas
a fratura exposta
de longa ilusão.

126 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 127


Shopping das paixões e do esmeraldo olhar
me dispensa
Para Descartes seis são as paixões básicas da alma:
contemplar.
a admiração, o amor, o ódio, o desejo, a alegria e a
Ainda a saborear
tristeza. Cada uma tem muitas outras expressões.
a alegria
do prazer,
Obsessivamente eis que surge
passeio toda semana antigo amor
pelo shopping das paixões dos “tempos que não voltam mais”...
“Brilhos rebrilhos vidrilhos” Mas o espantalho
das vitrinas das lojas de sua decadência
enaltecem cenários em frangalhos
de peças jamais escritas. meu coração deixou.
Só perplexidade provocam. Perturbado
Incontinente me pergunto: olhos molhados de tristeza
– o que sinto o que vejo entrei na “praça das ilusões”.
é real ou ficção? Pedi um chope
Hoje diante do primeiro outdoor para sofregamente
cenas dantescas a desilusão
despertam em mim no copo afogar.
espanto e estupor.
Pelo hall do cinema
em cartaz se estampa:
“ódio mortal”.
De repente
Molejante corpo delgado
em seminudez esculturado
longos cabelos negros
a serpentear-lhe o colo
sobre par de torneadas pernas
com dengo de cio
meus olhos
arrebata.
E só desejo
incita.
Até a beleza
do rosto

128 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 129


O amargo de meus olhos a suavizar
o amargo
No amargo de meus olhos
de meu olhar.
sinto o cheiro do sol
e o branco som do luar.
A gelatina do dia
Vejo a prece do amanhecer
se desmancha
a empurrar o dia
quando abres os lábios
pr’os braços do entardecer
para os meus
e juntos se precipitar
em beijos devorar.
no leito da noite
à espera da volta que vem
Cumpres o destino
com doces melodias
da metáfora
colorir o amargor
no conflito
de minhas retinas
da esperança e do medo
fatigadas como as de Drummond.
de ver e não ver
de ir e não vir
Mas, ao receber o brilho.
para preencher
de teu sorriso
com tua presença
o amargo de meus olhos
o vazio da ausência
se desfaz em esteira verde
que o amargo de meus olhos
de imenso paraíso.
me faz sentir.
Ao calor de tua presença
Debato com a superação
cintila a vibração
do desejo
a percorrer todo meu corpo
prisioneiro e torturado
e ouço no concerto
no peito trancado
de minha amarga visão
sem poder extravasar
a cor do solo de tua voz.
tanto amor escravo
a bradar pela lei de alforria
Luz e som
para todo o sempre o libertar.
se misturam
quando riscam
o espaço
teus passos
e teus braços
correm
ao encontro dos meus

130 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 131


Noite de lua cheia – relógio quebrado
– ampulheta sem gargalo
Enquanto a lua cheia
deixa o tempo disparar
banha a areia
quando a noite é luar.
deitado no outeiro
o coração lanceiro
Ninguém o nota
– cão faminto
ninguém o sabe.
– lobo do cerrado
Só ela – a descer de seu lugar
bate
poderá
clama
o relógio consertar
late
o tempo parar
uiva.
o lobo calar
meu coração controlar
O halo branco
do plenilúnio
alveja
todo o mar
só não alveja
este coração negreiro
de escravizadas paixões
que
bate
clama
late
uiva.

O coração que está em mim


o cão que está em mim
o lobo que está em mim
o escravo que está em mim
bate
late
uiva
clama

Este coração
incontrolado

132 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 133


Tempo perdido Tempo: verbal ou real?
Ela se foi. Num tempo sempre presente
Aqui fiquei eu só somente só
a recordar vivo a eternidade.
o tempo
que perdi. Se vivia para te amar
e hoje já não nos amamos
Não fui com ela é porque estávamos
mas mesmo assim num passado
um dia voltarei tão imperfeito quanto nós.
para ver o que não vi.
Já lhe dissera: Um dia te encontrei
– Estarei sempre voltando para ti. e pela primeira vez
senti que te amei.
Na parede de seu quarto Mas não deste continuidade
o quadro de Portinari, a nosso amor.
de Drummond os versos O tempo passou
juntos ali pregados, e não voltou mais.
quero vê-los, Não adianta agora tentar.
porque perdi tempo Este foi um pretérito
e não os vi. de tempo acabado,
embora entre nós dois
Mas confesso o projeto fosse perfeito.
nada disso esqueci
muito menos Hoje ergo a cabeça
me arrependi. e repito a mim mesmo:
se o futuro a Deus pertence
Na penumbra como diz a sabedoria,
daquele aconchego tudo que te disse
não havia espaço e tudo que vem de ti
para registrar secretamente esquecerei.
tanto tempo Em público jamais o revelarei.
que perdi.

134 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 135


Lugar comum Poema da espera
Amo o lugar comum Aqui, ali, onde quer que estiver
– qual publica praça estarei sempre a te esperar.
onde todo mundo se abraça.
Onde todos se encontram Passe o tempo
para conversar e me assalte a eternidade
e simplesmente amar. de dias sem noites
e de noites sem fim,
Amo o lugar comum estarei sempre a te esperar.
porque é de todos
está em todos Onde quer que o pensamento voe
e não está em lugar nenhum e de promessas a imaginação povoe
não importa que espaço ocupe
Amo o lugar comum estarei perpetuamente a te esperar
pois nele me satisfaço. sempre no mesmo lugar.
Nele encontro o espaço
para as malquerenças apontar
e o passado recordar.

Amo o lugar comum


pelos teóricos detestado.
Por repeti-lo, sinto
que me renovo a cada instante.

No lugar comum
desemboca todo meu ser.
Quero o maior lugar comum:
– o de amar sempre
no mesmo comum lugar.

Afinal fora do lugar comum


só há o vazio deslo(u)cado
sem começo e sem fim
sem o ponto de encontro
de nossas paralelas
existenciais.

136 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 137


Mão – flor Trovas de amor
minha mão ficou pequena Ao amor fumante
como uma flor de açucena Na fumaça do cigarro
(Thiago de Mello) penduro minha esperança
de beijar-te em confiança
Cinco dedos de tossir sem ter pigarro.
cinco pétalas Ao amor complicado
O amor só é problema
surges do gesto
para quem não sabe amar.
e em gesto te convertes.
Pra quem sabe é teorema
Vira sinal
bem fácil de demonstrar.
significado e significante. Ao amor perdido
E em símbolo Não me indagues pelo amor
te estabeleces. que há muito já perdi.
Erguida és tudo. Por acaso existe dor
Abaixada és resignada. igual à que então senti?.
Escondida, mistério. Ao amor ausente
Ostensiva, luz Duro sofrer por amor
movimento e cor. mais duro, se amor não tem.
Esta a mão-flor Nada se compara à dor
que admiro e beijo Que a solidão contém.
seja para me acariciar Ao amor – decepção
seja para me conduzir. Amei-te apenas u’a noite.
Como gosto dessa mão Foi como se a eternidade
de cinco pétalas me golpeasse de açoite
a anteceder ao abraço ao ver-te nua à claridade
e provocar o beijo. Ao amor vulgar
Mão-flor, perfume exalas Amor não é coisa vulgar.
e me deixas Vulgar é aquele que ama,
sem ter a flamejante chama
no silêncio da noite
e ousa reclamar do par.
prenhe de atração.
Ao amor de mentira
Vem mão – flor Sim, perigoso é amar
mão-anjo, mão-guia fazendo da ilusão o jogo.
para entre suas irmãs É como brincar com fogo
pelo jardim de só desejos pr’o incêndio ter de apagar
ao canteiro da poesia Ao amor sofredor
me levar, me seduzir Sofres tanto do mal de amor
me deitar e me cobrir. e em mim procuras o doutor?

138 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 139


Mas como hei de te curar Haicais de amor
se sofro do mal de te amar?
Ao amor à primeira vista À Iemanjá – nossa Afrodite
Amor à primeira vista? Aquele altar-mor
– Certo quem isso inventou foi em alto mar erguido
esqueceu de por na lista à deusa do amor.
o cego que sempre amou À Dalva de Oliveira
Ao amor sem rima Amei-a logo ao vê-la
Amor não rima com saudade cantar. Na terra brilhou
nem saudade com sofredor. Dalva a nova estrela!
No entanto só na eternidade À Lena
há rima para amor sem dor Nunca hei de esquecer:
Ao amor errante aqueles olhos tão verdes
À noite, judeu errante, marcaram meu ser.
coração desesperado,
Essência do amor
sou eterno caminhante,
O cerne do amor
por amar sem ser amado.
Ao amor perigoso só pode ser o ciúme
No jogo das emoções de um amor sem dor.
nenhum é mais perigoso Paixão incontida
do que o amor impetuoso Domar o infinito?
a apunhalar corações Só a paixão incontida.
Ao amor da alma penada Mesmo assim no grito.
Amei-te sempre com doçura. . Amor gaulês
E em troca me deste apenas Chagrin et bonheur
Um buquê azul de açucenas resume o amor francês
Posto em minha sepultura. (paixão há de ser!).
Ao amor pagador de promessa Sina do poeta
Voltarei um dia p’ra ti Cantar o amor
p’ra cumprir aquela promessa! é o destino do poeta
Juro que jamais me esqueci, ou do sonhador.
de beijar-te com menos pressa.
Mulher amada
Ao amor passageiro
É mulher amada.
Nesta vida tudo passa.
Passa o tempo e a desventura. Não importa ser Amélia.
Passa...até a eterna graça Só se desprezada!...
dessa linda criatura!

140 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 141


Mulher sincera
Loura inteligente:
avis rara! Não a quero.
Quero a que não mente.
Mulher ideal
De dia é luar.
À noite sob os lençóis
sol a me queimar.
Amores de outrora
Amores passados
irrompem pelo presente
e lançam seus dardos.
Louca paixão
Ao vê-la tremi.
Fogo a arder-me as entranhas
foi o que senti.
Amor erótico
Levá-la pra cama,
nela derreter meu corpo
qual vela na chama.
Amor – esperança
Tenho-a na lembrança.
De saudade hei de morrer:
– sina da esperança!
Amor multifacetado
O amor tem mil caras.
De todas elas só uma
torna a vida rara.
Amor impossível DEPOIS DO BAR II
Amor impossível?
É amar e não amar.
Sei: inconcebível à noite já penetrada pela madrugada
surge a hora de pensar em meu
“eu e minhas circunstâncias”.
– Reflexões, como apontava Drummond:
“vão se engastando numa coisa fria
a que tu chamas: vida, e seus pesares” (CDA – Remissão)

142 ™ NA MESMA TECLA


Leitura sem fim
Leio sem saber
se chego até o fim.
Sem saber que estou lendo
minha própria biografia
minha vida retratada
em páginas brancas
manchadas de letras
desconexas...
letras sem sons
sem métrica
sem canções...
Qual grafiteiro
roubo a noite madrugada
para as garatujar
e embaraço a vista
no desafio do deciframento
de mim mesmo.
Leio este livro
por mim escrito
rescrito
relido
e revisado
vezes sem conta.
Nele leio o destino
traçado
sem planejamento
sem enredo
sem trama.
Leio
sem as vantagens
da escrita linear
e com todas as desvantagens
da leitura tortuosa...
Leio
leio

DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 145


leio Setenta anos
sofregamente.
a estranha feli(z)(c)idade da velhice
As frases não têm ponto
me obrigam a deslizar.
Fazer 70 anos não é simples.
Sem pausa, só no infinito
A vida exige, para o conseguirmos,
vou parar.
perdas e perdas no íntimo do ser,
Meu pensamento voa
como, em volta do ser, mil outras perdas.
desprendido do texto escrito
qual foragido proscrito   
a embrenhar-se À sombra dos 70 anos, dois mineiros
por aventuras em silêncio se abraçam, conferindo
entre nuvens a estranha felicidade da velhice.
à procura do Nada. (Carlos Drummond de Andrade – Fazer setenta
Entre flocos concebido anos em Amar se aprende amando)
em trevas parido
lá vai o meu pensar Setenta anos
rolando na imensidão faço hoje...quem diria!?
qual bolha de sabão Sim, estou a postos
a vagar para mais esta “exigência da vida”.
vagar Sinceramente me sinto
vagar. como noviço deslumbrado
ao estar admitido
na confraria da provecta idade.

Concordo com Drummond


(quem concordar não há de?!...):
confiro hoje em mim
a estranha feli(z)(c)idade
da velhice.

Olho no espelho
vejo meu rosto
mais uma vez diferente
estampando a mesmice de mim.

146 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 147


Parece até da vida num jogo de perde/ganha
mais um imposto visando a arrebatar o louro
no vidro posto do que ainda resta de porvir.
a ser lembrado
como saldo devedor! Nesta luta íntima
Vejo que até hoje me surpreendo
ainda não paguei com muito apego
a infância truncada ao aqui/agora
a juventude que se foi – ponto da tessitura
e a maturidade que mal do universo
comecei a usufruir. cantado
em prosa e verso.
A luz bate sobre
a imagem refletida Setenta anos
e sobre o presente não há segredo
o passado reproduz. neste mister...
Quanta lembrança Afinal não é receita
de dias idos e vividos de cura ou de culinária
nas dobras do destino escondidos para se avinhar...
ou guardados Embora para tal feito
nos arcanos da saudade! precisei cozinhar
muita dor
Setenta anos muita espera
parecem setenta dias... muita ilusão
Repetirei o lugar comum: sobretudo
passaram depressa irrecuperáveis
não me dei conta. perdas.
Mas também
por que tanta pressa, Algumas apenas
se meu tempo “envolveram meu ser”
nunca teve onde chegar? outras qual lâmina
o penetraram
Recordações constantes até a alma sangrar.
em imagens transformadas. Mas... no fundo: golpes
Até parece a superação a preencher vazios
do eterno conflito desta longa trajetória
do que foi contra o que é espácio-temporal.

148 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 149


Setenta anos! Sou livre?
Quebro o silêncio mineiro
Nasci no dia
para comemorá-los
dois de janeiro
com a alegria
de mil novecentos e trinta e um.
de quem se apresenta
Tenho pois
à festa que se faz.
setenta anos
Rendo homenagem
a mesma idade
à Vida
de todas as dúvidas
(sim! valeu ter vivido)
de todas as incertezas
ao Amor
que carrego dentro
(síntese de todos os que tive e tenho)
de meu ser.
à Paz
Setenta anos
(sempre procurada e sempre alcançada)
de problemas que suporto
à Amizade
sem resolver
(móvel e motivo de aqui juntos estarmos)
metade sequer.
particularmente
à perene continuidade da Presença
Não sou livre de os ter
herdada e transmitida
nem sou livre de assim ser.
aos filhos e aos netos
A vida – eterna interrogação –
com fé em sua perpetuidade.
nem a morte desvendar consegue...
É privilégio
Quando nasci
completar
não era livre para ser
setenta anos
o que sou:
– como negá-lo?
– homem brasileiro
Afinal o faço
mineiro
com permissão
belorizontino
do próprio fluir do Tempo
vindo à luz na avenida Contorno
e com a gratidão
quase esquina de Carangola
de devedor
de parteira
entre credores queridos
dentro de casa
a sacramentar
como soia acontecer
numa roda de corações
naquele tempo...
mistérios à Idade reservados.
E de ter vivido
desde os dois anos
órfão de pai

150 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 151


moleque solto Sina e perdição
na Rua Diamantina
Não sei se poeta sou
ou pegando xistose
Mas aqui estou
nos brejos
escrevendo versos
da Lagoinha.
corretos ou tortos
inteiros ou mancos,
Tinha escolha?
com presteza ou aos trancos
(mesmo se tivesse
com rima e sem rima,
sei que gostaria
com resolução
de me repetir
ou sem solução
e de repetir
sendo ou não
quase tudo
Raimundo
de novo).
no centro ou no fim
Não, não tinha
do mundo
como não tenho até hoje
escrevo versos.
liberdade de ser.
É minha sina
Aliás não tive nem tenho
e minha perdição.
liberdade de existir.
Apenas tenho liberdade
Não sou rei
de viver.
mas restos
de alvas cãs
Livre para viver
sobre a calvície
comecei a escolher
coroam
a decidir
minha cabeça
o que queria ser...
e meu reino
Mistério profundo pros diabos:
de tantos infortúnios
– não sou livre para ser
herdados
nem para existir
com outros tantos
mas livre sou para querer ser
acumulados
o que bem quiser.
e transmitidos
de ascendentes
Entenda quem puder!
a descendentes.

É minha sina
e minha perdição.

152 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 153


Não sou deus, Legado
mas sou criador:
Soneto feito a partir de um verso do soneto
– vivo a inventar
“Rádio Pirata” do poeta Nathan de Castro Ferreira
meu mundo
interior
e descobrir “Não tenho a sorte, nem sei de amuletos”.
outros tantos Apenas o destino me conduz
mundos para a escuridão de tantos guetos
na falta de novos mundos carentes de calor, de água e luz.
e do que fazer.
Assim estou à cata de outros tetos,
É minha sina às costas carregando minha cruz.
e minha perdição. Quem sabe para os filhos e pr´os netos
sorrirá a sorte onde os pés não pus?
Penso que sei
o que sou É o que espero. Não quero outra sina.
quando penso. Deixo a semeadura. No futuro
Se assim penso possam com dignidade e segurança
é porque insisto
que existo saborear o fruto já maduro.
para interrogar Por enquanto minh´alma peregrina
por que tanto penso só tem a lhes legar esta esperança.
o que não sou
de ser e ter
de fazer
o que não sei.

É minha sina
e minha perdição.

154 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 155


Penso, logo... E me pergunto atordoado:
– Onde vou parar?
“Cogito ergo sum”
Pendurado no pensar
ou num galho da vida
Desculpe-me, velho Descartes, para continuar a viver
se penetro no seu cogito e parar de pensar?
por favor meu pensar não descarte.
Não existo porque penso.
Se assim fosse só o homem
neste mundo existiria.
Mais ainda: só os que pensam existiriam.

Desculpe-me velho mestre,


pois ouso contradizê-lo:
Se penso sem parar
um minuto sequer
é porque existo.
Em síntese: existo,
por isso penso.

Nisto eu insisto:
se parar de pensar,
já não sou o que sou
e deixarei de existir.

Por outro lado,


pensando bem
dou-lhe razão:
A prova de que existo
é que penso.

Mas de tanto pensar,


diabo! me vejo
num círculo sem saída.
– Qual o correto:
Penso, logo existo ou
Existo, logo penso?

156 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 157


Oração entrelaçada Feitura da vida
Pai nosso, que estás no céu “o homem é formado pelas circunstâncias”,(...)
de Javé, de Alá, de Buda ou de Tupã, (...) “é necessário formar as circunstâncias humanamente”
mãe nossa – preta, branca, loura ou morena, (Marx)
seja jovem, madura ou anciã
que estás em casa sempre serena A vida não é feita
santificado, Pai, seja teu nome de determinados atos
(este o capitalismo não consome) nem de esperados fatos
assim na terra como no céu. planejados e projetados.
Inda que minha vida leve ao léu,
honrado seja o teu, oh! mãe A vida é feita
neste mundo tão carente de dignidade de circunstâncias,
(nem parece o leito da humanidade). acidentes,
Pai nosso, bendito sejas pela criação e incidentes.
e pela Natureza que inventaste
para nos alegrar o viver. Além de circunstâncias
E bendita sejas por nos ter gerado, incidentes e acidentes,
sustentado, criado e educado, a vida é feitura
oh! mãe generosa e boa de coincidências.
(sei que não a elogio à toa).
Pai, mãe,o pão nosso de cada dia Se queres viver a vida,
que mata fome e gera energia aceita-a como ela é.
nos daí hoje e todos os dias da vida, A vida, além de ser feita
seja esta pequena ou engrandecida. de circunstâncias,
Pai, perdoa-me as ofensas acidentes,
feitas aos irmãos que mandaste amar. incidentes
Mãe, perdoa-me por tudo de errado e coincidências,
e por todas as injustiças cometidas. é feita também de sonhos
Pai, mãe, os anos passaram. e ilusões.
Cresci e de repente amadureci.
Sei que um dia fiquei órfão. Realizações acontecem.
Será que foi só de ti, oh! mãe? Mas realizações
não fazem a vida.
Acontecimentos
são da vida,
não a constroem.

158 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 159


Só, por acaso, Seguro de vida
fazem a vida acontecer.
Preocupa
O que, de fato,
não é a vida que vai
faz a vida acontecer
e se esvai.
é a utopia,
É a morte que vem
a esperança
e não poupa ninguém
de acontecer
coincidências,
A vida é exercício
circunstâncias
de bem morrer.
acidentes
Não seguremos a vida,
incidentes
em nome do querer viver.
que fazem a gente
despertar
Agarrei-me à vida
de nosso sonho
como quem se abraça ao poste
e ver a vida
diante da tormenta
eternamente
com ameaça de tudo varrer.
acontecer.
Mas a vida flui veloz
como o vento
ou como as ondas do mar.
Se tudo corre,
se tudo passa,
por que segurar
o que vai
e não volta mais?

Mas... se volta sempre,


insisto em perguntar:
– por que segurar?

160 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 161


O mal da vida A vida continua
O mal da vida Haja ou não transtornos
é esperar pela morte. haja ou não dores,
sobretudo as do parto,
O bem da morte ou mesmo a dos múltiplos
é aguardar a vida sofrimentos...
para a sepultar. Haja o descontínuo
Mas a vida se finda no calculado contínuo
sem a morte se regozijar. do universo,
haja tudo
Assim entre o mal da vida que a vã filosofia imagina...
e o bem da morte onde o verso e o verde vicejarem
caminha a humanidade e o vermelho da dor permitir,
na esperança inútil a vida mesmo desbotada continua
de encontrar e para todo o sempre
o bem da vida continuará.
nos braços
daquela que a sepultará.

162 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 163


A vida passa Inspirada em versos deste poema, Teresinka Pereira
(presidente da IWA – International Writers and Artists Association –
A vida passa
Ottawa Hills, OHIO – USA) fez o seguinte poema
que nem fumaça
Assim no banco da praça
sento para vê-la passar Nada se pierde
La vida pasa
Com ela passa y todo se repasa
a linda donzela, y nada se pierde
o catador de papel, (Délcio Vieira Salomon)
o atleta a correr,
o mendigo a implorar, Entre la luz de la luna
todos os apressados y el brillo del sol
aos trancos e barrancos nuestro grito galopa
a esbarrar em quem parado está... y se retiene en la memoria.

Tudo passa ¿Quién sabe si en el tiempo


até a própria imagem no hemos marchado
da desgraça el mismo camino, de manos,
passa. acaso en la misma búsqueda
de la ternura?
Quem não acredita
que se poste ¿Quien sabe no fue en vano
ali no banco el amanecer en tierra ajena,
seja ou não exímio las emociones disfrazadas
contador en dolores, el cielo abierto
e faça a conta en la tristeza, dejando atrás
do que se passa lágrimas silenciosas
na calçada de nuestros viejos familiares?
ou do que se passa
em sua cabeça Al final de todo, repasamos
a pensar el tiempo con gusto al presente,
sem parar. una añoranza de lo que
no hemos vivido y la siempre
Sim a vida passa, incontinencia hacia el amor.
e tudo se repassa
e nada se perde. Ay! Ese camino largo y distante
no llega todavía a su final…

164 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 165


No mapa da vida Não maldigo a vida
No mapa da vida Não, não maldigo a vida, muito menos
não descortinei saída a recrimino como “ iníqua sorte”.
bússola quebrada Nem reclamo de perdas ou de tropeços,
e enrolada na linha do equador nem hei de lamentar ingratidões,
sem norte, nem sul se sempre foi do ser chamado humano
sem leste, nem oeste confundir devedor com agradecido...
no equilíbrio entre a pena e a dor Há em mim um sentir muito mais forte:
prestes a desmoronar – ir em frente “sem lenço” e endereços,
diante de mim só encontrei não parar pra rever algum engano
descoordenadas existenciais. ou se ficou pra trás já esquecido
Sem trópicos nem paralelos, debaixo de papéis e intermitências
nem abaixo, nem acima o lembrete de novas incumbências.
comigo se irmanaram
almas penadas tão perdidas Ainda que até hoje não pareça,
quanto navegantes em naus sem rumo nasci etiquetado na cabeça:
na falta de rotas Fabr.:02. 01.1931
a percorrer o universo – Validade: 31.12. 2001
mais desamparadas Já estou em dois zero zero seis!...
e mais emaranhadas (A indesejada errou mais esta vez?!)
que as intrincadas
travessias de argonautas. Sim bendigo a vida e o que ela me dá
por dédalos infernais. seja de bom ou mesmo de ruim.
Este o mapa da vida Se algum bem aos outros inda faço,
a desafiar nascentes alguém já o fez muito mais por mim
e moribundos e outros farão neste mesmo espaço.
no deciframento Por que chorar o mal e a desgraça,
de abismos siderais. se nos foi dada a graça do sorriso
como o melhor ingresso ao paraíso?
Quando lá chegar, inda que iludido,
ao abrir a porta para a eternidade,
num misto de orgulho e de humildade
abraçarei a saudade (de) ter vivido.

166 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 167


Viver em paz
A vida é tão linda
não merece ser manchada
com rusgas e brigas.

A vida é tão cheia


não merece ser esvaziada
por querenças
mal resolvidas
ou malquerenças
a resolver.

A vida é tão curta


não merece ser abreviada
pelo remorso
de não termos vivido
sempre em paz.

DEPOIS DO BAR III:

Na velhice o pensar na Vida está intimamente


ligado ao da morte. Mas (pensamento positivo!), se esta precede
àquela, segundo a chamada”lei de laboratório”, por que temê-
la?... Ou como cantava o
poeta do “sentimento do mundo”:
“tudo que define o ser terrestre
(...) dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo
e o absurdo original e seus enigmas”
(CDA – A máquina do mundo)

168 ™ NA MESMA TECLA


Entre a vida e a morte
– poema de entremeio –

A noite é trágica
(nela, além de espreita, traição,
violência, assaltos, seqüestros,
assassinatos sem conta se fazem).

A tarde é cômica
(todos desejam seu fim
para em bares deixarem
o riso solto entre as espumas
da tradicional bebida).

A manhã é épica
(é nesta hora que ideais
se cumprem, desafios se enfrentam,
e para o trabalho todos se enfileiram).

Mas o dia a tarde a noite


a semana o mês o ano todo
juntos erguem
o palco da monumental
aventura humana
sem enredo traçado
e sem a identidade
da autoria registrada
da tragédia
da comédia
da epopéia.

Só faltam
no meio da cena
luz, som, direção, gestos
para tudo recomeçar.

DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 171


La nave si va pr’a um porto sem luz
Não importa saber
“ navegar é preciso, viver não é preciso”
onde vou me deter.
(Fernando Pessoa)
Nem importa viver
se minha vida
A nave se vai é como nave sem rumo
pelas ondas do mar nas ondas do mar.
balançando e arrastando Nem o leme assumo.
a esperança “Importa navegar”.
de um dia chegar.

Sem leme e sem rumo


a nave se vai
pelas ondas do mar.

Perdida
saracoteia pra cá
saracoteia pra lá
nas ondas do mar.

Em seu bojo
carrega a promessa
de um dia voltar.

Neste oceano
de enganos
e desenganos
minha vida
é como a nave
sacudida
pelas ondas do mar.

Não sou navegador


apenas passageiro
da nave solta no mar.

O destino me conduz

172 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 173


De senectute A incumbência da partida
era uma só:
Cícero,
– ao me encontrar do lado de lá
meu sábio
confirmar
e meu filósofo
se a busca da Verdade cessa
tão subestimado
naquele limiar.
entre os defensores
da modernidade,
Senti-me pela última vez
te leio com ternura
como o títere do destino.
e comovido estou.
E compreendi como nunca
que dentro do Universo todos nós
Cheguei à velhice
somos, num anacoluto existencial,
como quem chega ao porto
sem predicado e sem complemento,
pronto para partir.
os sujeitos do Acaso.
Não sei se feliz ou infelizmente.
Esta a sabedoria que ressoa
Apesar de decidido,
em toda a plenitude
sinto-me desarmado
nessa imensidão
e sem bagagem,
diante da finitude do Ser
sem treino, nem preparação
que se esgota
para fazer a grande viagem.
no angustiante fluir do Nada.
Apenas com a consciência
Adeus mundo de ilusões.
e o espírito em paz.
vou partir como degredado
Por isso me pergunto:
para paragens estranhas
– ficar ou partir?
sem saber se vivi
– que diferença faz?
apenas para lá chegar.
Cheguei
e procurei
na penumbra
do tempo
alguém para me orientar
ou talvez para dele me despedir...
Só sombras encontrei.

174 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 175


Saudade Suave aboio
lamento de montanha
Em homenagem ao “poeta da saudade” –
pranto de nuvens
Da Costa e Silva (23/11/1885 – 25/06/1950),
frio e quente
casado com minha tia Alice.
amargo e doce
com ternura
Nem pungir a misturar
de acerbo espinho dia com noite
nem palavra triste no mesmo lugar.
carregada de sofrimento
nem asa de dor Prenhe de lembrança
do Pensamento sentimento que passa
nem gemidos vãos um deixa pra lá
de canavial ao vento sempre a voltar.
nem a corrente do rio Saudade
qual velho monge quando começo a cismar
as barbas brancas sinto a indefinida presença
alongando daquela ausência
alongando... que me pega
muito menos me pega
pedacinho colorido me pega
de papel. para nunca mais largar.
Apenas o perfume
de cabelos soltos
a impregnar o ar

Está escrita
em linhas etéreas
foge do sol
e pinta ao luar
a imagem
na mente transcrita
que o vento leva
traz e desfaz.

176 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 177


Tempo sem relógio Sem retoque, nem maquiagem,
apenas com o sabor do mar
Meu tempo não tem relógio.
a derramar na praia suor e sal.
Se contenta com mera ampulheta
a peneirar cristais de eternidade
Assim meu tempo sem relógio
sem ponteiro e numerais
Em dança macabra
mergulhará em oceanos incontrolados
os ponteiros rodam sem parar
a perder a noção do espaço
À espera de outros tempos que virão
sem relógio e marcadores
Com louco abraço
com promessas de nunca atrasar.
agarram o ininterrupto fluir
sem pausa das estações

Complicada surge após o inverno


a murcha primavera.
E sem outono brota o verão.

Hoje a noite é lua cheia.


Amanhã o céu é fechado
nem estrelas tem para brilhar.

Sensação estranha irrompe na madrugada.


Mais estranho surge novo dia sem sol
e com peregrinas nuvens a noite sem luar

Quero de mim lágrimas de sol


a contemplar o dengo da lua
em seu pálio soberano e casto

Quero noites sem manhãs


e manhãs sem entardecer
e ao meio dia simplesmente noites.

Sem nunca amanhecer


quero a luz de teu corpo
nu e prenhado ao meu.

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Solidão e poesia Simplesmente isto
Soneto feito a partir do último verso do soneto de a José Renato
Lilian Maial “Para dizer não à saudade” em † 19.11.99

“Trocar a solidão por poesia”, amigo há 30 anos


Lílian, não é a sina de quem ama? dos 54 que viveu
Se tal não fosse, oh! não haveria
quem nunca se queimou em sua chama. Amigo, foste hoje e para sempre
e não me avisaste!
Será que hoje há quem aos céus clama Esqueceste do compromisso selado
e nega à solidão e à fantasia apesar da farsa nele embutida
o bem de meditar e inda reclama – legítimo pacto de sangue dissimulado.
do silêncio que torna a noite fria?
Cobro-o agora como dívida intransferida:
Lílian, sinceramente não acredito – quero saber como se dá a passagem
tenha alguém pensado ou mesmo dito do ser para o nada...
tamanha insensatez de não trocar de tua alegria... tua risada
cujo eco nos deixaste
o estar só por um verso lá escrito para a mudez a que foste
mesmo que ele depois seja proscrito eternamente condenado
por não poder sozinho o amor cantar. de tua inquietude
sem dúvida tua grande virtude
marcada de projetos
de vida e realizações
para o repentino silêncio
em que repousas agora...

– É verdade que o tempo


desemboca na eternidade
pela porta da morte?

Não me respondes?
então é como em vida:
– se calas, consentes!?

Perdoa-me a confissão:

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Invejo-te Vida sem presente
por aqui não estares mais.
Lembrando Luiz Bicalho († 15.09.94), amigo e
Sei que é duro dizer
irmão de crença no mesmo ideal socialista
porém mais duro
é suportar este momento
sem o declarar: Quando ele morreu
– invejo a todos os mortos o presente sumiu.
são superiores a todos nós! Ficou só o passado a recordar
Só a eles foi revelado bons tempos com ele vividos.
o mistério da vida.
Nós neste vale de tormento Com ele projetamos o futuro.
apenas somos Mas como o presente
interrogações. o novo tempo se ocultou
É terrível sei disso atrás de egoístas nuvens
mas foi Antero de Quental que o guardam para si.
(que por ironia se matou
junto ao muro de um convento Ainda espero
chamado Esperança) quem o disse: que as nuvens passem
“dormirei no teu seio inalterável... e qual sol
ó morte, libertadora inviolável!” ele volte a brilhar nossos dias.

Amigo, se o tempo ainda existe para ti Se não passarem


volta apenas para dizer-me: que se avolumem
– sim em plúmbeo negror
simplesmente isto. e se convertam
em água de grossa chuva
para que caiam
sobre nossas cabeças
as bênçãos
de sua eterna lembrança.

182 ™ NA MESMA TECLA DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 183


APÊNDICE

Na solidão da noite
brota o desejo de remexer o passado –
as lembranças que em “versos entre guardados
se guardaram”.
Afinal:
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido (...)
(CDA – Memória – Claro Enigma)
A porta se abriu
São João del Rey, 12/11/50

A porta se fechou. Suspirei e parti.


– Adeus colégio interno! – foi este meu brado.
Finalmente (pensei) ficarei sossegado
E pra sempre serei livre também de ti.

A porta se fechou... sim...bem que eu o senti


O coração bateu... nele estava trancado
Um mundo de rancor, de ódio acumulado
De revolta e desdém enclausurado ali!

Qual avaro lancei as chaves ao destino.


Abri-lo? Que jamais tivesse o desatino.
Assim aconteceu. O voto se cumpriu.

Até que um dia...adulto e em silêncio grave


Lendo da vida o livro, entre as laudas u’a chave
Achei. A luz brilhou...a porta então se abriu.

DÉLCIO VIEIRA SALOMON, IWA ™ 187


A Olavo Bilac Reforma do mundo
São João del Rey, 25/11/1950 (tradução demasiadamente livre do WISHING
– feito no dia em que descobri que seu nome era um de Ella Wheeler Wilcox)
alexandrino perfeito –
São João del Rey, 5.12..50
Poeta e solitário ouvia estrelas,
mas o fazia sem jamais perder o senso. Queres que o mundo seja melhor?
A pureza da língua mesmo nas novelas – Escuta então o que cumpre fazer:
cultivava co´ amor e com desvelo intenso. Põe um relógio em tuas ações!
Que possam nele sempre correr
Á Pátria dedicou hinos como as mais belas Mas sem atraso e acelerações
canções, sem olvidar o repertório imenso Os mostradores da retidão.
consagrado às crianças e à inocência delas,
apesar de viver constantemente tenso. Livra a mente de tantos motivos
Pessoais, fúteis e subjetivos.
À glória do Parnaso, jovem, foi alçado: Os pensamentos teus sejam puros
Príncipe dos poetas logo proclamado. Por sobre a terra sempre a pairar.
Em tudo que abraçou fulgurou com destaque. Um pequeno Éden podes tornar
Deste topos que estás a ocupar.
Seu nome há de ser sempre reverenciado
e com exaltação sempre pronunciado: Queres que o mundo seja mais sábio?
Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac Bem, crê que deves ser o primeiro
A acumular a sabedoria
Com afã, com denodo e esmero
No álbum arcano que deveria
Sempre estar dentro do coração.

Não destruas jamais por loucura


Uma página ou rara figura.
Vive amiúde a folheá-lo
Porém folheia-o pra viver.

Desejas tu homens de saber?


Ah! Sê tal antes de isso querer.
Queres que o mundo seja feliz?
Então tome a missão de espalhar

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Sem fim sementes de caridade.
Esses grãos hão de desabrochar
Em floração de felicidade
Por qualquer terra que os acolher.

A alegria de não pouca gente


Em um só tem talvez a semente.
Daquilo que hoje é pequena drupa
A manhã carvalho há de sair.
Bendita a mão que em terra a encobrir
Multidões susterá no porvir.

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