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DIÁRIO

DA REPÚBLICA
15 de Junho de 2007

APÊNDICE
SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO

Decisões proferidas pelo tribunal de conflitos


durante o ano de 2006
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Acórdão de 12 de Janeiro de 2006. II – Apreciação.


1. O litígio.
Das certidões juntas aos autos verifica-se que a A. propôs no TAC
Assunto: de Coimbra em 10.02.2003 acção contra o Município de Aveiro em
que alegava:
- Ter celebrado com a aderente ECOP um contrato de factoring
Conflito de jurisdição. Contrato de factoring. Garantia de
ao abrigo de qual recebeu as facturas n.ºs 3648;3649; 3796; 3797 e
pagamento dada pelo devedor ao Factor. Competência 3996, representativas de créditos sobre o R. no montante global de
dos tribunais judiciais. 700 655.53 €.
- A Câmara tinha assumido por declaração assinada pelo seu Presi-
Sumário: dente e com o selo branco do Município pagar directamente à deman-
dante, sem deduções ou compensações aqueles créditos.
- A Câmara enviou cópia de relatório de liquidação provisória da
I — Constitui uma garantia suplementar de pagamento do Empreitada em que se considera credora da ECOP donde pretende retirar
crédito transferido para a sociedade Factor pelo con- a consequência de nada dever à A.
trato de factoring, a declaração aposta e assinada nas - Os factos invocados pelo R. são todos eles posteriores à assunção
facturas pelo representante do devedor (no caso do ente da dívida por aceitação da cedência e confirmação da sua existência dos
público dono da obra efectuada ao abrigo de contrato de créditos e a A. não tinha qualquer possibilidade de conferir a existência
empreitada de obras públicas) que reconhece a dívida dos créditos cedidos, pelo que só aceitou a cedência dos créditos após
e assume o compromisso irrevogável de pagar à ordem o compromisso assumido pela Câmara.
da Factor os créditos nelas referidos, sem deduções ou Identicamente alegou a A. perante o Tribunal Judicial.
compensações. No TAC a decisão de incompetência assentou em que o litígio tal como
II — Estruturalmente a referida garantia é uma obrigação está configurado na acção tem como fundamento apenas o contrato de
autónoma em que é assumido o compromisso de pagar factoring e a responsabilidade exigida resultaria apenas deste contrato
sem discutir a dívida subjacente. pelo que não haveria lugar a apreciar o contrato regulado pelo direito
III — É da competência dos tribunais judiciais a acção em público – a empreitada de obras públicas.
que a sociedade Factor demanda o devedor das facturas Por seu lado a sentença do Tribunal Judicial assentou em que as
com fundamento único na garantia por este prestada por partes estão de acordo quanto à cessão dos créditos e ao alcance desse
meio daquela declaração. contrato, sendo o litígio centrado sobre a existência e montante do crédito
cedido, este relativo à apreciação sobre o cumprimento do contrato de
Processo n.º 7/05-70. direito público.
Recorrentes: Heller Factoring Portuguesa, S. A., no conflito negativo 2. Os contratos de factoring e de empreitada.
de jurisdição entre o Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra e 2.1. Para ultrapassar as enunciadas divergências sobre o objecto do li-
o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro. tígio importa avançar para além de saber qual o contrato que está na base
Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Rosendo José. do diferendo porque, caso os efeitos conferidos ao contrato de factoring
permitam ao devedor opor ao cessionário os meios de defesa que lhe
seria lícito invocar contra o cedente, e caso a acção tenha sido proposta
Acordam em conferência os Juízes que compõem o Tribunal dos com fundamento principal no contrato de factoring, então seriam os dois
Conflitos: contratos necessariamente chamados à apreciação do litígio.
Mas, como resultará da subsequente exposição, embora a resposta
I - Relatório. à primeira questão seja positiva, a acção não tem como fundamento
Heller Factoring Portuguesa, S.A. requereu a resolução do conflito principal o contrato de factoring.
negativo de jurisdição entre o Tribunal administrativo de Círculo de Vejamos:
Coimbra e o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro para julgar a acção Se o devedor puder opor ao cessionário a mesma defesa que pode
que propôs contra o Município de Aveiro, tendo como finalidade obter opor ao cedente então através da apreciação do contrato de factoring irá
a condenação deste a pagar as facturas emitidas pela empresa ECOP também passar a apreciar-se o contrato de empreitada de obra pública,
– Empresa de Construções e Obras Públicas Arnaldo de Oliveira S.A. visto que o Município apresenta a sua defesa com base em que a fac-
e cedidas à demandante no âmbito de um contrato de factoring, bem turação não corresponde a trabalhos efectuados e que houve atrasos na
como os juros devidos pela mora. obra que resultaram na rescisão do contrato e numa conta da sua posição
Proposta a acção em primeiro lugar no TAC de Coimbra este declarou- perante a Aderente em que não é devedora, isto é, o Município pretende
-se incompetente por sentença de 5.11.2003 e posteriormente, proposta defender-se essencialmente através da oposição à demandante dos meios
a acção no Tribunal de Comarca, este declarou-se incompetente para que detém contra a Aderente que cedeu os créditos.
decidir o litígio por sentença de 15.10.2004. 2.2. Analisemos, ainda que brevemente, se em acção proposta com
Ambas as decisões transitaram em julgado. fundamento em contrato de factoring é admissível que o R. desenvolva
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os mesmos meios de defesa de que disporia contra o cedente, ou se o cláusulas de salvaguarda relacionadas com o persistente incumprimento
contrato de factoring, afasta a referida possibilidade de discutir contra o dos clientes da Aderente.
cessionário as obrigações entre o primitivo credor e o devedor. d) Havendo acordo sobre os pontos mencionados o Aderente e a Factor
Um obstáculo se levanta desde logo à autonomização das obrigações celebram contrato de factoring por um determinado período de tempo
do Devedor que consiste em não ser parte no contrato de factoring pelo (é comum ser por um ano), e em geral prevêem renovações.
que a respectiva superveniência e em qualquer caso a mencionada alte- e) A Aderente envia à Factor facturas dos Devedores englobados no
ridade, determinam que não poderá projectar efeitos sobre os vínculos contrato de factoring.
contratualmente estabelecidos — entre ele e o (agora) Aderente — no f) A Factor entrega em à Aderente o montante correspondente à per-
contrato de que emergem as facturas, centagem contratada do valor das facturas, inferior a 100 %, uma vez
Assim o artigo 585.º do CCiv. estatui: que o diferencial, também chamado provisão financeira, é retido para
“O devedor pode opor ao cessionário, ainda que este os ignorasse, cobrir notas de crédito devoluções ou outros ajustamentos.
todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, g) O Devedor (ou devedores) da Aderente é informado da cedência do
com ressalva dos que provenham de facto posterior ao conhecimento crédito e passa a ficar obrigado a pagar aqueles débitos à Factor no ven-
da cessão”. cimento ou no prazo médio que tinha estabelecido com a Aderente.
É, assim, seguro que apenas os meios de defesa que assentem em h) A Aderente paga à Factor uma remuneração pelos adiantamentos
facto ocorrido depois do conhecimento da cessão não são oponíveis ao recebidos até à liquidação da factura e uma comissão de cobrança.
cessionário ou Factor, pelo que por via da cessão financeira o crédito i) As facturas liquidadas são lançadas na conta da Aderente na data
transferido não se torna um crédito abstracto, ou cartular. da cobrança, tendo
2.3. Para melhor avançarmos detenhamo-nos um pouco mais na Além deste desenvolvimento habitual ou típico podem existir parti-
análise da estrutura obrigacional do contrato de factoring que foi dis- cularidades da operação, designadamente a cedência pode ter a cláusula
ciplinado no nosso país pelo DL 56/86, de 18 de Maio, posteriormente “com recurso” que consiste em a Factor poder exigir da Aderente o
substituído pelo DL 171/95, de 18/7, cujo artigo 2.º refere: pagamento do crédito que o devedor não pagou no prazo estipulado
“A actividade de factoring ou cessão financeira consiste na aquisição e por outro lado pode ser acompanhada da prestação de garantias de
de créditos a curto prazo, derivados da venda de produtos ou de prestação pagamento do crédito, sendo que as garantias do crédito a favor do
de serviços, nos mercados interno e externo”. cedente que não sejam de carácter pessoal se transmitem também com
Consiste este contrato na transferência dos créditos a curto prazo pela a cedência financeira.
venda de produtos ou pela prestação de serviços que o seu titular – o
Este breve excurso permite destacar que o contrato de factoring dá
aderente ao factor, ou cedente – efectua para o factor ou cessionário.
A este aspecto central da funcionalidade do contrato que envolve a lugar a uma situação obrigacional em que predomina a transmissão ou
concessão de crédito pelo Factor ao Aderente ao permitir que adquirindo cessão de créditos, (primeiro como promessa de cessão e posterior-
os créditos pague e aquele receba desde logo o montante das facturas mente, apresentadas as facturas, efectuada a entrega do seu montante
descontado de uma margem que é a retribuição do Factor, está também ao Aderente - ainda que descontado - e notificado o “Devedor” passa a
sempre associado o serviço de gestão e cobrança de créditos e de seguro ser uma cessão efectiva) pelo que as obrigações correspondentes a esta
de créditos ou assunção de riscos pelo Factor, aspectos que são inerentes parte nuclear do contrato entre o cedente e o cessionário são reguladas
ao próprio contrato enquanto operação financeira. em primeiro lugar pelas cláusulas do contrato e subsidiariamente pe-
Para além disso o contrato aparece muitas vezes acompanhado da las normas do C.Civil sobre a cessão de créditos, designadamente os
prestação de garantias dadas pelo terceiro devedor, por outros terceiros, artigos 577º, 578º e 585º do C.Civ.
ou pelo próprio cedente dos créditos. Importa também realçar que o Devedor não é parte no contrato de
A existência destas garantias, tal como o seguro dos créditos, destina- factoring, apenas fica afecto à sua eficácia depois de lhe ser comuni-
-se a reduzir os riscos de não cobrança, que na sua falta recairiam na cado o contrato e a obrigação de pagar à Factor – artigo 583.º n.º 1
totalidade sobre o Factor. do C.Civ.- consistindo esta afectação apenas no dever de efectuar a
O contrato de factoring numa análise dinâmica, comporta as seguintes prestação à pessoa indicada como cessionário.
operações: Assim, no comum dos contratos de factoring o Devedor não é parte
a) O Aderente apresenta uma proposta de adesão à empresa de facto- nem assume nenhum compromisso no contrato, nem na sua órbita, e
ring (Factor) que é acompanhada de elementos relativos à sua actividade a relação que passa a existir entre o Factor e o Devedor da Aderente
nos últimos anos e à situação financeira. é o efeito do contrato de factoring pelo qual o factor vem a ocupar no
b) O Aderente entrega à Factor uma relação dos seus devedores cujos contrato de venda, de fornecimento, de empreitada - ou outro, que é a
créditos pretende ceder. fonte da obrigação primária - a posição e os direitos que o Aderente
c) A Factor avalia com base naquela informação ou outra comple- tinha contra o Devedor, pelo que funciona como condição de eficácia
mentar, o limite de crédito que se dispõe a conceder ao aderente, por da transferência ou substituição da pessoa a quem deve ser realizada
vezes com montantes limite por cada devedor do aderente, ou exclui a prestação.
mesmo alguns devedores da operação e propõe também as condições Aplicando a um caso típico de factoring a norma do artigo 585.º do
de remuneração que pretende. Pode assumir os riscos da operação ou C.Civ. quando a sociedade Factor demandar o Devedor pelo não paga-
reduzi-los propondo a prestação de garantias tal como pode introduzir mento do débito da factura, este pode opor-lhe na acção todos os meios
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de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, com ressalva dos sociedade Factor, situação que se relaciona com o contrato de factoring
que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão. apenas pela respectiva funcionalidade, como garantia para o Factor que
2.4. Na acção que nos ocupa o Município “Devedor” diz que pretende acresce ao seu direito ao cumprimento do contrato, nessa medida dimi-
discutir aspectos que podem (ou não) ser reportados a momento anterior nuindo os riscos que em princípio sobre ele recairiam quanto a obter o
à cessão, como é o caso de o montante facturado não corresponder a pagamento das facturas (créditos) de que é cessionário.
trabalhos realmente efectuados, pelo que se esta defesa fosse admissí- 2. 5. Importa agora passar a determinar se a declaração de vinculação
vel, passaria a ser chamada à acção a apreciação do cumprimento do a pagar em que a A. assenta a acção é ela mesma uma relação que releve
contrato de empreitada de obras públicas e a relação de direito público das relações jurídico-administrativas.
que nele está implicada. Para distinguir o contrato administrativo do contrato de direito pri-
Porém, ao devedor demandado judicialmente não é permitido pelas vado importa considerar não só a presença de um contraente público
regras de processo discutir o que entender ou que convém à sua defesa, e a promoção de finalidades de direito público, mas também os traços
mas o que está compreendido no objecto da acção (independentemente reveladores de uma ambiência de direito público, nas relações que
de reconvenção, em que não se trata de defesa). nele se estabeleçam, como se afirmou no Ac. deste Tribunal, no Con-
E, o objecto da acção define-se essencialmente pelo pedido e pela flito 21/03.
causa de pedir tal como apresentados pelo A. na petição inicial, sendo O contrato é administrativo quando constitui, modifica ou extingue uma
no respectivo âmbito estrito, ou com as extensões que especificamente relação jurídica administrativa, como refere o artigo 178.º do CPA.
forem permitidas pela lei de processo, que é delimitado o litígio, en- A caracterização de determinadas relações jurídicas como adminis-
quanto objecto do processo. trativas depende de nelas estar conferido ao sujeito público (pela lei ou
O Tribunal de Conflitos vem fazendo sucessivamente apelo a este pelo contrato previsto na lei como susceptível desse regime) o poder
princípio, como pode ver-se entre outros nos Ac. de 16.2.2005, Conflito de exercer determinadas prerrogativas de autoridade sobre a disciplina
n.º 14/04; de 21.10.2004, Conflito 8/04; de 23.9.2004, Conflito 5/04 e jurídica da relação, ou estar sujeito a regras de interesse público que
de 1/6/04, Conflito 24/03. modificam a sua situação comparativamente com situações idênticas de
Na espécie em análise se atentarmos na petição inicial constatamos direito privado, ainda que sejam especiais vinculações.
que o pedido de condenação do R. a pagar o montante das facturas e A relação jurídica decorrente da declaração sobre as facturas do re-
juros não se apoia exclusiva, nem sequer a título principal, no contrato conhecimento da dívida e o compromisso irrevogável de pagar aqueles
de factoring. créditos sem deduções ou compensações surge como qualquer outra
Nem a acção proposta na espécie “sub judice” busca apoio na posição declaração de dívida entre sujeitos privados e sem que a parte pública
de devedor das facturas que o demandado também ocupa no conjunto estivesse sujeita a qualquer vinculação própria nesta matéria, nem pu-
das relações subjacentes entre as partes no contrato de factoring. desse por si mesma exercer qualquer poder sobre a determinação e
Diferentemente, a A., como tinha a seu favor a garantia prestada conteúdo das vinculações decorrentes de tal declaração, manifestamente
pela aposição nas facturas de declaração de reconhecimento da dívida, como forma comum de diminuir o risco de não pagamento do Factor
bem como o compromisso irrevogável de pagar à ordem da “Factor” e, portanto, como garantia adicional da obrigação de pagar as facturas.
os créditos nelas referidos, sem deduções ou compensações, pretende Semelhante declaração teria exactamente o mesmo alcance e efeitos
ver reconhecido o direito a haver da demandada o pagamento com se tivesse em vista garantir créditos decorrentes de contrato de compra
base nessa declaração (portanto, sem discutir o contrato de empreitada). e venda ou de outra natureza. Nem existe uma norma específica sobre
De facto a demandante afirma nos artigos 18 a 20 da petição apresen- semelhante declaração quando prestada em nome de um ente público.
tada ao TAC, tal como diz na petição apresentada no Tribunal Judicial, Assim, o Tribunal que a vai apreciar o processo não terá de pronunciar-
que não tinha possibilidades de conferir a existência do crédito pelo que -se sobre o contrato de empreitada, mas essencialmente sobre a validade,
só aceitou a cessão com aquela garantia e é precisamente essa garantia a accionabilidade e o alcance e da garantia dada pelo município deman-
que vem accionar, e neste contexto não adianta analisar agora outra dado à Factor, mesmo que na acção haja de equacionar os efeitos da
hipotética perspectiva das suas possibilidades de accionamento (com proibição de concessão de garantias constante do n.º 7 do artigo 23.º da
mais certo ou incerto êxito) do devedor. Lei das Finanças Locais em vigor (Lei 42/96, de 6 de Agosto).
Isto é, a A. acciona o R. por uma garantia que interpreta e apresenta De qualquer modo a situação a analisar como causa de pedir situa-se
na acção como sendo do tipo “on first demand”, sendo esta a única causa na apreciação do vínculo e das obrigações decorrentes de uma garantia
de pedir que o tribunal competente há-de apreciar. prestada na órbita do contrato de factoring, que dele se autonomiza pelas
De facto, a Autora propõe a acção com base no entendimento de que suas características de obrigação objectiva ou abstracta, tal como decorre
a declaração aposta nas facturas terá o significado de o declarante se ter da declaração (título), mas que não assenta nem se reconduz de modo
vinculado a não invocar qualquer motivo de não pagamento ou qualquer nenhum à apreciação das vicissitudes da empreitada e da liquidação
tipo de excepção, e a cumprir a obrigação de pagar, no seu vencimento, do respectivo saldo.
de modo automático, as facturas em que apôs a referida garantia. Assim, resulta transparente que a questão a decidir se contém nos limi-
Assim colocada a questão pela A., o Tribunal que a vai apreciar não tes de uma relação regulada pelo direito civil, já que a garantia prestada
terá de pronunciar-se sobre o contrato de empreitada e a sua execução, não releva do exercício de poderes públicos, nem configura contrato
mas sobre o alcance e accionabilidade da garantia que é apresentada administrativo, nem é regulada por normas de direito administrativo,
pela demandante como tendo sido dada pelo ente público Devedor à mas pelas regras comuns do direito civil, ainda que possam ocorrer,
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pontualmente, limitações externas decorrentes do direito financeiro — A competência para conhecer da causa pertence assim ao tribunal
das autarquias locais (Vd. a este propósito o Parecer da PGR n.º 1136 comum;
de 11.02.2001). — O acórdão recorrido violou o artigo 212. °, n.º 3, da Constituição
Consequentemente, a competência para a acção cabe aos tribunais e 3º do ETAF, devendo ser revogado, mantendo-se a decisão da 1ª
judiciais. instância.
III - Decisão: A ré contra-alegou, dizendo em síntese:
Nos termos expostos acordam no Tribunal de Conflitos em julgar — A acção tem como fundamento danos causados pela não ligação
competentes para a acção os tribunais judiciais, pelo que o processo à rede de água destinada ao estabelecimento de indústria hoteleira e
será remetido ao Tribunal da Comarca de Aveiro. turística dos autores;
Sem custas. — Trata-se de actos de gestão pública, porque praticados no exercício
Lisboa, 12 de Janeiro de 2006. — Rosendo Dias José (relator) — An- de uma função pública para os fins de direito público da pessoa colectiva
tónio Ferreira Girão — Jorge Madeira dos Santos — António Fernando que é a Junta de Freguesia ora ré;
Samagaio — Luís Loureiro da Fonseca. — Deste modo, é competente para julgar a acção o Tribunal Admi-
nistrativo.
No Supremo Tribunal de Justiça foi proferida decisão no sentido de
considerar que o mesmo é incompetente para conhecer do objecto do
recurso.
Acórdão de 18 de Janeiro de 2006. A requerimento dos autores o processo foi remetido para o Tribunal
de Conflitos.
Conflito n.º 12/05 O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do não
Requerente: Almarvouga — Indústria Hoteleira e Turística, L.da, no provimento do recurso.
Conflito negativo de Jurisdição, entre o Tribunal Judicial da Comarca Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
de Viseu e os Tribunais Administrativos e Fiscais. II. Nos termos do artigo 212. °, n.º 3, da Constituição, compete aos
Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Políbio Rosa da Silva Flor. tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos
contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das
Acordam no Tribunal de Conflitos: relações jurídicas administrativas e fiscais.
I. Almarvouga — Indústria Hoteleira e Turística, Lda, com sede O artigo 51. °, n.º 1, alínea h), do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de
em Almargem, Calde, Viseu, e Manuel da Costa Rodrigues e mulher Abril, que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em
Maria de Fátima Fernandes Vieira da Costa, residentes em Almargem, vigor aquando da propositura da acção, dispõe que compete aos tribunais
intentaram no Tribunal Judicial da comarca de Viseu, acção declarativa administrativos de círculo conhecer das acções sobre a responsabilidade
com processo ordinário contra a Junta de Freguesia de Calde, conce- civil do Estado, dos demais entes públicos e titulares dos seus órgãos e
lho de Viseu, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo
8.350.000$00, com juros à taxa legal, a título de danos patrimoniais e acções de regresso.
não patrimoniais que a ré lhes causou ao não permitir a ligação de água Não há que chamar à colação o Estatuto aprovado pela Lei n.º 13/2002,
a partir dos fontanários existentes na aldeia, ao restaurante típico e casas de 19 de Fevereiro, que substituiu aquele, porque não aplicável aos
de turismo rural que exploram naquela localidade. processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
A ré contestou, excepcionando a incompetência absoluta do Tribunal para São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam
conhecer da causa, dado que se trata de actos de gestão pública, sendo com- atribuídas a outra ordem jurisdicional — artigo 18. °, n.º 1, da Lei
petente para conhecer das acções sobre responsabilidade civil de uma junta n.º 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos
de freguesia, como ente público, o tribunal administrativo de círculo. Tribunais Judiciais).
Findos os articulados foi proferido o despacho saneador, tendo o Tudo está em saber os actos imputados à Junta de Freguesia de Calde,
Sr. Juiz julgado improcedente a invocada excepção de incompetência causadores de danos aos recorrentes, são actos de gestão pública ou
absoluta do tribunal. privada: no primeiro caso a competência para conhecer do respectivo
Não se conformando com tal decisão a ré recorreu para o Tribunal da pedido pertencerá ao tribunal administrativo de círculo, no segundo ao
Relação de Coimbra, que, considerando o tribunal comum incompetente Tribunal Judicial de Viseu.
para conhecer da causa, revogou a decisão recorrida, determinando a Actos de gestão pública são os que visando a satisfação de interesses
prolação de despacho em conformidade com a procedência da excepção colectivos, realizam fins específicos do Estado ou outro ente público e
de incompetência do tribunal. assentam sobre o jus autorictatis da entidade que os pratica.
Os autores recorreram dessa decisão para o Supremo Tribunal de Os actos de gestão privada são, de modo geral, aqueles que, embora
Justiça, alegando em síntese: praticados por órgãos do Estado ou de outras pessoas colectivas públi-
— Não estão em causa prejuízos decorrentes de actos de gestão ad- cas, estão sujeitos às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de
ministrativa, antes se trata da violação de direitos dos autores por actos serem praticados por simples particulares — Prof. Antunes Varela, Das
praticados pela ré, que lhes causaram danos; Obrigações em Geral, vol. 1, 7ª ed. pg. 643.
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O Prof. Vaz Serra expendia que a distinção se deve fazer atendendo a Sumário:
se o acto se integra, ou não, numa actividade de direito público da pessoa
colectiva: se ela se compreende numa actividade de direito privado da I — Tendo a parte interposto recurso para o Supremo Tri-
pessoa colectiva pública, da mesma natureza da actividade de direito bunal de Justiça do acórdão da Relação que julgou
absolutamente incompetente o Tribunal do Trabalho, por
privado desenvolvida por um particular, o caso é de acto praticado no
entender que a causa pertence ao âmbito da jurisdição
domínio dos actos de gestão privada; se, pelo contrário, o acto é prati- administrativa, pode o Supremo Tribunal de Justiça,
cado no exercício de um poder público, isto é, na realização de função embora decidindo não conhecer do recurso, determinar
pública, mas não nas formas e para a realização de interesses de direito a remessa do mesmo para o Tribunal de Conflitos, em
civil, o caso é de acto praticado no domínio dos actos de gestão pública observância do princípio geral de aproveitamento do
— Revista de Legislação e Jurisprudência, 103. °, 350. processado e, bem assim, do princípio da cooperação
A distinção entre actos de gestão pública e de gestão privada radica consagrado no n.° 1 do artigo 266.° do Código de Pro-
na natureza da actividade, consoante praticada ou não no exercício do cesso Civil.
jus imperii II — Trata-se do chamado pré-conflito de jurisdição, cuja
Alegaram os autores na petição inicial que a ré (uma junta de fre- resolução, à semelhança do conflito propriamente dito,
guesia), não autorizou a ligação de água de fontanários existentes na é da competência do Tribunal de Conflitos.
localidade (Calde) ao restaurante típico e casas de turismo rural que III — O facto de a autora, com o estatuto de funcionária pú-
exploram naquela localidade. blica no serviço de origem, aceitar desempenhar funções
Em consequência dessa conduta da ré os autores sofreram danos na no Instituto de Solidariedade e Segurança Social (ISSS),
exploração dessas instalações. em regime de comissão de serviço, não altera a relação
Não é líquido que recaia sobre a ré a obrigação de providenciar jurídica de emprego público preexistente, sendo que a
pelo abastecimento de água para as instalações dos autores, questão referência feita no acordo de nomeação em comissão
que estes não caracterizaram devidamente e que não está em causa no de serviço, de que o mesmo é celebrado ao abrigo do
presente recurso. Decreto-Lei n.° 404/91, de 16 de Outubro, tratando-se
Certo é que a ré ao não autorizar, por acto ou omissão, a referida de uma qualificação jurídica feita pelas partes, não
ligação, agiu como ente público, na gestão de um bem público, que são vincula os tribunais, nem tem a virtualidade de atribuir
os fontanários existentes na localidade. natureza privada àquela relação jurídica de emprego.
Tratando-se de uma questão de responsabilidade civil extracontra- IV — Sendo a autora funcionária pública e tendo proposto a
tual, emergente de um acto de gestão pública, é competente para dela acção contra uma pessoa colectiva de direito público,
conhecer o foro administrativo. com natureza de instituto público, fundando os seus
É também este o sentido da jurisprudência sobre a matéria — acórdãos pedidos remuneratório e indemnizatório em alegada
cessação ilícita da comissão de serviço, alicerçada na
do STJ de 16-11-1982, BMJ 321, 361, e de 17-3-1993, BMJ 425, 460,
ilegalidade de dois despachos da Secretária de Estado
e do Tribunal dos Conflitos de 3-6-1982, BMJ 322, 211, de 10-2-1983, da Solidariedade e Segurança Social, cabe a respectiva
BMJ 324, 403, e de 15-12- 1992, BMJ, 422, 72. apreciação na competência dos tribunais administrati-
III. Nestes termos, negam provimento ao recurso, confirmando a vos.
decisão recorrida e declarando competente para conhecer da matéria
em causa o tribunal administrativo de círculo. Processo n.º 19/05-70.
Não são devidas custas. Requerente: Maria Isabel Ribeiro da Silva Felgueiras, no conflito
Lisboa, 18 de Janeiro de 2006. — Políbio Rosa da Silva Flor (rela- negativo de jurisdição entre o 5° juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa
tor) — Rosendo José — António Henriques Gaspar — Alberto Augusto e os Tribunais Administrativos e Fiscais.
Oliveira — Manuel Simas Santos — J. Simões de Oliveira. Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Manuel Joaquim Oliveira Pinto Hes-
panhol.

Acordam, em conferência, no Tribunal dos Conflitos:


I
Acórdão de 18 de Janeiro de 2006. 1. Em 24 de Setembro de 2003, MARIA ISABEL RIBEIRO DA
SILVA FELGUEIRAS instaurou, no Tribunal do Trabalho de Lisboa,
Assunto: acção declarativa emergente de contrato individual de trabalho, com
processo comum, contra o INSTITUTO DE SOLIDARIEDADE E
Conflito de jurisdição. Comissão de serviço. Funcionário SEGURANÇA SOCIAL, adiante designado por ISSS, pedindo: (a) que
público. Incompetência absoluta. Tribunal do Trabalho. o réu seja condenado a cumprir, até à data do seu termo, o acordo
Tribunal administrativo. de nomeação em comissão de serviço celebrado com a autora para o
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desempenho do cargo de adjunta da directora do Centro Distrital de da directora do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança até 1 de
Solidariedade e Segurança Social de Lisboa, e seja o réu condenado a Junho de 2004 e o vencimento que, actualmente, lhe é pago enquanto
pagar 3.919,46 euros, mensais, desde 24 de Setembro de 2001 [será 24 de assessora principal na função pública;
Setembro de 2002, conforme resulta do artigo 46º da petição inicial] até — Ainda que a cessação da comissão de serviço tivesse sido vali-
1 de Junho de 2004, a que haverá que deduzir o vencimento das funções damente efectuada, sempre a autora teria direito a receber, a título de
que, actualmente, desempenha [assessora principal na função pública, indemnização, o montante correspondente à diferença entre a retribui-
tal como se refere no artigo 46º da petição inicial] devendo o réu, nesta ção do cargo cessante e a remuneração da actual categoria (assessora
conformidade, ser condenado a pagar à autora os salários vencidos e principal na função pública), incluindo os subsídios de férias e de Natal,
vincendos no montante de vinte e seis mil, duzentos e vinte e dois euros até ao termo da comissão de serviço.
e setenta e três cêntimos (26.222,73 euros); (b) subsidiariamente, sem O réu contestou, invocando (no que agora interessa) a incompetência
conceder e se assim não se entender, que o réu seja condenado a pagar do Tribunal, em razão da matéria, argumentando, no essencial:
à autora pela cessação do antedito acordo de nomeação em comissão de — O réu é um instituto público, conforme o disposto no n.° 1 do arti-
serviço, a indemnização de vinte e seis mil, duzentos e vinte e dois euros go 1º do Estatuto do ISSS, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 316-A/2000,
e setenta e três cêntimos (26.222,73 euros); (c) que, em qualquer caso, de 7 de Dezembro;
o réu seja condenado em juros vincendos a partir da citação. — A autora é funcionária pública e foi nomeada, por acto administra-
Para tanto, alegou, em síntese, que: tivo, adjunta da directora do Centro Distrital de Lisboa do ISSS, tendo
— Em 1 de Junho de 2001, o réu celebrou com a autora um acordo exercido, por conta do réu e em regime de comissão de serviço, funções
de nomeação em comissão de serviço para o desempenho do cargo de que a qualificam como pessoal dirigente;
adjunta da directora do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança So- — A comissão de serviço em que a autora foi investida é regulada pelo
cial de Lisboa, ao abrigo do Decreto-Lei n.° 404/91, 16 de Outubro; Direito Administrativo e corresponde à forma normal de provimento
— Este acordo de nomeação em comissão de serviço está sujeito em cargos dirigentes;
aos princípios e regras vertidos no Regulamento do Pessoal Dirigente — O regime do Decreto-Lei n.° 404/91, 16 de Outubro, nada tem a
e de Chefia do ISSS, nos Estatutos do ISSS e, supletivamente, pelos ver com a comissão de serviço para provimento em cargos dirigentes
princípios que regem o contrato individual de trabalho; na Administração Pública, cujo vínculo se inicia e cessa por acto ad-
— Por força do clausulado do mesmo acordo, à autora aplica-se o ministrativo;
regime jurídico do pessoal do quadro específico, definido nos Estatutos — O exercício, em regime de comissão de serviço, de funções como
do ISSS, pelos regulamentos que lhe derem execução, designadamente, as exercidas pela autora tem origem, não em contrato, mas antes em
o Regulamento do Pessoal Dirigente e de Chefia e, subsidiariamente, acto administrativo sujeito a aceitação do interessado;
pelos princípios que regem o contrato individual de trabalho; — O acordo de nomeação em comissão de serviço não tem outro
— Por iniciativa do Secretário de Estado da Solidariedade e Segurança valor jurídico que não a aceitação pela nomeada do cargo de adjunta
Social, que carecia de competência para tal, foi aditada uma alínea f) ao da directora distrital;
artigo 12.° do Regulamento de Pessoal Dirigente e de Chefia do ISSS, — Os factos que servem de causa de pedir à presente causa são rela-
que previu a possibilidade da comissão de serviço cessar por despacho tivos ao funcionalismo público, tendo por objecto a definição de uma
fundamentado do Ministro da Segurança Social e do Trabalho, nos situação decorrente de uma relação jurídica de emprego público;
termos do artigo 20.°, n.° 2, alínea a), da Lei n.° 49/99, de 22 de Junho; — Competindo aos tribunais do trabalho conhecer das questões emer-
— Não sendo esse aditamento proposto pelo conselho directivo do gentes de relações de trabalho subordinado e não tendo a relação jurídica
ISSS, tal acto é nulo, consubstanciando uma alteração ao contrato de vigente entre a autora e o réu essa natureza, o Tribunal do Trabalho de
nomeação da comissão de serviço sem o consentimento da autora; Lisboa é materialmente incompetente para conhecer do pedido deduzido
— As funções e o regime de comissão de serviço da autora não são contra o réu.
regulados pela Lei n.° 49/99, que só se aplica aos dirigentes do Estado, Respondeu a autora, reafirmando a competência do tribunal do tra-
sujeitos ao regime da função pública; balho.
— O fundamento invocado pela Secretária de Estado da Solidariedade Foi proferido despacho saneador (fls. 184 a 187), no qual se concluiu
e Segurança Social para a cessação da comissão de serviço, «necessi- que «todos os elementos em discussão nos autos assentam numa relação
dade decorrente de imprimir nova orientação à gestão de serviços e de direito administrativo a dirimir nos tribunais administrativos» e, em
de modificar as políticas a prosseguir [...1», só poderia ser invocado consequência, julgou procedente a excepção de incompetência absoluta
se tivessem sido dadas orientações à autora e esta não as cumprisse do Tribunal do Trabalho de Lisboa, absolvendo o réu da instância, nos
diligentemente, o que não se verificou, pelo que tal fundamento não termos dos conjugados artigos 101º, 102.°, 103.°, 105.°, 288.°, n.° 1,
existe e é improcedente; alínea a), todos do Código de Processo Civil, aplicáveis por força da
— A comissão de serviço da autora cessou em 24 de Setembro de 2002, alínea a) do n.° 2 do artigo l do Código de Processo do Trabalho.
por despacho de 19 de Setembro de 2002, que é ilegal, sendo certo que o 2. A autora agravou deste despacho, tendo o Tribunal da Relação de
conselho directivo do ISSS não deliberou nem fundamentou a cessação Lisboa considerado que «o litígio entre a agravante e o agravado emerge
da comissão de serviço da autora, como deveria ter acontecido; de uma relação jurídica de emprego público e não de uma relação laboral
— Assim, tem a autora direito a receber a diferença entre os salários de direito privado, cabendo, por isso, a respectiva apreciação na com-
que auferiria caso continuasse a desempenhar as funções de adjunta petência dos tribunais administrativos e não dos tribunais do trabalho»,
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pelo que negou provimento ao agravo e confirmou integralmente o nistrativa e fiscal, o recurso destinado a fixar o tribunal competente é
despacho recorrido. interposto para o Tribunal de Conflitos (n.° 2 do artigo 107.° do Código
Inconformada, a autora interpôs recurso para o Supremo Tribunal de de Processo Civil), pelo que estaria vedado ao Supremo Tribunal de
Justiça, que foi admitido como agravo, para subir imediatamente, nos Justiça conhecer do agravo, defendendo, para o caso de assim não se
próprios autos e com efeito suspensivo, no qual formulou as seguintes entender, a confirmação do acórdão recorrido.
conclusões: O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de fls. 355 a 366, atento
«I. A decisão recorrida não valora os factos alegados nos artigos 1.º o estipulado no n.° 2 do artigo 107.° do Código de Processo Civil, deci-
a 60.° da petição inicial e 4.° a 18.° da réplica, e também não conhece diu não conhecer do recurso de agravo e determinou a sua remessa ao
da questão de direito, devidamente alegada, de que a recorrente estava Tribunal dos Conflitos, «em nome do princípio geral de aproveitamento
em comissão de serviço de direito de trabalho, nos termos do Decreto- do processado (artigo 105.°, n.° 2, do Código de Processo Civil)», como
-Lei n.° 404/91, de 16 de Outubro, constituindo ambas as omissões é jurisprudência firme daquele Supremo Tribunal.
nulidades da decisão recorrida, violando o artigo 668.°, n.° 1, alíneas b) Na mesma linha de observância do princípio geral de aproveitamento
e d), do CPC; do processado e, bem assim, do princípio da cooperação vertido no n.° 1
II. A decisão recorrida decidiu que a relação jurídica entre a A. e o R. do artigo 266.° do Código de Processo Civil, também o Tribunal dos
era de direito administrativo, pelo que julgou procedente a excepção de Conflitos vem reiteradamente entendendo que, tendo a parte interposto
incompetência do Tribunal do Trabalho; recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação que
III. A competência material de um determinado Tribunal há-de aferir- julgou absolutamente incompetente o tribunal judicial, por entender que
-se de acordo com os termos em que [a acção] é proposta, atendendo-se a causa pertence ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, pode o
ao direito invocado perante o pedido formulado e respectivos funda- Supremo Tribunal de Justiça, embora decidindo não conhecer do recurso,
mentos, que a Autora pretende ver reconhecidos judicialmente, ou seja, determinar a remessa do mesmo para o Tribunal dos Conflitos (cf., entre
pela natureza da relação material, segundo a versão apresentada em outros, o Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 29 de Setembro de 2005,
juízo pelo demandante; proferido no processo n.° 9/05, disponível em www.dgsi.pt/jsta, como
IV. Na petição inicial e na resposta à excepção, a A. alegou os factos documento n.° SAC2005092909).
e o direito que caracterizam a sua relação de trabalho com o réu, como 3. No caso, trata-se, efectivamente, do chamado pré-conflito de ju-
uma relação a que é aplicável o direito do trabalho, constituindo essa risdição, cuja resolução, à semelhança do conflito propriamente dito, é
relação em novos instrumentos jurídicos de contratação e gestão a que da competência do Tribunal dos Conflitos.
os Institutos Públicos vêm recorrendo na última década; Com efeito, a questão que é objecto da intervenção do Tribunal dos
V. Acresce que a A. não era funcionária pública do Estado, mas de Conflitos nos termos do n.° 2 do artigo 107.° do Código de Processo
um Instituto Público com personalidade jurídica, tendo celebrado com o Civil, não constitui um verdadeiro e próprio conflito negativo de ju-
ISSS um contrato de trabalho subordinado, com isenção de horário, para risdição no sentido que lhe é atribuído pelo n.° 1 do artigo 115.° do
desempenhar a actividade de adjunto do director, descontando, como mesmo Código, pois não houve pronúncia divergente de autoridades
regra para a Segurança Social e não para a Caixa Geral de Aposentações, em conflito sobre a sua competência, só o tendo feito o tribunal judicial
durante 3 anos, que seria desempenhada em comissão de serviço de de 1ª instância e o tribunal da Relação.
direito de trabalho, então prevista e regulada no Decreto-Lei n.° 404/91, A intervenção do Tribunal dos Conflitos ao abrigo da citada norma
de 16 de Outubro, e actualmente prevista e regulada nos artigos 244.° tem, assim, uma função preventiva de conflitos de jurisdição.
a 248.° do Código do Trabalho; Remetido o processo ao Tribunal dos Conflitos, foi dado cumpri-
VI. Assim, a decisão recorrida qualificou mal a comissão de serviço mento ao disposto nos artigos 86.° e 87.° do Regulamento aprovado
da recorrente, dado que a qualificou como sendo da função pública, pelo Decreto n.° 19.243, de 16 de Janeiro de 1931, com as alterações
enquanto a referida comissão de serviço é de direito de trabalho, dado previstas no Decreto-Lei n.° 23.185, de 30 de Outubro de 1933, tendo
que ao cargo de adjunto do director era aplicado o regime jurídico do o Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitido parecer, «no sentido
contrato individual de trabalho, em comissão de serviço, nos termos de se fixar como competentes, para conhecer da acção em causa, os
dos artigos 37.°, 38.°, nºs 1 a 4, dos Estatutos do ISSS, aprovados pelo tribunais administrativos».
Decreto-Lei n.° 316-A/2000, de 7 de Dezembro, e do Regulamento do A única questão a decidir reconduz-se, pois, a saber se a competên-
Pessoal Dirigente e de Chefia (Despacho n.° 11464, Diário da República, cia para conhecer da acção instaurada pela autora contra o Instituto de
II série, de 30 de Maio); Solidariedade e Segurança Social pertence ao Tribunal do Trabalho de
VII. Consequentemente, a decisão recorrida violou o artigo 85.°, Lisboa, como sustenta, ou antes se a mesma se enquadra na competência
alínea b), da Lei n.° 3/99, de 13.01, pelo que deve ser revogada e subs- dos tribunais administrativos, como é defendido pelo réu.
tituída por outra que declare o Tribunal do Trabalho de Lisboa com-
Corridos os vistos, cumpre decidir.
petente, em razão da matéria, ou, se assim não se entender, ordene o
prosseguimento dos autos para julgamento de modo a fazer prova sobre II
a relação laboral entre a recorrente e o recorrido.»
O réu, em contra-alegação, suscitou a questão prévia da inadmissibili- 1. As instâncias deram como provada a seguinte matéria de facto:
dade do recurso, pois quando o Tribunal da Relação julga incompetente 1) Em 1 de Junho de 2001, mediante a «Deliberação n.° 104», cuja
o tribunal judicial por a causa pertencer ao âmbito da jurisdição admi- cópia consta de fls. 112, o conselho directivo do réu nomeou a autora
16 17

para desempenhar o cargo de adjunta da directora do Centro Distrital tência genérica), enquanto os restantes tribunais, constituindo excepção,
de Solidariedade e Segurança Social de Lisboa; têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente
2) Nessa data, autora e réu celebraram o acordo de nomeação em atribuídas» (obra citada, p. 208).
comissão de serviço, cuja cópia se encontra de fls. 22 a 23, onde consta, É o que resulta do n.° 1 do artigo 211.º da Constituição, bem como
nomeadamente, que o mesmo é celebrado e livremente aceite para o do n.° 1 do artigo 18.° da Lei n.° 3/99, de 13 de Janeiro, Lei de Organi-
exercício do cargo de adjunta da directora do Centro Distrital de Solida- zação e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, normas que consagram
riedade e Segurança Social de Lisboa, em regime de comissão de serviço, a competência dos tribunais judiciais para as causas que não sejam
ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.° 404/91, de 16 de Outubro, pelo atribuídas a outra ordem jurisdicional — a competência destes tribunais
período de 3 anos, ficando a autora abrangida pelo regime jurídico do verifica-se sempre que as regras reguladoras da competência de outra
pessoal do quadro específico, definido nos Estatutos do ISSS, pelos ordem jurisdicional não atribuam o conhecimento de uma determinada
regulamentos que lhe derem execução, designadamente, o Regulamento questão a um tribunal específico.
de Pessoal Dirigente e de Chefia, e, subsidiariamente, pelas normas e Os tribunais do trabalho são tribunais de competência especializada,
princípios que regem o contrato individual de trabalho; pertencendo-lhes, em matéria cível, a competência delimitada nas alíne-
3) Em 22 de Novembro de 2001, mas com efeitos retroagidos a 1 de
as a) a s) do artigo 85.° da citada Lei de Organização e Funcionamento
Janeiro de 2001, o conselho directivo do réu, através da «Deliberação
n.° 286», cuja cópia consta de fls. 24 a 27, aprovou o modelo/minuta dos Tribunais Judiciais.
de Acordo a celebrar entre o ISSS e os trabalhadores que viessem a ser No que releva para a temática em apreço, compete aos tribunais do
nomeados para o exercício, em comissão de serviço, de cargos dirigentes trabalho conhecer «das questões emergentes de relações de trabalho
e funções de assessoria especializada e secretariado, em que se estabelece subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de con-
que o acordo entre as duas partes deve ser reduzido a escrito, dado o tratos de trabalho» [alínea b)] e, bem assim, «das questões emergentes
regime específico que resulta do regulamento do pessoal dirigente e de de contratos equiparados por lei aos do trabalho» [alínea f)].
chefia e porque se trata de acordo entre duas partes, «aquele que nomeia Precisamente entre os tribunais fora da ordem jurisdicional regra
e o que aceita a nomeação»; destacam-se os tribunais administrativos e fiscais, aos quais compete «o
4) A 27 de Agosto de 2002, a autora foi confrontada, em sede de julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto
audiência prévia, com um projecto de despacho da Secretária de Es- dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e
tado da Solidariedade e Segurança Social, tendente a fazer cessar a sua fiscais» (n.° 3 do artigo 212.° da Constituição).
comissão de serviço como adjunta da directora do Centro Distrital de Segundo o artigo 3.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e
Solidariedade e Segurança Social de Lisboa; Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 129/84, de 27 de Abril, alterado
5) A 24 de Setembro de 2002, a autora foi confrontada com a notifica- pelo Decreto-Lei n.° 229/96, de 29 de Novembro — em vigor à data
ção da cessação definitiva da respectiva função de adjunta da directora da propositura da acção e que é aplicável ao caso concreto, atento o
do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Lisboa, com disposto no artigo 22.° da Lei de Organização e Funcionamento dos Tri-
efeitos a partir de 24 de Setembro; bunais Judiciais e na disposição transitória constante do artigo 2.° da Lei
6) A autora reagiu judicialmente através de recurso contencioso de n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro, diploma que aprovou o novo Estatuto
anulação contra o referido despacho da Secretária de Estado da Solida- dos Tribunais Administrativos e Fiscais —, «[i]ncumbe aos tribunais
riedade e Segurança Social; administrativos e fiscais, na administração da justiça, assegurar a defesa
7) A autora é funcionária pública. dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da
2. Como é sabido, a competência constitui um dos pressupostos legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no
processuais mais importantes, relativo ao tribunal, a apreciar em função âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais».
dos termos em que a acção foi proposta e a determinar pela forma como Especificamente, comanda o artigo 40.° do citado Estatuto, na redac-
o autor estrutura o pedido e a respectiva causa de pedir.
ção introduzida pelo Decreto-Lei n.° 229/96, de 29 de Novembro, que
Na aferição da competência, o tribunal não está obviamente vinculado
à qualificação jurídica ou às considerações de direito que os autores compete à Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central
fazem perante os factos (com relevância jurídica) descritos na petição Administrativo conhecer «dos recursos de decisões dos tribunais admi-
inicial, nos quais assentam os pedidos formulados. nistrativos de círculo que versem sobre matéria relativa ao funcionalismo
Sendo a competência a medida da jurisdição de cada tribunal de- público ou que tenham sido proferidas em meios processuais acessórios»
terminada segundo vários critérios, no plano interno ou nacional, a [alínea a)] e «dos recursos de actos administrativos ou em matéria ad-
competência encontra-se dividida por várias espécies de tribunais, entre ministrativa praticados pelo Governo, seus membros, [...], todos quando
outros fundamentos, segundo a natureza da matéria. A competência em relativos ao funcionalismo público [...]» [alínea b)].
razão da matéria distribui-se por «categorias de tribunais que se situam Por sua vez, o artigo 104.° do mesmo Estatuto, também na versão
no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de conferida pelo Decreto-Lei n.° 229/96, de 29 de Novembro, estipula
subordinação ou dependência) entre elas» (ANTUNES VARELA e que «[p]ara efeitos do presente diploma, consideram-se actos e matéria
OUTROS, Manual de Processo Civil, 2. edição, p. 207). relativos ao funcionalismo público os que tenham por objecto a defi-
Ora, «os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização nição de uma situação decorrente de uma relação jurídica de emprego
judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada (compe- público».
18 19

3. No caso vertente, a autora funda os seus pedidos, remuneratório e Na realidade, como logo se ponderou no acórdão recorrido, a cele-
indemnizatório, decorrentes de alegada cessação ilícita da comissão de bração do acordo de nomeação em comissão de serviço (fls. 22 a 23)
serviço, na existência de uma relação jurídica a que afirma ser aplicável não operou uma conversão do contrato administrativo existente com
o Direito do Trabalho e na ilegalidade de dois despachos da Secretária de a autora num contrato de trabalho regulado pelo Direito Privado, pois
Estado da Solidariedade e Segurança Social: (i) o despacho que aditou sendo a autora funcionária pública, a comissão de serviço limitou-se a
uma alínea f) ao artigo 12.° do Regulamento de Pessoal Dirigente e de consubstanciar, não um facto constitutivo de uma relação nova, mas um
Chefia do ISSS, possibilitando que a comissão de serviço cesse por facto modificativo de uma relação pré-existente, que, subsequentemente,
despacho fundamentado do Ministro da Segurança Social e do Trabalho, manteve natureza idêntica (carácter jurídico público).
nos termos do artigo 20.°, n.° 2, alínea a), da Lei n.° 49/99, de 22 de
Aliás, como também se acentua no acórdão recorrido, o facto do
Junho; (ii) o despacho que fez cessar a comissão de serviço, a partir de
24 de Setembro de 2004. acordo de nomeação em comissão de serviço referir que é celebrado ao
Subjectivamente, temos, de um lado, como réu, o Instituto de Solida- abrigo do Decreto-Lei n.° 404/91, de 16 de Outubro, não tem as con-
riedade e Segurança Social, que é uma pessoa colectiva de direito público sequências que a autora pretende, uma vez que a qualificação jurídica
dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, com natu- feita pelas partes não vincula os tribunais, sendo que a alusão àquele
reza de instituto público, conforme rege o n.° 1 do artigo 1.º do Estatuto diploma legal é manifestamente desajustada face à situação concreta
do ISSS, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 316-A/2000, de 7 de Dezembro, da autora, funcionária pública que vai exercer funções dirigentes no
e do outro, uma funcionária pública, que após a cessação da comissão de âmbito do réu, pessoa colectiva de direito público, com a natureza de
serviço continuou como «assessora principal na função pública», o que instituto público, não tendo a virtualidade de atribuir natureza privada
aponta no sentido de que mantém com a Administração Pública, uma a uma relação jurídica de emprego público.
relação de emprego regulada pelo Direito Administrativo. Acresce que a sujeição da autora, nos termos consignados na «Cláu-
É certo que o n.° 1 do artigo 37.° do citado Estatuto do ISSS deter- sula Terceira» do acordo de nomeação em comissão de serviço, ao
mina que ao respectivo pessoal «aplica-se o regime jurídico do contrato regime jurídico do pessoal do quadro específico, definido nos Estatutos
individual de trabalho e o preceituado nos regulamentos internos do do ISSS e no Regulamento de Pessoal Dirigente e de Chefia do ISSS
ISSS», porém, logo se exceptua o disposto nos próprios estatutos e no e, subsidiariamente, nas normas e princípios que regem o contrato in-
diploma que os aprova. dividual de trabalho, não tem o condão de alterar a natureza do vínculo
Ora, a antedita norma não se aplica à autora, já que, sendo funcioná-
ria pública, está sujeita ao regime jurídico prevenido no artigo 38.° do jurídico-administrativo anteriormente existente, como bem flui da leitura
mesmo Estatuto do ISSS, que regula a mobilidade, entre outros, dos conjugada dos referidos artigos 37.° e 38.° dos Estatutos do ISSS.
funcionários públicos. Tal como sugere o réu na sua contestação (fls. 102, ponto 13.), a
Na verdade, o artigo 38.° do mesmo Estatuto do ISSS estabelece no celebração do acordo de nomeação em comissão de serviço entre o réu
seu n.° 1 que «[o]s funcionários do Estado, de autarquias locais, assim e a autora não terá outro valor jurídico relevante para além da aceitação
como os empregados, quadros ou administradores de empresas públicas pela nomeada do cargo de adjunta da directora do Centro Distrital de
ou privadas, poderão, mediante acordo prévio dos interessados e das Solidariedade e Segurança Social de Lisboa.
entidades a que estiverem vinculados, desempenhar funções no ISSS, em Consequentemente, emergindo o litígio entre a autora e o réu de
regime de requisição ou de comissão de serviço por um período de três uma relação jurídica de emprego público e não de uma relação laboral
anos, renovável por iguais períodos, com garantia do lugar de origem de direito privado, cabe a respectiva apreciação na competência dos
e dos direitos nele adquiridos, considerando-se o período de requisição Tribunais Administrativos e não na dos Tribunais do Trabalho.
ou de comissão como tempo de serviço prestado nos quadros de que
provenham, suportando o ISSS as despesas inerentes»; por seu turno, o III
n.° 4 do mesmo normativo esclarece que os funcionários vinculados aos
quadros de pessoal, a que se refere o n.° 1 transcrito, «podem exercer, no Pelos fundamentos expostos, decide-se pela competência dos tribu-
quadro específico do ISSS e no regime de comissão de serviço previsto nais administrativos para apreciar os pedidos formulados pela autora
no n.° 1 do presente artigo, cargos dirigentes, funções de secretariado contra o Instituto de Solidariedade e Segurança Social, confirmando-se
e de assessoria especializada ao conselho directivo e aos directores o acórdão da Relação de Lisboa.
do Centro Nacional de Pensões e dos centros distritais, nos termos do Sem custas, por não serem devidas (artigo 96.° do Regulamento
regulamento interno do ISSS». aprovado pelo Decreto n.° 19243, de 16 de Janeiro de 1931).
Portanto, nos termos dos normativos transcritos, sendo a autora
funcionária pública de um instituto público, como assevera na alega- Lisboa, 18 de Janeiro de 2006. — Manuel Joaquim Pinto Hespanhol
ção do recurso, mesmo após ter aceite desempenhar funções no ISSS (relator) — Rosendo Dias José — Joaquim Manuel Cabral Pereira
em regime de comissão de serviço, manteve o estatuto de funcionária Silva — Alberto Augusto Oliveira — António Jorge Fernandes Oliveira
pública do serviço de origem, com a necessária aplicação do respec- Mendes — José Manuel Almeida Simões de Oliveira. Vencido. Na li-
tivo regime jurídico, o que significa que não lhe é aplicável o regime nha do decidido em hipótese análoga (Ac. deste Tribunal de Conflitos
jurídico do contrato individual de trabalho na sua relação de trabalho nº 371/02, de 27 de Fevereiro) consideraria competente o Tribunal do
com o réu. Trabalho.
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Acórdão de 18 de Janeiro de 2006. Nesta acção, as ora recorrentes pediam a condenação da outra parte na
quantia global de € 3.326.979,76, acrescida de juros de mora vencidos
e vincendos até integral pagamento, com fundamento em ter celebrado
Assunto: com ela, em 16.1.97, um contrato designado por Empreitada do sistema
multimunicipal de captação, tratamento e distribuição de água do Norte
Contrato administrativo e contrato de direito privado. Em- do Grande Porto – Grupo 5.II de Obra – Ramal de Santo Tirso – ociden-
preitada. Concessionário de captação e distribuição de tal, contrato esse antecedido de um concurso público lançado pela Ré na
águas. qualidade de titular da exploração e gestão do sistema de multimunicipal
de captação, tratamento e distribuição de água do Norte do Grande Porto,
Sumário: e no qual as Autoras foram escolhidas como adjudicatárias. A quantia
peticionada refere-se a sobrecustos e prejuízos ocasionados pela Ré
I — Embora possuindo personalidade jurídica de direito durante as vicissitudes da execução da empreitada.
privado, os concessionários de serviço público exercem Excepcionada a incompetência material do tribunal, por o contrato em
tituladamente poderes públicos e, no exercício dessas causa ser administrativo, a sentença veio a julgar a excepção procedente
prerrogativas, nada obsta a que sejam partes em contra- e declarar o tribunal incompetente em razão da matéria, absolvendo
tos administrativos que tenham por objecto a actividade a Ré da instância – sentença esta que a Relação de Guimarães veio a
concessionada, como é o caso da empreitada da obra de confirmar.
concepção e construção de infra-estruturas de captação As recorrentes insurgem-se contra tal decisão, e terminam as suas
e distribuição de água (Águas do Cávado, S. A.). alegações enunciando as seguintes conclusões:
II — Do disposto no artigo 239.º, alínea b), do Decreto-Lei “1º VEM O PRESENTE RECURSO INTERPOSTO DO ACÓRDÃO
n.º 405/93, de 10 de Dezembro, resulta a aplicação DE FLS.... DOS AUTOS QUE, POR MERA REMISSÃO CONFIRMOU
obrigatória do RJEOP, em bloco, a uma empreitada A ALIÁS DOUTA SENTENÇA DE FLS. 584 E SS QUE DECIDIU
desse tipo, desde que o respectivo valor seja superior PELA PROCEDÊNCIA DA ARGUIDA EXCEPÇÃO DE INCOMPE-
ao fixado na regulamentação comunitária para que o TÊNCIA, EM RAZÃO DA MATÉRIA, DO DIGNº TRIBUNAL DA
preceito remete — ficando as relações entre as partes COMARCA DE BARCELOS PARA CONHECER DO OBJECTO DOS
submetidas ao regime dos contratos administrativos, PRESENTES AUTOS.
incluindo o do respectivo contencioso, a dirimir nos 2º MAU GRADO O ESFORÇO DE FUNDAMENTAÇÃO QUE SE
tribunais administrativos. ADIVINHA TER PRECEDIDO A SENTENÇA RECORRIDA, EN-
III — O tribunal competente para o conhecimento da acção TENDEM AS ORA ALEGANTES QUE NÃO ASSISTE RAZÃO AO
em que os empreiteiros pedem a condenação do dono DIGº TRIBUNAL A QUO, TANTO MAIS E ATÉ PORQUE, ATENTO
da obra no pagamento de uma importância a título de O CARÁCTER REMISSIVO DO DOUTO ACÓRDÃO EM RECURSO
sobrecustos e prejuízos sofridos por causa da execução PODE MESMO AFIRMAR-SE QUE, NO QUE CONCERNE AOS
da obra é o tribunal administrativo, sendo a estipulação RESPECTIVOS FUNDAMENTOS ESPECÍFICOS, A DECISÃO DE
do foro do tribunal judicial de determinada comarca, PRIMEIRA INSTÂNCIA NÃO CHEGOU, NA PRÁTICA, A VER
feita no clausulado do contrato, incapaz de alterar a REAPRECIADAS AS QUESTÕES LEVANTADAS PELA RECOR-
qualificação do contrato ou de afastar aquela compe- RENTES.
tência, que é de ordem pública. 3º PODEM, RESUMIDAMENTE, ELENCAR-SE DA SEGUINTE
FORMA OS ARGUMENTOS EM QUE SE FUNDOU A DECISÃO
Processo n.º 20/03-70. AGRAVADA (NATURALMENTE EM CONTRAPOSIÇÃO ÀS POSI-
Recorrentes: Construtora do Tâmega e outras, no Conflito Negativo ÇÕES ANTES DEFENDIDAS PELAS PARTES): 1/ O RJEOP TERIA
de Jurisdição, entre o 4.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca APLICAÇÃO, INTEGRAL E OBRIGATÓRIA, AO CONTRATO DOS
de Barcelos e os Tribunais Administrativos e Fiscais. AUTOS POR FORÇA DA QUALIDADE DA R. COMO CONCES-
Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. J. Simões de Oliveira. SIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO; 2/ TAL APLICAÇÃO TOTAL
NÃO FOI PREJUDICADA PELO DISPOSTO NO ART.º 3º DO PRÓ-
Acordam no Tribunal de Conflitos: PRIO CONTRATO DE EMPREITADA OUTORGADO ENTRE AS
-I- PARTES; 3/ NEM, TAMPOUCO, PELA NÃO APLICABILIDADE
DA DIRECTIVA 93/37/CEE; 4/ NEM, POR ÚLTIMO, PELO FACTO
A CONSTRUTORA DO TÂMEGA, S.A. e outras recorrem para DE O ART.º 10 DO ALUDIDO CONTRATO DE EMPREITADA PRE-
o Tribunal de Conflitos, nos termos do art. 107º, nº 2, do C.P.C., do VER EXPRESSAMENTE A COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DA
Acórdão da Relação de Guimarães, de fls. 693, que, nos autos de acção COMARCA DE BARCELOS PARA CONHECER DAS QUESTÕES
com processo ordinário proposta pelas recorrentes contra ÁGUAS DO DELE EMERGENTES.
CÁVADO, S.A., confirmou a sentença do Tribunal Judicial da Comarca 4º AO INVERSO DO DEFENDIDO PELO DIGº TRIBUNAL A QUO,
de Barcelos que se declarou incompetente em razão da matéria, absol- CONCLUÍRAM AS AGRAVANTES PELA INAPLICABILIDADE DO
vendo a Ré da instância. RJEOP AO CASO DOS AUTOS – AO MENOS NA MEDIDA EM QUE
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O QUER FAZER A DECISÃO RECORRIDA – E, ASSIM SENDO, ERRO QUANTO AO VERDADEIRO SENTIDO E ALCANCE DO
ENTENDEM COMO IMPROCEDENTE A ARGUMENTAÇÃO EM AÍ REFERIDO.
CONTRÁRIO AÍ ADUZIDA. 12º POR OUTRO LADO A APRESENTAÇÃO CONJUNTA DE
5º COMO É SABIDO A DEFINIÇÃO DO ENQUADRAMENTO DUAS CITAÇÕES DE DOIS ARTIGOS DO RJEOP QUE, EM TER-
JURÍDICO E, COMO TAL, DA LEGISLAÇÃO APLICÁVEL A UMA MOS SISTEMÁTICOS, SE ENCONTRAM TÃO SEPARADOS –
RELAÇÃO CONTRATUAL GENERICAMENTE CONSIDERADA REPARE-SE QUE SE TRATA DO ART.º 1º E DO ART.º 239º (!) DO
E, MAIS AINDA, ÀQUELAS QUE SE TRADUZEM NA CELEBRA- MESMO DIPLOMA - PRETENDE TOLDAR ALGO DE INCONTOR-
ÇÃO DE CONTRATOS DE EMPREITADA, SEMPRE TERÁ DE NÁVEL: É QUE O SENTIDO E OBJECTO VISADOS POR AMBOS
REPORTAR-SE À DATA DA PUBLICAÇÃO DO RESPECTIVO OS PRECEITOS NÃO É MANIFESTAMENTE O MESMO.
“ANÚNCIO” OU “CONVITE A CONTRATAR” POR PARTE DA 13º NO CASO DO ART. 1º ESTÁ EM CAUSA A DEFINIÇÃO
“DONA DA OBRA” POR SER ESSE O MOMENTO ONDE SE DE- – INCLUSO DE ACORDO COM A RESPECTIVA EPÍGRAFE DO
FINEM OS CONDICIONALISMOS, JURÍDICOS E FÁCTICOS, ÂMBITO DE APLICAÇÃO DA LEI, EM TERMOS CLÁSSICOS E,
DE BASE QUE ESTARÃO SUBJACENTES ÀS PROPOSTAS A DIR-SE-IA, TOTAIS.
APRESENTAR. 14º AO PASSO QUE, POR SUA VEZ, NO ART. 239º – TAMBÉM
6º ORA, NO CASO DOS AUTOS, TAL PUBLICAÇÃO TEVE LU- DE NOVO DE ACORDO, PARA ALÉM DO MAIS, COM A RESPEC-
GAR EM 4.07.96 – CONFORME SE REFERIU JÁ NA PI – SENDO, TIVA EPÍGRAFE QUE É “REGIME SUBSIDIÁRIO” – ESTÃO EM
POR ISSO, IRRELEVANTE QUALQUER EVENTUAL, E DE RESTO CAUSA SITUAÇÕES EM QUE A APLICAÇÃO DO RJEOP NÃO
NÃO PROVADA, POSTERIOR ALTERAÇÃO DE REGIME. ASSUME CARÁCTER OBRIGATÓRIO, MAS SIM, POR DEFINI-
7º RESTA, A ESTE PROPÓSITO, APRECIAR A RELEVÂNCIA ÇÃO, TERÁ CARÁCTER SUBSIDIÁRIO, ISTO É, O RJEOP SERÁ
DA ARGUMENTAÇÃO DA DOUTA SENTENÇA AGRAVADA A AQUI UTILIZADO, DE FORMA SUBSIDIÁRIA REPETE-SE, EM
PROPÓSITO DA CLASSIFICAÇÃO DA R. COMO “CONCESSIO- CONTRATOS EM QUE O MESMO NÃO TEM APLICAÇÃO OBRI-
NÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO”. GATÓRIA, APROVEITANDO O FACTO DE SE TRATAR DE UMA
8º A ESTE RESPEITO, E RETOMANDO O QUE SE DISSE JÁ MATÉRIA EM QUE O DIREITO ADMINISTRATIVO, POR FORÇA
SUPRA, SEMPRE TERÁ DE COMEÇAR POR PROCEDER-SE À DAS CIRCUNSTÂNCIAS, DETÉM, FACE AO DIREITO CIVIL, A
RIGOROSA DEFINIÇÃO DO ENQUADRAMENTO JURÍDICO – VG. VANTAGEM DE ESTA SER UMA MATÉRIA PROFUSAMENTE ES-
LEGISLAÇÃO VIGENTE – EXISTENTE À DATA DA PUBLICAÇÃO TUDADA E, COMO TAL, COM REGULAMENTAÇÃO ESPECÍFICA
DO ANÚNCIO (04.07.96) OU MESMO, SE ASSIM SE PREFERIR E E ABORDAGEM MAIS COMPLETA DE SITUAÇÕES LIGADAS
SEM PRESCINDIR, À DATA DA CELEBRAÇÃO DO CONTRATO AO RELACIONAMENTO ENTRE AS PARTES DURANTE A EXE-
DE EMPREITADA EM CAUSA NOS AUTOS (27.01.97) O QUE, CUÇÃO DO CONTRATO.
COMO SE VERÁ E PARA O EFEITO, VIRÁ A DAR NO MESMO. 15º SEM QUE, NATURALMENTE, TAL SIGNIFIQUE UMA SUJEI-
9º ANALISADO O TEOR DOS PRECEITOS EM CAUSA, NA ÇÃO DOS CONTRATOS CELEBRADOS POR ENTIDADES COMO
REDACÇÃO APLICÁVEL, RESULTA CLARO QUE MESMO QUE, A R. AO “ESPARTILHO” DO CÓDIGO DO PROCEDIMENTO AD-
COMO AFIRMA A R – E NO QUE SE NÃO PRESCINDE – A MESMA MINISTRATIVO, DO RJEOP E DO REGIME DE AQUISIÇÃO DE
SE INTEGRASSE NA “ADMINISTRAÇÃO ESTADUAL INDIRECTA” BENS E SERVIÇOS PELA ADMINISTRAÇÃO.
E FOSSE ASSIM PARTE DO “SECTOR EMPRESARIAL DO ESTADO” 16º ACRESCE QUE TAL APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA ENCON-
ÀS EMPREITADAS POR SI PROMOVIDAS NÃO SE APLICARIA O TRA, COMO SE ALEGOU JÁ NA PI, REPERCUSSÃO EXPRESSA
RJEOP, EM TERMOS OBRIGATÓRIOS E NA SUA TOTALIDADE, NAS CLÁUSULAS DO CONTRATO DE EMPREITADA EM CAUSA
POR FORÇA DA EXCLUSÃO EXPRESSA CONSTANTE DO N” 2 NESTES AUTOS, ONDE, EXERCENDO PRECISAMENTE A FA-
DO ART.” 1 NA REDACÇÃO VIGENTE À DATA DA PUBLICAÇÃO CULDADE QUE LHES ERA CONFERIDA PELA LEI, AS PARTES
DO ANÚNCIO DA OBRA EM CAUSA NOS AUTOS (E, BEM ASSIM, CONSAGRARAM (DESIGNADAMENTE NO ART.º 3º DO REFE-
À DATA DA ASSINATURA DO CONTRATO DE EMPREITADA EM RIDO CONTRATO E SOB A EPÍGRAFE “DISPOSIÇÕES QUE RE-
CAUSA NOS AUTOS). GEM OS TRABALHOS”)
10º SENDO CERTO QUE, RELATIVAMENTE À REDACÇÃO 17º MAIS: AINDA ANTES DE TAL ENQUADRAMENTO LEGAL,
APLICÁVEL DO Nº 1 DO ART.º 239º, SE CONSTATA NÃO PER- E SEMPRE DE ACORDO COM O PLASMADO NO REFERIDO
MITIR O MESMO CONFERIR APLICABILIDADE AO RJEOP AO TÍTULO CONTRATUAL, ENTENDERAM AS PARTES – CFR. O
CONTRATO EM CAUSA NOS AUTOS, DESDE LOGO E PARA ÚLTIMO DOS “CONSIDERANDOS” QUE ANTECEDEM O AR-
ALÉM DO MAIS, POR NÃO EXISTIR RELATIVAMENTE À R. TICULADO – DEIXAR CLARA A APLICAÇÃO SUPLETIVA DO
QUALQUER PORTARIA MINISTERIAL QUE IMPONHA TAL APLI- REGIME JURÍDICO DAS EMPREITADAS DE OBRAS PÚBLICAS
CAÇÃO. APROVADO PELO DL 405/93, DE 10 DE DEZEMBRO – NATURAL-
11º POR SUA VEZ, QUANTO À APLICAÇÃO DO RJEOP POR MENTE NA FORMULAÇÃO À DATA CONSTANTE DO MESMO
FORÇA DA CLASSIFICAÇÃO DA R. COMO CONCESSIONÁRIA – ÀS INCIDÊNCIAS SUBSTANTIVAS E MATERIAIS RESULTAN-
DO SERVIÇO PÚBLICO, CABE ESCLARECER QUE, TAMBÉM TES DA EXECUÇÃO DOS TRABALHOS DA OBRA.
A ESTE RESPEITO, A FORMA COMO SE ENCONTRA FORMU- 18º SÃO, POIS, OBJECTIVAMENTE E PELA ORDEM QUE AÍ
LADA A CONTESTAÇÃO PRETENDE INDUZIR O LEITOR EM CONSTA, ESSAS AS DETERMINAÇÕES LEGAIS À LUZ DAS
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QUAIS QUISERAM AS PARTES VER CONFIGURADO O SEU ATRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA EXCLUSIVA AO TRIBUNAL
RELACIONAMENTO CONTRATUAL. DE COMARCA DE BARCELOS (E LEMBRE-SE QUE SE TRATA
19º TAL APLICAÇÃO SUPLETIVA NÃO COMPORTA, NATU- DE UM DOCUMENTO PREPARADO PELA RÉ E QUE, AO MENOS
RALMENTE, ENTRE OUTRAS, A PARTE DO ALUDIDO RJEOP NESTE ASPECTO, NÃO FOI MINIMAMENTE NEGOCIADO EN-
RELATIVA AO CONTENCIOSO DOS CONTRATOS (ARTIGOS 224º TRE AS PARTES) NÃO RESULTA DE QUALQUER EQUÍVOCO,
E SS) UMA VEZ QUE A MESMA SE REPORTA A CONTRATOS EM DISTRACÇÃO OU “IMPROPRIEDADE E IMPERFEIÇÃO” DA
QUE O ESTADO E DEMAIS ENTIDADES OBRIGATORIAMENTE RESPECTIVA CLÁUSULA.
SUJEITAS A TAL REGIME TÊM INTERVENÇÃO, O QUE COMO 27º ALIÁS NENHUM SENTIDO FAZ A LIGEIREZA COM QUE A
SE VIU, NÃO É O CASO DA RÉ (DE RESTO TAL APLICABILI- “IMPERFEIÇÃO” É ABORDADA NA CONTESTAÇÃO.
DADE IMPUTARIA COMO UMA NEGAÇÃO DO ESCOPO QUE 28º NÃO SE TRATOU, POIS, DE UM ERRO OU IMPRECISÃO,
PRESIDIU À CRIAÇÃO DE SOCIEDADES ANÓNIMAS COMO A TRATA-SE ISSO SIM DE UMA DISPOSIÇÃO QUE A RÉ, INCLU-
AQUI EM QUESTÃO). SIVAMENTE, IMPÔS, E A QUE AS AUTORAS ANUÍRAM, E QUE
20º RELATIVAMENTE À INVOCAÇÃO DA DIRECTIVA 93/37/ A PRIMEIRA PRETENDE AGORA POR EM CAUSA (“COMO SE
CEE EM NADA CONTRIBUI PARA FUNDAR A POSIÇÃO DA RÉ NADA FOSSE”) UNICAMENTE PORQUE SE LHE AFIGURA SER
A QUE VEIO A DAR PROVIMENTO A DECISÃO RECORRIDA. ISSO NO SEU INTERESSE PROCESSUAL.
21º DESDE LOGO PORQUE, COMO É SABIDO, O ÂMBITO DE 29º DE RESTO, E DIFERENTEMENTE DO QUE CONCLUI A
APLICAÇÃO DE TAL DIRECTIVA NÃO INCLUI OS CHAMADOS DECISÃO RECORRIDA, MESMO QUE VIESSE A DECIDIR-SE
“SECTORES EXCLUÍDOS” OU SEJA, OS SECTORES DA ÁGUA, PELA NULIDADE, GENÉRICA, DAS CLÁUSULAS CONTRATU-
ENERGIA, TRANSPORTES E TELECOMUNICAÇÕES (CFR. A AIS QUE ALTEREM AS REGRAS DE COMPETÊNCIA EM RAZÃO
ESTE PROPÓSITO O PROF. MIGUEL CATELA, IN CONTRATAÇÃO DA MATÉRIA O QUE É INDISFARÇÁVEL É QUE A DISPOSIÇÃO
PÚBLICA NOS SECTORES DA ÁGUA, ENERGIA, TRANSPORTES CONSTANTE DO CONTRATO, EM CONCRETO, EM CAUSA NOS
E TELECOMUNICAÇÕES, EDIÇÃO FÓRUM MERCADOS PÚBLI- AUTOS SEMPRE DEVERIA SER ANALISADA – FACE ÀS DÚVI-
COS, LISBOA 2002). DAS EXISTENTES – COMO ELEMENTO INTERPRETATIVO E
22º POR OUTRO LADO, MESMO QUE ASSIM NÃO FOSSE É ESCLARECEDOR DAS REAIS CARACTERÍSTICAS E ENQUA-
SABIDO E RECONHECIDO QUE A DIRECTIVA EM CAUSA SE DRAMENTO JURÍDICO DO MESMO.
OCUPOU APENAS DA MATÉRIA RELATIVA À “COORDENA- 30º E, NESSA MEDIDA, TAL CLÁUSULA MAIS NÃO DEMONS-
ÇÃO DOS PROCESSOS DE ADJUDICAÇÃO DE EMPREITADA TRA DO QUE, UMA VEZ MAIS, O CARÁCTER MARCADAMENTE
DE OBRAS PUBLICAS”, ISTO É, VISOU REGULAMENTAR AS PRIVADO DA RELAÇÃO CONTRATUAL ESTABELECIDA ENTRE
MATÉRIAS CONCURSAIS ATÉ À ADJUDICAÇÃO DAS OBRAS AUTORAS E RÉ.
EM CAUSA E NÃO OCUPAR-SE DAS QUESTÕES SUBSEQUEN- 31º O DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO VIOLOU POR ERRO
TES À EXECUÇÃO DOS TRABALHOS DA OBRA. – CFR. MIGUEL DE INTERPRETAÇÃO O DISPOSTO NOS CITADOS PRECEITOS E
CATELA OB. CIT. PÁG 34 E SS DIPLOMAS LEGAIS, DEVENDO SER REVOGADO E SUBSTITU-
23º PARA ALÉM DAS LIMITAÇÕES JÁ DESCRITAS – INAPLI- ÍDO POR OUTRO QUE JULGUE NO SENTIDO DA COMPETÊNCIA
CABILIDADE AO SECTOR DA ÁGUA E NÃO INVOCABILIDADE MATERIAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE BARCELOS PARA A
NO ÂMBITO DAS QUESTÕES EMERGENTES NO ÂMBITO DA PRESENTE ACÇÃO, ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA”.
EXECUÇÃO DO CONTRATO – É HOJE CLARO QUE A TRANS- A recorrida contra-alegou, formulando as conclusões seguintes:
POSIÇÃO, BEM OU MAL, DAS MESMAS PARA O DIREITO NA- “1ª A DOUTA DECISÃO NÃO É PASSÍVEL DE CENSURA, JÁ QUE
CIONAL, SÓ TEVE LUGAR COM O DL 223/01, DE 09 DE AGOSTO APLICOU CORRECTAMENTE O DIREITO E FEZ JUSTIÇA;
(NATURALMENTE, E COMO SE VIU, INAPLICÁVEL À QUESTÃO 2ª ALIÁS, EM BOA VERDADE, AS RECORRENTES NEM CRI-
DOS AUTOS). TICAM A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA, ANTES, NO SEU
24º DE RESTO E RETOMANDO O QUE SE ATALHOU JÁ ACIMA DESAGRADO E OPOSIÇÃO, PRIVILEGIAM A CONTESTAÇÃO
ENTENDEM AS RECORRENTES QUE AS ALTERAÇÕES POSTE- DA RECORRIDA;
RIORES AO RJEOP (QUER AINDA NA VIGÊNCIA DO D.L 405/93 3ª NAS CONCLUSÕES DAS SUAS ALEGAÇÕES – QUE DELIMI-
QUER POSTERIORMENTE COM O D.L 59/99, DE 02 DE MARÇO) TAM O OBJECTO DO RECURSO – AS RECORRENTES LIMITAM-
INDICIAM, ISSO, SIM E BEM AO INVERSO DO QUE QUER FA- -SE, NA PRÁTICA A TRANSCREVER EXCERTOS DO TEXTO QUE
ZER CRER A RÉ, SER INTENÇÃO DO LEGISLADOR ABRANGER POUCO TÊM DE CONCLUSIVOS;
SITUAÇÕES ATÉ ENTÃO FORA DO RJEOP. 4ª NA CONCLUSÃO 2ª ATACAM AS RECORRENTES A DOUTA
25º - ÚLTIMA REFERÊNCIA PARA A QUESTÃO DA ATRIBUI- DECISÃO RECORRIDA, “ATENTO O SEU CARÁCTER REMIS-
ÇÃO EXPRESSA, NO CONTRATO DE EMPREITADA EM CAUSA SIVO E IMPUTANDO-LHE FALTA DE PRONÚNCIA QUE NÃO
NOS AUTOS, DE COMPETÊNCIA EXCLUSIVA AO TRIBUNAL DA EXPLICAM NEM CONCRETIZAM;
COMARCA DE BARCELOS. 5ª NA CONCLUSÃO 4ª, DIZEM AS RECORRENTES QUE, AO
26º AO CONTRÁRIO DO QUE DECIDIU A DOUTA SENTENÇA INVÉS DA DOUTA DECISÃO RECORRIDA CONCLUÍRAM AS
AGRAVADA, A REFERÊNCIA EXPRESSA CONSTANTE DO CON- AGRAVANTES PELA INAPLICABILIDADE DO RJEOP AO CASO
TRATO DE EMPREITADA OUTORGADO ENTRE AS PARTES À DOS AUTOS. MAS AÍ TAMBÉM NÃO EXPLICAM PORQUÊ;
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6ª NA CONCLUSÃO 10ª FAZEM REFERÊNCIA AO N.º 1 DO VIAMENTE, CONCURSO PÚBLICO PARA ESCOLHA DO SEU
ARTIGO 239º DO RJEOP, QUANDO TAL NORMA NÃO EXISTE! CO-CONTRATANTE PARTICULAR,
PRETENDIAM TALVEZ REFERIR-SE À ALÍNEA A); 18ª O QUE SÓ PODE FAZER-SE NOS TERMOS DO RJEOP,
7ª MAS, COMO SE VIU, APLICÁVEL AO CASO DOS AUTOS E COMO É EVIDENTE;
À RECORRIDA, ENQUANTO CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO 19ª DE RESTO, A APLICAÇÃO DO RJEOP ÀS CONCESSIONÁ-
PÚBLICO, É A ALÍNEA B), DAQUELE NORMATIVO, COMO BEM RIAS DE SERVIÇO PÚBLICO COMO A RECORRIDA É OBRIGATÓ-
DIZ A DOUTA DECISÃO SOB CENSURA E SEMPRE DEFENDEU RIA COMO SE VÊ DA RESPECTIVA DISPOSIÇÃO, ARTIGO 239.4,
A RECORRIDA; B), E DO PRÓPRIO PREÂMBULO DO DIPLOMA, ONDE SE PODE
8ª NAS CONCLUSÕES 11ª a 25ª, TAMBÉM AS RECORRENTES LER:
NÃO CRITICAM A “... CONSAGROU-SE A OBRIGATORIEDADE DA SUA APLICA-
DOUTA DECISÃO RECORRIDA ANTES SE VOLTAM CONTRA ÇÃO ÀS CONCESSIONÁRIAS DE SERVIÇOS PÚBLICOS...”
A CONTESTAÇÃO; 20ª POR OUTRO LADO, A ACEITAR-SE A INTERPRETAÇÃO
9ª SÓ NA CONCLUSÃO 26ª SE PODE ENCONTRAR A SEGUNDA QUE AS RECORRENTES FAZEM DO DISPOSTO NO ARTIGO 3º
DISCORDÂNCIA DAS RECORRENTES COM A DECISÃO SOB DO CONTRATO, TAL CLÁUSULA SERIA NULA POR VIOLAR
CENSURA, PARA LOGO A SEGUIR NAS CONCLUSÕES 27ª A 30ª, NORMA IMPERATIVA;
VOLTAR A ATACAR A CONTESTAÇÃO DA RECORRIDA. ORA, 21ª O QUE SE PREVIU, AÍ, FOI A LEGISLAÇÃO APLICÁVEL
10ª SALVO O DEVIDO RESPEITO, IMPROCEDEM TOTAL- NA “EXECUÇÃO DOS TRABALHOS” QUE, COMO AÍ SE DIZ, É
MENTE TODAS AS CONCLUSÕES DAS ALEGAÇÕES DAS RE- TODA A LEGISLAÇÃO PORTUGUESA APLICÁVEL;
CORRENTES, QUER PELO QUE JÁ SE FOI DIZENDO QUER 22ª COISA DIVERSA É A DISCIPLINA DO CONTRATO. QUANTO
PORQUE: A ESSE ASPECTO, DESDE LOGO SE DISSE NA INTRODUÇÃO AO
11ª A DOUTA DECISÃO RECORRIDA FUNDAMENTOU SUFI- TÍTULO CONTRATUAL QUE O CONTRATO SE REGE EM TUDO
CIENTEMENTE A CARACTERIZAÇÃO QUE FEZ DO AJUIZADO O QUE NÃO ESTIVESSE AÍ PREVISTO PELO DECRETO-LEI
CONTRATO COMO CONTRATO DE EMPREITADA DE OBRAS N.º 405/93, DE 10 DE DEZEMBRO, ISTO É, PELO RJEOP;
PÚBLICAS; 23ª AS REGRAS DE COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
12ª TAL CARACTERIZAÇÃO IMPÕE-SE PELO FACTO DE A NÃO PODEM SER AFASTADAS POR VONTADE DAS PARTES;
RECORRIDA SER CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO E 24ª POR ISSO, AINDA QUE O ESTABELECIDO NO ARTIGO 10º
O CONTRATO TER UM VALOR SUPERIOR AO ESTABELECIDO DO CONTRATO NÃO SE CONSIDERASSE COMO UMA IMPRE-
PARA EFEITOS DE APLICAÇÃO NAS DIRECTIVAS COMUNI- CISÃO, ENTÃO SERIA, TAMBÉM, NULA A ESTIPULAÇÃO POR
TÁRIAS RELATIVAS À COORDENAÇÃO DOS PROCESSOS DE VIOLAR NORMA IMPERATIVA;
ADJUDICAÇÃO DE EMPREITADAS DE OBRAS PÚBLICAS; 25ª FINALMENTE, E REPETINDO, O DOUTO ACÓRDÃO RE-
13ª ISSO É IMPOSTO PELO ARTIGO 239º, B), DO RJEOP, JÁ NA CORRIDO NÃO VIOLOU QUALQUER PRECEITO LEGAL, QUE
SUA VERSÃO INICIAL; AS RECORRENTES NEM IDENTIFICAM COM RIGOR ANTES
14ª COM EFEITO, A RECORRIDA TEM COMO OBJECTO SO- APLICOU CORRECTAMENTE O DIREITO”.
CIAL, LEGALMENTE FIXADO E EXCLUSIVO A GESTÃO DO O Ministério Público emitiu parecer no sentido do não provimento
SISTEMA MULTIMUNICIPAL DE CAPTAÇÃO TRATAMENTO E do recurso.
ABASTECIMENTO DE ÁGUA AOS MUNICÍPIOS DO NORTE DO O processo foi aos vistos legais, cumprindo agora decidir.
GRANDE PORTO,
15ª QUE TEM A NATUREZA DE SERVIÇO PÚBLICO”, ASSIM - II –
TENDO SIDO CLASSIFICADO PELO DECRETO-LEI N.º 319/94, DE A decisão recorrida, na esteira da sentença de 1ª instância, julgou o
24 DE DEZEMBRO. E NEM SERIA NECESSÁRIA LEI EXPRESSA, tribunal comum incompetente em razão da matéria para conhecer da
POIS TAL SERVIÇO DESTINA-SE A SATISFAZER NECESSIDADES acção, em virtude de a mesma ter como causa de pedir um contrato
COLECTIVAS DA POPULAÇÃO E TAL SATISFAÇÃO COMPETE administrativo de empreitada de obras públicas.
À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. Essa qualificação resultaria, no entender do acórdão, da circunstância
16ª COMPETÊNCIA QUE MANTÉM, MAS QUE, POR CON- de a Ré ser uma concessionária de serviço público e de o valor da obra
TRATO DE CONCESSÃO, ENTREGA A EXECUÇÃO DESSAS ser superior ao estabelecido para efeitos de aplicação das directivas das
TAREFAS A ENTIDADES COMO A RECORRIDA CRIADAS PARA Comunidades Europeias relativas à coordenação dos processos de adju-
O EFEITO E COM CAPITAIS TOTAL OU MAIORITARIAMENTE dicação de empreitadas de obras públicas. Isto, tendo em vista o que se
PÚBLICOS; prescreve na al. b) do art. 239º do Dec-Lei nº 405/93, de 10.12 - anterior
17ª DE RESTO, NESTA LINHA DE ACTUAÇÃO, O PRÓPRIO RJEOP (Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas).
CONTRATO DE CONCESSÃO, OUTORGADO ENTRE O ESTADO A recorrente, porém, defende que o art. 239º não contempla uma
E AS RECORRIDAS, IMPÕE – E NÃO SERIA NECESSÁRIO FAZÊ- aplicação imperativa ou obrigatória do regime das empreitadas de obras
-LO EXPRESSAMENTE – QUE A RECORRIDA NÃO ADJUDI- públicas, mas simplesmente subsidiária. E a remissão, também ela su-
QUE QUALQUER EMPREITADA SEM TER LANÇADO, PRE- pletiva, que o contrato de empreitada faz para as normas desse diploma
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não comporta a parte do aludido RJEOP relativa ao contencioso dos fosse consequentemente objecto de discussão contenciosa nos tribunais
contratos (artigos 224º e segs). Doutro modo, isso implicaria como que administrativos.
uma negação do escopo que presidiu à criação de sociedades anónimas Todavia, nem por isso a mudança da definição legal clarificou o
como a aqui em questão. Acresce ainda que na cláusula 10ª do contrato problema, pois o critério de identificação do contrato administrativo
se estabelece o foro da comarca de Barcelos para resolução de todas pela via da relação jurídica de direito administrativo veio trazer di-
as questões de interpretação e execução do contrato, o que não pode ficuldades de interpretação, como anteviu FREITAS DO AMARAL
levar-se à conta de “impropriedade e imperfeição” – como fez a decisão – Lições, 1989, p. 439.
recorrida – e ilustra bem o carácter marcadamente privado das relações No Acórdão do S.T.A. de 14.7.94 (Apêndices ao Diário da República,
contratuais entre as partes. p. 5801), assinala-se o seguinte:
Vejamos: “Esta abertura do critério definidor da competência dos tribunais
Nos últimos tempos, a Jurisprudência tem vindo a insistir em que administrativos em matéria de contratos administrativos coincidiu com
o ponto de partida para a resolução das questões da competência do uma generalizada tendência para o alargamento, a nível substancial,
tribunal são os termos em que o autor fundamenta a acção e formula a desta categoria de contratos, de que a doutrina mais actualizada tem
sua pretensão. É a estrutura da relação jurídica em litígio, tal como ele a dado conta (cf. José Manuel Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia
recorta, que serve de aferição para a determinação daquele pressuposto Contratual nos Contratos Administrativos, Livraria Almedina, Coimbra,
processual – cf. os Acs. do Tribunal dos Conflitos, de 31.3.98, proc.º 1987, Maria João Estorninho, Requiem pelo Contrato Administrativo,
nº 325, e 9.3.04, proc.º nº 4/2003, e os Acs. do S.T.A. de 27.1.94, proc.º Livraria Almedina, Coimbra, 1990, e, por último, José Casalta Nabais,
nº 32.278, 8.5.97, proc.º nº 18.487, 6.7.95, proc.º nº 36.380, e 7.3.01, Contratos Fiscais (Reflexões acerca da sua Admissibilidade, Boletim
proc.º nº 46.049. da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Studia Ivridica,
Não raras vezes, porém, e como se fez notar no citado acórdão deste n.º 5, Coimbra Editora, Coimbra 1994, em especial pp. 64-84)”.
Tribunal de 9.3.04, à vista dos termos em que a acção é proposta nada SÉRVULO CORREIA chama a atenção para uma categoria de contra-
há que nos permita estabelecer, sem outras indagações, uma conexão tos, que são os contratos com objecto passível de direito privado, ou seja,
definitiva com certa jurisdição que seria competente para a causa. Isto aqueles cujo objecto seria em princípio susceptível de ser enquadrado
porque o desenho da relação jurídica de que emerge a pretensão do autor num negócio jurídico – típico ou atípico – celebrado entre os particulares.
não se colhe directamente dos dizeres da petição, incluindo os factos Para este autor, quando os deveres e direitos pactuados são neutros ou
que narra e a formulação do pedido, retirando-se, antes, do contrato indiferentes, justifica-se a presunção de que as partes remeteram para
para que ela remete, e cuja cópia é junta aos autos, bem como doutros a aplicação dos princípios gerais do contrato administrativo. Salvo
elementos complementares. prova de que a vontade real de ambas as partes era a oposta, partir-
Assim, tal conexão só poderá revelar-se mediante a análise desse -se-à do princípio de que celebraram um contrato administrativo. Na
contrato, em conjugação com outros elementos de interpretação e sob realidade, “nos nossos dias, o Direito geral da Administração é o Direito
a égide dos critérios distintivos entre contrato administrativo e contrato Administrativo...” – Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos
de direito privado. Administrativos, pp.403-406. Este entendimento é por diversas vezes
A delimitação da fronteira entre o contrato de direito privado e o citado em acórdãos do S.T.A., como os de 25.1.01, proc.º nº 46.798, e
contrato administrativo nunca foi tarefa fácil, deixando à doutrina e à de 7.3.01, proc.º nº 46.049.
jurisprudência amplo espaço de debate. Apesar desta tendência, uma análise dos mais recentes arestos do
A distinção foi sendo feita recorrendo a critérios relativos aos sujei- S.T.A. e do Tribunal de Conflitos sobre a matéria permite constatar que
tos, ao fim, ao objecto e estatuto privado da Administração Pública (cf. a Jurisprudência não se vem limitando a aceitar a matriz administrativa
MARIA JOÃO ESTORNINHO, Requiem pelo Contrato Administrativo, do contrato em função da mera presença de um contraente público e de
1990, p. 75 e segs.). uma qualquer ligação do objecto do contrato a finalidades de interesse
Mas os termos do problema foram alterados, e a discussão enriquecida, público que esse ente prossiga.
com a publicação do ETAF, cujo art. 9º veio adoptar um critério aberto Ao contrário, não prescinde de, caso a caso, procurar detectar a pre-
de contrato administrativo, passando a ser meramente exemplificativa sença de marcas de administratividade, de elementos exorbitantes, ou
a enumeração dos tipos de contratos administrativos e definido como de traços reveladores de uma ambiência de direito público.
seu elemento caracterizador a constituição, modificação ou extinção Recorde-se que relação jurídica de direito administrativo não é se-
duma relação jurídica de direito administrativo. Publicado alguns anos guramente aquela que simplesmente envolve a Administração, é a que
depois, o CPA acolheu no art. 178º a mesma definição de contrato “confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público
administrativo. à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe
O carácter taxativo da antiga enumeração legal, bem como a cos- deveres públicos aos particulares perante a Administração” – FREITAS
tumeira exigência de que o particular ficasse associado de forma du- DO AMARAL, Lições, p. 439/40.
radoura e especial à realização do fim administrativo, com submissão O critério estatutário pode considerar-se entre nós dominante. Nesta
à autoridade e direcção dos órgãos da entidade pública contratante, concepção, contrato administrativo é o que constitui um processo pró-
impediram, durante muitos anos, que uma gama muito grande de relações prio de agir da Administração Pública e que cria, modifica ou extin-
jurídicas pudesse submeter-se a um regime de direito administrativo, e gue relações jurídicas, disciplinadas em termos específicos do sujeito
30 31

administrativo, entre pessoas colectivas da Administração ou entre a JORGE ANDRADE DA SILVA (Regime Jurídico das Empreitadas de
Administração e os particulares (SÉRVULO CORREIA, ob. cit., p. 396). Obras Públicas, 6ª edição, p. 41).
A preferência generalizada pelo critério estatutário tem um mérito Efectivamente, e muito embora se concorde que as empresas con-
indiscutível. É que, como salientam MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA cessionárias (de serviços públicos, de obras públicas ou de exploração
e outros (Código do Procedimento Administrativo Comentado, II, p. 341) de bens do domínio público) devem continuar a manter-se na categoria
“trazer para o direito administrativo todos os contratos que tragam das entidades de direito privado, como enfaticamente defende FREI-
marcas - importantes e juspublicisticamente protegidas (específica ou TAS DO AMARAL (que lhes reserva a designação de sociedades de
exclusivamente) de administratividade – é a única (proposta) compatível interesse colectivo – Curso de Direito Administrativo, 2ª ed., I, p. 558
com a imputação constitucional da jurisdição do direito administrativo e segs.), não custa aceitar que, pelo menos no que respeita ao campo
e dos tribunais administrativos aos tribunais administrativos”. de actividade em que exercem tituladamente poderes públicos, possam
Feito este intróito, importa agora trazer à tona as particularidades do ser sujeito activo de contratos administrativos.
caso que nos ocupa. Como se escreveu no Ac. deste S.T.A. de 2.4.03, proc.º nº 113/03:
A primeira delas é que nenhuma das partes no processo – e nenhum “Admite-se, aliás, que, em certos casos, ao concessionário é dado
dos contraentes no contrato de empreitada – é uma pessoa colectiva de praticar actos administrativos, sujeitos à fiscalização contenciosa, e
direito público. Apenas a Ré e ora recorrida se apresenta com vestes é essa possibilidade que explica a existência do preceito da al. d) do
que lhe emprestam um regime de direito público, já que se trata de em- art. 51º do ETAF” (recurso para os TACs dos actos administrativos dos
presa concessionária. Saber se a ausência de uma parte pública repele concessionários).
a qualificação do contrato como administrativo será, por conseguinte, A vinculação deste tipo de entidades à prossecução de tarefas e finali-
a primeira questão a abordar. dades de interesse público e cariz administrativo torna-as, em princípio,
Depois, importa precisar o sentido da regra do art. 239º do RJEOP, aptas a constituir, por acto ou contrato em que sejam parte, relações
na versão do diploma aqui aplicável – o Dec-Lei nº 405/93, de 10.12. jurídicas de direito administrativo – que como vimos são o elemento
Estar-se-á perante uma simples permissão da aplicação dum regime de conexão com o contrato administrativo e simultaneamente com a
supletivo, ou na presença da imposição (obrigatória) dum regime de jurisdição dos tribunais do contencioso administrativo – ex vi do pre-
direito público? ceituado nos arts. 212º, nº 3, da C.R.P. e 3º do ETAF. Tal facto tem sido
Finalmente, haverá que valorar o sentido da cláusula contratual que reconhecido pelo S.T.A., como se pode constatar por aquele Ac. de 2.4.03
atribui ao tribunal de Barcelos competência para dirimir os litígios e Ac. de 28.11.02, proc.º nº 1674/02, em que se escreveu:
“A natureza privada ou pública de uma questão não está necessaria-
surgidos a propósito da interpretação e execução do contrato.
mente condicionada pela natureza dos titulares da relação jurídica”.
Na concepção tradicional, personificada por MARCELLO CAE- Diga-se que não é somente o citado art. 51º/1, al. d), do ETAF a
TANO, uma das partes do contrato administrativo teria necessariamente enquadrar os actos dos concessionários sob uma normação (adjectiva
de ser um ente de direito público (cf. Manual, tomo I, p. 587). O critério e contenciosa) de direito público. Também a nível procedimental a
dos sujeitos ou da diferente natureza das partes integrava o critério da lei optou por equiparar o seu regime ao dos órgãos da Administração
subordinação, constituindo a sua razão de ser – a sujeição da actividade Pública, desde que “no exercício de poderes de autoridade” – art. 2º,
do particular à autoridade e direcção dos órgãos da entidade servida nº 3, do Código do Procedimento Administrativo.
(cf. SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos De resto, e como bem faz notar ESTEVES DE OLIVEIRA (Con-
Contratos Administrativos, p. 364). cursos e Outros Procedimentos..., p. 156), aqui não há propriamente
Já atrás se viu que a Doutrina e da Jurisprudência não se satisfazem inovação, pois “a aptidão virtual ou abstracta das concessionárias de
com o preenchimento desse requisito, recomendando que além disso se obras, de bens ou de serviços públicos e de entes congéneres delas,
busquem no contrato marcas de administratividade e conexão. neste aspecto (como são as empresas públicas) é, aliás, de há muito,
Mas, do mesmo passo, vem-se admitindo que possam nascer contra- um dado adquirido o nosso ordenamento jurídico: já no domínio do
tos administrativos das relações entre entidades que não são de direito Código Administrativo de 1940 se admitia o recurso para os tribunais
público. Na sequência do antigo Decreto-Lei nº 48.871, que já incluía administrativos de actos das concessionárias...”
uma norma sobre extensão do regime a concessionários, o Decreto-Lei Resta então saber se, na hipótese dos autos, a Ré interveio especifica-
nº 235/86, de 18.8 (que o Dec-Lei nº 405/93 veio revogar) veio prever, no mente ao abrigo dos poderes públicos emergentes da concessão.
art. 3º, nº 3, a sua aplicação “às empresas de economia mista ou conces- A sociedade Ré foi constituída pelo Dec-Lei nº 102/95, de 19.5,
sionárias do Estado”, desde que assim fosse determinado por portaria do como sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos que iria
ministro competente. Registando o surgimento desta norma, SÉRVULO receber a concessão da exploração e gestão do sistema multimunicipal
COREIA propõe que se reconheça a capacidade de celebrar contratos de captação, tratamento e abastecimento de água do Norte da Área do
administrativos “a todas as pessoas (ainda que de direito privado) com Grande Porto, sendo logo aprovados, em anexo, os seus estatutos e
capacidade para a prática de actos administrativos” (Legalidade e Au- definidos os accionistas ditos originários o IPE – Águas de Portugal,
tonomia..., p. 365, 416/7 e Contrato Administrativo, p. 29 a 31). Nesse SGPS, S.A. e 7 municípios.
entendimento é acompanhado por ESTEVES DE OLIVEIRA (Concursos No seu objecto social incluem-se a “construção, extensão, reparação,
e Outros Procedimentos de Adjudicação Administrativa, p. 153 e 157 renovação, manutenção e melhoria das obras e equipamentos necessá-
e Código do Procedimento Administrativo Comentado, II, p. 344), e rios” para o desenvolvimento da sua actividade.
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Do contrato de concessão documentado a fls. 103 dos autos retira-se epígrafe, o que se terá querido dizer foi que o chamamento destas nor-
que a concessão é dada por 30 anos em regime de exclusivo, que a mas se entende sem prejuízo das da matriz regulamentar reguladora do
concessão “compreende a concepção e construção duma rede fixa e de procedimento adjudicatório, que constituem sempre a sua lex specialis
todas as instalações necessárias à captação, tratamento e abastecimento e são directamente aplicáveis – aviso, programa do concurso e caderno
de água para consumo público”, cujo “regular abastecimento se obriga de encargos.
a assegurar”. A construção das infra-estruturas é da responsabilidade da Acresce que o preceito não refere que o diploma “pode aplicar-se” às
concessionária, que responde perante o concedente por eventuais defeitos concessionárias, mas pura e simplesmente que se lhes aplica, verificadas
de concepção, de projecto, de construção ou dos equipamentos; as obras que sejam as condições que vêm enumeradas.
devem ser adjudicadas mediante concurso público; e é reconhecida à O que, de resto, corresponde à intenção expressamente anunciada no
concessionária a faculdade de requerer a expropriação de terrenos e de preâmbulo do diploma, no qual que se afirma:
constituir as servidões necessárias, “Embora o âmbito de aplicação deste diploma às empresas públicas e
No outro pólo, o contrato de empreitada celebrado entre as partes às sociedades anónimas de capitais maioritariamente públicos e dependa
(fls. 125) teve por objecto, justamente, o exercício de uma parte das de portaria do ministro competente, consagrou-se a obrigatoriedade
actividades que constituem a razão da criação legal e da existência da da sua aplicação às concessionárias de serviços públicos, sempre que
sociedade Ré como ente dotado de personalidade jurídica e enquanto o valor da empreitada seja igual ou superior...”
concessionária, pois do que se trata é da “realização dos trabalhos de Não há, assim, maneira de descaracterizar como obrigatória, ou im-
construção civil, o fornecimento e montagem do equipamento e das ins- perativa, essa aplicação. Foi a forma que o legislador encontrou, con-
talações eléctricas do Sistema Multimunicipal de Captação, Tratamento
juntamente com o estabelecimento do critério da dimensão mínima do
e Distribuição de Água do Norte da Área do Grande Porto – Grupo 4.II
de Obras – Ramal de Santo Tirso Ocidental”. valor da obra, para submeter a igual tratamento as obras da iniciativa
Entre o objecto do contrato, assim definido, e os fins legal e necessa- da Administração (directa e indirecta) e dos concessionários de serviço
riamente prosseguidos pela recorrida existe uma conexão muito intensa, público, atentas as patentes afinidades que se conhecem. No fundo,
muito próxima e muito directa. Tal contrato acha-se “teleologicamente entendeu-se que a prestação de um serviço público deve reger-se pelas
orientado” à realização de um interesse público específico compreendido normas da contratação pública em tudo quanto respeitar a obras (de
nas atribuições do contraente que actua por incumbência pública, e a construção e conservação das infra-estruturas), por esta actividade ser
obra em causa é objectivamente pública – e não ligada à organização e porventura das mais importantes no conjunto das acções a levar a efeito
funcionamento empresarial da sociedade concessionária. pelos concessionários de serviço público a benefício das necessidades
Pode, deste modo, concluir-se que o contrato em apreço se inscreve colectivas das populações que foram incumbidos de satisfazer.
no âmago dos poderes públicos recebidos por intermédio da concessão, Não havendo dúvidas de que o valor da obra (Esc. 1.226.309.549$00)
e bem assim que a ausência de um contraente de direito público qua tale é superior ao estabelecido no art. 6º, nº 1, da Directiva 93/37/CEE, do
não obsta, por si só, à qualificação do contrato como administrativo. Conselho, de 14.6.93 (5.000.000 ecus), temos que o RJEOP é directa-
Obtida a resposta à primeira questão, haverá agora que determinar o mente aplicável ao contrato dos autos, por força da regra do art. 239º.
sentido da norma do art. 239º do RJEOP. Que significado tem dizer-se Finalmente, a estipulação do foro da comarca de Barcelos para reso-
que o diploma se aplica, “ainda”, “às concessionárias de serviço público, lução das questões emergentes do contrato de empreitada (artigo 10º)
sempre que o valor da obra seja igual ou superior ao estabelecido para não pode ter a virtualidade de afastar a competência dos tribunais ad-
efeitos de aplicação das Directivas das Comunidades Europeias relativas ministrativos, que é de ordem pública e decorre da aplicação da lei
à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras – como em hipóteses análogas o Supremo Tribunal Administrativo
públicas” (al. b) do preceito)? teve ensejo de afirmar (cf. Acs. de 4.3.82, proc.º nº 11.813 e de 4.12.03,
A recorrente, argumentando com base na expressão “regime subsi- proc.º nº 301/02).
diário” que consta da epígrafe do artigo, pretende que a aplicação do Atinge-se, assim, a conclusão de que as relações jurídicas de que a
diploma se faz facultativamente, como lei supletiva, ao relacionamento causa dimana são de natureza administrativa, pois que dimanam dum
das partes durante a execução da empreitada, mas sem implicar a su- contrato administrativo de empreitada de obra pública submetido a
jeição dos contratos celebrados por entidades como a Ré ao espartilho normas dessa natureza por expressa e inequívoca determinação da lei.
do CPA e do RJEOP. Mostra-se, por conseguinte, irrepreensível a decisão de julgar in-
Mas não é razoável, nem tem fundamento jurídico válido, transformar competente o Tribunal Judicial da Comarca de Barcelos, e de com esse
uma aplicação do diploma definida de modo aparentemente unitário e em fundamento absolver a Ré da instância.
bloco numa remissão fraccionada para um conjunto limitado de normas Nestes termos, acordam em negar provimento ao recurso, decla-
regulando a execução do contrato – deixando de fora outras como as rando competente para conhecer da acção o tribunal administrativo
respeitantes ao procedimento de concurso e ao respectivo contencioso de círculo.
(incluindo a expressa atribuição aos tribunais administrativos de com- Sem custas.
petência na matéria – art. 224º).
Tão pouco se pode retirar tal sentido do uso da expressão regime sub- Lisboa, 18 de Janeiro de 2006. — J. Simões de Oliveira (relator) — Antó-
sidiário que está na epígrafe do artigo, que é consabidamente elemento nio Henriques Gaspar — Alberto Augusto Andrade de Oliveira — Manuel
interpretativo de escasso valor. A haver algum rigor na formulação da de Simas Santos — Rosendo José — Joaquim Manuel Pereira Silva.
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Acórdão de 19 de Janeiro de 2006. revogada a decisão recorrida, e, declarando incompetente o Tribunal de


Trabalho, absolveu o R. da instância.
Processo n.º 13/05-10. 7. O Tribunal da Relação de Coimbra decidiu que a competência
Requerentes: José Manuel Ferreira da Silva, no Conflito Negativo de não cabe ao Tribunal do Trabalho, por o A. não ter celebrado com o R.
Jurisdição, entre o Tribunal do Trabalho de Castelo Branco e os Tribunais qualquer contrato de trabalho subordinado, mantendo-se vinculado ao
Administrativos e Fiscais. Estado para uma relação jurídica de emprego público.
Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Armindo Ribeiro Luís. 8. Não se conformando com tal acórdão da Relação, dela agravou o
A. para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo este decidido, conforme
Acordam no Tribunal dos Conflitos consta de fls. 448 e 449, converter tal agravo em recurso para este
Tribunal de Conflitos e ordenar a remessa do processo a este Tribunal,
I como impunha o artigo 107º., nº. 2 do C. P. Civil.
1. José Manuel Ferreira da Silva impugna o acórdão do Tribunal da 9. O A., no final das suas alegações, formula as seguintes conclu-
Relação de Coimbra de 27/01/2005 (fls. 359 a 366) que, revogando a sões:
decisão do Tribunal do Trabalho de Castelo Branco de fls. 228 a 230 1ª.) A decisão recorrida não valora os factos alegados nos artºs. 1º. a
verso, que havia julgado improcedente a excepção dilatória de incom- 60º. da p.i. e 4º. a 18º. da réplica, e também não conhece da questão de
petência desse Tribunal em razão da matéria e declarado o mesmo direito, devidamente alegada em que o recorrente estava em comissão
competente, julgou procedente tal excepção e absolveu o Réu – Instituto de serviço de direito de trabalho, nos termos do Dec. Lei nº. 404/91, de
de Solidariedade e Segurança Social da instância. 16/10, constituindo ambas as omissões nulidades da decisão recorrida,
2. O A. – José Manuel Ferreira da Silva instaurou acção declarativa, violando o artigo 668º., nº. 1, als. b) e d) do CPC;
que considerou emergente de contrato individual de trabalho contra o 2ª.) A decisão recorrida decidiu que a relação jurídica entre o A. e o
Instituto de Solidariedade e Segurança Social, pedindo que este seja R. era direito administrativo, pelo que julgou procedente a excepção de
condenado: incompetência do Tribunal de Trabalho;
a) A cumprir o Acordo de Nomeação em Comissão de Serviço cele- 3ª.) A competência material de um determinado Tribunal há-de aferir-
brado com o A. até à data do seu termo; -se de acordo com os termos em que é proposta, atendendo-se ao direito
b) No pagamento da quantia de 3.919,46 Euros mensais desde 24 de invocado perante o pedido formulado e respectivos fundamentos, que
Setembro de 2002 até 1 de Outubro de 2004; o Autor pretende ver reconhecidos judicialmente, ou seja, pela natu-
c) Subsidiariamente e sem conceder, no pagamento da indemnização reza da relação material, segundo a versão apresentada em juízo pelo
de 53.481,00 Euros pela cessação do Acordo de Nomeação em Comissão demandante;
de Serviço. 4ª.) Na petição inicial e na resposta à excepção o A. alegou os factos
3. Para tanto, invocou, em síntese, o seguinte: e o direito que concretiza a sua relação de trabalho, constituindo essa
a) Em 1 de Outubro de 2001 celebrou o A. um contrato digo Acordo relação em novos instrumentos jurídicos de contratação e gestão a que
de Nomeação em Comissão de Serviço com o R.; os Institutos Públicos vêm recorrendo na última década;
b) Para que desempenhasse o cargo de Adjunto do Director de So- 5ª.) Acresce que o A. não era funcionário público do Estado, mas de
lidariedade e de Segurança Social de Castelo Branco, em comissão de um Instituto Público com personalidade jurídica, tendo celebrado com o
serviço, a partir de 1 de Outubro de 2001 e por três anos; ISSS um contrato de trabalho subordinado, com isenção de horário, para
c) O A. possuía então a qualidade de funcionário público; desempenhar a actividade de adjunto do director, descontando, como
d) Sucede, porém, que por despacho da Secretaria de Estado da Soli- regra, para a Segurança Social e não para a Caixa Geral de Aposenta-
dariedade e da Segurança Social foi determinada a cessação da aludida ções, durante 3 anos, que seria desempenhado em comissão de serviço
comissão de serviço com efeitos a partir de 24 de Setembro de 2002; de direito de trabalho, então prevista e regulada no Dec. Lei nº. 404/91,
e) Tal despacho é manifestamente ilegal. de 16/10 e actualmente prevista e regulada nos artigos 244º. a 248º., do
4. Frustrada a conciliação das partes, veio o R. contestar, defendendo- Código de Trabalho;
-se, desde logo, por excepção, invocando a incompetência material do 6ª.) Assim, a decisão recorrida qualificou mal a comissão de serviço
Tribunal de Trabalho, dado que a relação jurídica existente entre o A. e do recorrente, dado que a qualificou como sendo da função pública
o R. não configura um contrato de trabalho subordinado. enquanto a referida comissão de serviço é de direito de trabalho, dado
5. Foi proferido despacho saneador, no qual se decidiu, além do mais, que ao cargo de Adjunto do Director era aplicado o regime jurídico de
julgar improcedente a excepção dilatória da incompetência em razão contrato individual de trabalho, em comissão de serviço, nos termos dos
da matéria, declarando-se competente o Tribunal do Trabalho, com o artigos 37º., 38º., nºs. 1 a 4, dos Estatutos do ISSS aprovados pelo Dec.
fundamento de que face aos termos em que o A. formula a sua pretensão Lei nº. 316-A/2000, de 7/12 e do Regulamento do pessoal dirigente e
(Comissão de Serviço em regime de direito privado), se aplicava ao caso, de chefia (Despacho nº. 11464, DR, II Série, de 30/5);
o regime jurídico de contrato individual de trabalho. 7ª.) Consequentemente, a decisão recorrida violou o artigo 85º., al. b),
6. Inconformado com tal decisão dela agravou o Réu – Instituto da Lei 3/99, de 13/01, pelo que deve ser revogada e substituída por outra
de Solidariedade e Segurança Social, tendo o Tribunal da Relação de que declare o Tribunal do Trabalho de Castelo Branco competente, em
Coimbra, por acórdão de fls. 359 a 366, dando provimento ao recurso, razão da matéria, ou, se assim não se entender, ordene o prosseguimento
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dos autos para julgamento de modo a fazer prova sobre a relação laboral 3. Passemos agora a apreciar e decidir a questão descrita em b)-
entre o Recorrente e o Recorrido. -supra:
10. O Réu – Instituto de Solidariedade e Segurança Social, na qua- Defende o autor, no seu recurso, que o acórdão recorrido é nulo, por
lidade de recorrido, contra-alegou de fls. 403 a 417, defendendo a omissão de pronúncia, por não ter conhecido da questão de direito, por
confirmação do acórdão recorrido. ele invocada, de que a comissão de serviço de direito do trabalho, foi
11. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir: exercida nos termos do Dec. Lei nº. 404/91, de 16/10.
12. O Exmº. Magistrado do Ministério Público, no seu Parecer de A nulidade citada pelo recorrente, a tal propósito, e, prevista no
fls. 463 a 466, defende o provimento do recurso, por a competência artigo 668º., nº. 1, al. d) – 1ª. parte do C. P. Civil, ocorre quando o
material pertencer ao Tribunal do Trabalho. colectivo de juízes deixe de se pronunciar sobre questão que devesse
II – Fundamentação: apreciar.
A) De facto: Esta nulidade de “omissão pronúncia”, não postula, segundo orienta-
Os factos relevantes para a apreciação do recurso e descritos no ção uniforme da doutrina e da jurisprudência, a apreciação de todos os
acórdão recorrido são os seguintes: argumentos ou razões em que os factos se apoiam para sustentar a sua
a) Em 1 de Outubro de 2001 o R. celebrou com o A. um “Contrato pretensão. “O que importa é que o Tribunal decida a questão posta” (Cfr.
de Nomeação em Comissão de Serviço”, para que este desempenhasse Prof. A. dos Reis – C. P. Civil Anotado – Vol. V – Pág. 143).
o cargo de Adjunto do Director do Centro Distrital de Solidariedade e No caso em apreço, o acórdão recorrido não tinha que conhecer de
Segurança Social de Castelo Branco, a vigorar pelo período de três anos direito, conforme pretendia o recorrido, mas conhecer das questões
e com inicio em 1 de Outubro de 2001; postas pelo recorrente, o que fez. Aliás, vendo as contra-alegações do
b) O A. possuía já então a qualidade de “funcionário público”; recorrido perante a Relação, de fls. 328, não se coloca ali expressamente
c) Por despacho da Secretaria de Estado da Solidariedade e da Segu- tal questão. O acórdão recorrido apenas tinha de apreciar e decidir “a
rança Social foi determinada a cessação definitiva, com efeitos a partir questão da competência” descrevendo os factos atinentes e o direito que
de 24 de Setembro de 2002, da aludida comissão de serviço, antes de entendia aplicável, e, foi o que fez. Em face do exposto, não ocorre a
ter expirado o prazo legal. mencionada nulidade, por omissão de pronúncia.
B) De direito: 4. Urge finalmente apreciar e decidir a questão referenciada em c)-
1. Como se sabe, o âmbito objectivo do recurso é definido pelas -supra:
conclusões do recorrente (artigos 684º., nº. 3 e 690º., nº. 1 do C. P. A Jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente
definida pelo nº. 3 do artº. 212º. da C.R.P. em que se estabelece que
Civil, importando assim, delimitar e decidir as questões colocadas nas
“compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções
conclusões do recurso do autor. e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emer-
Em face delas, urge apreciar e decidir as seguintes questões: gentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (cfr. igualmente
a) Se o acórdão recorrido é nulo, por falta de fundamentação, nos o artº. 3º. do ETAF, aprovado pelo Dec. lei nº. 124/84, de 27/04).
termos do artigo 668º., nº. 1, al. b) do C. P. Civil; A jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida
b) Se o acórdão recorrido é nulo, por falta de pronúncia (artigo 668º., por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas as
nº. 1, al. d) – 1ª. parte do C. P. Civil); outras ordens judiciais (artºs. 211º., nº. 1 da C.R.P. e 18º. da L.O.F.T.J.
c) Se cabe aos tribunais do trabalho ou aos tribunais administrativos – nº. 3/99, de 13/01.
o conhecimento da acção. A competência dos tribunais é aferida em função dos termos em que
2. Vejamos pois, começando por apreciar e decidir a questão descrita a acção é proposta, “seja quanto aos seus elementos objectivos (natu-
em a) – supra: reza da providência solicitada ou de direito para o qual se pretenda a
Defende o recorrente que o acórdão recorrido é nulo, por não ter valo- tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens
rado factos que entende deverem ter sido valorados, de acordo com a tese pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade
que defende, classificando tal actuação, como falta de fundamentação, das partes). Como ensina o Prof. Manuel de Andrade, a competência do
nos termos do artigo 668º., nº. 1, al. b) do C. P. Civil. tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese
Ora, é jurisprudência assente e doutrina firme que “o que a lei con- com aquilo que será mais tarde o quid decisum” (In Noções Elementares
sidera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou de Processo Civil – 1979 – pag. 91).
mediocridade da motivação é aspecto diferente, afecta o valor doutrinal A competência do Tribunal não depende, pois, da legitimidade das
do acórdão... mas não produz nulidade “Cfr. Prof. A. Reis – C. P. Civil partes, nem da procedência da acção.
Anotado – Vol. V – pág. 140), sendo que só a falta absoluta de motivação É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os
(e não o seu laconismo) tem a virtualidade de desencadear a sanção grave termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fun-
de nulidade da alínea b) do nº. 1 do artigo 668º. do C. P. Civil (Cfr. Ac. damentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os
S.T.J. – 03/07/73 – B.M.J. – 229º. – pág. 155) termos da pretensão.
O acórdão recorrido considerou os factos necessários e suficientes Este entendimento doutrinal tem vindo a ser aceite pela jurisprudência,
para decidir a questão da competência do tribunal e aplicou-lhes o designadamente, a deste Tribunal de Conflitos, nomeadamente, o Ac. de
direito que julgou certo, não ocorrendo assim a mencionada nulidade 7/5/91, proferido no processo nº. 231 (Apêndice – D. Rep. – 30/10/93
de falta de fundamentação. – Pág. 24), o Ac. de 6/5/91, proferido no processo nº. 230 (Apêndice – D.
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Rep. – 30/10/93 – Pág. 34) e o Ac. de 26/9/96, proferido no processo Chefia e subsidiariamente pelas normas e princípios que regem o con-
nº. 267 (Apêndice – D. Rep. – 28/11/97 – Pág. 59). trato individual de trabalho” (doc. de fls. 30 e 31 – Cláusula Terceira
Também a jurisprudência tem vindo a decidir que “a competência (Regime Jurídico).
do tribunal em razão da matéria afere-se pelo pedido do autor, tendo Como acima se referiu, o que releva para a questão da competência
em conta os termos em que a acção é proposta e, especialmente, face em razão da matéria é o facto de o Autor alegar estar vinculado ao Réu
à relação jurídica tal como o autor a configura na petição inicial” (Cfr. através do regime de contrato individual de trabalho, de os termos com
entre outros, os Acórdãos do S.T.J., de 12/01/94, 09/05/95 e 04/03/97 que caracteriza a sua situação serem compatíveis com um contrato deste
– In Colect. Jurisp. / S.T.J. – 94 – 1º., págs. 38, 95 – 2º., pág. 68 e 97 tipo e de ser esse contrato de direito privado o fundamento da pretensão
– 1º., pág. 125, respectivamente). formulada de ver reconhecidos direitos que a lei estabelece para os
De acordo com esta doutrina e jurisprudência e à face das referidas trabalhadores vinculados por contrato desse tipo.
normas delimitadoras da competência / jurisdição administrativa e “Se existe relação jurídica dessa natureza e dela emergem os direitos
da dos tribunais judiciais, importa caracterizar a relação estabelecida que o Autor se arroga … é questão que já não respeita ao problema
entre o Autor e o Instituto de Solidariedade e Segurança Social, mas tal da competência, mas ao mérito da pretensão” (Ac. deste Tribunal –
como o litigio é apresentado pelo primeiro, para decidir se incumbe aos 09/03/2004 – Conflito nº. 375).
tribunais administrativos (como decorre do acórdão recorrido) ou aos Assim, não resultando necessariamente, dos termos em que a acção
tribunais judiciais de trabalho (como decidiu o Tribunal do Trabalho da foi proposta, que tenha sido estabelecida entre o A. e o ISSS uma rela-
1ª. Instância) o conhecimento da acção. ção de direito administrativo, e, arrogando-se o Autor a qualidade de
No caso presente, invoca o Autor que, do clausulado no Acordo de titular de um contrato individual de trabalho, durante o exercício do
Nomeação em Comissão de Serviço, decorre que se lhe aplica o regime Cargo de Adjunto do Director do centro Distrital de Castelo Branco,
jurídico do quadro específico definido nos Regulamentos do Instituto em Comissão de Serviço, e, sendo os direitos daí emergentes que quer
de Solidariedade e Segurança Social, pelos regulamentos que lhe de- fazer valer em juízo, é aos tribunais judiciais que incumbe legalmente
ram execução, designadamente, o Regulamento do Pessoal Dirigente apreciar a pretensão do Autor (artº. 18º. da L.O.F.T.J.).
e de Chefia, e, subsidiariamente, pelos princípios relativos ao contrato E, dentro desta ordem jurisdicional, são competentes para o conhe-
individual de trabalho, mas também que ao regime jurídico especial cimento da acção os tribunais de trabalho, por força do preceituado no
do pessoal do quadro específico da ISSS são aplicáveis os princípios artigo 85º., al. b), da L.O.F.T.J.
e as normas que regem o contrato individual de trabalho, e ainda que,
III – Decisão:
de harmonia com o disposto no artº. 37º. do Dec. Lei nº. 316-A/2000,
de 07 de Dezembro (Estatuto do ISSS), ao seu pessoal aplica-se o Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogar
regime jurídico de contrato individual de trabalho e o preceituado nos o acórdão recorrido e declarar competentes os tribunais do trabalho para
regulamentos internos do ISSS, não sendo, por isso, a sua Comissão de o conhecimento da acção, como aliás decidiu o Tribunal de Trabalho
Serviço regulada pelo direito administrativo. de Castelo Branco.
A nosso ver, o A., ora recorrente, tem razão. Na verdade, contraria- Sem custas.
mente ao referido no acórdão recorrido, de que “o A. invocou como causa Lisboa 19 de Janeiro de 2006. — Armindo Ribeiro Luís (relator) — Rui
de pedir a sua qualidade de “funcionário público”, tal não corresponde Manuel Pires Ferreira Botelho — João Mendonça Pires da Rosa — Jorge
ao invocado pelo A., porquanto a verdadeira causa de pedir por ele Manuel Lopes de Sousa — Adérito da Conceição Salvador dos Santos.
alegada consiste “No acordo de nomeação em Comissão de Serviço”
para desempenhar o Cargo de Adjunto do Director do centro Distrital
de Solidariedade e Segurança Social de Castelo Branco, com início
a 1/10/2001 e por 3 anos e cuja cessação foi determinada a partir de
24/09/2002, por despacho ilegal de Sua Excia. a Secretária de Estado da Acórdão de 31 de Janeiro de 2006.
Solidariedade e Segurança Social.
O A. caracteriza como contrato individual de trabalho o vínculo jurí- Processo n.º 15/05.
dico com o ISSS resultante da sua nomeação e exercício e subsequente Requerente: António da Conceição Jacob, no Conflito Negativo de
cessação, em comissão de serviço, para o Cargo de Adjunto do Director Jurisdição, entre o Tribunal Judicial da Comarca de Santiago do Cacém
do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Castelo e os Tribunais Administrativos e Fiscais.
Branco, sendo que tal entendimento está suficientemente documentado Relator: Ex.mo Sr. Cons. Carlos Bettencourt de Faria.
na deliberação nº. 021/2002 de 24/01/2002 (fls. 27), na Deliberação
nº. 286 de 22/11/2001 (fls. 28 e 29) e no Acordo de nomeação em I
Comissão de Serviço de fls. 30 e 31 dos autos.
O ISSS celebrou com o recorrente um Acordo de Nomeação em António da Conceição Jacob veio deduzir contra o Estado Português,
Comissão de Serviço, onde se estipulou que o A. “segundo outorgante no tribunal comum de 1ª instância, pedido de reversão (adjudicação)
fica abrangido pelo regime jurídico do pessoal do quadro específico, de determinado prédio rústico, sito na freguesia e concelho de Sines,
definido nos Estatutos do ISSS, pelos regulamentos que lhe deram fundando a sua pretensão no disposto no art.º 77° e segs. da Lei 168/99
execução, designadamente, o Regulamento de Pessoal Dirigente e de (C. Das Expropriações).
40 41

O Mmo Juiz da comarca de Santiago do Cacém entendeu, porém, que que não fez referência, ou a que se referiu, por forma indirecta, através
era competente em razão da matéria para conhecer dos autos o tribunal de linhas ponteadas do texto oficial.
administrativo de círculo da área da situação do prédio e absolveu o réu Antes revelou desse modo a intenção do legislador de os manter em
da instância, nos termos do art° 105° n°a 1 e 2do C.P.Civil. vigor. Nomeadamente aquele - art° 5° - que determina que a competência
Agravou o autor, mas sem êxito. para conhecer dos processos que têm como objecto o pedido de reversão,
Veio então este recorrer para o Tribunal dos Conflitos. previsto na Lei 16899 de 18.09. passa a ser da jurisdição administrativa
Nas suas alegações de recurso, apresenta, em síntese, as seguintes - tribunal de circulo -.
conclusões: Dúvidas também não se põem nem o recorrente as refere - que o
1 O art° 1° da lei 4-A12003, ao declarar que “os art°s 5° (da Lei 13/2002), dito art° 5° entrou em vigor a 01.01.04. sendo certo que a acção foi
74°, n°s 1,2 e 3 e 77° da Lei 168/99 passam a ter a seguinte redacção”, instaurada em 20.03.04.
que expressou com linhas ponteadas (…..) - em branco -, portanto, só Assim, e resumindo, nos termos do artigo 74º, n° 4. do Código das
pode ter querido significar eliminar o conteúdo das normas que fez Expropriações na redacção do citado artigo 5° da Lei n° 13/2002, de
substituir por essas linhas ponteadas. 19 de Fevereiro, introduzida pelo artigo 1º da Lei n° 4-A/2003, de 19
2 Daí que o regime vigente na matéria em causa seja — e sempre de Fevereiro, são os tribunais administrativos que têm a competência
tenha sido, salvo o devido respeito - , o estatuído pelo n° 1 do art° 77° da para conhecer da matéria em litígio.
Lei 168/99, acrescendo que é manifestamente perceptível que a intenção
do legislador, contida na Lei 4-4A/2003, reside na ideia de ressuscitar III
a Lei revogada. (art° 77° da Lei 168/99).
3 O acórdão recorrido está inquinado das nulidades previstas pelos Pelo exposto, acorda-se em julgar competente para conhecer da ma-
art°s 668° n° 1 alíneas b), c) e d) — 1ª parte - , 666° no 3 e 716° do C. téria dos presentes autos o tribunal administrativo de círculo da situação
P. Civil, pelo que o mesmo deve ser declarado nulo. do prédio em causa.
4 O acórdão agravado violou ainda os art°s 158°, 669° n°s 1 alínea a) Sem custas.
e 2 alínea b) do C. P. Civil, 279° alínea c) do C. Civil, Lei 4.4A/2003 de Lisboa, 31 de Janeiro de 2006. — Carlos Alberto de Andrade Betten-
19.02 — e, concretamente o art° l - 205° do CRP e 77° da Lei 168/99 court de Faria (relator) — Fernando Manuel Azevedo Moreira — José
de 15.09. Joaquim de Sousa Leite — Maria Angelina Domingues — Mário Manuel
Corridos os vistos legais, cumpre decidir. Pereira — Rosendo Dias José.
II
Apreciando
Está aqui em causa unicamente saber se a competência para conhecer
dos presentes autos pertence à jurisdição administrativa ou à jurisdição Acórdão de 2 de Março de 2006.
comum.
A este respeito o recorrente refere apenas que o artigo de lei que alte- Processo n.º 20/05-70.
rou expressamente parte de artigo de anterior lei, ao deixar em branco, Requerente(s): Vladimiro dos Santos Estevâm e mulher Manuela
mediante linhas ponteadas, os números sobre os quais não dispõe, quis Maria Carapinha Gonçalves Estevâm no Conflito Negativo de Jurisdi-
significar que os revogava. ção entre o Tribunal Judicial da Comarca de Santiago do Cacém e os
Nada mais contrário à boa técnica legislativa e mesmo ao comum Tribunais Administrativos e Fiscais.
discurso escrito do português. Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Fernando Pinto Monteiro.
As linhas ponteadas querem dizer precisamente o contrário, ou seja,
que os regimes correspondentes a esses espaços são mantidos em vigor. Acordam, em conferência, no Tribunal dos Conflitos:
Trata-se duma manifestação clara e directa da vontade do legislador.
Nem, que saibamos, nunca tal dúvida se suscitou ao intérprete. 1 — Vladimiro dos Santos Estêvam e mulher Manuela Maria Carapi-
Nem seria lógico que o legislador não “aproveitasse” a oportunidade nha Gonçalves Estêvam deduziram no Tribunal Judicial da Comarca de
duma alteração de um diploma e deixasse de regular de forma expressa Santiago do Cacém, contra o Município de Sines e o Estado Português,
todos aspectos do mesmo a que quisesse aplicar um regime diferente. pedido de adjudicação de prédio rústico que identificam.
Acresce que isso até iria contra a regra da interpretação das leis Alegaram que o prédio em causa foi expropriado, mas que após a
segunda a qual deve- se entender que o legislador soube exprimir o seu expropriação nunca foi utilizado para o fim que determinou a declara-
pensamento em termos adequados - cf.art°9°n°3 do C. Civil. ção de utilidade pública, pelo que requereram e obtiveram a reversão
Acresce igualmente que seria absurdo o legislador pretender o regresso do imóvel.
a um sistema de competências, que acabava de afastar, numa inexplicável Não foi deduzida oposição.
e inexplicada reviravolta da orientação legislativa. Foi proferido despacho que julgou verificada a excepção dilatória de
Donde se conclui: incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria e absolveu os
O art° 1° da Lei 4-A/2003 de 19.02, ao alterar determinados preceitos requeridos da instância.
da Lei 13/2002 de 19.02, não revogou aqueles preceitos deste diploma a Agravaram os requerentes.
42 43

O Tribunal da Relação confirmou o decidido. - Daí que o regime vigente na matéria em causa seja — e sempre
Inconformados, recorrem os requerentes para o Tribunal dos Con- tenha sido — o estatuído pelo n.° 1 do artigo 77° da Lei n.° 168/99,
flitos. acrescendo que é manifestamente perceptível que a intenção do legis-
Formulam as seguintes conclusões: lador, contida na Lei n.° 4-A/2003, reside na ideia de ressuscitar a Lei
- O acórdão recorrido não conhece, esclarece nem fundamenta as revogada (artigo 77° n.° 1 da Lei n.° 168/99);
questões suscitadas no n.° 4 — 3, als. a) e b)das presentes alegações, nem - O entendimento perfilhado pelo acórdão agravado tornaria impossí-
tomou qualquer posição donde resulte a improcedência das conclusões vel o cumprimento pelo Tribunal das diligências de natureza probatória
que aí lhe foram apresentadas; - designadamente por inspecção judicial e por via pericial previstas pelo
- O artigo 1° da Lei n.° 4-A/2003, de 19.02, ao declarar que “Os artigo 78° da Lei n.° 168/99, de 18.09;
artigos 5° da Lei n.° 13/2002, 74° n.°s 1, 2, 3 e 77º da Lei n.° 168/99 - A Senhora Magistrada do Ministério Público deduziu oposição
passam a ter a seguinte redacção”, que expressou com linhas ponteadas quanto ao valor a restituir ao expropriante pelo expropriado, mas não
(...), em branco, portanto, só pode ter querido eliminar o conteúdo das suscitou qualquer dúvida ou oposição quanto à competência do Tribunal
normas que fez substituir por essas linhas ponteadas; da Comarca para julgar e decidir a causa em apreço, posição, de resto,
- Qualquer outro entendimento terá que ser fundamentado em norma coincidente com todas as que já foram manifestadas pelo Ministério
legal ou princípio geral de direito — de hermenêutica jurídica — con- Público, nos diversos processos da mesma natureza, sobre os quais já
sagrado pelo ordenamento jurídico, “elaborado” pela doutrina mais se pronunciou;
prestigiada e perfilhado pela jurisprudência mais representativa, questões - O acórdão agravado está inquinado das nulidades previstas pelos
sobre as quais o despacho agravado faz silêncio total; artigos 716° n.° 1, 668° n.° 1, als. b) e d) – 1ª parte, 666° n.° 3 do CPC,
- A redacção introduzida pela Lei n.° 4-A/2003, do artigo 77° n.° 1 pelo que o mesmo deve ser declarado nulo, com os legais efeitos;
da Lei n.° 168/99, de 18.09, “ou apaga”, elimina ou oblitera a redacção - O acórdão agravado violou ainda, para além das referidas normas,
constante da Lei n.° 13/2002, de 19.02; “ou apaga”, elimina ou oblitera as sancionadas pelos artigos 158°, 669° n.°s 1 alínea a) e 2 alínea b) do
directamente a redacção da Lei n.° 168/99, quanto ao artigo 77º n.° 1, CPC, 279° alínea c) do C. Civil, Lei n.° 4-A/2003, de 19.02 - e concre-
que, em tal perspectiva, deixaria de existir; tamente o artigo 1° e 205° da CRP;
- Se tivesse ocorrido a segunda hipótese prevista anteriormente — o — Deve, pois, ser revogado o acórdão agravado e declarado com-
que não aconteceu — então haveria que recorrer à Lei geral para so- petente para julgar o pleito sub-judice, o Tribunal Comum da Comarca
de Santiago do Cacém;
lucionar a questão, isto é, ao artigo 44° do Estatuto dos Tribunais Ad-
Contra-alegando, o Senhor Procurador-Geral Adjunto defende a ma-
ministrativos e Fiscais e à Lei dos Tribunais Judiciais, o qual nada diz
nutenção do decidido.
sobre a competência na matéria em causa; Cumpre decidir.
- A revogação da norma revogatória antes da entrada em vigor desta, II — Requerida no Tribunal comum a adjudicação de prédio rústico
mantendo os seus dispositivos, mas esvaziando-os de todo o seu conte- por ter sido obtida a reversão do imóvel, foi proferido despacho consi-
údo, traduz uma vontade e uma intenção claras do legislador de recuperar derando que a competência pertence ao foro administrativo, pelo que
a lei anterior, ou seja, de repristiná-la; se declarou a incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria,
- Ora, do regime estatuído pelos diplomas referidos anteriormente, decisão essa confirmada por acórdão do Tribunal da Relação.
sempre resulta que seriam os Tribunais comuns — e não o foro adminis- Recorrem os requerentes para o Tribunal dos Conflitos, suscitando
trativo — os competentes para apreciar e julgar o litígio em presença; várias questões.
- A Lei n.° 13/2002, de 19.02, que nos termos do seu artigo 9°, era Impõem-se duas notas prévias.
suposto entrar em vigor um ano após a sua publicação, isto é, às 24 Em primeiro lugar não chega a existir um verdadeiro conflito, tal
horas do dia 19.02.2003 (artigo 279°, alínea c) do C. Civil), foi alterada, como é entendido pelo artigo 115º do C. Processo Civil, uma vez que
quanto à data da entrada em vigor prevista no seu artigo 5°, pela Lei para isso seria necessário que dois ou mais tribunais, integrados em
n.° -A/2003, de 18.03, que determinou que a vigência daquele regime ordens jurisdicionais diferentes, se arrogassem ou declinassem o poder
se iniciaria em 01.01.2004; de conhecer da mesma questão.
- A Lei n.° 13/2002, de 19.02 — e concretamente o seu artigo 5° Em concreto, o Tribunal da Relação declarou incompetentes os Tribu-
— não alterou o dispositivo legal constante do artigo 77º n.° 1 da Lei nais comuns, por considerar que competente era o Tribunal Administra-
n.° 168/99, de 18.09, porque, antes de entrar em vigor em 01.01.2004, tivo, não chegando este Tribunal a pronunciar-se. Está-se assim perante
foi revogada pela Lei n.° 4-A/2003, de 19.02, que sobre a mesma matéria uma decisão preventiva face ao eventual futuro conflito.
obliterou as alterações introduzidas pelo artigo 5º da Lei n.° 13/2002, Em segundo lugar, sendo este um Tribunal dos Conflitos, compete-lhe
de 19.02, e repristinou a versão original dos artigos 74° e 77° da Lei unicamente fixar o Tribunal competente e não apreciar problemática
n.° 168/99, de 18.09 (Código das Expropriações); suscitada a outro título.
- Em 01.01.2004, já os artigos 5° e 9° da Lei n.° 13/2002 estavam A única questão a resolver consiste assim em saber se competentes
revogados pelo artigo 1° da Lei n.° 4- A/2003, pelo que tal regime para apreciar a causa são os Tribunais Administrativos como foi decidido
nunca entrou em vigor, uma vez que a Lei n.° 4-A/2003 é posterior à ou se são competentes os Tribunais Judiciais comuns, como defendem
Lei n.° 13/2002 e “lex posterior derrogat priori”; os recorrentes.
44 45

Dentro da organização judiciária os Tribunais Judiciais gozam de Reproduz-se parcialmente o artigo 1°:
competência genérica, tendo os tribunais de outra ordem jurisdicional,
uma competência limitada em razão da matéria que lhe compete apre- Artigo 1.º
ciar. Aqueles constituem a regra e gozam, por isso, de competência não Alterações à Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro
discriminada e assim também residual.
A competência em razão da matéria distribui-se por “categorias de Os artigos 5º, 7° e 9° da Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro, passam
tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhum relação a ter a seguinte redacção:
de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre eles” — Prof Artigo 5.°
Antunes Varela — “Manual de Processo Civil” 2°ed., pág. 207.
Não cabendo a causa na competência de nenhum Tribunal especial, (...)
será para ela competente o Tribunal comum (artigo 66° do C. Processo ………………..
Civil). Artigo 74.°
De entre os tribunais especiais, e no que aqui interessa, compete aos
tribunais de jurisdição administrativa e fiscal o julgamento das acções (...)
que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações 1- ………………..
jurídicas administrativas, ou seja, os litígios originados no âmbito da 2- ………………..
administração pública globalmente considerada, exceptuando-se aqueles 3- ………………..
que o legislador atribua a outra jurisdição (artigo 1° do ETAF, aprovado 4- Se não for notificado de decisão favorável no prazo de 90 dias a
pela Lei n.° 13/2002 de 19 de Fevereiro, alterada pela Lei nº 4-A/2003 contar da data do requerimento, o interessado pode fazer valer o direito
e pela Lei n.° 107-D/2003). de reversão no prazo de um ano, mediante acção administrativa comum
No caso em apreço está em causa o direito de reversão, que se traduz a propor no tribunal administrativo de círculo da situação do prédio ou
no poder conferido ao expropriado de reaver ou readquirir os bens que da sua maior extensão.
foram objecto de expropriação. 5- ……………….
Os bens expropriados que não forem aplicados ao fim cuja utilidade
pública justifique a expropriação ou que dele tenham sido desviados “de- Artigo 77.°
vem reverter ao primitivo proprietário a requerimento deste ou dos her- (...)
deiros” — Prof Marcelo Caetano, “Manual de Direito Administrativo “,
9ª ed., reimpressão, 1980, 2º, pág. 1033. 1- ……………….
Esse direito de reversão e o pedido de adjudicação subsequente susci- a) ……………….
taram (designadamente durante a chamada Reforma Agrária) problemas b) ……………….
vários. c) ……………….
O artigo 77° n.° 1 do Código das Expropriações (aprovado pela Lei d) ……………….
n.° 168/99) dispunha a propósito que “Autorizada a reversão, o inte- e) ……………….
ressado deduz, no prazo de 90 dias a contar da data da notificação da 2- ……………….
autorização perante o Tribunal da Comarca da situação do prédio ou da No artigo 7° são mencionadas alterações que aqui não importa con-
sua maior extensão, o pedido de adjudicação...”. siderar e no artigo 9° estipulou-se que: “A presente lei entra em vigor
A competência, respeitando, aliás, uma longa tradição no que toca ao em 1 de Janeiro de 2004, com excepção do artigo 7°, que entra em vigor
processo de expropriação, era dos Tribunais comuns. no dia seguinte ao da sua publicação.”
A reforma do contencioso administrativo com a aprovação de novos Invocando o argumento puramente formal das linhas ponteadas, os
diplomas, veio introduzir profundas alterações, designadamente e no recorrentes sustentam que o legislador quis a “revogação da norma revo-
que aqui importa apreciar, no processo expropriativo. O mencionado gatória antes da entrada em vigor desta, mantendo os seus dispositivos,
n.° 1 do artigo 77° passou a dispor que o pedido de adjudicação seria mas esvaziando-os de todo o seu conteúdo” o que traduz “uma vontade
deduzido “perante o Tribunal administrativo de círculo da situação do e uma intenção claras de o legislador, recuperar a lei anterior, ou seja,
prédio ou da sua maior extensão...”. DE REPREST1NÁ-LA”. O artigo 1º da Lei n.° 4-A/2003 só pode ter
Alteração que está em sintonia com a “ampliação” do foro admi- querido, dizem, eliminar o conteúdo das normas que fez substituir por
nistrativo, que passou a comportar novo tipo de acções e uma tutela linhas ponteadas.
jurisdicional com maior amplitude de vários interesses legalmente É evidente que não têm os recorrentes qualquer razão. Embora não
protegidos. seja, eventualmente, a melhor técnica legislativa, é vulgar o legislador
A Lei n.° 13/2002 de 19 de Fevereiro, que por força da nova redacção recorrer a linhas ponteadas, não para eliminar, como se defende no
dada ao referido artigo 77°, atribuiu competência aos tribunais adminis- recurso, mas sim para significar que nessa parte o artigo se mantém
trativos, deveria entrar em vigor um ano após a data da sua publicação. inalterado. Se várias vezes se tem deparado com as referidas linhas
Acontece, porém, que a Lei n.° 4-A/2003 de 19 de Fevereiro veio ponteadas, é a primeira vez que se encontra uma interpretação como
introduzir alterações ao legislado. aquela que é feita pelos recorrentes.
46 47

O corpo do artigo 5º da Lei n.° 13/2002 e tudo o mais que constava responsável, por se tratar de um acidente fora de qualquer relação de
desse artigo, com excepção do n.° 4 do artigo 74° mantiveram anteriores trabalho e porque o empregador era a Administração Pública.
redacções. O significado do ponteado é o de que permanece nessa parte Todas essas decisões, juntas por certidão, transitaram em julgado.
aquilo que já estava - Este Tribunal dos Conflitos já se pronunciou em Foi oportunamente emitido parecer pelo Ex.mo Procurador - Geral
sentido próximo no Ac. de 29.11.2005, processo n° 17/05, como de Adjunto, no sentido de a competência caber ao Tribunal comum (ju-
forma idêntica tem decidido o Tribunal da Relação de Évora. risdição cível).
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão Cabe decidir, tendo em conta que, apesar do disposto no art.° 105°
da Relação de Évora, por ser incompetente em razão da matéria o Tri- do Decreto n.° 19.243, de 16/1/31, que obriga o Tribunal dos Conflitos
bunal Judicial da Comarca de Santiago do Cacém, sendo competentes a remeter as partes para a autoridade competente, este Tribunal, face
para a acção os Tribunais Administrativos. ao que dispunha o art.° 17° do Dec. — Lei n.° 23.185, de 30/10/33,
Sem custas. e aos termos dos art.°s 115° e 116° do Cód. Proc. Civil, apenas tem
competência para resolver os conflitos de jurisdição e competência
Lisboa, 2 de Março de 2006. — Fernando Pinto Monteiro (relator) — entre autoridades administrativas e judiciais e não conflitos estritamente
Rui Manuel Pires Ferreira Botelho — Luís António Noronha do Nasci- de competência entre estas últimas, pelo que, se for de concluir que a
mento — Rosendo Dias José — João Luís Marques Bernardo — Adérito competência na hipótese dos autos cabe à jurisdição comum, não pode,
da Conceição Salvador dos Santos. aqui, ser resolvida a questão de saber qual, entre o Tribunal Judicial e
o Tribunal do Trabalho, é o competente: neste Tribunal dos Conflitos
apenas pode ser decidida a questão de saber qual a ordem jurisdicional
competente para processar e decidir o pleito.
Por outro lado, há que ter em conta que, apesar de o Tribunal Judicial
Acórdão de 7 de Março de 2006. ter admitido a incompetência do TAF, aceitando a competência da juris-
dição comum, não deixa de existir um efectivo conflito de jurisdição na
Processo n.º 22/05-70. situação dos autos, na medida em que, analisado o despacho do Ex.mo
Requerente(s): O Ministério Público, no Conflito Negativo de Ju- Juiz do Tribunal do Trabalho, se constata que este atribui competência
risdição, entre o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, o Tribunal ao Tribunal Administrativo para julgamento do pleito.
Judicial de Leiria e o Tribunal de Trabalho de Leiria Como é sabido, a competência material dos Tribunais para a decisão
Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Manuel José da Silva Salazar. do litígio configurado em determinada acção afere-se pelo pedido for-
mulado nessa mesma acção, analisado à luz da respectiva causa de pedir,
Acordam no Tribunal dos Conflitos: a menos que exista lei que especialmente fixe tal competência.
A acção em causa, como se disse, foi proposta pelo Hospital de
O Ex.mo Magistrado do M. P.° junto do Supremo Tribunal Adminis- Santo André, S.A., contra a Direcção Geral dos Serviços Prisionais.
trativo requereu a resolução do conflito negativo de jurisdição suscitado E, como resulta do estatuído nos art.°s 1° e 4° do Dec.-Lei n.° 297/02,
entre o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, o Tribunal Judicial de de 11/12, a inclusão daquele Hospital no Serviço Nacional de Saúde,
Leiria, e o Tribunal do Trabalho de Leiria, que, todos eles, se negaram, que se verificava ao tempo de alguns dos serviços médicos prestados
sucessivamente, competência para conhecer de uma acção proposta no (pelo menos os que tiveram lugar em 2001) por ser então uma pessoa
primeiro pelo Hospital de S.to André, S.A., que por esse meio pedia a colectiva de direito público, foi mantida com a sua transformação em
condenação da Direcção — Geral dos Serviços Prisionais a pagar-lhe sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos.
determinadas quantias pecuniárias relativas à prestação de serviços de Ora, já o Dec.-Lei n.° 147/83, de 5/4, estipulava no seu art.° 1 que
assistência hospitalar a sete funcionários do Estabelecimento Prisional todas as acções para cobrança de dívidas a estabelecimentos resultantes
de Leiria. da prestação de serviços de saúde seguiriam os termos do processo
Invoca aquele distinto magistrado que, por decisão de 25/10/04, o sumaríssimo, com determinadas adaptações, o que, como tal forma
Ex.mo Juiz do TAF se julgou incompetente por entender que o litígio de processo não existia no contencioso administrativo, pressupunha a
em causa respeitava a uma relação estabelecida no âmbito da gestão atribuição de competência à jurisdição comum, como aliás era prática
privada da entidade credora, pelo que os autos foram remetidos ao judiciária corrente.
Tribunal Judicial. Por seu lado, o Dec.-Lei n.° 194/92, de 8/9, que nos termos do seu
Acrescenta que o Ex.mo Juiz deste Tribunal, por decisão de 22/2/05 art.° 1º regulava a cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos
(e não, como por manifesto lapso refere, 22/2/04), se considerou incom- integrados no Serviço Nacional de Saúde, atribuindo nomeadamente
petente por entender que a hipótese dos autos configurava uma relação força executiva às certidões de dívida emanadas daquelas instituições e
de trabalho entre a entidade devedora e os seus funcionários, concluindo serviços e fixando a competência do “Tribunal da comarca” em que se
que o Tribunal competente era o Tribunal do Trabalho. encontrasse sediada a entidade exequente para as correspondentes acções
Mais refere que neste Tribunal, por sua vez, por decisão de 5/5/05, executivas, e que, no seu art.° 13º, revogou aquele Dec.-lei n.° 147/83,
o Ex.mo Juiz respectivo se considerou incompetente materialmente e embora mantendo, como se vê, a competência da jurisdição comum, foi
absolveu o réu da instância por ter entendido que não existia na situa- expressamente revogado pelo art.° 14° do Dec.-Lei n.° 218/99, de 15/6,
ção dos autos um vínculo contratual que ligasse o sinistrado à entidade que é hoje, segundo o seu art.° 1º, o diploma que estabelece o regime de
48 49

cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço interpretação extensiva, por ser manifesto que o legislador disse menos
Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados, mas que do que aquilo que pretendia dizer, sendo consequentemente de interpretar
não refere de forma expressa qual o tribunal materialmente competente o citado Dec.-Lei n.° 218/99 no sentido de consagrar a competência
para o efeito de processar e decidir as questões respectivas. dos Tribunais integrados na jurisdição comum para apreciar os pedidos
Limita-se este diploma, no seu art.° 7°, a determinar a competência de condenação no pagamento de dívidas hospitalares por prestação de
territorial do Tribunal da sede da entidade credora, não incluindo agora cuidados de saúde.
a expressão “Tribunal da comarca”, mas sem que tal omissão implique, Subsiste ainda, porém, a questão de saber se essa competência dos
só por si, que o legislador tenha pretendido introduzir qualquer alteração Tribunais comuns se mantém ou não quando os assistidos pelo estabe-
respeitante à competência, pois a actual expressão pode significar apenas lecimento hospitalar sejam servidores públicos acidentados em serviço,
que considerou desnecessário referir-se a uma competência material questão essa decidida pelo Ex.mo Juiz do Tribunal do Trabalho no
que pretendia manter. sentido negativo.
Com efeito, parece o actual diploma pressupor a manutenção da Ora, é manifesto que o regime da cobrança de dívidas consagrado no
competência material dos Tribunais da jurisdição comum, isto perante citado Dec.-Lei não atende à causa das lesões determinantes dos trata-
a análise do seu próprio preâmbulo, em que o legislador manifesta mentos prestados, salvo (art.°s 9° a 12°) no tocante a dívidas resultantes
claramente a intenção de alterar apenas as regras processuais do regime de acidentes de viação, o que não é o caso. Assim, apenas há que ter em
de cobrança das dívidas hospitalares essencialmente mediante a subs- conta a causa de pedir invocada, integrada somente por aqueles factos a
tituição da acção executiva pela declarativa, pelo facto de entretanto se que o mencionado diploma reconhece a eficácia de determinar a com-
ter constatado que a força executiva conferida às aludidas certidões não petência do Tribunal, e que consistem em não mais do que a prestação
provocara a celeridade e a simplicidade processuais visadas pelo diploma de cuidados de saúde por instituições e serviços integrados no Serviço
anterior na medida em que na generalidade dos casos a existência do Nacional de Saúde, independentemente da qualidade dos assistidos.
crédito reclamado judicialmente e a verdadeira identidade do devedor Quer isto dizer que a referência feita na petição inicial à qualidade dos
eram discutidas em sede de embargos à execução. assistidos enquanto servidores públicos apenas releva para determinação
E parece manifesto que, se o legislador tivesse então em vista que a da legitimidade passiva, pois, se não o fossem, tal legitimidade caberia
alteração das regras processuais abrangesse também alguma alteração a eles próprios ou aos causadores das lesões que tenham originado os
sobre a competência dos Tribunais ou da jurisdição em que o processo tratamentos; e não é essa legitimidade, mas a causa de pedir, que tem
devesse correr, não se compreenderia que naquele preâmbulo não se eficácia na determinação da competência material do Tribunal.
fizesse a mínima alusão a tal nem qualquer síntese de razões explica- O Dec.-Lei n.° 503/99, de 20/11. que aprova o novo regime jurídico
tivas da nova opção. Ou seja, nada referindo a tal respeito apesar das dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da
pormenorizadas explicações preambulares sobre os seus objectivos, Administração Pública, dispõe, porém, no seu art.° 48°, n.° 1, que “o
parece pelo menos lógico interpretar o dito diploma como não tendo interessado pode intentar, no prazo de um ano, nos Tribunais adminis-
visado introduzir qualquer inovação sobre a competência dos Tribunais trativos, acção para reconhecimento do direito ou interesse legalmente
que deveriam proceder à análise e decisão das questões respeitantes às protegido contra os actos ou omissões relativos à aplicação do presente
dívidas hospitalares. diploma, que segue os termos previstos na lei de processo nos Tribu-
Acresce que no mesmo sentido aponta o disposto no art.° 6° do nais administrativos e tem carácter de urgência.” E foi com base neste
mencionado Dec.-Lei n.° 218/99, ao estabelecer a possibilidade de dispositivo e no art.° 6°, n.° 4, do mesmo diploma, que o Tribunal do
as instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde se Trabalho considerou competente o Tribunal Administrativo.
constituírem partes civis em processo penal relativo a facto que tenha Mas não lhe pode ser reconhecida razão, pois esse diploma nada
dado origem à prestação de cuidados de saúde, para dedução de pedido estipula no tocante à questão suscitada no presente conflito.
de pagamento das respectivas despesas, possibilidade essa que aponta de Com efeito, esse Dec.-Lei, que no n.° 4 do seu art.° 6° se limita a
forma praticamente decisiva para a competência da jurisdição comum, prever o modo como “os estabelecimentos da rede oficial de saúde que
que é aquela onde correm os processos penais. Caso contrário, isto é, prestem assistência aos trabalhadores abrangidos” no mesmo diploma
se o legislador pretendesse que a competência coubesse à jurisdição devem cobrar extrajudicialmente as despesas correspondentes junto do
comum quando os devedores fossem accionados em processo criminal serviço ou organismo responsável, o que pretende naquele art.° 48°,
e à jurisdição administrativa quando fossem accionados fora desse n.° 1, é apenas esclarecer a competência para resolução dos litígios
processo, estaria ele a consagrar a competência de duas ordens jurisdi- que surjam internamente nas relações entre a Administração e os seus
cionais diferentes para apreciar questões da mesma natureza, de forma servidores que tenham sofrido acidentes em serviço ou padeçam de
incongruente, pois a distribuição de competência entre jurisdições se doenças profissionais, coisa que nos autos a que o presente conflito se
baseia precisamente na natureza das questões a decidir. refere não acontece.
Assim, e ainda porque o litígio em questão não integra uma relação De todo o exposto resulta a competência da jurisdição comum para o
jurídica entre pessoas de direito público desenvolvida sob a égide do processamento da acção em que foi suscitada a questão do pagamento
direito público, mas antes uma relação jurídica estabelecida no âmbito das dívidas hospitalares em causa e para a decisão da mesma questão,
da gestão privada da entidade credora, pelo que o seu objecto não embora este Tribunal não possa, como se referiu, determinar, dentro
se enquadra na previsão de qualquer das als. do art.° 4° do E.T.A.F., dessa jurisdição comum, se o materialmente competente é o Tribunal
conclui-se que se trata aqui de um caso nítido em que se justifica uma Judicial ou o Tribunal do Trabalho.
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Nestes termos, acorda-se em declarar competente para apreciar e Na vista que então teve dos autos, o Ministério Público emitiu pa-
conhecer da acção em causa a jurisdição comum. recer no sentido de não ser o Supremo Tribunal de Justiça o tribunal
Sem custas. competente, face ao disposto no art. 107° n.° 2 do Código de Processo
Civil, propondo que seja ponderada a remessa dos autos ao tribunal
Lisboa, 7 de Março de 2006. — Manuel José da Silva Salazar (relator) — competente, o Tribunal dos Conflitos.
António Bento São Pedro — José António Carmona da Mota — António Depois de notificadas as partes para dizerem o que se lhes ofere-
Políbio Ferreira Henriques — Fernando Araújo de Barros — Fernanda cesse acerca da questão prévia suscitada pelo Ministério Público, foi
Martins Xavier e Nunes. exarado despacho pelo relator julgando procedente a questão prévia
e, em consequência, declarando incompetente o Supremo Tribunal de
Justiça para conhecer do objecto do agravo, o qual é da competência
do Tribunal dos Conflitos, tendo sido ordenada a remessa dos autos ao
Supremo Tribunal Administrativo, onde o Tribunal dos Conflitos se
Acórdão de 14 de Março de 2006. encontra sediado.
2. Das alegações que apresentou no presente recurso, o recorrente
Processo n.º 18/05-70. extraiu as seguintes conclusões:
Requerente(s): Luís Manuel Rodrigues da Luz Querido e outra, no 1- Embargo de obra nova é procedimento cautelar que tem função
conflito negativo de jurisdição entre a 6ª.Vara Cível de Lisboa e os preventiva quando exista ameaça ou receio de lesão de um direito real
Tribunais Administrativos e Fiscais. ou pessoal de gozo.
Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Arménio de Castro Sottomayor. 2 - O art° 412 n.°l do C. P. Civil, relativo aos embargos de obra nova,
refere expressamente, “obra, trabalho ou serviço novo que ameace causar
Acordam no Tribunal dos Conflitos: prejuízo...”, como é o caso dos autos.
1. Luís Manuel Rodrigues da Luz Querido e Ana Paula Moreira Reino 3 - A Lei prevê, pois, embargos de obra nova com efeito ou função
propuseram nas Varas Cíveis de Lisboa, contra o Município de Lisboa e preventiva.
a Assembleia de Compartes dos Baldios do Bairro Económico do Alto 4 - O Tribunal civil é o Tribunal competente, por a competência, muito
da Ajuda e, na falta da sua constituição, a Junta de Freguesia da Ajuda, embora da acção faça parte uma autarquia local, se aferir em função da
procedimento cautelar de embargo de obra, com função preventiva, natureza do acto que se pretende atacar.
destinado a evitar a demolição pelo Município de Lisboa de todas as 5 - Tal como vem referido no Acórdão do S.T.J., de 24/01/2002, in
C.J. 2002 - 1, pág. 57, a gestão é pública ou privada conforme a entidade
instalações e produções agrícolas, designadamente árvores de fruto exis-
que a realiza, a natureza do acto praticado e os fins tidos em vista. No
tentes nos logradouros de suas casas — habitações de carácter económico caso a natureza do acto praticado é privado - construção de moradias em
— sitas na Rua Orlando Gonçalves, cujas traseiras — logradouros — dão banda com destino ao mercado imobiliário, tal como os fins de carácter
para a Rua das Açucenas no Bairro do Alto da Ajuda, em Lisboa. Alegam económico privado.
que essa intenção foi comunicada a familiares dos requerentes, por um 6 - Além disso, já foram causados prejuízos ao primeiro requerente
guarda municipal fardado, acompanhado por outra pessoa pela ocupação de 20 m2 do logradouro da sua moradia de área de 255
A providência foi averbada à 6ª Vara Cível de Lisboa. m2, temendo-se que, sem qualquer título, autorização ou expropriação
Por despacho de 1 de Abril de 2004, e com fundamento em que “para continuem a destruir a sua propriedade.
além de ser discutível ser esta a providência própria uma vez que não 7 — Portanto, indispensável se torna que no caso o Município de
existem ‘embargos de obra nova com função preventiva’ o que é facto é Lisboa agisse com “jus imperii”, o que não acontece.
que, de acordo com o art. 414° do C.P.C. este tribunal não é o competente 8 - Na verdade, trata-se de obras em terrenos baldios, daí ter-se pro-
para apreciar esta questão dado que se trata de obra de autarquia local e posto procedimento cautelar, também contra a Assembleia de Compartes
referente a baldios”, foi declarado o tribunal incompetente em razão da dos Baldios que é entidade privada.
matéria, sendo liminarmente indeferida a petição inicial. 9 - No caso em questão, trata-se de prevenir que os requerentes - mo-
Após um pedido de esclarecimento, indeferido, foi interposto recurso radores do Bairro Económico do Alto da Ajuda (um na qualidade de
de agravo para o Tribunal da Relação de Lisboa. proprietário já prejudicado e outra utilizadora de longa data de terreno
Por despacho do relator, foram julgadas improcedentes as conclusões baldio) sejam prejudicados, ou de evitar que os baldios usados por outros
dos agravantes e confirmada a decisão recorrida. moradores venham a ser ocupados abusivamente pelo Município.
Houve reclamação para a conferência, que, por acórdão de fls. 59, 10 - Até pelos Acórdãos citados, se verifica que a jurisprudência
indeferiu a reclamação, mantendo a decisão. é unânime em considerar a competência Tribunais comuns que são
Os requerentes interpuseram recurso de agravo para o Supremo Tri- chamados a pronunciar-se sobre tal matéria.
bunal de Justiça, o qual foi admitido, tendo suscitado duas questões: 11- O acórdão recorrido violou o art° 414 do C. P. Civil.
a da previsão legal de embargos de obra nova com efeito ou função 3. O Ministério Público junto do Tribunal dos Conflitos teve vista dos
preventiva e a da competência do tribunal cível. autos, considerando que o recurso não merece provimento, acrescentando
Após alegações do agravado Município de Lisboa, foram os autos que, estando em causa uma obra de demolição da autarquia, investida de
remetidos ao Supremo Tribunal de Justiça. “ius imperii”, o foro materialmente competente é o administrativo.
52 53

Foram colhidos os vistos, havendo que conhecer do recurso. em nome do provo, nos litígios emergentes das relações jurídicas ad-
4. O presente recurso, interposto da decisão da Relação que julgou ministrativas e fiscais”
incompetente em razão da matéria o tribunal comum e competente a E embora os limites do conceito de relação jurídica administrativa
jurisdição administrativa, tem a especialidade de, nos termos do art. 107º sejam controvertidos, são de considerar nele inseridas as relações que se
n.° 2 do Código de Processo Civil, ser decidido pelo Tribunal dos Con- estabelecem entre a Administração e os particulares em que há uma pre-
flitos. Com vista a prevenir um conflito futuro, a lei processual civil valência do interesse público sobre o particular traduzido na atribuição
submete ao tribunal com competência para dirimir os conflitos entre as de poderes de autoridade àquela. (Freitas do Amaral, Curso de Direito
jurisdições comum e administrativa a apreciação do recurso, de forma Administrativo, II, pág. e Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito
a que fique a questão da competência material definitivamente decidida Administrativo, I, pág. 57). O que significa que é da competência da
por decisão transitada em julgado, decisão que tem de ser acatada pelo jurisdição administrativa a apreciação de actos da Administração, quando
tribunal perante quem depois for a acção proposta. Se assim não aconte- se trate de actos de gestão pública, ou seja, quando o Estado ou a pessoa
cesse, “se o recurso fosse interposto para o Supremo Tribunal de Justiça colectiva pública agem munidos do seu jus imperii, no exercício de um
e se este tribunal viesse a confirmar a decisão da Relação no sentido da poder público, no exercício de uma função pública, sob o domínio de
incompetência do tribunal judicial, com o fundamento de que a compe- normas de direito público, diferentemente do que acontece nos actos
tência para conhecer da causa pertencia aos tribunais administrativos, de gestão privada, em que intervindo o Estado ou a pessoa colectiva
a decisão do Supremo não vincularia os tribunais administrativos, por pública numa veste de simples particular, a competência para dirimir o
não dispor de jurisdição sobre aquela ordem de tribunais e, deste modo, litígio se radica no tribunais comuns.
quando a acção viesse a ser proposta nos tribunais administrativos, estes 7. Importa, assim, por interpretação do requerimento inicial de em-
não estariam impedidos de se declararem incompetentes, por entende- bargo de obra nova, ver como os recorrentes conformaram o seu pedido
rem que a competência pertencia aos tribunais judiciais” (ac. STJ de e como caracterizaram os actos do Município de Lisboa, para, por
28-09-2005 — proc. 1966/05). aplicação dos princípios acabados de referir, se poder concluir acerca
5. A competência do tribunal, segundo os ensinamentos de Ridenti, da jurisdição competente.
cuja doutrina foi acolhida por Manuel de Andrade (Noções Elemen- Os requerentes alegam que são legítimos donos e proprietários das
tares de Processo Civil, I, pág. 89), “afere-se pelo quid disputandum moradias n.°s 151 e 149 da Rua Orlando Gonçalves, na freguesia da
(quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid Ajuda, em Lisboa, as quais foram construídas há mais de 60 anos e
decisum)”, o que significa que é pela análise do pedido formulado pelo fazem parte do Bairro das Casas Económicas do Alto da Ajuda; logo
autor que deve ser aferida a competência material do tribunal. Idêntica acrescentando que as moradias dos requerentes, bem como todas as
reflexão era feita por Carnelutti (apud, Alberto dos Reis, Comentário demais situadas do lado sul da Rua Orlando Gonçalves, têm, nas trasei-
ao Código de Processo Civil, I, pág. 110) ao afirmar que a competência ras viradas para a Rua das Açucenas, logradouros onde têm efectuado
em razão da matéria é determinada pelo conteúdo da lide. cultivos de culturas de subsistência e pequenos pomares. Afirmam ainda
A mesma metodologia tem sido seguida pelo Supremo Tribunal que os logradouros são contíguos às suas habitações, não existindo
de Justiça, pelo Supremo Tribunal Administrativo e pelo Tribunal de qualquer linha divisória da Rua das Açucenas, tendo os moradores,
Conflitos que, quando chamados a apreciar o pressuposto processual para fazerem as suas hortas, sempre utilizado essa faixas de terrenos
atinente à competência, têm procedido à análise da estrutura da relação que, para além da parte integrante das suas propriedades, constituem
jurídica material em debate, tal como é apresentada pelo autor na sua terrenos baldios. Aduzem que o Plano Director Municipal de Lisboa
petição, atendendo, em especial, aos termos em que a pretensão é formu- prevê que a Rua das Açucenas venha a ser alargada para construção
lada. (Cfr, por todos, os acs. do STJ de 3-02-1987 in BMJ 364-591, de duma via estruturante a ligar o Alto do Restelo ao Polo Universitário
12-01-1994 in CJ/STJ, II — 1, pág.38, de 19-10-2004 proc. 3001/04 in do Parque Florestal de Monsanto.
ITIJ - Bases jurídico-documentais) e do STA de 13-5-1993, de 28-5-1996 Mais referem que, em 6 de Março de 2004, um guarda municipal
e de 23-10-1997 in Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Jurisprudência do Município de Lisboa, apresentando-se fardado e acompanhado por
Administrativa, pág. 191, 198 e 204). outra pessoa, avisou verbalmente familiares dos requerentes de que o
6. Nos termos do art. 211º n.° 1 da Constituição da República Portu- Município se preparava para demolir todas as instalações e produções
guesa, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e agrícolas, designadamente árvores de fruto existentes nesses logradouros.
criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras Acrescenta o primeiro requerente que, por ocasião do alargamento da
ordens judiciais, enquanto que, conforme estabelece o art. 212° n.° 3, Rua da Açucenas, lhe retiraram cerca de 20 m2 da área do logradouro,
“compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ac- pretendendo agora o Município de Lisboa, com nova “investida” contra
ções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios as “hortas” e quintais, retirar-lhe área superior, causando-lhes, com tal
emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. actuação, irremediáveis prejuízos.
Sendo a competência dos tribunais comuns residual, haverá, pois, que Ora, o modo como, no requerimento inicial - e só a esse nos devemos
verificar primeiramente se a causa cabe na competência dos tribunais ater pelas razões acima expostas - é feita alusão à finalidade perseguida
administrativos. pelo Município de Lisboa — a execução do Plano Director Municipal
O art. 1° n.° 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, — revela que o requerido Município de Lisboa age com ius imperii, no
aprovado pela Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro afirma serem estes exercício dum poder de autoridade que se impõe aos particulares, o que
“os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça leva a concluir pela competência dos tribunais administrativos.
54 55

A incompetência dos tribunais comuns, de resto, decorre também II — No caso de conflito negativo de jurisdição entre dois
da norma do art. 414° do Código de Processo Civil, que estabelece tribunais, o âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal
não serem os embargos de obra nova o meio processual próprio para de Conflitos cinge-se à determinação da ordem juris-
embargar “as obras do Estado, das demais pessoas colectivas públicas dicional competente, não lhe incumbindo ainda definir,
e das entidades concessionárias de obras ou serviços públicos quando, dentro dessa ordem, o tribunal competente «ratione
por o litígio se reportar a uma relação jurídico-administrativa, a defesa materiae».
dos direitos ou interesses lesados se deva efectivar através dos meios III — À luz do disposto no Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de
previstos na lei de processo administrativo contencioso”. Junho, compete à jurisdição comum conhecer das acções
8. Conforme se referiu, o recorrente suscita, no seu recurso, a questão em que as instituições e serviços integrados no serviço
de a providência de embargo de obra nova ser meio processual adequado nacional de saúde intentem obter a condenação dos réus
a evitar um prejuízo futuro duma obra que ainda não se iniciou. no pagamento das quantias devidas pelos cuidados de
Embora o Tribunal dos Conflitos neste recurso se substitua ao Su- saúde por si prestados.
premo Tribunal de Justiça, a sua competência está, todavia, limitada ao IV — Essa competência não é afastada pelo facto de os benefi-
conhecimento e decisão acerca da jurisdição competente. Só assim não ciários dos referidos cuidados serem servidores públicos
é, alargando-se a competência do Tribunal dos Conflitos ao conheci- acidentados em serviço, pois esse pormenor não integra
mento doutras matérias, se se tratar de questões incidentais directamente a «causa petendi» do pleito — a qual é explicativa da
relacionadas com o objecto do processo, conforme se decidiu no ac. de natureza do pedido e, nessa medida, também da compe-
25-10-2005, Proc. 06/04 deste Tribunal, ou no caso de ocorrer questão
tência ou jurisdição adequadas — e meramente constitui
cujo conhecimento se afigure prévio à decisão sobre a competência.
Não se verificando no caso dos autos, nem uma nem a outra das situ- o fundamento da legitimidade passiva do réu Estado.
ações, carece, por conseguinte, o Tribunal dos Conflitos de competência
para se pronunciar sobre a adequação do meio processual usado pelos Processo n.º 21/05-70.
recorrentes para a defesa do seu interesse dos requerentes, que, ao tempo Requerentes: A Magistrada do Ministério Público junto do STA no
em que a providência foi requerida, tinha sido ameaçado de lesão. Conflito Negativo de Jurisdição entre o Tribunal Administrativo e Fiscal
Termos em que, acordam no Tribunal de Conflitos em, negando de Leiria, o Tribunal Judicial de Leiria 3.º Juízo de Competência Cível
provimento ao agravo, julgar o tribunal comum incompetente em razão de Leiria e o Tribunal de Trabalho de Leiria — 2.º Juízo.
da matéria e competente a jurisdição administrativa. Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Madeira dos Santos.
Sem custas.
Acordam no Tribunal de Conflitos:
Lisboa, 14 de Março de 2006. — Arménio Castro Sottomayor (re-
lator) — Alberto Augusto Oliveira — Manuel Joaquim Sousa Pei- O Hospital de Santo-André, S A, intentou no Tribunal Administra-
xoto — António São Pedro — Fernando Azevedo Ramos — João tivo e Fiscal (TAF) de Leiria uma acção «com processo sumaríssimo»
Belchior. contra o Estado Português, pedindo a condenação do réu no pagamento
da importância de 968,17 euros e respectivos juros de mora vencidos e
vincendos, correspondendo aquela quantia à soma do que falta pagar ao
autor pelos «tratamentos médicos» que ele prestou às lesões, resultantes
de acidentes em serviço, sofridas por nove funcionários ou assalariados
Acórdão de 14 de Março de 2006. do Ministério da Educação.
Na sua contestação, o réu, representado pelo MºPº, suscitara a excep-
ção da «incompetência absoluta do tribunal», em virtude de o conheci-
Assunto: mento da causa incumbir aos tribunais comuns.
Decisões de três tribunais. Poderes de cognição do Tribunal Pronunciando-se sobre essa questão prévia, a Mm.ª Juíza do TAF
de Conflitos. Dívidas hospitalares. Servidores do estado de Leiria julgou o tribunal incompetente, em razão da matéria, para
acidentados em serviço. conhecer da referida acção, por tal competência caber aos tribunais
judiciais.
Esta decisão transitou, após o que os autos foram remetidos ao Tri-
Sumário: bunal Judicial da comarca de Leiria.
I — O conflito negativo de jurisdição havido entre um Tribunal Então, o Mm.º Juiz do 3.º Juízo de Competência Cível daquela co-
Administrativo e um Tribunal de Trabalho, em que cada marca, embora admitisse que o conhecimento do pleito incumbia aos
um deles atribui à outra jurisdição a competência para tribunais judiciais, declarou a incompetência absoluta desse tribunal
conhecer um certo pleito, não integra também o Tribunal cível por considerar que a acção deveria ser processada e julgada no
Cível que, tendo recebido os autos do Tribunal Adminis- Tribunal de Trabalho de Leiria.
trativo e aceitando a competência da jurisdição comum, Depois do trânsito desta decisão, os autos foram remetidos «ex offi-
os remetera depois àquele Tribunal de Trabalho. cio» ao mencionado Tribunal de Trabalho.
56 57

Por sua vez, o Mm.º Juiz do Tribunal de Trabalho de Leiria entendeu porventura contra o Tribunal Cível de Leiria, uma outra e diferente
que a competência para o conhecimento da acção pertencia aos tribu- excepção, fundada no recorte da competência material entre tribunais
nais administrativos, razão por que declarou também a incompetência da mesma ordem jurisdicional.
material desse tribunal. Postos os anteriores esclarecimentos, passemos à resolução do con-
E esta decisão transitou igualmente em julgado. flito.
Considerando existir um conflito negativo de jurisdição entre os três Só na ausência de disposição legal expressa, atributiva de competên-
tribunais acima referidos, vem agora o MºPº, ao abrigo do disposto no cia «ex vi legis», é que a competência material dos tribunais – tanto a
art. 117º, n.º 1, do CPC, requerer a resolução dele. que os diferencia dentro da mesma ordem jurisdicional, como a que os
Não há que considerar quaisquer factos distintos das ocorrências distingue segundo jurisdições diversas – se afere pelo pedido formulado
processuais «supra» descritas, pelo que passaremos imediatamente à na acção que esteja em presença, caso, aliás, em que a natureza desse
decisão «de jure». pedido deve ser esclarecida ou iluminada pela causa de pedir de que ele
Todavia, justificam-se dois esclarecimentos prévios. «Ante omnia», dimane. Assim, é prioritário determinar se existe uma qualquer norma
importa consignar que, embora o Tribunal Cível da comarca de Leiria que imediata e irresistivelmente defina qual é a jurisdição ou o tribunal
haja aceitado a competência da jurisdição comum para conhecer da competente para resolver o litígio. E, tendo em conta a indiscutível in-
causa, estamos perante um efectivo conflito de jurisdição, a resolver clusão do hospital autor no denominado serviço nacional de saúde – pois
por este Tribunal de Conflitos. É que o Tribunal de Trabalho, para onde essa inclusão, que era evidente aquando da prestação dos «tratamentos
os autos foram seguidamente remetidos, assumiu o conflito negativo médicos» referidos na acção dos autos em virtude de o hospital ser então
entre ordens jurisdicionais diferentes ao sustentar a competência dos uma pessoa colectiva de direito público, persistiu com a transformação
tribunais administrativos para o julgamento do pleito; e, assim sendo, dele em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos (cfr.
deparamo-nos com duas – e, sublinhe-se, apenas duas – decisões reci- os arts. 1º e 4º do DL n.º 297/2002, de 11/12) – somos imediatamente
procamente opostas e transitadas, provindas de tribunais de jurisdições remetidos para a análise do DL n.º 218/99, de 15/6, já que este diploma,
diversas, em cada uma das quais se declina a competência própria e se como consta do seu art. 1º, veio estabelecer «o regime de cobrança de
assevera a competência decisória da outra jurisdição. dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de
Ainda a título preliminar, e porque se trata de questão que, embora Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados».
metodológica, influi na extensão e na profundidade do discurso a fa- O DL n.º 218/99 revogou e substituiu o DL n.º 194/92, de 8/9 – di-
zer, convém que clarifiquemos desde já um outro ponto, resultante da ploma em que se atribuíra força executiva às certidões de dívida emana-
imagem trilateral do dissídio desenhado nos autos e referente à exacta das das instituições e serviços públicos integrados no serviço nacional de
determinação do âmbito em que são exercitáveis os poderes cognitivos saúde e se determinara que as correspondentes acções executivas seriam
deste Tribunal de Conflitos. Com efeito, importa apurar se, na hipótese de «instauradas no tribunal da comarca» em que se encontrasse sediada
o julgamento do presente conflito redundar na atribuição da competência a entidade exequente (cfr. os arts. 1º e 10º). Portanto, o DL n.º 194/92
aos tribunais comuns, a indagação ainda deverá prosseguir a fim de se excluía qualquer hipótese de os processos daquele tipo correrem nos
esclarecer se tal competência recai no Tribunal Cível ou no Tribunal de tribunais administrativos. Logo no preâmbulo do DL n.º 218/99, o le-
Trabalho. «Primo conspectu», pareceria impor-se esse prosseguimento, gislador anunciou o intuito de, através da «lex nova», alterar «as regras
não só por razões de economia processual e de certeza jurídica, mas processuais do regime de cobrança das dívidas hospitalares», constantes
sobretudo porque o art. 105º do Decreto n.º 19.243, de 16/1/31, que do decreto-lei revogado; mas, como do mesmo preâmbulo eloquente-
continua a ser aplicável ao recurso ora em apreço, obriga o Tribunal de mente flui, essa alteração de regras centrava-se na substituição da acção
Conflitos a remeter «as partes para a autoridade competente» – estando executiva pela declarativa, mudança essa justificada pelo facto de se
esta expressão manifestamente inclinada a uma resolução definitiva da haver entretanto constatado que a força executiva conferida às sobreditas
controvérsia em causa. Contudo, essa primeira aparência esfuma-se ante certidões não trouxera as pretendidas celeridade e simplicidade proces-
o princípio de que uma qualquer alternativa aberta entre tribunais da suais. Ora, se a mencionada «alteração das regras processuais» também
jurisdição comum é um assunto forçosamente estranho ao Tribunal de passasse por uma redefinição dos tribunais e da jurisdição competentes
Conflitos (cfr. os arts. 115º e 116º do CPC). Na verdade, este tribunal para o conhecimento das acções previstas no diploma, seria natural que
resolve conflitos de jurisdição, e não de competência «sensu stricto», o preâmbulo se lhe referisse – pois dificilmente se compreenderia que
motivo por que lhe não incumbe dizer qual é, de entre os tribunais ju- uma modificação com essa amplitude permanecesse silenciada nas
diciais possíveis, o competente «ratione materiae» para o conhecimento longas considerações preambulares que o legislador teceu. Portanto,
de um certo pleito. Nesta conformidade, o «thema decidendum» do o preâmbulo do DL n.º 218/99, apesar de não dispor, «a se», de força
presente recurso cinge-se à determinação da ordem jurisdicional (cfr., de normativa, constitui um primeiro e poderoso indício de que o diploma
novo, o art. 115º, n.º 1, do CPC) a quem cabe processar e julgar a acção deve ser interpretado no sentido de que nada inovou quanto à compe-
dos autos; e, se acaso viermos a concluir que essa tarefa compete aos tência dos tribunais que apreciariam as chamadas dívidas hospitalares
tribunais judiciais, atribuir-se-á a jurisdição ao Tribunal de Trabalho de – os quais continuariam a ser os da jurisdição comum.
Leiria – por ele ser, de entre aqueles tribunais, o único pólo integrante O art. 7º do DL n.º 218/99, cuja epígrafe consiste na «competência
do conflito bipolar com que ora nos confrontamos. Note-se, por último, territorial», estabeleceu que as acções previstas no diploma «devem
que esta hipótese de assim se resolver o conflito nunca prejudicará a ser propostas no tribunal da sede da entidade credora». Desapareceu,
possibilidade de no Tribunal de Trabalho ulteriormente se suscitar, assim, a alusão ao «tribunal da comarca», que constava do art. 10º do
58 59

DL n.º 194/92. Mas esta singela mudança não suporta a ideia extrema seguiriam os termos do processo sumaríssimo, com certas adaptações.
de que o legislador, ao eliminar a referência à «comarca», quis trans- A adopção pelo legislador desta forma de processo, que não existia no
ferir a competência da ordem dos tribunais judiciais para a jurisdição contencioso administrativo, evidenciava algo que de há muito era claro
administrativa. Se a norma assim fosse interpretada, olvidar-se-ia a – que tal matéria estava ligada à jurisdição comum; e essa competência
proporcionalidade que sempre deve existir entre os efeitos e as respecti- foi assumida pelos tribunais judiciais ao longo dos anos, em milhares
vas causas, entrevendo-se numa minudência literal algo que claramente de processos, como a prática judiciária facilmente demonstra. Esse DL
excede o seu típico horizonte de significação. Assim, a circunstância de o n.º 147/83 veio a ser revogado pelo art. 13º do DL n.º 194/92, já acima
aludido art. 7º não referir que o «tribunal» aí em causa é o «da comarca» aludido; mas, e como vimos, este último diploma manteve claramente
deve ser encarada segundo uma justa e equilibrada medida – a de que a competência dos tribunais comuns para conhecerem dos pleitos de-
se trata de um mero «modus dicendi», ainda fiel à linha pretérita de se correntes das dívidas hospitalares, sendo a sua emergência sobretudo
atribuir aos tribunais judiciais a competência para o conhecimento dos justificada pelo propósito de que esses assuntos passassem a ser resol-
pleitos previstos no diploma. vidos em sede executiva.
Por outro lado, o art. 6º do DL n.º 218/99 prevê que as instituições e Portanto, esta breve digressão histórica vem confirmar a ideia de
serviços integrados no serviço nacional de saúde possam «constituir-se que é à jurisdição comum, e não à administrativa, que incumbe, à luz
partes civis em processo penal relativo a facto que tenha dado origem do ora vigente DL n.º 218/99, conhecer dos pedidos de condenação no
à prestação dos cuidados de saúde, para dedução de pedido de paga- pagamento de dívidas hospitalares, em cujo género se inscreve a acção
mento das respectivas despesas». Esta possibilidade de se formular um a que se refere o presente conflito.
pedido cível fundado nas dívidas hospitalares aponta inexoravelmente Todavia, importa ainda demonstrar que a competência dos tribunais
para os tribunais comuns, onde correm os processos penais. Ora, seria comuns para o conhecimento da acção dos autos não se desvanece pela
extravagante e anómalo que a apreciação dos pedidos de condenação circunstância de os beneficiários dos «tratamentos médicos» serem
por essas dívidas pudesse caber a duas ordens jurisdicionais diferentes servidores públicos acidentados em serviço. O regime de cobrança de
– à jurisdição comum, se os devedores fossem demandados naquele dívidas constante do DL n.º 218/99 desinteressa-se da causa das lesões
processo criminal, e à jurisdição administrativa, se o fossem fora dele justificativas dos tratamentos – a não ser no que toca aos acidentes de
– já que a repartição das matérias entre jurisdições diversas funda-se viação, que merecem uma previsão autónoma devida a particularidades
na natureza dos assuntos em presença, e não em aspectos acidentais do seu regime substantivo e aos respectivos prolongamentos procedi-
como sucederia com a existência ou a falta de um processo penal. Deste mentais. E bem se compreende que assim seja, pois as acções previstas
modo, o mencionado art. 6º vem corroborar aquilo que já indicavam no diploma têm como «causa petendi» o facto simples de as entidades
o preâmbulo do diploma e o teor do seu art. 7º – que é à jurisdição autoras haverem prestado cuidados de saúde, aos quais deveria corres-
comum, e não à administrativa, que compete conhecer das acções em ponder o pagamento de um certo «quantum» pecuniário. Por isso, não
que os hospitais da rede pública intentem cobrar as dívidas resultantes admira que a causa de pedir da acção dos autos seja alheia à circuns-
dos cuidados de saúde por si prestados. tância de os beneficiários dos tratamentos hospitalares serem servidores
A anterior conclusão não surpreende. Com efeito, está de há muito públicos acidentados em serviço; pois este pormenor apenas releva para
consagrada no nosso direito esta solução de sediar na jurisdição comum, o efeito de se determinar a legitimidade do réu Estado – que, por via da
ou na sua órbita, a competência para conhecer das referidas matérias, relação funcional e das circunstâncias dos acidentes, vem apresentado
mesmo que por vezes isso só ocorresse em segunda instância. Desenvol- como o único e autêntico responsável pelos omitidos pagamentos. Ora,
vendo uma linha iniciada pela Lei n.º 1981, de 3/4/40 (diploma apenas se o vínculo funcional dos utentes tratados pelo autor somente releva
referente aos Hospitais Civis de Lisboa), o DL n.º 35.108, de 7/11/45, em sede de legitimidade passiva, sendo estranho à causa de pedir da
criou comissões arbitrais com competência para liquidarem e declararem acção, temos que tal vínculo nada decide quanto ao apuramento da
a responsabilidade pelos encargos de assistência, inclusive hospitalar, jurisdição competente – pois é a causa de pedir (enquanto impregnante
que não fossem voluntariamente satisfeitos. E o DL n.º 42.596, de da verdadeira natureza do pedido, como já dissemos), e nunca a legi-
19/10/59, (seguidamente alterado pelo DL n.º 44.450, de 4/7/62, e pelo timidade, que ordinariamente influi na determinação da competência
DL n.º 47.797, de 14/7/67), veio dispor que tais comissões, à excepção material dos tribunais.
das de Lisboa e Porto, funcionariam «nos tribunais judiciais», presidi- Resta assinalar a falência do argumento esgrimido na decisão do
das pelo juiz de direito da respectiva comarca (art. 1º, § 4.º), e que, das Tribunal de Trabalho de Leiria em prol da competência dos tribunais
decisões de todas elas proferidas em processos cujo valor excedesse administrativos. Disse o Mm.º Juiz que tal competência transparecia do
a alçada dos tribunais de comarca, caberia recurso «para o Tribunal DL n.º 503/99, de 30/11, «maxime» dos seus arts. 6º e 48º. Mas esse
da Relação do respectivo distrito judicial». Essas comissões arbitrais diploma – que estabelece «o regime jurídico dos acidentes em serviço
de assistência vieram a ser extintas pela Lei Orgânica dos Tribunais e das doenças profissionais ocorridas ao serviço da Administração
Judiciais («vide» o art. 83º, n.º 2, al. c), da Lei n.º 82/77, de 6/12), ra- Pública» (art. 1º) – nada define quanto à questão colocada no presente
zão por que a cobrança das denominadas dívidas hospitalares tinha de conflito. Na verdade, o seu art. 6º limita-se a prever o modo como «os
passar a fazer-se em moldes algo renovados. Assim, o DL n.º 174/83, estabelecimentos da rede oficial de saúde que prestem assistência aos
de 5/4, para além de revogar expressamente o aludido DL n.º 42.596, trabalhadores abrangidos» pelo diploma hão-de cobrar extrajudicial-
veio dispor, logo no seu art. 1º, que todas as acções para cobrança de mente – e não «in judicio», como agora acontece – as correspondentes
dívidas a estabelecimentos resultantes da prestação de serviços de saúde despesas junto do serviço ou organismo que as deva suportar. Por sua
60 61

vez, o art. 48º dispõe que os servidores públicos vítimas de aciden- emissão de cheque sem provisão, quando não era a
tes de trabalho ou de doenças profissionais podem instaurar, contra a verdadeira arguida e constavam no processos elementos
Administração e seguramente na jurisdição administrativa, acções de identificativos desta, a competência para conhecer da
reconhecimento dos seus direitos. Sendo assim, este preceito apenas se dita acção cabe à jurisdição administrativa.
refere aos litígios surgidos nas relações internas da Administração com
os seus servidores, o que nada tem a ver com o assunto que determinou Conflito n.º 340.
a eclosão deste conflito. Requerente: Maria da Conceição da Costa Teixeira, no Conflito Ne-
Do que ficou exposto resulta que a acção a que os autos respeitam deve gativo de Jurisdição, entre o Tribunal Judicial da Comarca de Santo
correr os seus termos na jurisdição comum, e não na administrativa. Por Tirso e o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
isso, e ao menos imediatamente, competirá ao Tribunal de Trabalho de Relatora: Ex.ma Sr.ª Cons.ª Dr.ª Fernanda Xavier.
Leiria, que está em conflito de jurisdição com o TAF da mesma cidade,
processar aquela causa. Acordam no Tribunal dos Conflitos:
Nestes termos, acordam em declarar a jurisdição comum competente
para conhecer da acção a que os presentes autos se referem. I - RELATÓRIO
Sem custas. MARIA DA CONCEIÇÃO DA COSTA TEIXEIRA, com os sinais
dos autos, vem requerer a resolução do presente conflito negativo de
Lisboa, 14 de Março de 2006. — Jorge Artur Madeira dos Santos competência entre os Mmos Juízes do Tribunal Judicial de Santo Tirso
(relator) — João Manuel Belchior — Fernando de Azevedo Ramos — e do extinto Tribunal Administrativo do Círculo (TAC) do Porto (a que
Alberto Augusto Andrade de Oliveira — Manuel Joaquim de Oliveira sucedeu o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto), que se atribuem
Pinto Hespanhol. mutuamente competência, negando a própria, para conhecer de uma
acção de responsabilidade civil, instaurada pela ora requerente contra
o Estado Português, por danos patrimoniais e não patrimoniais alega-
damente causados pela actuação do Tribunal Judicial de Santo Tirso,
ao notificá-la, através da G.N.R de Amarante, para comparecer naquele
Acórdão de 21 de Março de 2006. Tribunal a fim de ser julgada no processo comum singular nº669/95 do
2º Juízo Criminal, por crime de emissão de cheque sem provisão, sem
Assunto: que a autora, ora requerente, fosse arguida daquele processo, apenas,
por mero acaso, tendo o nome igual ao da verdadeira arguida.
Conflito negativo de competência. Responsabilidade civil Alega que o mandado de notificação não continha as indicações in-
extracontratual. Competência da jurisdição administrativa. dispensáveis para que o respectivo cumprimento pudesse ser efectuado
sem erro, sendo certo que aquele Tribunal dispunha no processo de
Sumário: elementos identificativos da verdadeira arguida, suficientes para evitar
o erro que veio a verificar-se.
I — O critério para a repartição de competência entre tri- O conflito foi instruído com certidões de ambos os despachos, con-
bunais administrativos e tribunais judiciais para conhe- forme se vê de fls.5 a 12, constando dos autos que transitaram em
cimento de acções de responsabilidade civil extracon-
julgado, sendo, posteriormente, requisitada e junta fotocópia da petição
tratual do Estado por factos ocorridos no domínio da
actividade dos tribunais passa pela distinção entre os ca- da referida acção de indemnização (cf. fls.48 e seguintes).
sos em que a causa de pedir é um facto ilícito imputado a O Ex.mo Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido
um juiz no exercício da sua função jurisdicional (na sua da competência do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, acom-
função de julgar), hipótese em que serão competentes os panhando de perto o acórdão deste Tribunal de Conflitos, proferido em
tribunais judiciais, e os casos em que a causa de pedir é 12 de Maio de 1994, no Proc. 266, cujo sumário transcreve.
um facto ilícito imputado a um órgão da administração Colhidos os vistos legais, urge decidir.
judiciária (ou a este serviço globalmente considerado, II - FUNDAMENTAÇÃO
quando não seja individualizável a responsabilidade Estamos perante um conflito entre duas ordens jurisdicionais – a
de um concreto agente dessa administração- falta do jurisdição comum e a jurisdição administrativa, o qual surge face à
serviço), no exercício da actividade estranha à função de pretensão da ora requerente, formulada em acção de responsabilidade
julgar, hipótese em que serão competentes os tribunais civil extracontratual contra o Estado Português, de ser indemnizada por
administrativos. este, por alegados danos patrimoniais e não patrimoniais, que lhe teria
II — Tendo a autora fundado o pedido de indemnização causado a actuação do Tribunal Judicial de Santo Tirso, ao ter emitido,
contra o Estado, em alegados danos provocados pela erradamente, em nome da requerente, mandado de notificação para
actuação negligente dos serviços do Tribunal, ao emi- comparecer, na qualidade de arguida, no julgamento do processo comum
tirem mandado de notificação para a sua comparência, nº669/95, do 2º Juízo Criminal daquele Tribunal, por crime de emissão de
como arguida no julgamento de um processo crime por cheque sem provisão, quando a requerente não era a verdadeira arguida
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e constavam do processo elementos de identificação desta que, segundo Como é sabido, a distribuição da competência entre os tribunais
alega, teriam evitado o erro cometido. comuns e os tribunais administrativos, relativamente às acções de res-
A acção foi inicialmente intentada junto do Tribunal Judicial de Santo ponsabilidade civil contra o Estado assentava, essencialmente, na dis-
Tirso, onde obteve o nº65/97 do 2º Juízo de competência especializada tinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada, sendo,
cível, tendo o Senhor juiz, por despacho de 05.06.1997, julgado proce- por regra, aqueles da competência dos tribunais administrativos e estes
dente a excepção dilatória de incompetência do Tribunal em razão da da competência dos tribunais comuns.
matéria, por considerar competentes os tribunais administrativos, pelo Aliás, o artº51º, nº1, h) do ETAF, o artº815º § 1º, b) do Código Ad-
que absolveu o Réu da instância (cf. certidão junta a fls.3 e segs.). ministrativo e o artº 1º do DL 48 051 de 21 de Novembro de 1967
A requerente veio a intentar nova acção, agora junto do Tribunal apontavam para essa distinção.
Administrativo do Porto, onde obteve o nº168/98, tendo o Senhor Juiz, Nem sempre foi fácil a repartição das referidas competências, exis-
por despacho de 29.06.1998, julgado igualmente procedente a excepção tindo zonas de fronteira, que deram origem a vária doutrina e jurispru-
dilatória de incompetência do Tribunal em razão da matéria, por con- dência, nem sempre convergente, sobre a matéria.
siderar competente a jurisdição comum e absolveu o Réu da instância Contudo, é inegável a constatação de que a doutrina e a jurisprudência
(cf. certidão junta a fls. 6 e segs.). evoluíram ainda na vigência do anterior ETAF, no sentido de um “alar-
O conflito está, pois, delineado, como se vê dos despachos judiciais gamento” da competência da jurisdição administrativa, a partir da sua
que o geraram, entre a jurisdição comum e a jurisdição administra- aferição por referência ao conceito de relação jurídica administrativa,
tiva. imposto pelo citado preceito constitucional, consignado no também
Ora, a competência do Tribunal afere-se face à pretensão formulada citado artº3º do ETAF.
pelo autor na petição inicial, traduzida no binómio pedido/causa de Com efeito, pode considerar-se pacífico, que os tribunais adminis-
pedir, ou seja, face ao «quid disputatum» e não ao «quid decisum» (1) trativos são hoje, sem qualquer dúvida e já eram assim considerados
e fixa-se no momento da propositura da acção (cf. artº8º,nº1 do Estatuto mesmo antes da recente reforma do contencioso administrativo, os
dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo DL 229/84, de tribunais comuns em matéria administrativa, o que significa que são
27.04, com as alterações introduzidas pelo DL 229/96, de 29.11 e artº5º competentes para conhecer de todos os litígios decorrentes de relações
nº1 do mesmo diploma, na redacção actual). jurídicas administrativas, que expressamente não estejam excluídos ou
Por outro lado e como é sabido, são da competência dos tribunais atribuídos por lei a outra jurisdição. (2)
judiciais ou comuns as causas que não sejam atribuídas a outra ordem No que respeita aos pedidos de indemnização contra o Estado, por
actos de órgãos ou agentes da administração judiciária praticados no
jurisdicional (cf. artº66º do CPC e também o artº213, nº1 da CRP/89,
exercício das suas funções e por causa delas, a questão tem sido parti-
artº211º, nº1 da CRP, na redacção actual). cularmente discutida e deu origem a jurisprudência divergente, como se
Portanto, para decidir o presente conflito negativo de competência, dá nota em vários acórdãos deste Tribunal de Conflitos (3).
haverá que apurar, em primeiro lugar, se a causa está atribuída a uma No entanto, pode, hoje, considerar-se pacífico o entendimento de que
outra jurisdição, no caso, à jurisdição administrativa, o que se fará, como estando em causa responsabilidade emergente da função de julgar, a
se disse, face aos termos em que a autora, ora recorrente, configura a competência cabe aos tribunais judiciais, pois os actos e actividades
relação jurídica processual e às disposições legais vigentes à data em próprias dos juízes na sua função de julgar são praticados no exercício
que a acção foi proposta. Se não estiver e por força do citado artº66º do específico da função jurisdicional e não da função administrativa.
CPC, ela caberá na competência dos tribunais judiciais. Todos os outros actos e omissões de juízes, bem como toda a activi-
Vejamos, então, se a competência para conhecer a referida acção de dade e actuação dos restantes magistrados, órgãos e agentes estaduais
indemnização, instaurada pela ora requerente contra o Estado, cabe aos que intervenham na administração da justiça, em termos de relação com
tribunais administrativos: os particulares ou outros órgãos e agentes do Estado, e, portanto, sejam
Tendo as acções intentadas pela ora requerente contra o Estado sido estranhos à específica função de lugar, inscrevem-se nos conceitos de
propostas na vigência do Estatuto dos Tribunais Administrativos e actos e actividades administrativas ou de “gestão pública administra-
Fiscais (ETAF), aprovado pelo DL 129/84, de 27.04, na redacção dada tiva”, da competência da jurisdição administrativa.
pelo DL 229/96, de 29.11, a competência do tribunal terá de ser aferida Com efeito, pode considerar-se firmada a jurisprudência deste Tribu-
face ao referido diploma legal. nal de Conflitos e também do STA, na sequência do já citado acórdão
Dispunha o artº 3º do ETAF, na apontada redacção, que «Incumbe aos do Tribunal de Conflitos de 12.05.1994, Conflito nº266, no sentido
tribunais administrativos e fiscais na administração da justiça, assegu- de que, «o critério para a repartição de competência entre tribunais
rar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir administrativos e tribunais judiciais para conhecimento de acções de
a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e responsabilidade civil extracontratual do Estado por factos ocorridos
privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais». no domínio da actividade dos tribunais passa pela distinção entre os
O legislador ordinário veio, assim, consagrar neste preceito legal, o casos em que a causa de pedir é um facto ilícito imputado a um juiz no
núcleo essencial do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, pos- exercício da sua função jurisdicional (na sua função de julgar), hipótese
teriormente também levado ao texto constitucional pelo artº214º, nº3 em que serão competentes os tribunais judiciais, e os casos em que a
da Constituição da República Portuguesa, versão de 1989 (actualmente causa de pedir é um facto ilícito imputado a um órgão da administração
artº 212, nº3). judiciária (ou a este serviço globalmente considerado, quando não seja
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individualizável - falta de serviço) no exercício de actividade estranha Acórdão de 23 de Março de 2006.


à função de julgar, hipótese em que serão competentes os tribunais
administrativos.» (4)
Passando agora à análise do presente conflito, verificamos que o Assunto:
pedido de indemnização formulado contra o Estado, tal como a autora, Montante da pensão de reforma. Caixa-Geral de Aposenta-
ora recorrente, o configurou na petição de acção apresentada em juízo, ções. Caixa-Geral de Depósitos. Competência dos Tribu-
ou seja, o «quid disputatum», não assenta em prejuízos decorrentes de nais Administrativos. Tribunais de Trabalho. Conflito de
qualquer acto praticado no exercício da função de julgar, mas sim num jurisdição.
alegado erro de identificação da arguida, cometido num mandado de
notificação emitido para comparência daquela no julgamento de um
Sumário:
processo crime por emissão de cheque sem provisão, pois, segundo
alega a autora, foi ela notificada naquela qualidade, quando é outra a A partir da Lei n.° 28/84 (que veio a ser substituída pela
verdadeira arguida, embora com o mesmo nome e encontrava-se devi- Lei n.° 17/2000 e esta pela Lei n.° 32/2002, de 20 de De-
damente identificada no processo. zembro), entendeu-se atribuir relevo decisivo à natureza
Estar-se-á, pois, aparentemente, perante um erro ou lapso dos serviços pública das instituições de segurança social e retirar daí
no preenchimento do mandado de notificação, e, portanto, na execução as devidas consequências quanto à determinação da ordem
do despacho judicial que a ordenou, não se imputando qualquer erro ou dos tribunais chamada a intervir na matéria, em vez de se
lapso a tal despacho, ou seja, a causa de pedir, tal como está configurada considerar a natureza sucedânea da relação de segurança
pela autora, não envolve a apreciação de qualquer «erro in judicando», social face à relação laboral para justificar a confiança
antes a autora imputa aos serviços da administração judiciária, global- do contencioso da segurança social aos tribunais de tra-
mente considerados, uma actuação negligente que a terá prejudicado. balho.
O facto de o mandado de notificação ter, eventualmente, sido assinado
pelo juiz e de nele se mencionar a sanção legal para a não comparência Processo n.°: 24/05-70.
do notificando ao julgamento, como vem referido no despacho do Senhor Requerentes: Diamantino Augusto Marcos, no Conflito Negativo
Juiz do extinto TAC do Porto, mas não foi alegado pela autora, não de Jurisdição, entre o 2º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa e os
traduz, só por si, qualquer acto materialmente jurisdicional. Tribunais Administrativos e Fiscais.
Estamos, pois, no que ao presente caso concerne, no âmbito das Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Simas Santos.
relações jurídicas administrativas que se podem estabelecer entre a 1.1.
administração judiciária e os particulares na administração da justiça Diamantino Augusto Marcos, com os sinais dos autos, intentou acção
e não no âmbito da específica função de julgar, pelo que, acolhendo a declarativa de condenação emergente de contrato individual de trabalho,
jurisprudência supra citada, haverá que dirimir o presente conflito no sob a forma de processo declarativo comum, contra a Caixa Geral de
sentido de considerar competente a jurisdição administrativa. Depósitos, S.A. e a Caixa Geral de Aposentações, pedindo que, na pro-
III- DECISÃO cedência da acção, fossem as RR condenadas na recondução à situação
Termos em que acordam em decidir o presente conflito de jurisdição hipotética actual caso tivessem considerado e encaminhado devidamente
no sentido de declarar competente a jurisdição administrativa, para os montantes descontados para efeitos de pensão de reforma, com o
conhecer e julgar o referido pedido de indemnização formulado pela pagamento do juros legais, a liquidar em execução de sentença.
ora requerente contra o Estado. A Caixa Geral de Depósitos defendeu-se por excepção (incompetência
Sem custas. absoluta do tribunal e da prescrição dos créditos peticionados) e por
Lisboa, 21 de Março de 2006. — Fernanda Martins Xavier e Nunes impugnação, e a Caixa Geral de Aposentações invocou a excepção da
(relatora) — Manuel Joaquim de Oliveira Pinto Hespanhol — Alberto incompetência absoluta do tribunal (em razão da matéria) e alegando
Augusto Andrade de Oliveira — Manuel José da Silva Salazar — António não ser a presente acção meio processual próprio para fazer valer o
Bento São Pedro — Fernando de Azevedo Ramos. direito arrogado.
A 1ª Instância conheceu das excepções da incompetência absoluta
do tribunal — em razão da matéria — e da prescrição dos créditos,
(1) Cf. Prof. Manuel de Andrade, Noções de Processo Civil, 1976, p.91 e, entre outros, o julgando-as improcedentes.
Ac Tribunal de Conflitos de 18.01.1996 Conflito nº 278 e, entre muitos outros, o Ac. STA 1.2.
de 27.02.2003 rec.285/03
(2) cf. neste sentido, Prof. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, Recorreram as Rés para a Relação de Lisboa.
4ª edição, p.110 e segs. e doutrina e jurisprudência ali citada A Caixa Geral de Depósitos, S.A. pedindo que, no provimento ao
(3) cf. por exemplo, os Acs. do Tribunal de Conflitos de 12.05.1994, Conflito 266 e de recurso, se revogasse a decisão recorrida e se julgasse procedente a
23.01.2001, Conflito 294.
(4) cf. entre outros, os citados acórdãos deste Tribunal de Conflitos e ainda, entre outros, os
excepção de incompetência absoluta do Tribunal do Trabalho, con-
Acs. do STA de 13.02.1996, rec. 38.350, de 15.10.98, rec. 36.811, de 12.10.2000, rec. 45.862 sequentemente, absolvendo-a da instância, ou quando assim se não
e de 12.10.2000, rec. 46.313. entendesse, julgando procedente por provada a excepção da prescrição,
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absolvendo-a da parte do pedido que se encontra prescrita, com as 2. Não é pelo facto da RR/recorridas CGA e Caixa geral de Aposen-
legais consequências. tações serem pessoas colectivas de direito público que deixa de poder
A Caixa Geral de Aposentações, pedindo fosse declarada a incompe- ser julgada noutro foro que não o Administrativo;
tência absoluta, em razão da matéria, do tribunal recorrido. 3. A competência afere-se em razão do pedido formulado pelo autor,
Aquele Tribunal Superior, por acórdão de 16.03.2005 (proc. n.° 9.481/ e os presentes autos inserem-se nas als. o) e i) do art. 85° da LOFTJ.
04 — 4ª Secção Social), deu provimento ao recurso e, em consequência, 4. Nenhum reparo merece os despachos proferidos em 1 Instância
julgou o Tribunal do Trabalho incompetente, em razão da matéria, para quanto à competência do tribunal do trabalho e à prescrição do di-
conhecer da acção intentada pelo Autor contra as Rés, absolvendo-as reito.
da instância, ao abrigo do disposto no art. 105°, n.° 1, do Código de Termos em que, com o douto suprimento de Vexas., deve ser con-
Processo Civil. cedido provimento ao presente recurso e revogado o douto acórdão
Teve por assente que: recorrido, fazendo-se assim, Justiça.
1. O Autor foi admitido ao Serviço da Caixa Geral de Depósitos em Alegou a Caixa-Geral de Depósitos, concluindo:
1 de Outubro de 1990, tendo em 30 de Janeiro de 1995 e, ao abrigo 1. O Tribunal do Trabalho é incompetente, em razão da matéria, para
do disposto na Ordem de Serviço n.° 32/94, Cód. PE. 10, de 10 de julgar a presente acção.
Novembro, proferida nos termos e para os efeitos do n.° 2 do art.° 7.° 2. Tendo a pensão de aposentação do Autor sido atribuída por despacho
do Decreto-Lei n. 287/93, de 20 de Agosto, declarado que optava pela do Conselho de Administração da Caixa Geral de Aposentações que
sujeição ao Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho (doc. fixou também o valor dessa pensão, a alteração desse valor, se devida, só
de fls. 77). poderá ser alcançada por força de decisão proferida em sede de recurso
2. O Autor reformou-se em 1 de Novembro de 2001 (doc. de fls. 3). contencioso de anulação a interpor para o Tribunal Administrativo de
3. A pensão de aposentação foi atribuída ao Autor por despacho da Círculo de Lisboa,
Administração da Caixa Geral de Aposentações, de 2001-10-24 (doc. 3. E não através de uma acção instaurada perante os Tribunais do
de fls. 3). Trabalho, como o ora Recorrido pretende com a presente acção, pois
E considerou que ao tempo de propositura da acção já cessara o os Tribunais Administrativos de Círculo são os únicos Tribunais com
contrato de trabalho entre o A. e a l.ª R., pelo que o respectivo pedido competência para a apreciação contenciosa da questão que vem suscitada
tem natureza previdencial e não laboral. (cf. artigo 510 do ETAF, então em vigor).
4. A incompetência em razão da matéria é uma excepção dilatória, que
Lembrou que, de acordo com o art. 85.°, al. i), da Lei n.° 3/99, de 13.01
foi oportunamente deduzida e que obsta ao conhecimento do pedido,
(Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), compete
conduzindo à absolvição da instância (cf. artigo 4930, n°2, do CPC).
aos tribunais de trabalho conhecer, em matéria cível, entre outras, “Das 5. A ora Recorrente deve, pois, ser absolvida da instância, como foi
questões entre instituições de previdência ou de abono de família e requerido na devida oportunidade.
seus beneficiários quando respeitem a direitos, poderes ou obrigações 6. Deste modo, decidindo, como decidiu, o douto acórdão do Tribunal
legais, regulamentares ou estatutárias de umas ou outros, sem prejuízo da Relação deve ser inteiramente mantido.
da competência própria dos tribunais administrativos e fiscais. 7. Apesar de o douto acórdão recorrido ter considerado que o conhe-
E que, a Lei n.° 17/2000, de 8 Agosto (Lei da Segurança Social) cimento da excepção de prescrição ficava prejudicado, face ao conhe-
— que revogou a Lei n.° 28/84, de 14 de Agosto —, no que respeita cimento da excepção de incompetência absoluta em razão da matéria,
a esta questão, preceitua expressamente, no n.° 1 do seu art. 73º que o Recorrente introduziu também esta matéria nas suas alegações, mas,
os interessados a quem seja negada prestação devida (...) ou que por obviamente, a despropósito.
qualquer forma sejam lesados por acto contrário ao previsto nesta lei 8. Contudo, se o douto acórdão recorrido for revogado, deverá então
têm direito de acesso aos tribunais administrativos, nos termos das leis o processo baixar ao Tribunal da Relação de Lisboa, para aí se conhecer
que regulam o respectivo regime contencioso (n.° 1). da excepção de prescrição que constituiu também objecto do recurso
Finalmente louvou-se na doutrina que emana, para a Lei n.º 28/84, do interposto pela ora Recorrida, devendo ter-se em conta as alegações que
acórdão deste Tribunal, de 14.3.96 (Conflito n.º 296), “a partir da Lei aí foram apresentadas sobre tal matéria.
n. 28/84 (que veio a ser substituída pela Lei n.° 17/2000), em vez de se Termos em que deve negar-se provimento ao recurso, mantendo-se
considerar determinante a natureza sucedânea da relação de segurança inteiramente o douto acórdão recorrido.
social face à relação laboral para justificar a confiança do contencioso A revogar-se o douto acórdão recorrido, o que só por mera hipótese
da segurança social aos tribunais de trabalho, entendeu-se atribuir re- se coloca, deverá então ordenar-se a remessa do processo ao Tribunal
levo decisivo à natureza pública das instituições de segurança social e da Relação de Lisboa para aí se conhecer da excepção de prescrição
retirar daí as devidas consequências quanto à determinação da ordem deduzida pela ora Recorrida.
dos tribunais chamada a intervir na matéria” E a Caixa Geral de Aposentações, concluiu igualmente, nas suas
1.3. alegações:
Inconformado, recorreu o Autor para o Supremo Tribunal de Justiça, 1. O Tribunal do Trabalho é incompetente, em razão da matéria, para
concluindo nas suas alegações: conhecer da presente acção, tratando-se de uma incompetência absoluta
1. O tribunal do trabalho é competente em razão da matéria; (artigo 101° do CPC).
68 69

2. Não há nem nunca houve qualquer relação de trabalho entre o A. - Passagem da competência, em 1976 (DL n.° 511/76, de 3 de Julho),
e a ora R., sendo a Caixa Geral de Aposentações uma pessoa colec- em matéria contravencional e para execução (cobrança coerciva) das
tiva totalmente distinta da Caixa Geral de Depósitos, S.A., conforme contribuições para os tribunais fiscais, onde ainda se mantém;
resulta dos Decretos-Lei n°s 277/93, de 10 de Agosto, e 287/93, de 20 - Entrada em vigor, em 1978, da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais
de Agosto. (Lei n.° 82/77, de 6 de Dezembro), com a integração dos tribunais do
3. A Caixa Geral de Aposentações é uma pessoa colectiva de direito trabalho na ordem dos tribunais judiciais, passando das suas decisões
público (nº 1 do artigo lº do Decreto-Lei n° 277/93, de 10 de Agosto). a recorrer-se para os tribunais de relação e destes para o Supremo Tri-
4. A relação jurídica existente entre o A. e a Ré Caixa Geral de Apo- bunal de Justiça;
sentações é uma relação jurídica administrativa. - Julgamento dos litígios entre as instituições de segurança social e
5. A pretensão do A na presente Acção implica a apreciação da lega- os contribuintes, em 1980 (DL n.° 348/80, de 3 de Setembro), nos tri-
lidade de um acto administrativo proferido por uma entidade pública bunais fiscais, ficando a competência dos tribunais do trabalho restrita
dotada de poderes de autoridade. ao julgamento dos litígios entre as instituições e os beneficiários (com
6. Resulta, pois, claro que o foro competente para conhecer da matéria excepção da parte contravencional, que desde 1976 já competia aos
que se discute na presente acção é o administrativo. tribunais fiscais)
7. Nos termos do artigo 51°, n°1, alínea b), do Estatuto dos Tribunais — Generalização, entre 1981 e 1989, da aplicação do ilícito de mera
Administrativos e Fiscais em vigor à data da interposição da presente ordenação social no domínio da segurança social, competindo aos tribu-
acção (o aprovado pelo Decreto-Lei n° 129/84, de 27 de Abril), a com- nais judiciais (a partir de 1987, aos tribunais do trabalho) o julgamento
petência para conhecer das acções e recursos de actos administrativos das impugnações das decisões aplicativas de coimas.
dos órgãos de serviços públicos dotados de personalidade jurídica e - Reconhecimento, em 1984 com a Lei da Segurança Social (Lei
autonomia administrativa é dos Tribunais Administrativos de Círculo. n.º 28/84, de 14 de Agosto), dos direitos dos beneficiários a quem te-
8. O mesmo decorre dos artigos 1° e 4° do ETAF vigente desde 1 nha sido negada uma prestação devida ou a sua inscrição passa para os
de Janeiro de 2004, ou seja, o aprovado pela Lei n° 12/2003, de 19 de tribunais administrativos. Como se escreveu naquele acórdão do Tri-
Fevereiro. bunal dos Conflitos “a partir da Lei n.° 28/84, em vez de se considerar
9. Também o artigo 103° do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo determinante a natureza sucedânea da relação de segurança social face
Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro, na redacção introduzida pelo à relação laboral para justificar a confiança do contencioso da segurança
Decreto-Lei n° 214/83, de 25 de Maio, estabelece que o meio próprio social aos tribunais de trabalho, entendeu-se atribuir relevo decisivo à
natureza pública das instituições de segurança social e retirar daí as
para a impugnação das resoluções da Caixa Geral de Aposentações é o
devidas consequências quanto à determinação da ordem dos tribunais
recurso contencioso administrativo. chamada a intervir na matéria” (cfr., também, neste sentido, o Acórdão
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 28.09.2005 (proc. do STJ de 13-11-02, disponível em www.stj.pt)
1966/05, 4.ª Secção), decidiu não tomar conhecimento do recurso e E, na sequência da Lei n.° 28/84, ali exaustivamente analisada, veio
ordenar e remessa dos autos a este Tribunal de Conflitos, pois destinando- a Lei n.° 32/2002, de 20.12.2002 (que veio a revogar a Lei n.° 17/2000,
-se o mesmo a determinar qual é o tribunal competente para julgar a que por sua vez foi substituir a Lei n.° 28/84), definir “as bases gerais
causa (na decisão recorrida entendeu-se que a competência para co- em que assenta o sistema de segurança social, bem como as atribuições
nhecer do litígio inter partes pertencia aos tribunais administrativos e prosseguidas pelas instituições de segurança social e a articulação com
não ao tribunal do trabalho), devia ter sido interposto para o Tribunal entidades particulares de fins análogos” (art. 1°) e prescrever (art. 5°)
de Conflitos, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 107.° do CPC, que “o sistema de segurança social abrange o sistema público de se-
não tendo o Supremo Tribunal de Justiça poderes para decidir qual é a gurança social, o sistema de acção social e o sistema complementar
jurisdição competente para apreciar o litígio que as partes pretendem (n° 1), compreendendo o sistema público o subsistema previdencial, o
ver judicialmente resolvido. subsistema de solidariedade e o subsistema de protecção familiar (n.° 2)
Recebidos os autos neste Tribunal de Conflitos, o Ministério Público e sendo o sistema de acção social desenvolvido por instituições públicas,
pronunciou-se pelo improvimento do recurso: designadamente pelas autarquias e por instituições particulares sem fins
Colhidos os vistos dos Ex.mos Juízes Adjuntos, cumpre decidir. lucrativos (n.° 3), competindo ao Estado garantir a administração do
2.1. sistema público de segurança social e do sistema de acção social, bem
Como se refere no acórdão de 14.3.96 deste Tribunal (proc. n.° 296), como assegurar uma adequada e eficaz regulação, supervisão prudencial
que se acompanhará de perto, na evolução histórica da competência e fiscalização do sistema complementar (art. 24.°) e compreendendo
jurisdicional em matéria de segurança social, podem distinguir-se as a estrutura orgânica do sistema serviços integrados na administração
seguintes fases: directa do Estado e instituições de segurança social que são pessoas
- Tribunais arbitrais, até 1933; colectivas de direito público, integradas na administração indirecta do
- Competência geral dos tribunais do trabalho como tribunais espe- Estado (n.° 1 do art. 115.°).
ciais, de 1933 a 1976, com recurso para a 3ª Secção do Supremo Tribunal Com efeito, o Estado exerce poderes de fiscalização e inspecção sobre
Administrativo (excepto quanto ao crime de abuso de confiança por as instituições particulares de solidariedade social e outras de reconheci-
desvio dos descontos efectuados, que sempre foi da competência dos dos interesse público, sem carácter lucrativo, que prossigam objectivos
tribunais judiciais); de natureza social, por forma a garantir o efectivo cumprimento dos seus
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objectivos no respeito pela lei, bem como a defesa dos interesses dos 3.ª Para apreciar os recursos dos actos administrativos daquelas ins-
beneficiários da sua acção e ainda aferir da prossecução efectiva dos tituições, como os de indeferimento de pedido de prestações, são com-
acordos e protocolos livremente celebrados (art. 89.º). petentes os tribunais administrativos de círculo;
O princípio da “garantia judiciária” (art. 22.°), que se conta entre os 4.ª A alínea i) do artigo 64.° da Lei n.° 38/87, de 23 de Dezembro,
princípios do sistema de segurança social, assegura aos interessados o confere aos tribunais do trabalho uma competência residual para co-
acesso aos tribunais, em tempo útil, para fazer valer, o seu direito às nhecer das questões de natureza cível entre as instituições de segurança
prestações. e seus beneficiários, na medida em que não sejam da competência dos
Os interessados na concessão de prestações do sistema podem apresen- tribunais administrativos e fiscais.
tar, reclamações ou queixas sempre que se considerem lesados nos seus Assim, a partir da Lei n.° 28/84, em vez de se considerar deter-
direitos, dirigidas à instituição a quem compete conceder as prestações, minante a natureza sucedânea da relação de segurança social face à
sem prejuízo do direito de recurso e acção contenciosa (art. 77º). relação laboral para justificar a confiança do contencioso da segurança
Podendo, todo o interessado a quem seja negada uma prestação devida, social aos tribunais do trabalho, entendeu-se atribuir relevo decisivo
a sua inscrição no regime geral ou que, por qualquer forma, sejam lesa- à natureza pública das instituições de segurança social e retirar daí as
dos por acto contrário ao previsto na lei de bases, tem direito de acesso devidas consequências quanto à determinação da ordem dos tribunais
aos tribunais administrativos a fim de obter o reconhecimento dos seus chamada a intervir na matéria.
direitos, nos termos das leis que regulam o respectivo regime contencioso No presente caso, está em causa uma prestação devida a um bene-
(art. 78.º); contando-se entre as garantias da legalidade declaração da ficiário pela Caixa Geral de Aposentações (pessoa colectiva de direito
nulidade (art. 79°), a revogabilidade, nos termos e nos prazos previstos público), sendo de qualificar como relações juridico-administrativas
na lei (art. 80°, n.° 1), salvo quando se trate de prestações continuadas, as que se estabelecem entre a Caixa-Geral de Aposentações, designa-
as quais podem, ultrapassado o prazo da lei geral, ser revogados com damente, no que ao presente caso concerne, quanto às prestações da
eficácia para o futuro (art. 80°, n.° 2). pensão de reforma (cfr. quanto às prestações de desemprego e os centros
Entendeu-se, assim, manter o relevo decisivo atribuído à natureza regionais de segurança social, o Ac. deste Tribunal de Conflitos, de
pública das instituições de segurança social e retirar daí as devidas 12.10.95, proc. n.° 289).
consequências quanto à determinação da ordem dos tribunais chamada Aceitando-se que o art. 212.°, n.° 3 da Constituição, ao atribuir aos
a intervir na matéria. E manteve-se a opção pelo ilícito de mera or- tribunais administrativos e fiscais competência para o julgamento das
denação social, complementada com o recurso aos ilícitos criminais, acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os li-
para sancionar a falta de cumprimento das obrigações legais relativas tígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, não
à inscrição nos regimes de segurança social, bem como à obtenção consagra uma reserva material absoluta de jurisdição atribuída aos
indevida de prestações (artigo 81.°). tribunais administrativos — os tribunais administrativos só poderão
Daí que se mantivesse o art. 85.°, i), da Lei n.° 3/99, de 13.01 (Lei julgar questões de direito administrativo, e só eles poderão julgar tais
de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), nos termos questões (cfr. Neste sentido os Acs deste Tribunal dos Conflitos de
do qual compete aos tribunais de trabalho conhecer, em matéria cível, 12.5.94, processo n.° 266, e de 14.3.96, processo n.° 296 e os Acs do
entre outras, “Das questões entre instituições de previdência ou de abono Tribunal Constitucional, n.°s 371/94 e 372/94, de 11.5.94, DR IIS de
de família e seus beneficiários quando respeitem a direitos, poderes ou 3.9.94 e 7.9.94, n.° 417/94, de 18.5.94, n.°s 508/94 e 509/94, de 14.7.94,
obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de umas ou outros, DRIIS, n°5 286 e 287, de 13 e 14.12.94, n.° 579/94, de 26.10.94, e n.°s
sem prejuízo da competência própria dos tribunais administrativos e 610/94, 629/94 e 630/94, de 22.11.94.)
fiscais, na sequência do disposto no art. 64°, al. i), da Lei Orgânica dos Decisiva é, neste domínio, a interpretação da norma do art. 78.° da
Tribunais Judiciais de 1987 (Lei n.° 38/87, de 23 de Dezembro) (cfr. Lei n.° 32/2002 em que se dispõe que pode todo o interessado a quem
na doutrina, Leite Ferreira, Código de Processo do Trabalho Anotado, seja negada a uma prestação devida, a sua inscrição no regime geral ou
Coimbra, 1989, pág. 68 e Soveral Martins, A Organização dos Tribunais que, por qualquer forma, sejam lesados por acto contrário ao previsto na
Judiciais Portugueses, 1 volume, Coimbra, 1990, págs. 226 e 227). lei de bases, aceder aos tribunais a fim de obter o reconhecimento dos
No domínio da Lei n.° 28/84, concluíra o Conselho Consultivo da seus direitos, nos termos das leis que regulam o respectivo regime con-
Procuradoria-Geral da República (parecer n.° 63/94, de 10.5.95, DR, tencioso, na execução da garantia judiciária: assegurar aos interessados
IIS de 18.8.95, pág. 9849), atingiu as seguintes conclusões: o acesso aos tribunais em tempo útil, para fazer valer o seu direito às
“1.ª Os tribunais administrativos de círculo são os competentes, nos prestações (art. 22.°), e que abrange não só os casos em que é negada,
termos do artigo 51°, n.° 1, alínea b), do Estatuto dos Tribunais Admi- em termos absolutos, uma prestação de segurança social, mas também as
nistrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 129/84, de 27 de situações em que a divergência respeita tão-só ao montante da prestação
Abril, para conhecer dos recursos dos actos administrativos das pessoas (cfr., neste sentido o Ac. deste Tribunal de 14.3.96, proc. n.° 296).
colectivas públicas; Na verdade, estende aquele normativo a garantia judiciária não só
2.ª Os centros regionais de segurança social, o Centro Nacional de à negação da prestação devida, mas também à lesão, por qualquer
Pensões, as instituições de previdência criadas anteriormente à entrada forma, dos seus direitos por acto contrário ao previsto na lei de bases,
em vigor do Decreto-Lei n.° 549/77, de 31 de Dezembro, e a Caixa o que é reafirmado pela norma do art. 77.°, ao referir as reclamações
Nacional de Seguros de Doenças Profissionais são pessoas colectivas ou queixas que os interessados na concessão de prestações do sistema
públicas; podem apresentar, sempre que se considerem lesados nos seus direitos,
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dirigidas à instituição a quem conceder as prestações, sem prejuízo do actividade essa que se insere nas suas atribuições como
direito de recurso e acção contenciosa. pessoa colectiva de direito público e é desenvolvida ao
O que se compreende, pois a razão da transferência da competência abrigo de normas de direito público.
nesta matéria dos tribunais do trabalho para os tribunais administrativos: II — Os actos referidos são de qual ficar como actos de gestão
tratar-se de relações reguladas pelo direito administrativo, em que uma pública.
das partes é uma pessoa colectiva de direito público — vale para as duas
situações (a da negação total e a da negação parcial da prestação que o Processo nº. 8/03-70.
beneficiário entende ser-lhe devida). Requerentes: Abel Guimarães Martins e outros, no Conflito Nega-
Entendimento que não é tolhido, como vimos, pelo teor literal dos tivo de Jurisdição, entre o Tribunal Judicial de Felgueiras e o TAC do
preceitos em causa, sendo certo que no conceito de negação da prestação Porto.
devida cabe tanto a negação total como a negação parcial e, quanto a Relator: Ex.mo Cons. Dr. Jorge de Sousa
esta, quer a divergência se centre no montante da prestação quer no
período de tempo por que é devida. Acordam no Tribunal dos Conflitos:
Para além da sua incompatibilidade com a lógica da atribuição de 1 – ABEL GUIMARÃES MARTINS e esposa MARIA EMÍLIA
competência nesta matéria aos tribunais administrativos e das apontadas PINTO DE CARVALHO E SOUSA interpuseram no Tribunal Judicial da
dificuldades de aplicação prática, o critério seguido na decisão da 1.ª Comarca de Felgueiras a presente acção declarativa pedindo a condena-
Instância violaria, pelo menos em parte, o princípio da especialização ção de ICOR – INSTITUTO PARA A CONSTRUÇÃO RODOVIÁRIA
e, com este, o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos (que foi integrado, por fusão, no IEP – INSTITUTO DAS ESTRADAS
judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do direito, DE PORTUGAL, nos termos do art. 1.º do Decreto-Lei n.º 227/2002,
de acordo com a natureza da matéria das causas. de 30 de Outubro) no pagamento de uma indemnização por danos patri-
Conclui-se, assim, que competentes para decidir do litígio em causa moniais (além de juros de mora, custas e encargos judiciais) derivados
nos presentes autos são os tribunais da jurisdição administrativa; no de estragos num prédio de que são proprietários,
mesmo sentido, em casos similares, já decidiram os acórdãos deste Os Autores alegam que os danos que descrevem foram provocados
Tribunal dos Conflitos, de 12.10.95, proc. n.° 289, e de 11.1.96, proc. pelos trabalhos de construção de uma estrada efectuados junto do referido
n.° 291 e de 14.3.96, proc. n.° 296. prédio, implementados pelo Réu.
3. O Tribunal Judicial da Comarca de Felgueiras declarou-se material-
Em face do exposto, negam provimento ao presente recurso, con- mente incompetente para conhecer da presente acção e absolveu o réu
firmam o acórdão recorrido e declaram competente, para conhecer da da instância, por entender, em suma, que os Autores pretendem efectivar
matéria a que os autos se reportam, a jurisdição administrativa. responsabilidade civil extracontratual por actos de gestão pública, en-
Sem custas. tendendo que são competentes os tribunais administrativos (fls. 67-70).
Lisboa, 23 de Março de 2006. — Manuel de Simas Santos (relator) — Os Autores interpuseram recurso desta decisão para o Tribunal da
Fernando Manuel Azevedo Moreira — Alberto de Jesus Sobrinho — Maria Relação de Guimarães, que lhe negou provimento e confirmou a decisão
Angelina Domingues — António Ferreira Girão — Rosendo Dias José. recorrida (fls. 103-105).
Os Autores interpuseram recurso do acórdão do Tribunal da Relação
para o Supremo Tribunal de Justiça que veio a determinar, por despacho,
a remessa dos autos ao Tribunal de Conflitos, por entender ser este o Tri-
bunal a quem compete conhecer dele, em face do disposto no art. 107.º,
n.º 2, do CPC.
Acórdão de 4 de Abril de 2006. O Réu reclamou para a conferência, discordando da decisão de re-
messa do processo, mas ela foi confirmada por acórdão do Supremo
Assunto: Tribunal de Justiça de 6-3-2003 (fls. 177-178), que transitou em julgado
(certidão a fls. 182), pelo que tem de considerar-se assente a solução de
Responsabilidade civil extracontratual. Acto de gestão pú- tal questão (art. 672.º do CPC).
blica. Competência dos Tribunais Administrativos. Cons- Os Recorrentes apresentaram alegação com as seguintes conclu-
trução de estrada. Instituto para a Construção Rodoviária sões:
(ICOR). 1 – O objecto do presente recurso tem por base a apreciação realizada
oficiosamente da “Excepção de Incompetência Material” por parte do
Sumário: Tribunal de 1.ª Instância.
2 - Com efeito, o Tribunal a quo entendeu que, no caso sub judice, era
I — São competentes os tribunais administrativos para o materialmente incompetente para o conhecimento da causa o Tribunal
conhecimento de acção em que é pedida indemnização Judicial de 1.ª Instância, transferindo-se no seu entendimento essa com-
ao Instituto para a Construção Rodoviária (ICOR), petência para o Tribunal Administrativo, porquanto a presente acção teria
por actos praticados na construção de uma estrada, como objecto a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos
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resultantes da verificação de actos danosos da propriedade e direitos de execução já não se afigura assim – Cfr. o AC. Tribunal de Conflitos de
terceiros na prática de um acto de gestão pública, por parte da Agravada 5/11/81. BMJ, pág. 195.
e como realização de uma função pública de pessoa colectiva. 13 - Pode-se afirmar, aliás, na sequência de vários arestos e do dito
3 - Ora tal decisão, salvo o devido respeito e melhor opinião, é injusta pelos Profs. Osvaldo Gomes e Alves Correia que uma coisa é proceder
e não conforme ao direito tendo em atenção toda a factualidade existente à abertura de uma estrada expropriando os terrenos que são mister à sua
porquanto, e sem qualquer espécie de rebuço, é da responsabilidade da implantação e realizando por administração directa ou por empreitada
Agravante como dona da obra o manter, preservar e diligenciar pelo a obra, coisa bem diferente é causar danos em propriedade alheia sem
bom estado de todas as construções e edificações circundantes ao em- autorização dos donos ou prévia expropriação – Cfr. AC. RC de 2/7/96,
preendimento por si efectuado. CJ, Tomo IV, Pág. 25; AC. RP de 30/4/02, Proc. n.º 517/02 – 2.ª Secção;
4 - Não se consumindo na verificação da ilegalidade da conduta o AC. RP de 9/5/02, Proc. nº. 628/02 – 3.ª Secção; AC. RG de 19/6/02,
requisito da ilicitude no domínio da responsabilidade de entes públi- Proc. n.º 66/02-2 – 2.ª Secção.
cos, podendo ainda compreender a inobservância de regras técnicas ou 14 - Ademais, mesmo que se entendesse que devido à situação de
cânones de prudência comum. estarmos perante um acto de gestão pública serem competentes na sua
5 - A Agravada apesar de se constituir como uma Pessoa Colectiva do veste de Tribunal Especial o Tribunal Administrativo para apreciar o
Direito Público não significa que não esteja sujeita ao regime do direito presente dissídio o simples facto da conduta em que incorreu in casu a
privado respondendo civilmente perante ofensas de direitos de terceiros Agravante ter na sua génese a omissão de um dever de cuidado e vigi-
designadamente por actos de gestão privada na realização dos fins de lância a que a aquela se encontrava adstrita, originou a sua colocação
interesse público a elas cometidos. num plano de paridade e igualdade de tratamento com o particular e o
6 - Assim de acordo com o disposto no artigo 34.º, nº. 1, alínea f) cidadão, adquirindo esta sua redita omissão a natureza de um acto de
do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais estão excluídos da gestão privada.
jurisdição administrativa os recursos e acções que tenham por objecto 15 - Para que então se possa assim evitar que do alto do seu “ias
questões de direito privado ainda que qualquer das partes seja pessoa imperium”, o ente público não se sinta constantemente tentado por via
colectiva de direito público sendo por isso da competência dos Tribunais da sua superior posição a “desleixar-se” nos cuidados e deveres a que
Judiciais a competência residual de tais acções. se encontra vinculado, tendente à prossecução dos interesses públicos
7 - Do disposto no artigo 212.º, n.º 3 da nossa Lei Fundamental porque que terá de realizar.
compete aos Tribunais Administrativos o julgamento de acções, que 16 - Como aliás é o entendimento em sentido análogo da nossa juris-
tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas prudência – vide Ac. RP. 95.07.11, BM J, 449, pág. 445.
administrativas resultou esvaziado muito do seu conteúdo o conceito 17 - Assim sendo como é, face ao anteriormente expendido, com
tradicional de acto de gestão pública. o devido respeito, é competente para apreciar a questão em mérito o
8 – No direito hodierno é muito mais importante conhecer o conceito douto Tribunal Judicial de 1.ª Instância, tal qual como foi configurado
de relação jurídica administrativa só relevando para a justiça publicista pelos Agravantes ab initio na sua Petição Inicial por via designadamente
as relações jurídicas administrativas públicas, as reguladas por normas do teor dos artigos 18.º, n.º 1 da Lei de Organização e Funcionamento
de direito administrativo aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, dos Tribunais Judiciais, e 66.º, 67.º e 74.º, n.º 2 do Código de Processo
actue na veste de ius imperii no sentido da realização do interesse público Civil.
legalmente definido. NESTES TERMOS,
9 - Nem todos os actos da ora Agravada são de gestão pública como Deve revogar-se a decisão recorrida e em face disso julgar-se com-
nem todos os actos que integram a gestão pública haverão de representar petente quanto à matéria o Tribunal Judicial de 1.ª Instância.
todos o exercício imediato do ias imperii ou reflectirão directamente o COMO É DE INTEIRA JUSTIÇA
poder de soberania do próprio Estado e das demais pessoa colectivas. O Recorrido contra-alegou, concluindo da seguinte forma:
10 - Os actos praticados peia Agravada consubstanciam-se em actos a) Como configurados os factos pelos Autores, na Petição Inicial,
violadores do direito de propriedade e são geradores da obrigação de estamos perante um litígio emergente de um acto que se compreende
indemnizar sendo que não se integram em qualquer relação jurídica na realização de uma função pública, no exercício de um poder público,
administrativa regulada pelo direito público. visando a prossecução de um interesse público.
11 - Não podendo nem devendo considerar-se como correcto face ao b) A construção da “Variante à E.N. 101 em Felgueiras entre a E.M.562
anteriormente exponenciado, com o devido respeito, o entendimento do E.M. 564” adjudicada ao consórcio Córsan-Corviam, S.A./Construções
Tribunal a quo no seu douto Acórdão quando afirma o seguinte: Pina do Vale S.A. insere-se no âmbito das atribuições do ICOR, artigo 4º
“Resultando, assim, o pedido de indemnização formulado pelos Au- dos Estatutos do Instituto, publicados em anexo ao D.L. 237/99 de 25 de
tores de danos para eles resultantes de acto de gestão pública, bem se Junho de 1999, com vista à prossecução dos seus fins, pelo que os actos
decidiu ao julgar-se absolutamente incompetente o Tribunal Comum e eventuais omissões alegadamente praticados ou ocorridos no âmbito
para o conhecimento da questão...”. dessas atribuições são necessariamente actos de gestão pública.
12 - Até porque se por um lado a deliberação da realização da obra, a c) Por determinação do n.º 3 do artigo 214º da Constituição da Re-
aprovação do respectivo projecto e a sua concretização devem qualificar- pública Portuguesa, do D.L. N.º48051, de 21 de Novembro de 1967, do
-se como actos de gestão pública no que concerne à execução prática da artigo 3º e al. h) do n.º l do artigo 51º do Estatuto dos Tribunais Admi-
estrada, mormente os eventuais danos para terceiros decorrentes dessa nistrativos e Fiscais e n.º1 do artigo 6º do D.L. Nº 237/99 de 25 de Junho
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é da competência dos tribunais administrativos de círculo conhecer das No caso em apreço, os Autores formulam pedido de indemnização por
acções sobre responsabilidade do ICOR ou dos seus órgãos de gestão, danos causados pelos trabalhos de construção de um estrada denominada
por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública. “Variante da E.N. 101 (Margaride/Felgueiras)” imputando ao Réu, na
Nestes termos, e nos mais de Direito, que serão por Vossas Excelên- qualidade de dono da obra, a responsabilidade por estragos ocorridos
cias doutamente supridos, deve manter-se a decisão recorrida com as no seu prédio, sito junto a essa estrada, provocados por actos praticados
inerentes consequências. nessa construção, designadamente escavações, explosões com dinamite
O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer para remoção de terras e pedra e utilização de máquinas de grande porte
nos seguintes termos: que produziam vibrações.
Entende-se, tal como julgou o Tribunal da Relação de Guimarães, Isto é, os Autores pretendem efectivar a responsabilidade do Réu por
que o Tribunal comum é incompetente para conhecer da acção, uma vez actos praticados pelo Réu na actividade de construção de estradas.
que o pedido de indemnização é feito com base em danos resultantes O ICOR foi criado pelo Decreto-Lei n.º 237/99, de 15 de Janeiro,
de actos de gestão pública, ou seja, de actos compreendidos no âmbito sendo-lhe atribuída a natureza de pessoa colectiva, do tipo instituto pú-
de uma função pública e no exercício de um poder público, visando blico, dotada de autonomia administrativa e financeira e de património
a prossecução de um interesse público – a construção da variante à próprio (arts. 1.º, n.º 1, daquele diploma e 1.º, n.º 1, dos Estatutos do
E.N. 101 em Felgueiras, entre a E.M. 562 e a E.M. 564 – no espaço de ICOR por ele aprovados).
atribuições do ICOR. No art. 4.º destes Estatutos indicam-se as atribuições fundamentais
Tal competência cabe, a nosso ver, aos tribunais administrativos de do ICOR, no seguintes termos:
círculo (cfr. art. 214.º, n.º 3 da CRP, D.L. n.º 48051 de 21-11-67, art. 3.º 1 - São atribuições fundamentais do ICOR:
e al. h) do art. 51.º n.º 1 do ETAF e art. 6.º n.º 1, do D.L. n.º 237/99. a) Assegurar a construção de novas estradas, pontes e túneis planeados
de 25/6) pelo Instituto das Estradas de Portugal (IEP) e a execução de trabalhos
Corridos os vistos legais, cumpre decidir. de grande reparação ou reformulação do traçado ou características de
2 – À face do E.T.A.F. de 1984, a competência dos tribunais adminis- pontes e estradas existentes que lhe forem cometidos;
trativos relativamente a acções de responsabilidade civil extracontratual b) Promover a realização dos projectos de empreendimentos rodovi-
emergente de actos do Estado, demais entes públicos e dos titulares dos ários que forem necessários ao exercício das suas atribuições;
seus órgãos ou agentes restringe-se aos casos em que esta deriva de c) Assegurar a fiscalização, acompanhamento e assistência técnica
actos de gestão pública, como decorre do preceituado no art. 51.º, n.º nas fases de execução de empreendimentos rodoviários;
1, alínea h), daquele diploma. (1) d) Promover a expropriação dos imóveis e direitos indispensáveis à
A questão da qualificação dos actos de Administração como actos execução de empreendimentos rodoviários da sua responsabilidade;
de gestão pública ou de gestão privada foi tratada em vários acórdãos e) Zelar pela qualidade técnica e económica dos empreendimentos
deste Tribunal dos Conflitos. rodoviários em todas as suas fases de execução;
Actos de gestão pública são os praticados pelos órgãos ou agentes da f) Assegurar a participação ou colaboração relativamente a outras
Administração no exercício de um poder público, isto é, no exercício de instituições nacionais e internacionais que prossigam finalidades no
uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda âmbito da construção de empreendimentos rodoviários.
que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção; É, assim, inequívoco que a construção de novas estradas, sua reparação
actos de gestão privada são os praticados pelos órgãos ou agentes da e reformulação do traçado se insere entre as atribuições do ICOR, pelo
Administração em que esta aparece despida de poder e, portanto, numa que os actos que os Autores indicam como geradores dos prejuízos que
posição de paridade com o particular ou os particulares a que os actos invocam consubstanciam o exercício de funções de natureza pública,
respeitam, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia previstas em normas de direito público.
proceder um particular com inteira subordinação às normas de direito Assim, os actos imputados ao Réu são de qualificar como actos de
privado. (2) gestão pública, à face do critério atrás referido, e a responsabilidade
«A solução do problema da qualificação, como de gestão pública deles emergente é responsabilidade por actos de gestão pública.
ou de gestão privada, dos actos praticados pelos titulares de órgãos Para efeitos desta qualificação não releva a circunstância de os actos
ou por agentes de uma pessoa colectiva pública, incluindo o Estado, que se invocam como geradores de responsabilidade civil extracontratual
reside em apurar: serem actos de natureza jurídica ou operações materiais ou técnicas,
– Se tais actos se compreendem numa actividade da pessoa colectiva pois estas operações «deverão qualificar-se como de gestão pública se
em que esta, despida do poder público, se encontra e actua numa posição na sua prática ou no seu exercício forem de algum modo influenciados
de paridade com os particulares a que os actos respeitam, e, portanto, pela prossecução do interesse colectivo, ou porque o agente esteja a
nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um exercer poderes de autoridade ou porque se encontre a cumprir de-
particular, com submissão às normas do direito privado; veres ou sujeito a restrições especificamente administrativos, isto é,
– Ou se, contrariamente, esses actos se compreendem no exercício próprios dos agentes administrativos. E será gestão privada no caso
de um poder público, na realização de uma função pública, indepen- contrário». (4)
dentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e Por outro lado, não se verifica qualquer situação em esteja em causa
independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, uma questão de direito privado, pois o regime da responsabilidade
que na prática dos actos devem ser observadas.» (3) civil extracontratual por actos de gestão pública é regulado por nor-
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mas de direito público, designadamente, o Decreto-Lei n.º 48051, de tribunais da jurisdição administrativa (artigo 212.º,
21-11-1967. n.º 3, da CRP, e artigo 1.º do ETAF, aprovado pela Lei
Por isso, são competentes os tribunais administrativos para o conhe- n.º 13 002, de 19 de Fevereiro).
cimento da presente acção, pelo que bem decidiram as instâncias ao III — A questão a resolver, neste meio processual, não é a
julgarem incompetente o Tribunal Judicial de Felgueiras. natureza da propriedade, mas sim a ofensa desse di-
Termos em que acordam neste Tribunal dos Conflitos em negar pro- reito, que está relacionada com a ilicitude da realização
vimento ao recurso e em confirmar o acórdão recorrido, declarando da obra, apenas funcionando, por isso, a natureza da
competentes para conhecer da acção os tribunais administrativos. propriedade como pressuposto dessa ilicitude, pelo que
Sem custas. não interfere com a natureza da relação jurídica.
IV — Essa natureza pode ser conhecida no processo do conten-
Lisboa, 4 de Abril de 2006. — Jorge de Sousa (relator) — António cioso administrativo, pelo menos a título prejudicial, com
Samagaio — Azevedo Moreira — Nuno Cameira — Mário Manuel efeitos restritos a esse processo (artigo 15.º do CPTA,
Pereira — Salvador Nunes da Costa. aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro).
V — A decisão que julgue incompetentes os tribunais comuns
(1) Esta norma estabelece que compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer e competentes os tribunais da jurisdição administrativa
de «acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares para o conhecimento desta matéria não implica que os
dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo
acções de regresso». tribunais administrativos tenham de conhecer a questão
(2) Neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos: tal como ela foi apresentada no tribunal judicial, pois
– do Tribunal dos Conflitos de 5-11-1981, processo n.º 124, publicado no Boletim do que esse conhecimento deve ser feito de acordo com os
Ministério da Justiça n.º 311, página 195; meios estabelecidos no contencioso administrativo, nos
– do Tribunal dos Conflitos de 20-10-1983, processo n.º 153, publicado em Apêndice ao
Diário da República de 3-4-1986, página 18; quais não está previsto, como decorre da conjugação
– do Tribunal dos Conflitos de 12-1-1989, processo n.º 198, publicado em Acórdãos dos artigos 112.º, n.os 1 e 2 do CPTA, e 414.º do CPC,
Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, nº 330, página 845; a ratificação judicial de embargos extrajudiciais de
– do Tribunal dos Conflitos de 12-5-1999, processo n.º 338, publicado em Apêndice ao
Diário da República de 31-7-2000, página 19; obras de pessoas colectivas de direito público, que não
– do Supremo Tribunal Administrativo de 22-11-1994, recurso n.º 33332, publicado em se coadunam com os princípios gerais que disciplinam
Apêndice ao Diário da República de 18-4-1997, página 8256; a actuação da Administração.
– de 29-6-2004, do Tribunal dos Conflitos, recurso n.º 1/04.
(3) Acórdão do Tribunal dos Conflitos proferido no processo n.º 124, citado.
(4) FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, volume III, página 493, cuja posição é Processo n.º 27/05-70.
seguida no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 4-3-2004, proferido no recurso n.º 10/03. Recorrente: Etelvina de Freitas, no conflito negativo de jurisdição
entre o Tribunal Judicial da Comarca de Baião e os Tribunais Admi-
nistrativos e Fiscais.
Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. António Madureira.

Acórdão de 4 de Abril de 2006. Acordam no Tribunal de Conflitos:


1. RELATÓRIO
Assunto: 1. 1. Etelvina Freitas, viúva, reformada, residente na Rua de Camões,
Baião, requereu, no Tribunal Judicial de Baião, a ratificação de embargo
Autarquias locais. Obras novas. Embargo extrajudicial. Ra- extra-judicial de obra nova, por ela efectuado, relativamente a uma obra
tificação judicial. Tribunal competente. levada a cabo pelo Município de Baião.
Por sentença de 7/2/05, esse tribunal julgou procedente a requerida
Sumário: providência cautelar, tendo, em consequência, ratificado o embargo da
obra em causa e ordenado ao requerido a suspensão da mesma.
I — O pedido de ratificação judicial de um embargo extra- Com ela se não conformando, o requerido interpôs recurso para o
judicial de uma obra de implantação, por uma câmara Tribunal da Relação do Porto, no qual, entre outras, impugnava a decisão
municipal, de um poste de iluminação pública no “pas- do tribunal “a quo” relativa à excepção, por ela arguida, da incompetência
seio” de uma rua cuja propriedade é controvertida tem do tribunal em razão da matéria.
subjacente, como causa de pedir, a execução de obras Por acórdão de 27/6/2005, o Tribunal da Relação do Porto concedeu
públicas para cuja realização é competente essa câmara provimento ao recurso, julgando o Tribunal Judicial de Baião incom-
[artigo 13.º, n.º 1, alíneas a) e b), artigo 16.º, alínea b) petente, por considerar que o conhecimento da matéria em apreciação
e artigo 17º, n.º 1, alínea b) da Lei nº 159/99, de 14/9], estava atribuído aos tribunais da jurisdição administrativo.
ou seja, uma relação jurídica administrativa. 1. 2. Agora foi a requerente que não se conformou com a decisão,
II — Os tribunais competentes para o conhecimento das tendo interposto recurso para este tribunal, ao abrigo do disposto no
questões respeitantes a estas relações jurídicas são os artigo 107.º, n.º 2, do CPC.
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Nas suas alegações, formulou as seguintes conclusões: Camões), freguesia de Campelo concelho de Baião, a confrontar, de
1.ª) - A competência material afere-se em face da relação jurídica Norte, com Misericórdia de Baião, do Sul, com Altina da Conceição
material em litígio, tal como a apresenta a requerente na demanda. Alves e herdeiros de Maria da Conceição Nogueira Soares, inscrito na
2.ª) - A providência cautelar a que respeita a presente demanda tem matriz sob o art. 996.º, o qual se encontra inscrito, pela quota G-2, a
subjacente a ocupação de um espaço contíguo a um prédio urbano per- favor de José Soares de Queirós, casado, no regime da comunhão de
tencente à requerente/agravada, que o requerido/agravado Município de adquiridos, com a requerente;
Baião, através dos seus funcionários, ocupou e onde provocou danos. 2 - José Soares de Queirós faleceu em 17.06.00, no estado de casado,
3.ª) - Quando um município ou câmara municipal ocupa ou invade em primeiras núpcias, com a requerente;
terreno alheio sem autorização ou conhecimento do seu titular, não 3 - Mediante testamento público lavrado no Cartório Notarial do
marcado pelo “ius imperii”, age despido de poder público. Marco de Canaveses em 01.07.99, a fls. 33 vº do Livro de Notas para
4.ª) - Agindo, ao invés, como qualquer outra pessoa, em paridade Testamentos nº 74-T, foi legado à requerente por seu marido, José Soares
com qualquer outro cidadão. de Queirós, o usufruto dos bens que compõem a herança, por conta da
5.ª) - Assim, cabe aos tribunais judiciais (comuns) a competência em quota disponível e com observância do condicionalismo previsto no
razão da matéria para conhecer desse litígio. art. 2164º do CC;
6.ª) - Por outro lado, no novo ETAF a determinação do domínio ma- 4 - Da herança do referido José Soares de Queirós, ainda ilíquida e
terial da justiça administrativa continua a passar pela distinção material indivisa, faz parte o prédio mencionado em 1, que adveio ao seu patri-
entre o direito público e privado. mónio por o ter herdado de seus pais, Manuel de Queirós e Maria da
7.ª) - Ao contrário do que acontecia na lei anterior, o novo ETAF dei- Conceição Nogueira Soares;
xou de excluir (escreveu incluir, mas por manifesto lapso) expressamente 5 - Deste prédio faz parte integrante uma faixa de terreno que se situa
da jurisdição administrativa “as questões de direito privado, ainda que entre a parede fronteira da casa de habitação e a Rua de Camões, com
uma das partes seja um pessoa de direito público”, mas também não as o comprimento de cerca de 23 metros;
incluiu, o que significará que estarão excluídas dessa jurisdição. 6 - Constituindo o que se pode denominar um “passeio”, formado
8.ª) - No caso concreto, não se trata de um problema de responsabili- por lajes e granito trabalhadas, sobrelevado em relação ao arruamento
dade civil extracontratual da administração, mas tão só de uma questão de público;
propriedade, da ilegalidade da sua invasão e ocupação e da consequente 7 - Este “passeio” foi construído, conjuntamente com a casa de ha-
violação do direito de propriedade. bitação que compõe o prédio urbano referido em 1, pelos sogros da
9.ª) - Foram, assim, violadas as normas dos artigos 212.º-3 da CRP, requerente, Manuel de Queirós e Maria da Conceição, esta conhecida
4.º do ETAF e 66.º do CPC. por “Miquinhas”, ou “Miquinhas Queirós”;
1. 3. O recorrido contra-alegou, tendo defendido, em síntese: 8 - Algumas das lajes estão parcialmente colocadas por baixo da
- que o terreno em que foram efectuadas as obras embargadas não parede fronteira da casa, que assenta sobre elas;
pertencia à recorrente, mas sim ao domínio público do município de 9 - Pelo que o edifício que integra o prédio se encontra parcialmente
Baião; alicerçado nas pedras do mencionado “passeio”;
- que, na execução das obras embargadas, actuou no pleno exercício 10 - Este sempre foi limpo, varrido e esfregado por requerente e
do seu “ius imperii”, como autarquia e pessoa colectiva de utilidade antecessores e seus serviçais;
pública, “praticando um acto administrativo genuíno, porque zelava, no 11 - Tendo por eles sempre sido arranjado e reparado;
âmbito do dever que sobre si recaía, pela conservação dos arruamentos 12 - Há alguns anos, ainda em vida do marido da requerente, um
públicos, de que faz parte integrante o passeio em causa”; camião pesado partiu algumas das lajes que o constituem, tendo elas
- e porque assim era, essa obra nem sequer podia ter sido, em face sido repostas e pagas pelo marido da requerente;
do disposto no artigo 414.º do CPC, objecto de embargo extrajudicial, 13 - Aquando da reconstrução da casa, ocorrida na mesma altura, as
atenta a natureza eminentemente pública do referido passeio. juntas das lajes foram tapadas, a mando do marido da requerente;
1. 4. O Exm.º Magistrado do Ministério Público emitiu o douto pa- 14 - A requerente e seu marido, por si e antepossuidores, com exclu-
recer de fls 153, no qual se pronunciou pelo improvimento do recurso, são de outrém, há mais de vinte anos ininterruptos, estão na posse do
em virtude de considerar que, como decidiu o acórdão recorrido, o prédio urbano referido, com todas as suas partes integrantes, incluindo
conhecimento do litígio em causa compete aos tribunais da jurisdição o “passeio” referido em 6, praticando os actos materiais correspondentes
administrativa. ao direito de propriedade, tais como habitarem a casa, repará-la, fazer
1.5. Foram colhidos os vistos dos Exm.ºs Juízes Adjuntos, pelo que benfeitorias, cultivarem o quintal, colherem os seus frutos, limpar,
cumpre decidir. varrer e esfregar o “passeio”, arranjá-lo e repará-lo, à vista e com o
2. FUNDAMENTAÇÃO conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém, pública e
2. 1. OS FACTOS: pacificamente, na convicção de exercer um direito próprio e assim o
Estão provados, com interesse para a decisão do presente recurso, julgando as demais pessoas;
os seguintes factos: 15 - Nunca a requerida ou a população de Baião efectuaram, no
1 - Está descrito, na Conservatória do Registo Predial de Baião, sobredito “passeio”, qualquer obra, serviço ou trabalho;
sob o n.º 01657/030997, um prédio urbano que consta de casa de rés- 16 - Jamais nele colocaram qualquer objecto, equipamento ou mate-
-do-chão e andar, anexo e logradouro, sito no lugar da Feira (Rua de rial, sem autorização dos seus donos;
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17 - Os passeios públicos da vila de Baião foram “arranjados”, tendo O acórdão recorrido considerou que essa competência cabia aos
o cimento ou as lajes de pedra que constituíam alguns deles sido subs- tribunais da jurisdição administrativa, em virtude da relação jurídica
tituídos por pequenos cubos de pedra; subjacente ao litígio submetido à apreciação do tribunal ser uma relação
18 - Nessa altura, a requerente e seu marido pediram à requerida, “nas jurídica administrativa.
pessoas dos seus titulares”, que também fosse arranjado o “passeio” A recorrente (requerente dessa providência) defende, por sua vez, que
em causa, ao que lhes foi respondido que tal não poderia ser, pois era os tribunais competentes são os tribunais judiciais (comuns), em virtude
privado e não pertencia ao domínio público; dessa relação jurídica não ser uma relação jurídica administrativa mas
19 - Na manhã do dia 21 do corrente mês, funcionários ao serviço sim uma relação jurídica de direito privado, decorrente da invasão de
da requerida partiram uma das lajes que integra o “passeio”, escavaram terreno de um particular, feita pelo recorrido despido do seu ius impe-
um buraco, colocaram fios eléctricos, iniciando obras para aí instalarem rii, ou seja, por uma invasão feita em idêntica qualidade à de qualquer
um poste de iluminação; particular que a efectuasse.
20 - Sem darem conhecimento à requerente e sem lhe pedirem au- O recorrido/requerido defende, por sua vez, a bondade do acórdão
torização; recorrido, com os fundamentos já enunciados em 1.3..
21 - Assim, nesse mesmo dia, cerca das 10H30, a requerente embargou- 2.2.2. Estatui o artigo 212.º, n.º3, da CRP, que os tribunais admi-
-as, extrajudicialmente, por intermédio do seu advogado; nistrativos são os competentes para conhecer das acções e recursos
22 - Embargo feito na pessoa dos dois trabalhadores que aí se en- contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das
contravam (Pedro Nogueira e Paulo Manuel Nogueira de Sousa) e na relações jurídicas administrativas.
de duas testemunhas, referindo-lhes para suspender e não continuar a Estatuição idêntica estabelece o artigo 1º do ETAF em vigor, apro-
obra que, assim, ficava embargada; vado pela Lei n.º13/ 2002, de 19 de Fevereiro, tal como estabelecia o
23 - O embargo extrajudicial não foi efectuado na pessoa da repre- artigo 3.º do anterior ETAF.
sentante (a Presidente da Câmara Municipal de Baião) da dona da obra Por sua vez, a LOFTJ, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13/1, estatui
(o Município de Baião), porque não se encontrava presente; que os tribunais judiciais são os competentes para o conhecimento
24 - Também não se encontrava presente o fiscal de obras, funcio- das acções cujo conhecimento não esteja atribuído a outra ordem de
nário camarário; tribunais (artigo 18.º, n.º 1, alínea a)), o mesmo se consignando no
25 - Esse fiscal (de seu nome, Armando) foi avisado e chamado artigo 66.º do CPC.
telefonicamente por um outro funcionário da requerida, o motorista, Face a estas estatuições legais, fácil é concluir que a fixação da
competência para o conhecimento da providência em causa depende da
António Madureira Monteiro, mas não se deslocou ao local;
natureza da relação jurídica que na mesma se discute. Se essa relação
26 - Razão pela qual o embargo foi efectuado na pessoa dos dois jurídica for uma relação jurídica administrativa, o conhecimento da
únicos trabalhadores presentes, por serem os únicos que no local se acção pertencerá à jurisdição administrativa. Se for uma relação jurídica
encontravam; privada, o conhecimento pertencerá à jurisdição comum.
27 - Mais tarde, apareceu no local uma jurista da requerida para A distinção entre relações jurídicas administrativas e relações jurídicas
analisar a situação e referiu que, se o embargo estava feito, era para privadas decorre, grosso modo, dessa relação provir da prática de actos
cumprir; de gestão pública ou de actos de gestão privada
28 - A requerente, dias depois, avisou, por escrito, a legal representante Sintetizando, diremos, em consonância com doutrina e jurisprudência
da requerida dos factos mencionados de 21 a 24 e 26; absolutamente consolidadas, que actos de gestão pública são os que
29 - Entre a fachada desse prédio e o limite exterior do passeio existe se compreendem no exercício de um poder público, integrando, eles
uma junta; mesmos, a realização de uma função pública da pessoa colectiva, inde-
30 - Não existe, no local em que se encontra o passeio referido em 6, pendentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção
qualquer solução de descontinuidade relativamente ao nivelamento do e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza,
passeio público, que é perfeitamente contínuo e com toda a sua pavi- que na prática dos actos devam ser observadas, enquanto que actos de
mentação no mesmo plano; gestão privada são os que se compreendem numa actividade em que a
31 - O passeio referido em 6 é transitado por toda a gente, sem inter- pessoa colectiva, despida do poder público, se encontra e actua numa
ferência por parte da requerente; posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, e,
32 - Os funcionários do município limpam o passeio em causa e os portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia
passeios e arruamentos públicos; proceder um particular, com submissão às normas de direito privado
33 - A requerida cobra dos feirantes a respectiva taxa de ocupação (cfr., por todos, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 1/6/2004 - Con-
desse passeio; e flito n.º 24/03).
34 - Ao embargar a obra, a requerente não podia ignorar que estava O que nos leva a considerar relações jurídicas administrativas como
a impedir os munícipes de verem a luminosidade nocturna melhorada. aquelas que são regidas por normas que regulam as relações estabelecidas
2. 2. O DIREITO: entre a Administração e os particulares no desempenho da actividade
2. 2. 1. O que se discute, no presente recurso, é o tribunal que é administrativa de gestão pública, sendo esta, em síntese, e como já foi
competente, em razão da matéria (ou jurisdição), para conhecer da referido, a actividade que compreende o exercício de um poder público,
providência cautelar - de embargo de obra nova - em causa. integrando, ela mesma, a realização de uma função pública da pessoa
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colectiva, independentemente de envolver ou não o exercício de meios que o tenham feito, mesmo que de forma ilegal, no exercício de um
de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra poder que qualquer particular não tinha.
natureza, que na prática dos actos devam ser observadas (cfr., por todos, Assim sendo, impõe-se concluir que a relação jurídica subjacente à
os acórdãos do Tribunal de Conflitos de 28.11.2000 - Conflito 345, de conduta que a requerente pretende ver ratificada pelo tribunal (embargo da
1.6.2004 - Conflito n.º 24/03, e de 8.7. 2003 - Conflito n.º 10/02). obra), e que constitui a causa de pedir no meio processual exercitado (danos
Importa ainda assinalar que o apuramento da jurisdição competente causados na propriedade da recorrente pela realização ilegal de obras), é
deve ser feito, de acordo com pacífica jurisprudência dos nossos tribu- uma relação jurídica administrativa, o que nos conduz a considerar que bem
nais superiores, em função da relação material controvertida, ou seja, andou o tribunal recorrido ao considerar incompetente o Tribunal Judicial
em função dos termos em que, na petição, é formulada a pretensão do de Baião e competentes os tribunais da jurisdição administrativa.
Autor, incluindo os seus fundamentos (cfr., neste sentido, por todos, o Assinala-se ainda, na tentativa de dissipação das dúvidas suscitadas
acórdão do STJ de 4/3/97, in Colectânea de Jurisprudência/STJ, 1997, no acórdão recorrido, que a decisão sobre a natureza pública ou privada
tomo V, pág. 125, do STA de 27/9/01, 28/11/02 e 19/2/03, proferidos nos do terreno onde foi efectuada a obra embargada não é o que vem pedido
recursos n.ºs 47633, 1674/02 e 47636, respectivamente, e do Tribunal de ao tribunal, mas sim a proibição de continuação das obras em causa,
Conflitos de 2/7/02, 5/2/03 e de 8/7/03, proferidos nos Conflitos n.ºs 1, pelo facto do terreno onde foram efectuadas ser privado. Ou seja, que
6 e 10/02, respectivamente). essa natureza não é uma questão a decidir a título principal, mas apenas
2.2.3. Enunciados os pressupostos legais da determinação da jurisdi- como pressuposto da legalidade da execução da obra pela recorrida, no
ção competente, há que passar à apreciação da pretensão da recorrente/ âmbito da sua actividade de gestão pública de iluminação das ruas da
requerente, fazendo a respectiva subsunção legal dos factos alegados. sua área territorial.
Apreciando a posição da requerente, na sua petição, verifica-se que Ora, para além dessa proibição poder ser pedida no âmbito do con-
esta veio requerer ao tribunal a ratificação de um embargo que ela efec- tencioso administrativo (cfr. artigos 2.º, 37.º e 112.º do CPTA), também
tuou extrajudicialmente, embargo esse que recaiu sobre obras efectuadas a natureza do terreno, como pressuposto da viabilidade da pretensão,
pelo pessoal da Câmara Municipal de Baião, consistentes no escava- pode ser conhecida no âmbito do procedimento exercitado na jurisdição
mento de um buraco e colocação de fios eléctricos para presumível administrativa para a defesa dos direitos ou interesses legítimos da recor-
instalação de um poste de iluminação pública, num espaço de terreno rente, pelo menos a título prejudicial, com efeitos restritos ao processo
frontal a um prédio urbano de que é usufrutuária, que considera seu, do contencioso administrativo (cfr. artigo 15.º do CPTA) - no sentido
sem lhe terem dado conhecimento e sem sua autorização. da possibilidade de conhecimento dessa matéria a título principal, vd.
Essas obras destinavam-se, como considerou o acórdão recorrido, ao Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in Código de
melhoramento da rede de iluminação pública do município de Baião e Processo nos Tribunais Administrativos, Anotado, Vol. I, pág. 36.
designadamente na rua em que as mesmas estavam a ser executadas. Em conclusão: considera-se que, estando em causa o embargo de
De acordo com o estabelecido na Lei n.º 159/99, de 14/9, os municí- uma obra pública, a relação jurídica que está subjacente à pretensão em
pios têm atribuições no âmbito do equipamento e da energia (artigo 13.º, causa é uma relação jurídica administrativa, pelo que o conhecimento
n.º 1, alíneas a) e b)), nas quais se compreendem as competências do das questões decorrentes dessa relação são, como decidiu o acórdão
seu órgão câmara relativas à realização de investimentos nas ruas e recorrido, os tribunais da jurisdição administrativa.
arruamentos (artigo 16.º, alínea b)) e à iluminação pública (artigo 17.º, 2.2.4. Assinala-se, finalmente, para que não possa ser considerado
n.º 1, alínea b)). que foi decidido que os tribunais administrativos terão de conhecer a
O que significa que as obras efectuadas pelos agentes da Câmara questão tal como ela foi apresentada no Tribunal Judicial da comarca de
Municipal de Baião que vieram a ser objecto de embargo cuja ratifi- Baião, que o conhecimento da pretensão da recorrente de ver proibida
cação judicial vem requerida se inserem no âmbito das atribuições do a continuação da obra em causa deve ser feito de acordo com os meios
município de Baião e da competência da sua câmara. estabelecidos no contencioso administrativo, nos quais não está previsto,
E, assim sendo, a actividade por eles desenvolvida, seguramente no como decorre da conjugação dos artigos 112.º, n.ºs 1 e 2 do CPTA e
cumprimento de ordens recebidas dos órgãos ou agentes competentes 414.º do CPC, a ratificação judicial de embargos extrajudiciais de obras
para o efeito, não pode deixar de ser qualificada como uma actividade de pessoas colectivas de direito público, que não se coadunam com os
de gestão pública. princípios gerais que disciplinam a actuação da Administração.
Não é, com efeito, o facto de terem invadido terrenos alegadamente 3. DECISÃO
privados, nos quais terão causado danos, que coloca essa actividade em Nesta conformidade, acorda-se em negar provimento ao recurso,
paridade com a resultante de eventual invasão dessa propriedade por julgando que os tribunais competentes para o conhecimento do litígio
quaisquer simples particulares, pela decisiva razão de que estes não em causa são os tribunais da jurisdição administrativa, sem prejuízo do
estavam investidos nos poderes públicos em que estavam os agentes não conhecimento por estes tribunais da pretensão formulada por outras
do recorrido. O facto da propriedade “invadida” ser privada apenas de- questões de índole processual.
termina a ilicitude dos actos de gestão pública praticados pelos agentes Sem custas (artigo 96.º do Decreto n.º 19243, de 16/1/ 1931).
em causa, não os transforma em actos de gestão privada, pois que essa Lisboa, 4 de Abril de 2006. — António Madureira (relator) — Salvador
invasão, mesmo que ilícita, visou a satisfação dos interesses públicos Pereira Nunes da Costa — João Belchior — Mário Manuel Pereira —
dos utentes da rua em causa, que à recorrida incumbia satisfazer e daí Políbio Henriques — Nuno Pedro Melo e Vasconcelos Cameira.
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Acórdão de 6 de Abril de 2006. Admitido no TAF o requerido procedimento, foram citados os contra-
-interessados e notificado o Requerido, este para se pronunciar sobre
Conflito n.º 5/05. o novo requerimento.
Requerente: Digno Magistrado do Ministério Público, no Conflito Aqueles declararam a sua adesão à contestação do Requerido. Este
Negativo de Jurisdição, entre o 2° Juízo do Tribunal Judicial da Comarca apresentou nova contestação, em que voltou a excepcionar, pugnando
das Caldas da Rainha e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria. pela inexistência de conexão entre o direito de propriedade dos Reque-
Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. José Vitor Soreto de Barros. rentes e a obra embargada, e invocando a caducidade do embargo e as
nulidades consubstanciadas na falta do seu acordo quanto ao aprovei-
Acordam no Tribunal de Conflitos. tamento dos articulados (art. 105, n°2 do CPC), além de outras coisas
Relatório. que aqui não relevam.
O Exmo. Magistrado do MP junto do Tribunal Administrativo e Fiscal Convidados a pronunciarem-se sobe as excepções, os Requerentes
de Leiria requereu a resolução do conflito negativo de jurisdição, surgido responderam-lhes, designadamente, quanto à referida nulidade, que a
entre o 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial das Caldas da Rainha e o remessa dos autos resulta do disposto no art. 14, n°1 do CPTA.
Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, para conhecer da nulidade Após o que o Sr. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal, por des-
arguida pelo Município das Caldas da Rainha num procedimento de pacho de 14/12/04, fundamentou que, no caso de verificação de incom-
ratificação de embargo extrajudicial de obra nova, requerido junto do petência absoluta, a remessa dos autos ao tribunal tido por competente
primeiro daqueles Tribunais por José Maria da Silva Martins contra o carece do acordo das partes quanto ao aproveitamento dos articulados
Município de Caldas da Rainha. O conflito negativo surgiu porque o 2° (art. 105, n°2 do CPC), pelo que, sendo a nulidade arguida pelo Re-
Juízo Cível se julgou incompetente em razão da matéria, por despacho querido (falta do seu acordo quanto ao aproveitamento dos articulados
de 22/12/04, que transitou em julgado em 06/01/05, o mesmo tendo e caducidade do embargo) susceptível de influir no exame e decisão da
decidido Tribunal Administrativo e Fiscal, por despacho que transitou causa, decidiu que a apreciação da nulidade deve ser feita pelo Tribunal
em julgado em 30/12/04. perante o qual foram praticados ou omitidos os actos em questão: art.
As Autoridades em conflito foram notificadas para responderem, o 193 e seguintes, art. 666, n°2 e art. 668, n°s 3 e 4 do CPC). Solução
que nenhuma delas fez. que disse sair reforçada pela circunstância de que, se a arguição dever
No seu visto, o Exmo. Representante do MP junto deste Tribunal de proceder, os autos se extinguem na jurisdição cível. Em consequência,
Conflitos pronunciou-se no sentido de que o Tribunal materialmente mandou remeter ao Tribunal do 2°Juízo Cível de Caldas da Rainha. Este
competente para conhecer da nulidade arguida pelo Município das Caldas despacho transitou em 30/12/04. Remetidos os autos ao Tribunal Cível,
da Rainha é o Tribunal onde a arguida nulidade terá sido praticada, no neste o Sr. Juiz exarou, em despacho de 22/12/04, que, tendo transitado
caso, o Tribunal do 2° Juízo Cível da Caldas da Rainha. a decisão contida no seu despacho de 31/08/04, não poderia apreciar
Corridos os vistos. qualquer nulidade, que, aliás, nem foi arguida perante esse Tribunal.
Conhecendo. Considerou, assim, materialmente competente para apreciar a questão
A) Os factos. da nulidade o Tribunal materialmente competente para o procedimento:
Em 15/07/04, José Maria da Silva Martins e sua mulher requereram, o Administrativo e Fiscal. Este despacho transitou em 06/01/05.
pelo Tribunal Judicial de Caldas da Rainha, contra o Município de Notificados o MP e as Partes para os efeitos do art. 117 do CPC,
Caldas da Rainha, a ratificação de embargo extrajudicial de obra nova. desta forma surgiu, pela mão do MP, o pedido de resolução do presente
O Requerido deduziu oposição, invocando a excepção de incompetência conflito.
em razão da matéria, por o Município ter efectuado a obra no âmbito das B) O direito.
suas atribuições e competências (“acto de gestão pública”), tratando-se A nulidade arguida (consistente na falta de acordo para aproveitamento
portanto de uma relação jurídico-administrativa. dos articulados, no quadro do art. 105 do CPC - ou seja, omissão de acto
Por despacho de 31/08/04, o Sr. Juiz do 2° Juízo Cível declarou-se que a lei prescreve, susceptível de influir no exame e decisão: art. 201,
incompetente em razão da matéria e absolveu o Requerido da instância n°1 do CPC), se existir (e tiver sido arguida em tempo), foi cometida
(este despacho viria a transitar em 10/09/04). no Tribunal do 2° Juízo Cível de Caldas da Rainha, mas só foi arguida
Mediante pedido dos requerentes, formulado ao abrigo do art. 105, no Tribunal Administrativo e Fiscal.
n°2 do CPC, antes do trânsito do despacho, os autos foram remetidos Quem é competente em razão da matéria para decidir a questão da
ao Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Leiria, onde, recebidos, nulidade?
o Sr. Juiz convidou os Requerentes a procederem ao aperfeiçoamento O tribunal competente para a acção é também competente para co-
do pedido, o que estes fizeram, de acordo com as alíneas d), e) e g) do nhecer dos incidentes que nela se suscitem e das questões que o réu
art. 114 do CPTA, pedindo então, além da ratificação do embargo extra- suscite como meio de defesa: art. 96, n°1 do CPC.
judicial, também a intimação do Requerido para se abster da prática de Ora, o Tribunal competente para a acção (procedimento de ratifica-
certos actos (que ali referem), e identificando dois contra-interessados ção de embargo extrajudicial de obra nova), por decisão transitada, é o
(Cláudia Sofia Marques Henriques e Francisco António Dinis). Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.
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Será que o facto de a nulidade arguida pelo Requerido ter sido (se Acórdão de 6 de Abril de 2006.
foi) cometida pelo Tribunal Cível durante o período de tempo que o
processo nele decorreu, altera isto? Processo n.º 8/05-70.
Não parece assim. Requerente: Maria do Carmo Fidalgo, no conflito negativo de juris-
Embora a questão seja discutível, o certo é sempre que: dição entre o Tribunal Judicial da comarca de Oliveira do Hospital e o
a) Tribunal materialmente competente para a acção foi já decidido, Tribunal Administrativo e Fiscal.
com trânsito, que é o Administrativo e Fiscal; Relator: Exmº. Sr. Consº. Dr. Artur José Alves Mota Miranda.
b) A questão da nulidade não foi suscitada no Tribunal Cível, mas no Acordam no Tribunal de Conflitos
Administrativo e Fiscal;
c) Com a absolvição do Requerido da instância no Tribunal Cível e Maria do Carmo Fidalgo interpôs recurso de agravo para este Tri-
remessa dos autos para o Tribunal Administrativo, iniciou-se neste uma bunal de Conflitos, do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
que, negando provimento ao agravo, confirmou a decisão proferida no
nova instância, na qual se devem aproveitar os articulados e os actos Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Hospital que julgara o Tri-
processuais que deles dependam (como as citações, as notificações), mas bunal incompetente em razão da matéria, por competentes os Tribunais
não por exemplo a tramitação de qualquer incidente: Lebre de Freitas, Tributários e absolvera da instância o Réu Estado Português.
Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 194. Nas suas alegações de recurso formulou as seguintes conclusões:
d) A questão suscitada no Tribunal Administrativo e Fiscal foi-o 1) Tendo o Tribunal Constitucional decidido, com trânsito em julgado,
porque o procedimento foi aí admitido e o Requerido foi nele convidado no Acórdão n.° 452/2003, em recurso de fiscalização concreta de cons-
a apresentar nova petição; titucionalidade interposto pela ora recorrente, de uma decisão do S.T.A.
e) Foi na contestação à nova petição que o Requerido suscitou a (coisa que não importa minimamente) que a norma do art. 7°, n.° 4 e 5 do
referida questão da nulidade; CIRS não é inconstitucional na medida em que permite que o interessado
obtenha uma decisão judicial (onde pode produzir todos os meios de
f) Uma vez que a omissão de acto prescrito pela lei só constitui nu-
prova em direito admissíveis) emitida pelos tribunais judiciais, através
lidade se tal omissão for susceptível de influir no exame e decisão da da qual pode no processo de impugnação judicial tributária impugnar a
causa (art. 201, n°1 do CPC), parece que o tribunal vocacionado para presunção estabelecida no n.° 4 do art 7º do CIRS, não podia o acórdão
a apreciação de tal susceptibilidade de influir no exame e decisão só da Relação vir decidir no sentido em que o fez, julgando incompetente
pode ser o tribunal competente para conhecer do mérito da causa - e o Tribunal comum para emitir essa decisão, não admitindo, por essa
não outro. via, o exercício do direito de acção funcionalizado àquele fim perante
g) Finalmente, se se devesse reconhecer competência ao tribunal cível os tribunais comuns.
para conhecer esta nulidade, poderia ocorrer um resultado indesejável: se 2) O acórdão da relação desconhece erraticamente que existem ac-
o tribunal cível concluir pela nulidade, ele retira ao tribunal competente ções judiciais instrumentais para a decisão de outras acções relativas a
para conhecer do mérito, e onde já se iniciou nova instância, que é o questões emergentes de relações jurídicas administrativas ou tributárias,
cuja apreciação cabe a outras jurisdições, como está previsto no art. 4°,
administrativo, a possibilidade de conhecer do mérito. n.° 2 do ETAF (aliás o mesmo se poderá passar no processo penal
Não parece que sejam aqui aplicáveis as normas dos art. 666, n°2 e — art. 7°, n.° 2 do C.P.P.) fazendo, por essa razão, tábua rasa do acórdão
668, n°3 e 4 do CPC, como se disse no despacho de 14/12/04, porque do Tribunal Constitucional.
não se trata de suprir nulidades da sentença. 3) E que a competência para apreciação dessas acções instrumentais
Por tais razões, embora a questão não seja totalmente líquida, entende- pode caber aos tribunais comuns se essa relação instrumental for de
-se que o tribunal competente para a questão da nulidade deva ser o Tri- direito comum, civil ou comercial, como é o caso e foi julgado pelo
bunal Administrativo e Fiscal, sobretudo porque a instância no tribunal acórdão do Tribunal Constitucional.
cível se encontra finda, porque foi perante o tribunal administrativo 4) De resto, o julgado do Tribunal Constitucional não faz mais do que
que a questão foi suscitada e porque é este o tribunal materialmente postar-se numa linha legislativa histórica, de cuja existência e sentido a
recorrente deu conta nas conclusões para a Relação, acima transcritas,
competente para a acção.
mas cuja bondade esta não se deu ao trabalho de rebater como, mais grave
Pelo exposto, acordam em declarar materialmente competente para as interpretou de forma distorcida, acabando por determinar um objecto
o conhecimento da arguida nulidade o Tribunal Administrativo e Fiscal de recurso diferente do que nela se erigiu a questão a decidir por ela.
de Leiria. 5) A interpretação do art. 7°, n.° 4 e 4 do CIRS e dos artigos 66°, 101º
Sem custas. a 103°, 105°, 288°, n.° 1, al. a), 493º, n.° 2 e 494°, al. a) do C.P.C., no
sentido de a recorrente não ter acesso a um meio processual nos tribunais
Lisboa, 6 de Abril de 2006. — José Vítor Soreto de Barros (relator) — comuns, quando está definitivamente julgado não dispor desse meio
Artur José Mota Miranda — Jorge Artur Madeira dos Santos — Fer- na jurisdição que a sentença recorrida considera competente, no qual
nando Manuel Azevedo Moreira — António Pereira Madeira — António possa fazer valer os seus direitos de demonstrar mediante o uso de toda
Fernando Samagaio. a prova admissível em direito, entre ela se contando a prova testemunhal
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e documental, que não recebeu os rendimentos presumidos fiscalmente 2) Por decisão de 24/5/2001, o Tribunal julgou procedente a impug-
é rotundamente inconstitucional por violação da garantia de acesso aos nação e anulou a liquidação em causa.
Tribunais consagrada no art. 20° da C.R.P.. 3) O Representante da Fazenda Pública interpôs recurso para a Secção
6) O acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que, de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo, que em
em execução do Acórdão do Tribunal Constitucional, ordene o prossegui- 26/2/2002, concedeu provimento ao recurso e manteve a liquidação
mento dos autos para o conhecimento do mérito da acção, pressupondo- impugnada.
-se a competência dos tribunais judicias para emitir a decisão. 4) Para tanto, o Tribunal Central Administrativo fundamentou-se no
Em contra alegações, o R. Estado, representado pelo Ex.mo Ma- art. 7°, n.° 4 do CIRS que, na redacção anterior à Lei n.° 30-G/2000 de
gistrado do M° P°, considerando estar pedida a ilisão da presunção 29/12, dispunha que os “lançamentos em quaisquer contas correntes
estabelecida no art. 7º, n.° 4 do CIRS, defende a improcedência do dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob a forma
recurso, com confirmação do julgado. comercial, quando não resultem de mútuos, de prestação de trabalho ou
Corridos os vistos, cumpre decidir as questões suscitadas pela recor- do exercício de cargos sociais se presumem sujeitos a título de lucros
rente nas conclusões das suas alegações, sabido que são elas que delimi- ou adiantamentos”.
tam o objecto dos recursos, salvo quanto às questões de conhecimento 5) A impugnante recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo, o
oficioso (cf. art. 684°, n.° 3 e 690°, n.° 1 do C.P.C. e Rodrigues Bastos qual, por acórdão de 18/12/2002, negou provimento ao recurso.
em Notas ao Cód. de Proc. Civil, vol. 3, pág. 228). 6) Recorreu para o Tribunal Constitucional, alegando que as normas
Assim, a questão a resolver reconduz-se a uma questão de competência dos n.° 4 e 5 do art. 7° do CIRS, na interpretação de vedar a produ-
em razão da matéria e consiste em saber se a competência cabe, como ção de prova testemunhal e documental no processo de impugnação
decidido no acórdão recorrido aos Tribunais Tributários ou se, como judicial, viola o art. 20, em conjugação com o art. 18°, n.° 2 e 3 da
defende a recorrente, incumbe ao Tribunal Comum, o Tribunal Judicial Constituição.
de Oliveira do Hospital. 7) O Tribunal Constitucional, por acórdão de 14/10/2003, negou
Sabe-se que as causas que não sejam atribuídas a outra jurisdição provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida.
são da competência dos Tribunais Judiciais, de acordo com o art. 66° 8) Em 18/11/2003, a Autora instaurou a presente acção no Tribunal
do C.P.C. e art. 18° da Lei 3/99 de 13 de Janeiro (Lei de Organização e da Comarca de Oliveira do Hospital.
Funcionamento dos Tribunais Judiciais). 9) Na sua p. i alegou que:
Por isso, sendo os Tribunais Administrativos e Fiscais, os órgãos a) Foi notificada, pela Direcção Geral das Contribuições e Impostos
que exercem a jurisdição administrativa e fiscal (cf. art. 212°, n.° 3 para pagar a quantia de 49.221.847$00 proveniente da liquidação de IRS
da Constituição — “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o do ano de 1990, efectuada nos termos do art. 81° do CIRS;
julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto b) Esta decisão teve por base a informação da fiscalização de que o
dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e Sr. Joaquim Álvaro recebeu no ano de 1990 da firma C.A. Construtora
fiscais”— e art. 1°, 2° e 3° do dec.-lei 129/84 de 27/4 — Estatuto dos do Alva, S.A. a importância de 77.150.000$00, como adiantamento para
Tribunais Administrativos e Fiscais, o vigente à data da instauração da a aquisição de dois terrenos que posteriormente venderia à C.A., tendo
acção) a sua competência determina-se pela análise directa das espécies celebrado dois contratos de promessa de compra e venda com a C.A.,
de acções que podem ser submetidas a sua apreciação e decisão segundo sendo essa importância considerada como adiantamentos por conta de
o estabelecido na sua lei orgânica. lucros, nos termos dos art. 6°, al. h) e 7°, n.° 4 do CIRS;
Daí que conhecida a competência material que lhes foi especial- c) Esta qualificação de adiantamento de lucros daquela quantia de
mente atribuída por lei e integrando-se a matéria da acção proposta 77.150.000$00 (51.000.000$00 + 26.150.000$00) não tem fundamento
nessa competência fica logo determinada a competência do Tribunal pois o falecido Joaquim Álvaro não recebeu quaisquer lucros;
Administrativo e Fiscal e necessariamente excluída a competência do d) As quantias foram entregues, por razões de ordem negocial, para
Tribunal Comum (cf. Antunes Varela, Bezerra e Nora em Manual de a celebração de dois negócios a favor da C.A.;
Proc. Civil, pág. 208 e Alberto dos Reis no Cód. de Proc. Civil Anotado, e) Tais negócios não se concretizaram e aquelas quantias foram rein-
vol. 1, pág. 201). tegradas na sociedade;
Assim como a função jurisdicional dos Tribunais Administrativos f) Conclui-se, assim, que nada permitia aplicar a presunção do art. 7°,
e Fiscais vem estabelecida nos art. 1°, 3°, 4° e 62° daquele dec.-lei, n.° 4 do CIRS, já que é evidente que Joaquim Álvaro não recebeu
há que determinar a natureza da relação jurídica pleiteada, como vem quaisquer quantias a título de lucros ou adiantamentos de lucros, pelo
apresentada pela A. e concluir se ela se integra em qualquer das situações que espera que se reconheça como ilidida tal presunção.
previstas naqueles preceitos legais (cf. Acórd. do S.T.J. de 12/1/94, de g) E terminou, pedindo que a acção seja julgada procedente por
9/5/95 e de 3/2/87, nas CJ — STJ — 1994-1 -38, 1995-2-68 e BMJ, provada, declarando-se que Joaquim Álvaro, marido que foi da autora,
364-591 e ainda Manuel Andrade em Noções Elementares de Proc. não recebeu as quantias de 51.000.000$00 e de 26.150.000$00 a título
Civil, Ed. de 1963, pág. 89). de lucros ou de adiantamento de lucros.
Para tanto, impõe-se considerar a seguinte factualidade: Sendo estes os factos, há que concluir que a competência, em razão
1) No Tribunal Tributário de 1ª Instância de Coimbra, a autora impug- da matéria, cabe não aos Tribunais Tributários mas sim ao Tribunal
nou a liquidação do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares Comum, no caso concreto, ao Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira
(IRS) no valor de 49.221.847$00, relativo ao ano de 1990. do Hospital.
92 93

Na verdade, a competência é deferida aos Tribunais Tributários nos titucional n.° 45203 de 14/10/2003) com base em decisão judicial, acto
casos de acções ou recursos contenciosos que tenham por objecto litígios administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento
emergentes de relações jurídicas fiscais, de relações em que esteja em pela Direcção-Geral das Contribuições e Impostos.
causa uma relação jurídico-tributária, uma relação estabelecida entre a Trata-se, portanto, de uma presunção que, embora admitindo prova
Administração Tributária, agindo como tal, no exercício de competên- em contrário (e esta só se faz provando o contrário do presumido — cf.
cias no domínio tributário e as pessoas singulares ou colectivas e em art. 350°, n.° 2 do C.C. e Antunes Varela na RLJ, 122°-218) não pode
que a questão a dirimir exija a aplicação e interpretação de normas de ser realizada por qualquer meio de prova no processo de impugnação
direito fiscal. no Tribunal Tributário.
No caso concreto, não está em causa qualquer relação jurídico- E que o pedido se reconduz à declaração de que o referido Joaquim
-tributária, não está em causa qualquer questão inserida no âmbito Álvaro não recebeu aquelas quantias a título de lucros ou adiantamento
fiscal, qualquer relação entre a A. e a Administração Fiscal. de lucros (e não também à declaração de ilisão da presunção estabelecida
In casu, quer a causa de pedir (esta é, de acordo com a teoria da subs- no art. 7°, n.° 4 do CIRS) não sofre qualquer dúvida se tomarmos em
tanciação consagrada no nosso direito, o facto jurídico de que emerge consideração que na petição inicial se tem de considerar uma parte em
o direito do autor; é o facto jurídico invocado para obter a pretensão que o autor exprime a situação concreta e outra em que o autor formula ou
deduzida — cf. Alberto dos Reis em Cód. de Proc. Civil Anotado, declara a providência requerida; aquela é a narração e esta é a conclusão;
vol. III, pág. 121 e Manuel Andrade em Noções Elementares de Proc. naquela contém-se a causa de pedir e nesta o pedido (cf. Alberto dos
Civil, pág. 259) quer o pedido (o efeito jurídico pretendido pelo autor, Reis em Cód. de Proc. Civil Anotado, vol. II, pág. 349 a 365).
a providência jurisdicional requerida — cf. Manuel Andrade em ob. Assim, como a acção não emerge de qualquer relação jurídico-
cit., pág. 297) integram-se numa relação jurídica de natureza privada -tributária, nela se pretendendo apenas que se reconheça o facto de
— saber se aquelas quantias, depositadas pela sociedade C.A., em as quantias não serem lucros, não se pedindo a apreciação e aplicação
conta do falecido Joaquim Álvaro não foram recebidas como lucros ou de qualquer norma de direito fiscal, nem de qualquer acto integrante
adiantamento de lucros. de qualquer relação jurídico-tributária, nem se decide qualquer ques-
Com efeito, a questão que é colocada na p. i. reconduz-se ao que tão de natureza tributária, tem, portanto, de correr termos no Tribunal
ocorreu entre a sociedade C.A. e Joaquim Álvaro e consiste em saber Comum.
a que título foram depositados na conta do falecido aquelas quantias, Pelo exposto, acordam neste Tribunal de Conflitos em revogando a
afirmando a A. que não foram lucros nem adiantamentos de lucros, decisão recorrida, conceder provimento ao agravo, julgando competente
mas quantias que se destinavam à celebração de um negócio a favor o Tribunal Judicial da comarca de Oliveira do Hospital.
da sociedade e que foram, por não ter sido concretizado, restituídas à Sem custas.
sociedade.
E o pedido encontra-se na sequência do que foi alegado como causa Lisboa, 6 de Abril de 2006. — Artur José Alves Mota Miranda (re-
de pedir — que se declare que Joaquim Álvaro não recebeu as quantias lator) — António Samagaio — José Vitor Soreto de Barros — Madeira
a título de lucros ou adiantamentos de lucros. dos Santos — Costa Reis.
Com tal pedido, o que a A. pretende é uma decisão que reconheça
a inexistência do facto presumido, ou seja, sendo o facto presumido
o de que o marido da requerente recebeu aquelas quantias a título de
lucros ou de adiantamentos de lucros, a decisão pretendida é a de que Acórdão de 26 de Abril de 2006.
o marido da requerente não recebeu tais quantias a título de lucros ou
de adiantamentos de lucros. Assunto:
Aqui, nestes autos, não se impugna a liquidação do imposto, não se
pede que se declare ilidida a presunção estabelecida no art. 7°, n.° 4 Reversão de prédio expropriado. Pedido de adjudicação.
do CIRS — apenas se pede a declaração de inexistência do facto pre-
sumido. Sumário:
Com a presente acção, a A. quer obter uma decisão judicial que declare
que seu falecido marido não recebeu aquelas quantias a título de lucros, Após a reforma do Contencioso Administrativo, em vigor
para que, com ela, possa impugnar, em sede tributária, a presunção desde 1 de Janeiro de 2004, cabe aos Tribunais Adminis-
estabelecida no art. 7°, n.° 4 do CIRS. trativos o julgamento da acção de adjudicação do prédio,
E tal decisão encontra plena justificação, porquanto tal presunção autorizada que seja a sua reversão.
estabelecida naquele art. 7º, n.° 4 (ali considera-se que os lançamentos
em quaisquer contas correntes dos sócios escrituradas nas sociedades Processo n.º 1/06-70.
comerciais ou civis sob a forma comercial, quando não resultem de Requerente(s): Maria Salomé da Cruz Quaresma Elias e Zelinda da
mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, Cruz Quaresma, no Conflito Negativo de Jurisdição, entre o Tribunal
presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamentos dos lucros) só Judicial da Comarca de Santiago do Cacém e os Tribunais Administra-
pode ser ilidida, como se determina no art. 7°, n.° 5 do CIRS (norma tivos e Fiscais em que é recorrido o Estado Português.
que não enferma de inconstitucionalidade — Acórd. do Tribunal Cons- Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Políbio Henriques.
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Acordam, em conferência, no Tribunal dos Conflitos: conteúdo, traduz uma vontade e uma intenção claras do legislador de
recuperar a lei anterior, ou seja, de repristiná-la.
1. Maria Salomé da Cruz Quaresma Elias casada, residente no Bairro 7º- Ora, do regime estatuído pelos diplomas referidos nas als. ante-
l de Maio, n° 145, em Sines e Zelinda da Cruz Quaresma, casada, resi- riores, sempre resulta que seriam os Tribunais comuns - e não o foro
dente no lugar da Lagoa Grande, Relvas Verdes, freguesia de Santiago administrativo -, os componentes para apreciar e julgar o litígio em
de Cacém, deduziram no Tribunal Judicial da Comarca de Santiago do presença.
Cacém, contra o Estado Português, pedido de adjudicação do prédio 8ª- A Lei 13/2002, de 19.02, que nos termos do seu art. 9°, era suposto
rústico denominado “Courela do Pinhal”, sito na freguesia e concelho entrar em vigor um ano após a sua publicação, isto é, às 24 horas do
de Sines, inscrito na matriz rústica sob o art. 29 da Sec. B” e descrito dia 19.02.2003 (art. 279° al. c) do Código Civil) foi alterada, quanto à
na Conservatória do Registo Predial de Sines sob o n° 325, a fls. 18 do data da entrada em vigor prevista no seu art. 5°, pela Lei 4-A/2003, de
Liv B-20 e inscrito a favor do Gabinete da Área de Sines. 18.03, que determinou que a vigência daquele regime (da Lei 13/2002)
Alegaram, no essencial, que o prédio em causa foi expropriado, mas se iniciara em 01.01.2004.
porque nunca foi usado para o fim que determinou a declaração de uti- 9ª- A Lei 13/2002, de 19.02 — e concretamente o seu art. 5° - não
lidade pública, requereram e acabaram por obter a reversão do imóvel, alterou o dispositivo legal constante do art. 77º, n° 1 da Lei 168/99, de
determinada por despacho do Secretário de Estado do Ordenamento do 18.09, porque antes de entrar em vigor em 01.01.2004 foi revogada
Território, proferido em 10 de Dezembro de 2003. pela Lei.4-A/2003, de 19.02, que sobre a mesma matéria obliterou as
Não foi deduzida oposição. alterações introduzidas pelo art. 5° da Lei 13/2002, de 19.02 e represtinou
Em 7 de Julho de 2004 foi proferido despacho que julgou verificada a versão original dos arts. 74º e 77° da Lei 168/99, de 18.09 (Código
a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal em razão das Expropriações).
da matéria e absolveu o requerido da instância. 10ª- Em 01.01.2004, já os arts. 5° e 9° da Lei 13/2002 (sendo que o
As requerentes agravaram do despacho, sendo que o Tribunal da art. 7º é estranho à questão em apreço) estavam revogados pelo art. 1°
Relação de Évora, por acórdão de 6 de Outubro de 2005, confirmou o da Lei 4-A/2003, pelo que tal regime nunca entrou em vigor, uma vez
decidido na 1ª instância. que a Lei 4-A/2003 é posterior à Lei 13/2002 e “lex posterior derrogat
1.1. Inconformadas, as requerentes recorrem desta última decisão priori”.
para o Tribunal dos Conflitos, apresentando alegações com as seguintes 11ª- Daí que o regime vigente na matéria em causa seja — e sempre
conclusões: tenha sido, salvo o devido respeito -, o estatuído pelo n° 1 do art. 77° da
1ª- O acórdão recorrido não conhece, esclarece nem fundamenta as Lei 168/99, acrescendo que é manifestamente perceptível, que a intenção
questões suscitadas no n° IV — 3, als. a) e b) das presentes alegações, do legislador, contida na Lei 4-A/2003, reside na ideia de ressuscitar a
nem tomou qualquer posição donde resulte a improcedência das con- Lei revogada (art. 77º, n° 1 da Lei 168/99);
clusões que aí lhe foram apresentadas. 12ª- O entendimento perfilhado pelo acórdão agravado tornaria impos-
2ª- O art. 1° da Lei n° 4-A/2003, de 19.02, ao declarar que “Os sível o cumprimento pelo Tribunal das diligências de natureza probatória
arts. 5º (da Lei 13/2002), 74°, n°s 1, 2, 3 e 77° da Lei 168/99 passam a — designadamente por inspecção judicial e por via pericial previstas
ter a seguinte redacção” que expressou com linhas ponteadas (…..), em pelo art. 78° da Lei 168/99, de 18.09.
branco, portanto, só pode ter querido eliminar o conteúdo das normas 13ª - Curiosa, mas sugestivamente, a ilustre Magistrada do Ministério
que fez substituir por essas linhas ponteadas; Público (ver fls. 56) não deduziu qualquer oposição contra a pretensão
das ora recorrentes, pelo que a tese que veio a defender nas suas alega-
3ª- Qualquer outro entendimento terá que ser fundamentado em norma
ções apresentadas em 12.01.2005, resulta, de todo, e insanavelmente
legal ou princípio geral de direito - de hermenêutica jurídica, consagrado contraditória;
pelo ordenamento jurídico, “elaborado” pela doutrina mais prestigiada 14ª- O acórdão agravado está inquinado das nulidades previstas pelos
e perfilhado pela jurisprudência mais representativa, questões sobre as arts 716°, nº 1, 668°, n° 1, als. b) e d) — 1ª parte, e 666°, n° 3 do CPC,
quais o despacho agravado faz silêncio total; pelo que o mesmo deve ser declarado nulo, com os legais efeitos;
4ª- A redacção introduzida pela Lei 4-A/2003, do art. 77°, n° 1, da 15ª- O acórdão agravado violou ainda, para além das referidas no
Lei n° 168/99, de 18.09, ou “apaga”, elimina ou oblitera a redacção n° anterior, as normas sancionadas pelos arts. 158°, 669°, nºs 1, al. a) e
constante da Lei 13/2002, de 19.02 ou apaga, elimina ou oblitera di- 2, al. b) do CPC, 279°, al. c) do Cód. Civil, Lei n° 4-A/2003, de 19.02
rectamente a redacção da Lei 168/99, quanto ao art. 77º, n° 1, que, em — e concretamente o art. l°-, e 205° da CRP;
tal perspectiva, deixaria de existir. 16ª- Deve, pois, ser revogado o douto acórdão recorrido, com todos os
5ª- Se tivesse ocorrido a segunda hipótese prevista na conclusão legais efeitos e declarado competente para julgar o pleito sub-judice, o
anterior - o que não aconteceu, salvo melhor opinião -, então haveria Tribunal Comum da área da situação do prédio ou da sua maior extensão,
que recorrer à lei geral para solucionar a questão, isto é, ao art. 44° do que é o da comarca de Santiago do Cacém.
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e à Lei dos Tribunais 1.2. Contra-alegando, o Senhor Procurador - Geral Adjunto defende
Judiciais (n° 3/99, de 10.12), o qual nada diz sobre a competência na a manutenção da decisão.
matéria em causa. Cumpre decidir.
6ª- A revogação da norma revogatória antes da entrada em vigor 2. Decorre do exposto que o presente recurso jurisdicional, interposto
desta, mantendo os seus dispositivos, mas esvaziando-os de todo o seu ao abrigo do art. 107°, nº 2 do 2 do C.P. Civil, é um meio de prevenção
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de um conflito futuro, através de uma decisão deste Tribunal que fixe, entre outros, os acórdãos n° 372/94 (in DR, II Série, n° 204, de 3 de
em definitivo, se a competência para a causa é do foro civil ou do foro Setembro de 1994), 347/97 (in DR, II Série, n° 170, de 25 de Julho de
administrativo. 1997) e 284/2003, de 29 de Maio de 2003] e perfilhada pela Jurispru-
E, sendo este um Tribunal dos Conflitos, a questão de saber qual é a dência do STA (vide, por exemplo, os acórdãos do Pleno de 1998.02.18.
ordem de tribunais competente é a única que lhe cumpre conhecer. Não — rec. n° 40247 e da 1ª Secção de 2000.06.14 — rec. n°45 633, de
lhe compete apreciar qualquer outra questão relevante noutra sede. 2001.01.24 — rec. n° 45 636, de 2001.02.20 — rec. n° 45 431 e de
Dito isto, vejamos. 2002.10.31 — rec. n° 1329/02).
O Tribunal da Relação de Évora confirmando despacho proferido Não se descortinam razões para abandonar este entendimento.
no Tribunal da Comarca de Santiago de Cacém, julgou incompetente o Por outro lado, temos como seguro que, por força daquela norma
tribunal judicial para conhecer do pedido de adjudicação de prédio que constitucional, a jurisdição administrativa e fiscal é, hoje, uma jurisdição
havia sido expropriado e cuja reversão tinha sido já declarada a favor das obrigatória e que os tribunais administrativos e fiscais são os tribunais
autoras, por a causa pertencer ao âmbito da justiça administrativa. comuns dessa jurisdição (cfr. Diário da Assembleia da República, II
As ora recorrentes defendem que são os tribunais judiciais comuns Série, n° 48-RC, de 21 de Outubro de 1988, acta n° 46 da CERC, 1517
os competentes para a causa. e segs e o citado acórdão 372/94 do Tribunal Constitucional), com
Adiantando, diremos, que pelas razões que passamos a expor, não a relevante consequência de que o conhecimento de uma questão de
lhes assiste razão. natureza administrativa pertence aos tribunais da ordem administrativa
Nos termos do disposto no art. 66° do C.P. Civil “são da competência se não estiver expressamente atribuída a nenhuma outra jurisdição (cf.
dos tribunais judiciais, as causas que não sejam atribuídas a outra Vieira Andrade, in “A Justiça Administrativa” 4ª ed., p. 112 e jurispru-
ordem jurisdicional”. dência aí citada)
E, de acordo com o art. 1º/1 do ETAF aprovado pela Lei n° 13/2002, Dito isto, de regresso ao caso sujeito, uma vez que há lei expressa a
de 19 de Fevereiro, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são atribuir a competência, a questão resume-se a determinar, de acordo com
os competentes para administrar a justiça “nos litígios emergentes das os melhores critérios hermenêuticos, qual é o sentido prevalente dessa
relações jurídicas administrativas e fiscais” lei, sendo que, seja qual for o resultado, a opção do legislador ordinário,
Importa, pois, saber se a competência para a causa está, ou não, por não por em crise o núcleo essencial da reserva material da jurisdição
cometida aos tribunais da ordem administrativa. administrativa, não ofende os ditames da Constituição.
Ora, nos termos previstos no art. 212°/3 da Constituição da República Ora, o artigo 77°/1 do Código das Expropriações, aprovado pela Lei
Portuguesa, compete, aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento n° 168/99 de 18 de Setembro, dizia, a respeito: “autorizada a reversão,
das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os o interessado deduz, no prazo de 90 dias a contar da data da notificação
litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. da autorização perante o Tribunal da Comarca da situação do prédio ou
Este preceito constitucional consagra uma reserva material de jurisdi- da sua maior extensão o pedido de adjudicação...”
ção atribuída aos tribunais administrativos. O texto, porém, abre espaço Por força do artigo 5° da Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, que
para perplexidade, quanto a saber se a reserva é absoluta ou relativa. aprovou o Estatuto dos Tribunais Fiscais e Administrativos e com efi-
Sendo absoluta, implicaria, em sentido negativo, que os tribunais ad- cácia diferida para um ano depois da respectiva publicação, foi alterada
ministrativos só poderão julgar questões de direito administrativo e, em a redacção dos artigos 74° e 77° do Código das Expropriações.
sentido positivo, que só eles poderão julgar tais questões. Passamos a transcrever o citado preceito da Lei 13/2002:
É hoje dominante, na Doutrina, a interpretação no sentido que a
norma consagra uma reserva relativa, um modelo típico, que deixa à Artigo 5º
liberdade do legislador ordinário a introdução de alguns desvios, aditivos
ou subtractivos, desde que preserve o núcleo essencial do modelo cons- Alterações ao Código das Expropriações
titucionalmente definido, segundo o qual o âmbito regra da jurisdição Os artigos 74° e 77° do Código das Expropriações, aprovado pela Lei
administrativa deve corresponder à justiça administrativa em, sentido n° 168/99, de 18 de Setembro, passam a ter a seguinte redacção:
material (cfr., neste sentido, Vieira de Andrade, “A Justiça Administra-
tiva“, 4ª ed., p. 107 e segs., Sérvulo Correia, “Estudos em Memória do «Artigo 74°
Prof. Castro Mendes”, 1995, p. 25, Rui Medeiros, “Brevíssimos tópicos
para uma reforma do contencioso da responsabilidade” in CJA, n° 16, 1 – […]
pp. 35 -36 e Jorge Miranda, “Os parâmetros constitucionais da reforma 2—[...]
do contencioso administrativo”, in CJA. nº 24, p. 3 e segs.). 3—[...]
Esta linha de leitura, que não é repelida pelo texto - que não diz ex- 4 — Se não for notificado de qualquer decisão no prazo de 90 dias a
plícita e inequivocamente que aos tribunais administrativos competem contar da data do requerimento, o interessado pode fazer valer o direito
apenas questões administrativas e que estas só a eles estão atribuídas de reversão no prazo de um ano, mediante acção administrativa comum
- e assenta na ideia de que a finalidade principal da norma é a abolição a propor no tribunal administrativo de círculo da situação do prédio ou
do carácter facultativo da jurisdição administrativa e não a consagração da sua maior extensão.
de uma reserva de competência absoluta dos tribunais administrativos é, 5 — Na acção prevista no número anterior, é cumulado o pedido de
também, acolhida pela Jurisprudência do Tribunal Constitucional [cfr., adjudicação, instruído com os documentos mencionados no artigo 77°,
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que o tribunal aprecia, seguindo os trâmites dos artigos 78° e 79°, no art. 1º da Lei n° 4-A/2003, de 19 de Fevereiro. Contudo, essa mudança
caso de reconhecer o direito de reversão. reportou-se, única e exclusivamente, ao nº 4 do art. 74° do Código da
Expropriações.
Artigo 77° Quanto a isto não há lugar a duas interpretações. Não tem qualquer
1- Autorizada a reversão, o interessado deduz, no prazo de 90 dias a consistência o argumento das recorrentes no sentido que a utilização de
contar da data da notificação da autorização, perante o tribunal admi- linhas ponteadas, no último dos diplomas acima transcritos, significa
nistrativo de círculo da situação do prédio ou da sua maior extensão, a vontade do legislador em eliminar o conteúdo das normas que fez
o pedido de adjudicação, instruindo a sua pretensão com os seguintes substituir por essas mesmas linhas ponteadas, fazendo represtinar a re-
documentos: dacção anterior. É manifesto que, como é recorrente fazer, por economia
e para dar evidência à alteração, o legislador da lei nova, dispensou-se
a) [...] de repetir o conteúdo das normas que escaparam à inovação. As linhas
b [...] ponteadas estão em vez das anteriores redacções da lei antiga e que
c […] se mantiveram inalteradas. Não significam o apagamento integral do
d [...] conteúdo das normas anteriores. Se a intenção do legislador fosse a de
e [...] eliminar conteúdos, teria dito expressamente que os revogava. E não há
2-[...]» qualquer subsídio interpretativo que sugira que a vontade do legislador
Porém o art. 5° da Lei nº 13/2002, passou a ter a seguinte redacção, da Lei 44/-A/2003, tivesse sido a de retomar a competência do foro ju-
introduzida pelo art. 1º da Lei n° 4-A/2003, de 19 de Fevereiro que, dicial. Muito menos se vê razão para considerar que o legislador tivesse
transcrevemos, de seguida, na parte que interessa: lançado mão das linhas ponteadas como técnica revogatória, improvável
e bizarra, chegando ao inesperado e insólito de, suprimindo o conteúdo,
Artigo 1° sem eliminar a forma, deixar o artigo na letra da lei, com a persistência
Os artigos 5º, 7° e 9º da Lei n° 13/2002, de 19 de Fevereiro, passam de todos os seus números e alíneas, seguidos de... nada.
a ter a seguinte redacção: Portanto, a redacção do art. 77°/1 do Código das Expropriações, hoje
«Artigo 5° vigente e já em vigor à data da dedução do pedido de adjudicação era
a seguinte, na parte que interessa
[...] “Autorizada a reversão, o interessado deduz, no prazo de 90 dias
Artigo 74º a contar da data da autorização, perante o tribunal administrativo de
[…] círculo da situação do prédio ou da sua maior extensão, o pedido de
1-[...] adjudicação (...)”.
2-[...] Deste modo, a competência para apreciar a causa é dos tribunais
3-[…] administrativos.
4 - Se não for notificado de decisão favorável no prazo de 90 dias a Neste sentido se pronunciou já este mesmo Tribunal dos Conflitos
contar da data do requerimento, o interessado pode fazer valer o direito - acórdãos de 2005.11.29 - proc. n° 17/05 e de 2006.03.02 — proc. n°
de reversão no prazo de um ano, mediante acção administrativa comum 20/05.
a propor no tribunal administrativo de círculo da situação do prédio ou 3. Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confir-
da sua maior extensão. mando o acórdão recorrido que declarou competentes para a acção os
5—[...] tribunais administrativos.
Artigo 77º Sem custas.
[...] Lisboa, 26 de Abril de 2006. — António Políbio Ferreira Henriques
1 – […] (relator) — António Rodrigues da Costa — António Bento São Pedro —
a) […] Carlos Alberto Bettencourt de Faria — Fernanda Martins Xavier e
b) […] Nunes.
c) […]
d) […]
e) […]
2 - […]
Temos, assim, que, nesta sucessão normativa, a redacção do art. 77°/1 Acórdão de 26 de Abril de 2006.
do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n° 168/99, de 18
de Setembro, sofreu apenas uma alteração. A que lhe foi introduzida Assunto:
pelo art. 5º da Lei n° 13/2002, de 19 de Fevereiro. É certo que este
diploma, que aprovou o novo Estatuto dos Tribunais Administrativos Competência dos Tribunais Administrativos. Acção de indem-
e Fiscais, viu alterada a redacção do seu art. 5º, esta modificada pelo nização. Acto de gestão pública.
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Sumário: a competência decisória da outra jurisdição quanto ao conhecimento da


mencionada acção declarativa, cumpre decidir.
Nos termos da alínea b), nº 1, do artigo 51.º do ETAF de Vejamos.
1984, compete aos Tribunais Administrativos de Círculo o À face do E.T.A.F. de 1984, a competência dos tribunais administra-
conhecimento de uma acção em que o A. pede a condenação tivos relativamente a acções de responsabilidade civil extracontratual
do R. Município pelos prejuízos sofridos com a construção emergente de actos do Estado, demais entes públicos e dos titulares
da variante à EN n.º 222. dos seus órgãos ou agentes restringe-se aos casos em que esta deriva
de actos de gestão pública, como decorre do preceito no art. 51º, n.° 1,
Processo n.º 2/06-70. alínea h), daquele diploma.
Requerente: António Mendes de Freitas Carvalho no conflito negativo Assim, para a resolução do presente conflito negativo de jurisdição,
de jurisdição, entre o Tribunal Judicial de Castelo de Paiva e o Tribunal impõe-se qualificar, como de gestão pública ou de gestão privada, os
Administrativo e Fiscal de Penafiel. actos praticados pelo Réu (Município), que alegadamente se apresentam
Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. António Fernando Samagaio (por ven- como causadores de prejuízos ao Autor.
cimento e sorteio). Sobre a questão da qualificação dos actos da Administração Pública,
o Tribunal dos Conflitos, no Acórdão de 04.04.2006 (proferido no pro-
Acordam no Tribunal dos Conflitos. cesso n.° 8/03), distinguiu, na esteira de jurisprudência anteriormente
António Mendes de Freitas Carvalho intentou no Tribunal Judicial da perfilhada por este mesmo Tribunal, actos de gestão pública dos actos
Comarca de Castelo de Paiva acção declarativa sob a forma de processo de gestão privada.
ordinário contra o Município de Castelo de Paiva, “pedindo que, com Conforme o referido aresto, “actos de gestão pública são os praticados
fundamento na construção, sem o seu consentimento, de duas caleiras pelos órgãos ou agentes da administração no exercício de um poder
para o escoamento de águas pluviais levada a cabo pelo Réu, no decurso público, isto é, no exercício de uma função pública, sob o domínio de
da construção da Variante à Estrada Nacional a.° 222, no Lugar de normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o
Fundões, freguesia de Sobrado, fosse condenado: exercício de meios de coerção; actos de gestão privada são os praticados
a) a reconhecê-lo como proprietário do prédio que identificou no pelos órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida
artigo 1º da sua petição inicial; de poder e, portanto, numa posição de paridade com o particular ou os
b) retirar as caleiras colocadas nesse prédio, repondo-o no estado, em particulares a que os actos respeitam, nas mesmas condições e no mesmo
regime em que poderia proceder um particular com inteira subordinação
que se encontrava antes da colocação das caleiras; e
às normas de direito privado”.
c) indemnizá-lo pelos prejuízos sofridos, em quantia a liquidar em
E, chamando à colação o Acórdão do Tribunal dos Conflitos de
execução de sentença.” 05.11.1981 (proferido no processo n.° 124), frisou que “a solução do
O Réu contestou por impugnação, alegando que as obras em causa problema da qualificação, como de gestão pública ou de gestão privada,
tinham sido realizadas com o consentimento do Autor e que eram neces- dos actos praticados pelos titulares de órgãos ou por agentes de uma
sárias na construção da Variante à Estrada nacional nº 222, e, por outro pessoa colectiva pública, incluindo o Estado reside em apurar:
lado, apresentou reconvenção, pedindo que fosse constituída a seu favor - Se tais actos se compreendem numa actividade da pessoa colectiva
uma servidão administrava de passagem de águas ou de aqueduto. em que esta, despida do poder público, se encontra e actua numa posição
O Autor deduziu réplica. de paridade com os particulares a que os actos respeitam, e, portanto,
Em audiência preliminar, foi suscitada a excepção de incompetência nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um
em razão da matéria - incompetência absoluta. particular, com submissão às normas do direito privado;
O Tribunal Judicial da Comarca de Castelo de Paiva julgou-se in- - Ou se, contrariamente, esses actos se compreendem no exercício
competente para conhecer do pedido da acção e, em consequência, de um poder público, na realização de uma função pública, indepen-
absolveu o réu da instância. dentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e
Na subsequente acção interposta pelo autor no Tribunal Administra- independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza,
tivo e Fiscal de Penafiel, este Tribunal também se declarou material- que na prática dos actos devem ser observadas”.
mente incompetente para conhecer do pedido constante dos autos, tendo Ora, no caso em apreço, a causa de pedir e o pedido formulado têm
sido, em conformidade, o Município de Castelo de Paiva absolvido da por fundamento actos imputados ao Município de Castelo de Paiva
instância. na sequência da construção de uma estrada denominada “Variante à
Ambas as decisões transitaram em julgado. E.N. 222”, actos que resultaram do exercício de funções de natureza
O Autor vem requerer a resolução do conflito negativo de jurisdição, publica, previstas em normas de direito público, e cuja prática ou exer-
por forma a ser declarada a jurisdição competente para conhecer da cício foram influenciados pela prossecução do interesse público, con-
causa. substanciado na construção da rede viária.
Apresentadas as duas decisões reciprocamente opostas, provindas de Assim, ter-se-á que reconduzir os actos imputados ao Réu à qua-
tribunais de jurisdições distintas - jurisdição comum e jurisdição admi- lificação de actos de gestão pública, cabendo, como tal, jurisdição
nistrativa e -, em que cada uma declina a competência própria e assevera administrativa a apreciação do correspondente litígio.
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Pelo exposto, acordam neste Tribunal dos Conflitos em declarar É a titularidade duma relação jurídico-administrativa ou de uma
materialmente competente para conhecer e julgar a presente acção a relação jurídico-privada o que separa a actuação de direito público ou
jurisdição administrativa. de direito privado duma entidade administrativa. O critério da gestão
Sem custas. pública dos interesses que lhe cumpre assegurar não é o decisivo, dado
que esse objectivo pode ser alcançado através do recurso a normas
Lisboa, 26 de Abril de 2006. — António Fernando Samagaio (relator unicamente de direito privado.
por vencimento) — António Políbio Ferreira Henriques — Edmundo 2 Utilizando o critério da referida natureza das relações jurídicas,
António Vasco Moscoso — António Rodrigues da Costa — Carlos aos tribunais comuns pertence julgar as causas segundo o direito pri-
Alberto de Andrade Bettencourt de Faria (vencido conforme projecto vado e aos tribunais administrativos julgá-las de acordo com o direito
que junto). administrativo, conforme a relação jurídica litigiosa dimane de um ou
I de outro dos referidos normativos.
António Mendes de Freitas Carvalho intentou acção ordinária no Expressiva a este respeito é á observação de Oliveira Ascensão a
Tribunal Comum de Castelo de Paiva contra o Município de Castelo propósito das vias que se abrem ao particular no âmbito do direito do
de Paiva, pedindo que o réu fosse condenado a reconhecê-lo como urbanismo — Direito do Urbanismo 340 a 342 -:
proprietário de determinado prédio, retirando as caleiras que aí colocou. “- Ou invoca o próprio direito de propriedade e tem opção entre
Mais pede que seja condenado em indemnização pelos prejuízos que impugnar o acto administrativo ou defender directamente a propriedade
lhe causou, a liquidar em execução de sentença. perante os tribunais comuns.
O réu contestou e deduziu pedido reconvencional, pedindo que fosse Ou invoca um direito ou interesse legítimo criado pela lei adminis-
constituída a seu favor uma servidão de natureza administrativa de trativa, para além do conteúdo da propriedade. O caminho que se lhe
passagem de águas ou de aqueduto. abre é então o da acção administrativa.”.
O autor deduziu réplica. 3 No caso em apreço, o autor limita-se a defender a sua proprie-
Em audiência preliminar foi suscitada a excepção de incompetência dade.
em razão da matéria. É só esta que invoca. Da mesma forma que o faria se o autor do acto ilí-
Conhecendo desta excepção, o referido tribunal julgou-se incompe- cito — a construção em terreno alheio - fosse um simples particular.
tente para conhecer dos autos, julgando competente para tanto a jurisdi- Não vem invocar qualquer direito ou interesse legítimo que lhe sejam
ção administrativa. Em consequência foi o réu absolvido da instância. facultados pela lei administrativa.
Na subsequente acção interposta pelo autor no Tribunal Administra- E, recorde-se que para a qualificação de um litígio há tão só que
tivo e Fiscal de Penafiel entendeu-se que a competência material para atender à forma como o autor o descreve na petição inicial.
conhecer dos autos pertencia aos Tribunais Judiciais, absolvendo-se o O facto das caleiras em questão resultarem da construção duma estrada,
réu da instância. que é uma actuação regida pelo direito público, não significa que sejam
Recorreu o autor para este Tribunal, apresentando nas suas alegações absorvidas, no seu regime pelo da dita construção. O direito administra-
de recurso a conclusão de que o competente para os presentes autos é tivo e privado podem apenas conjugar-se na realização de determinado
o Tribunal Judicial de Castelo de Paiva. interesse público, sem que isto signifique a perda de autonomia de um
O M° P° no seu parecer entende que o autor não invocou qualquer deles. Da mesma forma que o réu município optou, para fazer a estrada
relação jurídica administrativa, uma vez que unicamente alega como em apreço, não pela expropriação do autor, mas sim pela compra de
fundamento da sua pretensão a violação pelo réu do seu direito de terrenos que a este pertenciam. Como o faria qualquer particular.
propriedade. 4 Deste modo, configura-se como competente para os autos a juris-
Corridos os vistos legais cumpre decidir dição comum - cf. os art°s 4º n° 1 do ETAF, 2° n° 2º e 37° n°s 2 e 3
do CPTA -.
II Pelo exposto acordam em julgar competente para conhecer da matéria
dos autos os tribunais judiciais.
Os factos a atender são os articulados constantes de fls. 7 e 24. Sem custas.
a) Bettencourt de Faria
III
Apreciando
1 As entidades públicas tanto podem agir de acordo com as normas
de direito público que regem as suas atribuições e as competências
que lhe são atribuídas para as prosseguir — o direito administrativo -, Acórdão de 26 de Abril de 2006.
como podem actuar de acordo com o direito privado, à semelhança de
qualquer outra pessoa colectiva. Assunto:
No primeiro caso são o sujeito activo ou passivo de relações jurídicas
administrativas e no segundo serão igualmente sujeito activo ou passivo, Nacionalização. Acção de indemnização. Competência dos
mas de relações jurídicas privadas. Tribunais administrativos.
104 105

Sumário: Por tal motivo em 23.11.88 a A. dirigiu-se ao Secretário de Estado


das Finanças e do Tesouro solicitando a correcção do quantum indem-
Nos termos do artigo 51.º, n.º 1, alínea h), do ETAF de 1984, nizatório que lhe havia sido atribuído, actualizado com base nos novos
compete aos Tribunais Administrativos de Círculo o co- valores definitivos entretanto fixados, o que não mereceu acolhimento
nhecimento de uma acção em que o A. pede a condenação por parte daquela entidade, como se alcança do despacho do Ministro
do R. Estado no pagamento de uma indemnização decor- das Finanças de 25/02/89 (doc. nº 7).
rente da nacionalização de empresas em que era titular Termina formulando o seguinte pedindo:
de acções. “a) - Deve ser declarada nula a declaração supra identificada no
artº 10º da petição inicial;
Processo n.º 5/02-70. b) - Em alternativa, deve a mesma ser anulada ou julgada resol-
Requerente: Société Financière Commerciale et d’ Affrètement Inc. — vida;
SOFICA, no Conflito Negativo de Jurisdição, entre o Tribunal Cível c) - Em qualquer caso, e por consequência, deve condenar-se o R.
da Comarca de Lisboa — 3.ª Vara – 2.ª Secção e os Tribunais Admi- a pagar à A. a quantia de 298.005.592$00 correspondente à diferença
nistrativos e Fiscais. entre o valor da indemnização a que, nos termos dos pertinentes des-
Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Edmundo Moscoso. pachos normativos de fixação dos valores definitivos das acções de que
era titular, tem direito, acrescida de juros de mora...”.
Acordam, no Tribunal dos Conflitos: 2 – No despacho saneador - decisão de 06.06.2001 - o Juiz da 3ª Vara
1 – SOCIÉTÉ FINANCIÈRE COMMERCIALE ET D`AFFRÈTEMENT Cível da Comarca de Lisboa decidindo excepção que o R. invocara na
INC. - SOFICA, id. a fls. 2, intentou no Tribunal Cível da Comarca de contestação, julgou aquele tribunal materialmente incompetente em
Lisboa acção declarativa, na forma ordinária, contra o ESTADO POR- razão da matéria para o conhecimento da acção e em consequência
TUGUÊS, alegando para o efeito e em síntese o seguinte: absolveu o R. da instância.
Em 1975 era titular de várias acções da SACOR e da CIDLA, empre- Decisão essa que viria posteriormente a ser confirmada, em sede de
sas estas que foram nacionalizadas pelo DL 205-A/75, de 16 de Abril. recurso jurisdicional, pelo Acórdão da Relação de Lisboa de 14.02.2002
Os primeiros valores provisórios atribuídos a essas acções foram (fls. 352/355).
fixados pelo Despacho Normativo nº 122/79, de 25/5 completados 3 – Do acórdão da Relação de Lisboa, interpôs a A., ao abrigo do dis-
posto no artº 107º nº 2 do CPC, recurso que dirigiu ao Tribunal de Confli-
e corrigidos posteriormente pelos DN nº 145/80, de 29/04 e 114/84,
tos, tendo em sede de alegações formulado conclusões (fls. 360/370 cujo
de 26 de Maio, a que se seguiu o DN nº 159/84, de 20/05 que fixou conteúdo se reproduz) que e em termos úteis se resumem ao seguinte:
para as acções SACOR os valores provisórios de 4.950$00 (acções I – A competência do Tribunal em razão da matéria é fixada em
ao portador) e 4.745$00 (acções nominativas) e de 2.876$00, para as função dos termos em que a acção é proposta.
acções CIDLA. II – O pedido nuclear formulado nos presentes autos consiste na
Por despacho do Secretário de Estado das Finanças de 04.07.85 foi declaração de invalidade e/ou anulação ou resolução de uma decla-
determinado que a indemnização pelas aludidas nacionalizações fosse ração particular de exoneração do dever de indemnizar, emitida, por
integralmente paga pela entrega de títulos da classe I (Obrigações do exigência da Administração, por ocasião da dação em pagamento à aqui
Tesouro de 1977 - Nacionalizações e Expropriações), decisão essa que recorrente de títulos da dívida pública de determinada classe, com a
veio ao encontro de pretensão que a A. formulara. garantia de que os valores dos referidos títulos seria substancialmente
Antes porém de receber aqueles títulos da classe I, em 18.09.85 teve de equivalente aos valores indemnizatórios definitivos que viessem a ser
subscrever, por exigência do R., uma declaração na qual, depois de referir fixados para as acções de que a interessada era titular – o que não
o recebimento da indemnização derivada de todas as acções que possuía, veio a verificar-se;
afirmava “que se considerava totalmente indemnizada, quer a título de III – Com fundamento em tal declaração negocial privada, a Adminis-
indemnização provisória quer a título de indemnização definitiva, nada tração recusou-se, subsequentemente, a pagar à impetrante o diferencial
mais tendo a receber ou reclamar do Estado Português”. entre o valor dos referidos títulos e da indemnização apurada com base
Exigência essa que lhe foi posta como condição sine qua non do nos valores definitivos fixados para as referidas acções;
recebimento da indemnização em causa. IV – Por conseguinte, não se está aqui em presença de um litígio
Esta declaração apenas foi assinada pela A. no pressuposto de que emergente de uma relação jurídica administrativa, pelo que ao foro
o valor definitivo a atribuir às acções da SACOR e CIDLA não seria administrativo falece competência para conhecer da causa, devendo a
substancialmente diferente do valor fixado provisoriamente pelo Despa- mesma ser julgada pelos Tribunais comuns.
cho Normativo nº 159/84 e que serviu de base à indemnização recebida 4 – De modo diferente argumenta o R. Estado na sua alegação, onde
pela A. e à emissão daquela declaração. formula a seguinte conclusão:
Todavia, através do Despacho normativo nº 80/88, de 1/10, o R. veio Tratando-se de actos em que o Estado actua no exercício do seu
a atribuir às acções daquelas empresas valores definitivos (6.891$50 e “jus imperi” (actos de gestão pública), como se depreende da relação
3.516$50, respectivamente) que ultrapassavam largamente os valores material controvertida, em que na acção intentada pela recorrente
provisórios acima indicados que serviram de base ao cálculo da indem- contra o Estado se reporta a um processo de nacionalização de bens
nização recebida pela A. questionando diferenças do valor da indemnização a que se julga com
106 107

direito, o tribunal competente para dirimir tais matérias é o Tribunal exclusão de “todas as actividades de gestão privada da Administração
Administrativo de círculo (al. h) do nº 1 do artº 51º do ETAF. Pública, que o Direito Administrativo não regula”.
Cumpre decidir: A “gestão pública” é justamente, no dizer de Freitas do Amaral (obra
5 – Vem interposto, ao abrigo do art. 107º, nº 2 do C. P. Civil, recurso e pág. citada) “uma expressão que se utiliza no nosso direito para
do Acórdão da Relação de Lisboa de 14.02.2002 (fls. 352/355) que, designar a actividade pública da Administração” ou, como entende
confirmando anterior decisão proferida pelo Juiz da 3ª Vara Cível da Marcelo Caetano são “actos de gestão pública” “toda a actividade
Comarca de Lisboa (fls. 313/315) considerou o Tribunal Cível incom- da Administração que seja regulada por uma lei que confira poderes
petente em razão da matéria para conhecimento da presente acção e em de autoridade para prosseguimento do interesse público, discipline o
conformidade absolveu o R. Estado da instância. seu exercício ou organize os meios necessários para esse efeito” (cf.
Considerou para o efeito a decisão recorrida que nos presentes autos Manual, Vol. II, pág. 1222).
está em questão um pedido indemnizatório decorrente de um acto de Como tem sido jurisprudência pacífica, nomeadamente do Tribunal
nacionalização. de Conflitos (cfr. nomeadamente ac. nº 25/03, de 18/11/04) o saber se
E, muito embora a A. não ataque o acto da nacionalização, é com estamos ou não perante um litígio emergente de uma relação jurídica
base na prática desse acto que se pretende efectivar a responsabilidade administrativa ou seja, a determinação da jurisdição competente para
civil do Estado. decidir a acção, tem de ser aferida em função dos termos em que o A.
Considerando que os actos de nacionalização e de atribuição dos configurou a acção ou, mais precisamente, face aos termos em que o
montantes indemnizatórios e a sua realização prática, são actos de gestão autor formulou a sua pretensão e os fundamentos em que a sustentou
pública, já que o Estado, ao praticá-los, age no exercício do jus imperii, – pedido e causa de pedir.
entendeu-se no Acórdão recorrido que, face ao disposto no artº 51º/1/h) Como se referiu, discordando do decidido no acórdão sob recurso,
do ETAF, para conhecer a presente acção sobre responsabilidade civil como único fundamento discordante a A. limita-se a dizer que o pe-
do Estado por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública são dido nuclear formulado nos presentes autos consiste na declaração de
competentes os tribunais administrativos de círculo. invalidade e/ou anulação ou resolução de uma declaração particular de
Discordando do decidido no acórdão sob recurso, a recorrente alicerça exoneração do dever de indemnizar, já que teria sido com fundamento
a sua defesa dizendo essencialmente que o “pedido nuclear formulado em tal declaração negocial privada, que a Administração se teria recusado
nos presentes autos consiste na declaração de invalidade e/ou anulação a pagar-lhe a indemnização pretendida.
ou resolução de uma declaração particular de exoneração do dever Refira-se no entanto que, caso se entendesse que o pedido principal
de indemnizar”, já que teria sido com fundamento em tal declaração formulado nos autos consiste naquele pedido de declaração de invali-
negocial privada que “a Administração se recusou a pagar à impetrante dade, a decisão recorrida teria decidido naturalmente de forma diferente
o diferencial entre o valor dos referidos títulos e da indemnização já que nela se entendeu que “a apreciação da questão da invalidade
apurada com base nos valores definitivos fixados para as referidas e/ou resolução da declaração negocial em apreço, quando encarada
acções” – cf. cls. II) e III). isoladamente, não geraria problemas a nível de determinação da com-
A única questão a resolver reside por conseguinte em determinar qual petência material: ela caberia, sem dúvida, ao foro comum”.
o tribunal competente para julgar a presente acção ou mais precisamente Só que, face ao alegado na petição inicial, as coisas não podem ser
em saber se essa competência pertence à jurisdição comum como sus- vistas como a recorrente as apresenta.
tenta a recorrente ou caso contrário, se essa competência pertence à Desde logo, é a A. que expressamente refere que “em 23/11/88” e nos
jurisdição administrativa como se decidiu na decisão recorrida. termos do requerimento de fls. 27, se dirigiu ao Secretário de Estado
Nos termos do artº 211º nº 1 da CRP, são da competência dos tribunais das Finanças e do Tesouro solicitando a correcção do quantum indem-
judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra jurisdição (cfr. ainda nizatório que lhe havia sido atribuído, actualizado com base nos novos
artº 18º nº 1 da Lei 3/99, de 13 de Janeiro e 66º do CPC). valores definitivos entretanto fixados, requerimento esse que acabou
Por sua vez, a competência dos tribunais administrativos, nos termos por ser indeferido por despacho do Ministro das Finanças de 25.02.89
do estabelecido no artº 212º nº 3 da CRP compreende “as acções e recur- (cf. doc, de fls. 28 a 30 e artº 14º a 16º da petição).
sos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes Inconformada, dirigiu “em 17/01/92” nova petição ao Ministro das
das relações jurídicas administrativas e fiscais” ou, nos termos do artº 3º Finanças onde solicitava a reapreciação do assunto (doc. de fls. 31),
do ETAF, aprovado pelo DL 229/96, de 29/11 (aplicável aos presentes pretensão essa que acabou igualmente por ser indeferida por despacho
autos – artº 9º da Lei nº 13/2002 de 19 de Fevereiro que aprovou o novo do Sec. de Estado do Tesouro de 01.09.92, onde se considerou que a A.
ETAF, na redacção introduzida pelo artº 1º da Lei nº 4-A/2003, de 19/02), não tinha direito a ser indemnizada de acordo com os valores definitivos
“incumbe aos tribunais administrativos e fiscais na Administração da publicados pelo Despacho Normativo nº 80/88, de 12 de Setembro (doc.
justiça... dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito de fl. 37/41 e artº 17 e 18 da petição).
das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Donde resulta que a A. procurou desde logo, através do recurso à via
Essas relações jurídicas administrativas são naturalmente reguladas administrativa, obter a indemnização a que considerava ter direito e que
por normas de direito administrativo, ou seja, “normas que regulam no essencial se resume à diferença entre o montante da indemnização
as relações estabelecidas entre a Administração e os particulares no provisória que lhe foi arbitrada e o montante da indemnização definitiva
desempenho da actividade administrativa de gestão pública” (cfr. Frei- que foi fixada com referência às acções que detinha naquelas sociedades
tas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. I, pg. 134), com que foram nacionalizadas.
108 109

Só após lhe ter sido negada pelas competentes entidades adminis- as condições e termos em que deverá ser feito o pagamento da indem-
trativas a pretendida indemnização, é que a A. resolve lançar mão à nização devida pela nacionalização de bens.
presente acção, através da qual e no essencial visa obter o mesmo efeito Daí deriva desde logo que as nacionalizações visam a prossecução
jurídico – ser ressarcida de determinado montante a que julga ter direito, de interesses exclusivamente públicos ou colectivos, regulados natural-
“correspondente à diferença entre o valor da indemnização a que, nos mente por normas que conferem poderes de autoridade à Administração
termos dos pertinentes despachos normativos de fixação dos valores Pública.
definitivos das acções de que era titular, tem direito”. É por conseguinte visível e notório que a indemnização peticionada
Pretender sustentar que o pedido nuclear que formulou na presente deriva de actos de gestação pública, em que o Estado, através dos seus
acção consiste na declaração de nulidade da declaração que subscreveu órgãos ou agentes surge ou actua revestido do “jus imperii”. Toda essa
e onde declarava que se “considerava totalmente indemnizada, quer a actividade administrativa decorrente das nacionalizações de bens do
título de indemnização provisória, quer de indemnização definitiva, domínio privado com a consequente fixação das respectivas indemni-
nada mais tendo a receber ou reclamar do Estado”, não tem qualquer zações, foi exercitada ao abrigo ou no âmbito de normas que conferem
consistência, já que o que a A. pretende é ver satisfeita a sua preten- poderes de autoridade ou seja de normas de direito público.
são relativa ao pagamento do montante da indemnização peticionada, Formula assim a A. um pedido de indemnização emergente de actos
pela qual tem vindo desde há muito a insistir nomeadamente através praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de
daqueles requerimentos que dirigiu à Administração e que acabaram uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, isto
por ser indeferidos. é, de actos de gestão pública.
Esse montante deriva precisamente do facto de, por força do despacho Aliás, a competência para conhecimento das acções fundadas em
normativo nº 80/88, ter sido atribuído às acções de que era titular um indemnizações derivadas da nacionalização de empresas sempre tem sido
valor definitivo de montante superior àquele que anteriormente fora pacificamente aceite pelos Tribunais Administrativos (cf. entre outros os
fixado provisoriamente e lhe fora pago a título de indemnização pela Ac. do STA de 24.03.04, Rec. 112/03 e de 07.03.06, Rec. 488/05).
nacionalização das aludidas empresas. Estamos pois, perante actuações da Administração Pública que in-
É aí – pedido de pagamento do diferencial entre o valor fixado de- tegram o exercício dos seus poderes de autoridade, cujos prejuízos
finitivamente e o valor que lhe foi pago - que efectivamente reside o decorrentes dessa actuação tem, naturalmente, de ser dirimidos pelos
verdadeiro pedido ou o pedido principal, ou seja a pretensão que a A. tribunais administrativos, nos termos do art. 51º, nº 1, al. h) do ETAF
pretende fazer valer. de 1984 (aplicável à situação dos autos).
Formula no entanto o pedido no sentido de ser “declarada nula” 6 – Termos em que ACORDAM os Juízes deste Tribunal de Con-
aquela declaração que subscreveu, por a A. eventualmente considerar flitos:
que aquela declaração constitui um obstáculo ou um facto impeditivo do a) - Negar provimento ao recurso, declarando os Tribunais Adminis-
direito ao pagamento da pretendida indemnização. A declaração subs- trativos competentes, em razão da matéria, para conhecer da presente
acção.
crita pela A. estará assim e eventualmente conexionada com o pedido
b) - Sem custas.
de indemnização decorrente do acto de nacionalização.
Esse pedido de declaração de nulidade, só a titulo incidental, caso se Lisboa, 26 de Abril de 2006. — Edmundo António Vasco Moscoso
venha a revelar necessário, é que terá eventualmente de ser apreciado, (relator) — Carlos Alberto Bettencourt de Faria — António Fernando
já que o que a A. pretende é ver satisfeito o pedido de indemnização. Samagaio — António Artur Rodrigues da Costa — António Bento São
De outro modo o conhecimento isolado do pedido de declaração de Pedro.
nulidade daquela declaração não traria qualquer benefício ou utilidade
para a A.
Daí que, a competência do Tribunal tenha de ser aferida em função
do pedido indemnizatório formulado pela A.
Ora, no que respeita ao conhecimento do pedido indemnizatório a Acórdão de 26 de Abril de 2006.
recorrente não suscita qualquer objecção ao decidido na sentença sob
recurso, ao considerar que o conhecimento desse pedido compete aos
Tribunais Administrativos. Assunto:
Diga-se no entanto que a pretendida indemnização decorre, como se Comissão de serviço de funcionário no ISSS. Regime de di-
referiu, de anterior acto administrativo que nacionalizou aquelas socie- reito privado (contrato individual da trabalho). Tribunal
dades, conexionado com os consequentes despachos que fixaram quer a competente.
indemnização provisória quer a indemnização definitiva, com referência
ao valor fixado às acções das empresas nacionalizadas. Sumário:
É a própria CRP (cfr. artº 83º) que relega para a lei ordinária a de-
terminação dos critérios de fixação da correspondente indemnização I — A competência do tribunal em razão da matéria é fixada
derivada da “apropriação pública dos meios de produção” (onde se em função dos termos em que a acção é proposta, ou
inclui a nacionalização da empresa em questão nos autos), bem como seja, pelo modo como o Autor estrutura a causa — sem
110 111

que para esse efeito releve a prognose acerca do êxito um contrato de trabalho subordinado. Interposto agravo desta decisão, a
da acção ou seja lícita qualquer indagação incidindo Relação de Coimbra confirmou-a, decidindo - a menos implicitamente
sobre o respectivo mérito. - que o tribunal competente era o tribunal administrativo, em virtude
II — Invocando o Autor um acordo escrito celebrado com o de o Autor se encontrar ligado ao Réu por uma relação jurídica de
ISSS tendo por objecto o exercício de funções como ad- emprego publico.
junto da directora de Centro Distrital de Solidariedade O Autor voltou a gravar, desta vez para S.T.J., o qual, sob invocação
e Segurança Social, no qual eram estabelecidos a remu- do art. 107°, nº 2, do C.P.C., veio a decidir não tomar conhecimento do
neração base que auferia e o subsídio por isenção de recurso e remeter os autos a este Tribunal de Conflitos, por ser ele o
horário de trabalho e se remetia para o regime jurídico competente para conhecer do agravo.
do pessoal do quadro específico do ISSS (definido como Nas suas alegações, o recorrente enunciou as seguintes conclusões:
o do contrato individual de trabalho), o regulamento “A) Das nulidades do acórdão recorrido
do pessoal dirigente e de chefia e, subsidiariamente, 1ª - A decisão recorrida não valora os factos alegados nos arts. 1° a
o do contrato individual de trabalho, afirmando ele a 60° da p. i. e 4° a 18° da réplica, que se reproduzem infra e também não
natureza laboral da relação que mantinha com o Réu e conhece da questão de direito, devidamente alegada em que o recorrente
desconsiderando por completo o lugar de origem nos estava em comissão de serviço de direito de trabalho, nos termos do Dec-
quadros do Estado, vindo a pedir a respectiva conde- -Lei n.° 404/91, de 16/10, constituindo ambas as omissões nulidades da
nação no pagamento de diferenças salariais e, sub- decisão recorrida, violando o art. 688°, n.° 1, al. b) e d), do CPC.
sidiariamente, numa indemnização, deve entender-se B) Errada interpretação de factos e violação da lei
que, pelo critério exposto em I, o litígio nasce sob a 2ª- A decisão recorrida decidiu que a relação jurídica entre o A. e o
égide de normas de direito privado laboral, e não de R. era direito administrativo, pelo que julgou procedente a excepção de
direito administrativo, pelo que é o tribunal do trabalho incompetência do Tribunal do Trabalho.
o competente para o conhecimento da acção. 3ª - A competência material de um determinado Tribunal há-de aferir-
III — A tal conclusão não obsta a circunstância de existir uma -se de acordo com os termos em que é proposta, atendendo-se ao direito
decisão da Secretária de Estado a pôr termo à comissão invocado perante o pedido formulado e respectivos fundamentos, que
de serviço do Autor (na sequência de uma alteração da o Autor pretende ver reconhecidos judicialmente, ou seja, pela natu-
regulamentação interna aplicável a possibilitar essa reza da relação material, segundo a versão apresentada em juízo pelo
medida, da responsabilidade da mesma entidade), nem demandante.
a impugnação de ilegalidades a tal decisão que re- 4ª - Na petição inicial e na resposta à excepção o A. alegou os factos
dundam em vícios específicos do domínio do direito e o direito que caracterizam a sua relação de trabalho com o Réu com
administrativo, se o Autor não inclui no seu pedido uma relação a que é aplicável o direito de trabalho, constituindo essa
a anulação dessas decisões, afirma que essa matéria relação em novos instrumentos jurídicos de contratação e gestão a que
á objecto de um recurso contencioso que já interpôs os Institutos Públicos vem recorrendo na última década.
no tribunal administrativo, alega que a decisão de o 5ª - Acresce que o A. não era funcionário público do Estado, mas de
afastar foi, de facto, do Réu ISSS e não do Secretário de um Instituto Público com personalidade jurídica, tendo celebrado com
Estado e aceita que a instância possa ser suspensa no o ISSS um contrato de trabalho subordinado, com isenção de horário,
tribunal de trabalho a espera da decisão dessa «questão para desempenhar a actividade de gerente, descontando, como regra,
prejudicial». para a Segurança Social e não para a Caixa Geral de Aposentações,
durante 3 anos, que seria desempenhado em comissão de serviço de
Processo n.º 6/05-70. direito de trabalho, então prevista e regulada no Dec-Lei n.° 404/91,
Requerente: José Manuel Milheiriço de Carvalho Chaves, no con- de 16/10 e actualmente prevista e regulada nos arts. 244º a 248°, do
flito negativo de jurisdição, entre o Tribunal do Trabalho de Leiria e os Código do Trabalho.
Tribunais Administrativos e Fiscais 6ª - Assim, a decisão recorrida qualificou mal a comissão de serviço
Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Simões de Oliveira. do recorrente, dado que a qualificou como sendo da função pública
enquanto a referida comissão de serviço é de direito de trabalho, dado
Acordam no Tribunal dos Conflitos: que o cargo de Adjunto do Director era aplicado o regime jurídico de
contrato individual de trabalho, em comissão de serviço, nos termos
-I- dos arts. 37º, 38°, n° 1 a n.° 4, dos Estatutos do ISSO aprovados pelo
JOSÉ MANUEL MILHEIRIÇO DE CARVALHO CHAVES pro- Dec-Lei.n.° 316-A/2000, de 7/12 e do Regulamento do pessoal dirigente
pôs contra o INSTITUTO DE SOLIDARIEDADE E SEGURANÇA e de chefia (Despacho n.° 11464, DR, II Série, de 30/5).
SOCIAL, no Tribunal do Trabalho de Leiria, acção declarativa que 7ª - Consequentemente, a decisão recorrida violou o art 85°, al. b), da
considerou emergente de contrato individual de trabalho. Lei 3/99, de 13/01, pelo que deve ser revogada e substituída por outra
No saneador, o juiz considerou o tribunal do trabalho incompetente em que declare o Tribunal do Trabalho de Leiria competente, em razão da
razão da matéria, por a relação jurídica entre Autor e Réu não configurar matéria, ou, se assim não se entender, ordene o prosseguimento dos
112 113

autos para julgamento de modo a fazer prova sobre a relação laboral formula, que se afere da competência — cfr. MANUEL DE ANDRADE,
entre o Recorrente e o Recorrido”. Noções Elementares de Processo Civil, 1963, páginas 89 e 90, Acórdãos
O R contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado. do Tribunal de Conflitos de 26.9.96 (Ap. D.R., p. 59), 27.2.02, procº.
O processo foi aos vistos, cumprindo agora decidir. n° 371/02, 9.3.04, proc.° n° 4/03, 23.9.04, proc.° n° 5/04, Acs. do STA
de 12-01-88, proc.° n.° 24.880, in Ap. D.R., p. 106 e do STJ de 6-06-78,
- II- in BMJ, 278,122. O pedido do autor corresponde ao quid disputatum, ou
seja, a providência concreta que ao tribunal vem solicitar-se.
Antes de mais, e por se tratar de questão de conhecimento prioritário, A competência não depende, assim, da legitimidade das partes nem da
importa tomar posição sobre a arguição de nulidade do acórdão recorrido procedência da acção e, por isso, o que o réu vem alegar na contestação
(conclusão 1ª). não pode servir de contributo para o juiz fixar a competência do tribunal,
Haveria violação do preceituado nas alíneas b) e d) do art. 668° do assim como não pode relevar qualquer prognose acerca da viabilidade
C.P.C., em virtude de a Relação “não ter valorado” determinados factos e da acção ou outra indagação atinente ao respectivo mérito.
de não ter conhecido da “questão de direito” de que o recorrente “estava O que cumpre verificar, para o efeito do estabelecimento da com-
em comissão de serviço de direito de trabalho nos termos do Dec-Lei petência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua
n°404/91, de 16/10”. pretensão em juízo.
Os tribunais superiores não se têm cansado de afirmar que as nulidades Analisemos então a petição inicial da acção, começando pelos termos
da sentença de que trata o art. 668° do C.P.C. não podem confundir-se em que se formularam os pedidos.
com os eventuais erros de julgamento de que a mesma possa enfermar. E O primeiro consiste na condenação do Réu a “cumprir o Acordo de
que sob a designação de questões cabem apenas as verdadeiras questões Nomeação em Comissão de Serviço celebrado com o autor até à data
submetidas à sua apreciação, nos termos do art. 660°, n°2, do C.P.C. - e do seu termo como adjunto da Directora do CDSSS de Leiria e seja o
não os argumentos e raciocínios desenvolvidos pelas partes, que o juiz réu condenado a pagar 3.319,46 euros mensais desde 24 de Setembro
não está obrigado a rebater. de 2001 até 1 de Junho de 2004, a que haverá que deduzir o vencimento
Ora, a circunstância de a sentença não valorar (em favor da perspec- das actuais funções que desempenha, pelo que o ISSS deve ser conde-
tiva do autor, claro) certos factos descritos na p. i. não é susceptível nado a pagar ao autor os salários vencidos e vincendos no montante de
de integrar nulidade, designadamente a tipificada na al. b) do n° 1 do 40.809,23 euros”.
art. 668º do C.P.C.. E não pode haver omissão de pronúncia quando o O segundo pedido é, formulado subsidiariamente: “… se assim não
tribunal se tiver efectivamente debruçado sobre a questão da sua própria se entender seja o ISSS condenado a pagar ao autor pela cessação do
competência, embora sem se referir a um dos ângulos argumentativos Acordo de Nomeação em Comissão de Serviço a indemnização no
de uma das partes. montante de 40.809,23 euros” (em qualquer dos casos, acrescem os
Improcede, deste modo, a arguição de nulidades do acórdão. juros vincendos a contar da citação).
Prosseguido: Ora, como pode ver-se, os traços estruturais que estes pedidos em-
Para atingir a conclusão de que o tribunal do trabalho era incompetente prestam à acção não são decisivos no sentido de a caracterizar como
para conhecer da acção, o acórdão recorrido estribou-se numa série de pertencente a qualquer das espécies em confronto — acção emergente
considerandos, que podem resumir-se do seguinte modo: de contrato individual de trabalho ou meio contencioso pertencente aos
a) A competência material determina-se em função do pedido do tribunais administrativos.
autor, do quid dispuratum; Podia ser-se tentado a valorizar, em favor da marca juslaboral, o facto
b) O Autor arroga-se a qualidade de funcionário público; de neles se não conter o pedido de anulação ou declaração de nulidade
c) E invoca como fundamento da sua pretensão a ilegalidade do de acto administrativo. Mas o recurso contencioso, a que o mesmo per-
despacho da Secretária de Estado da Solidariedade e Segurança Social tence, não é senão um dos meios processuais para que é competente o
que determinou a cessação da sua comissão de serviço; contencioso administrativo - muito embora seja, de todos eles, o que mais
d) O regime do contrato individual de trabalho, a que alude o art. 37º intensamente radica na respectiva essência. O ETAF e a LPTA prevêem
do Dec-Lei n°316-A/00, de 7/12, é afastado pelo art. 38º do mesmo as acções sobre contratos administrativo se sobre responsabilidade civil,
diploma, que permite que os funcionários do Estado e institutos públicos e não é de excluir que aqueles pedidos, pelo recorte que apresentam, se
desempenhem funções no ISSS em regime de requisição ou comissão de pudessem enquadrar nalguma dessas espécies.
serviço por um período de três anos, renovável, considerando-se mesmo Deste modo, é apenas a literal idade da expressão “salários vencidos e
período como prestado nos quadros de que provenham; vincendos”, contida no primeiro pedido; que pode jogar a favor daquela
e) A entidade empregadora continua a ser o Estado e o vínculo é primeira opção. No entanto, desacompanhada como está doutras marcas
de emprego público, não tendo sido celebrado com o ISSS nenhum típicas de um litígio laboral, só pode ter o valor não vinculativo duma
contrato de trabalho subordinado (o acordo de nomeação em comissão simples sugestão.
de serviço mais não é do que a aceitação pelo nomeado do cargo que Haverá, pois, que completar esta indagação com a análise dos restantes
lhe foi proposto). termos da petição.
Tal com o tem sido repetidamente afirmado por este Tribunal de Con- O Autor começa por alegar que celebrou com o Réu um Acordo
flitos, e igualmente pelo S.T.J. e pelo S.T.A., é em função dos termos em de Nomeação em Comissão de Serviço, descrevendo os termos desse
que a acção é proposta, mormente do pedido que perante o tribunal se acordo (em síntese, para o desempenho do cargo de Adjunto da Directora
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do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Leiria, em princípios que regem o contrato individual de trabalho”. E, embora a
comissão de serviço e ao abrigo do D-L. n° 404/91, de 16.10, mediante causa de pedir seja atravessada pela imputação de ilegalidades que, em
determinada remuneração base e subsídio de isenção de horário de parte, correspondem a institutos do domínio do direito público, dúvidas
trabalho, e com sujeição ao “regime jurídico do pessoal do quadro não há de que quis deliberadamente evitar que a acção tivesse essa cono-
específico, definido nos estatutos do ISSS, pelos regulamentos que lhe tação - seja escolhendo para estas concretas providências o foro laboral
derem execução, designadamente, o Regulamento do Pessoal Dirigente e reservando para o foro administrativo o ataque formal ao despacho da
e de Chefia e, subsidiariamente, pelas normas e princípios que regem Secretária de Estado, seja pela desconsideração e quase ocultação no
o contrato individual de trabalho”). longo texto da petição da existência de um lugar de origem na função
Refere depois que por iniciativa da Secretária de Estado da Soli- pública, seja ainda acentuando (como faz, p. ex., nos artigos 41°, 44º e
dariedade e Segurança Social foi aditada ao art. 12° do Regulamento 80º) que, de facto, a decisão de o afastar foi do próprio ISSS e não da
do Pessoal Dirigente e de Chefia uma al. f), nos termos da qual as Secretária de Estado.
comissões de serviço como a do Autor poderiam cessar “por despacho Contra isso, nem vale argumentar, como faz a decisão recorrida, que
fundamentado do Ministro da Segurança Social e do Trabalho nos termos o acordo em que o Autor se funda mais não é do que a “aceitação” da
do artigo 20º, n° 2, al. a) da Lei n° 49/99 de 22 de Julho”. Na sequência comissão de serviço - até porque a aceitação é um acto unilateral e o
desta alteração, a comissão do Autor foi feita cessar por despacho da documento em causa é um clausulado subscrito pelas duas partes.
mesma entidade (19.10.2002). Esta decisão é ilegal, porquanto: i) a Os termos em que a acção vem proposta, com especial atenção para
alteração do regulamento viola a boa-fé das partes contratantes; ii) só o recorte que nela tem a relação jurídica de que emerge o litígio fa-
o Conselho: Directivo do ISSS, entidade com personalidade jurídica vorecem, assim, claramente, a conclusão de que, nesse bom critério,
própria, poderia fazer cessar a comissão de serviço: iii) só podia ser o foro competente para dela conhecer é aquele onde foi proposta - o
invocada contra o recorrente a necessidade de “imprimir nova orientação tribunal do trabalho.
à gestão dos serviços” caso lhe tivessem sido dadas orientações concretas É que (e aqui residirá o principal equívoco do acórdão recorrido) não só
que ele não tivesse cumprido diligentemente; iiii) a intenção foi a de não é legítimo emprestar relevo, contra o que foi a inequívoca intenção do
nomear outro dirigente da confiança política e partidária do Ministro; Autor, ao anterior lugar público do Autor, como não pode ser esse elemento
iiiii) existe falta de fundamentação. a marcar o timbre das relações jurídicas trazidas à apreciação do tribunal.
Seguidamente o Autor fundamenta o pedido de condenação na dife- A conclusão de que a entidade empregadora “continua a ser, como era,
rença entre os salários vencidos e o que está a auferir enquanto “Assessor o Estado”, para além de inexacta do ponto de vista da destrinça entre os
Principal na Função Pública” - sendo de notar que é a premira vez (e a diversos entes com personalidade jurídica pública que coexistem com o
petição já vai no seu artigo 46º) que o Autor diz que era titular de um Estado propriamente dito, esquece que mesmo o Estado, bem como as
cargo público. outras pessoas colectivas públicas, mantêm com muitas pessoas relações
E prossegue com a invocação do “regime jurídico aplicável”, que para de colaboração fora do domínio do direito público e, por conseguinte, de
ele é o do contrato individual de trabalho (no artigo 60° designa especi- qualquer relação de emprego público - é justamente o caso do pessoal do
ficamente o contrato que celebrou como de contrato de trabalho). ISSS, sujeito ao regime do contrato individual de trabalho (art. 37° dos
É certo que aqui e além, ao caracterizar algumas das ilegalidades Estatutos do ISSS, aprovados pelo D-L n°316-A/2000, de 7.12).
que afectariam a decisão da Secretária de Estado, o Autor emprega Acresce que o que é verdadeiramente importante para a fixação do
uma terminologia própria do Direito Administrativo (acto ferido por tribunal competente para conhecer desta causa não é, por assim dizer,
incompetência absoluta, dever de fundamentação, vício de forma, des- historiar os antecedentes do relacionamento do Autor com a Administra-
vio de poder), e, além disso, cita normas do Código do Procedimento ção Pública, mas identificar com precisão de onde brotou em concreto
Administrativo que o despacho violaria. o litígio que trouxe as partes ao tribunal, o que implica a relevância
No entanto, dessas supostas disfunções que estariam a inquinar a de- da relação jurídica com o recorte que tinha no momento em que isso
cisão da Secretária de Estado o Autor não retira quaisquer consequências aconteceu. Ora, pelo menos na versão de quem vem a juízo, o termo da
ao nível das providências que vem solicitar ao tribunal, pois, como atrás “comissão de serviço” nada teve a ver com nenhum dos pólos da relação
se viu, não pede que a mesma seja declarada nula ou anulada. de emprego público que o Autor anteriormente mantinha, e prende-se
E tem o cuidado de ressalvar a existência de um litígio com esse exclusivamente com a ruptura introduzida pelo actual empregador no
pedido e esse fundamento, que se acha já pendente, por iniciativa sua, trabalho prestado sob os auspícios de um contrato regulado por instru-
no tribunal administrativo (artigo 67°, fls. 16). mentos de direito privado.
Mais: no articulado de resposta às excepções, além de insistir que Em face do exposto, acordam em conceder provimento ao recurso
o litígio releva do domínio de uma relação laboral, o Autor aceita que e revogar o acórdão recorrido, julgando competente para conhecer da
a questão da invalidade do despacho da Secretária de Estado “pode acção o Tribunal do Trabalho.
ser considerada uma questão prejudicial a esta acção”, e que por esse Sem custas.
fundamento a instância poderá ser suspensa - o que a final requer (cf.
fls. 127 a 129, 135 e 136). Lisboa, 26 de Abril de 2006. — José Manuel Almeida Simões de
Verifica-se, assim, que o Autor localiza a origem do litígio numa Oliveira (relator) — António Artur Rodrigues da Costa — António
relação de direito laboral, cuja fonte é um acordo que designa por con- Fernando Samagaio — Carlos Alberto Bettencourt de Faria — António
trato de trabalho e cujo texto efectivamente remete para as “normas e Bento São Pedro.
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Acórdão de 18 de Maio de 2006. G) Deve, por isso, ser revogado o douto acórdão do tribunal da Re-
lação de Coimbra que confirma o despacho da 1ª instância que decidiu
pela incompetência do tribunal comum, declarando, em definitivo,
Assunto: que a competência para dirimir a presente questão pertence ao tribunal
comum.
Relação jurídica administrativa. Associação de beneficiários
Pelas razões expostas, impetrando o douto suprimento de V. Exas. E
de obra de fomento hidroagrícola. Taxas de conservação
suplicando pelas deficiências do patrocínio, deve a decisão recorrida ser
e exploração. Competência dos tribunais administrativos
revogada e substituída por outra que, declarando competente o tribunal
e fiscais.
comum, mande prosseguir o processo, assim se fazendo
JUSTIÇA!
Sumário: Não houve contra-alegação.
Compete aos tribunais administrativos e fiscais, concreta- A Exma. Magistrada do Ministério Público emitiu o seguinte
mente aos tribunais tributários, conhecer de acção na PARECER
qual se pretende a declaração de inexigibilidade de taxas Afigura-se-nos que o presente recurso, destinado a fixar o tribunal
de conservação e exploração, impostas por associação competente, não merece ser provido.
de beneficiários de obra de fomento hidroagrícola, e a A definição da competência dos tribunais administrativos tem a sua
condenação desta ré a restituir ao autor os montantes sede no art.º 212°, n° 3, da CRP, e, também, neste caso, no artº 3° do
correspondentes a taxas por este anteriormente pagas. Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) estabelecido
pelo DL n° 129/84, de 27.04, aqui aplicável.
Processo n.º 4/05-70. Nos termos daquele preceito da Lei Fundamental “compete aos tribu-
Requerente: Manuel da Silva Gil, no conflito negativo de jurisdição, nais administrativos o julgamento das acções e recursos contenciosos que
entre o Tribunal Judicial da Comarca da Figueira da Foz e os Tribunais tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas
Administrativos e Fiscais. administrativas”, sendo que corresponde a este dispositivo o referido
Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Adérito Santos. artº 3° daquele ETAF.
Por sua vez, o artº 51°, n° 1, alínea h), deste mesmo diploma, dispõe
Acordam, no Tribunal de Conflitos: que “compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer das ac-
ções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e
1. Manuel da Silva Gil, melhor identificado nos autos, recorre para dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos
o Tribunal de Conflitos, ao abrigo do disposto no art. 107, nº 2 do de gestão pública...”. Conforme tem vindo a ser reiteradamente afirmado
CPCivil, de um acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que, con- por este Tribunal dos Conflitos e pelo STA, a competência em razão da
firmando despacho do Mmo Juiz do tribunal Judicial da Figueira da matéria afere-se em função dos termos em que a acção é proposta – cfr,
Foz, julgou os tribunais judiciais incompetentes, em razão da matéria, a título de exemplo, o acórdão do T. Conflitos de 91.01.31 (AD 361),
para decidir de uma acção declarativa que o recorrente aí propôs contra e, os acórdãos do STA de 93.05.13 (proc. n° 31478), de 96.05.28 (proc.
a Associação de Beneficiários da Obra de Fomento Hidroagrícola do n° 39911), de 99.03.03 (proc. n° 40222), de 99.03.23 (proc. n° 43973),
Baixo Mondego. de 99.10.13 (proc. n° 44068) e de 2000.09.26 (proc. n° 46024).
Apresentou alegação, com as seguintes conclusões: Escreve Vieira de Andrade que “só interessam à justiça administra-
A) as quantias que a R. cobrou ao A. referem-se a Facturas relativas tiva as relações jurídicas administrativas públicas, ou seja, aquelas que
a comparticipação em despesas com reparações, limpezas, etc.; são reguladas por normas de direito administrativo” e “que se devem
B) a R. pretende cobrar as mesmas ao A. em virtude de alguns mem- considerar relações jurídicas públicas aquelas em que um dos sujeitos,
bros da Direcção da associação de Proprietários do Campo do Frade, de pelo menos, actue na veste de autoridade pública, munido de um poder
que o A. faz parte – e a qual, antes, efectuava esses trabalhos –, terem de imperium, com vista à realização do interesse público legalmente
“pedido a integração” na R.; definido”(1).
C) a R. ainda não pode cobrar taxas de conservação e de exploração, Ora, assume estas características a relação jurídica que está na base
nos termos legais, porque a Obra ainda não chegou ao Campo do Frade do litígio, no caso em análise.
e só após, quando fornecer água, é que a lei lhe dá o poder de cobrar Através da acção interposta pretende o autor, ora recorrente, além
essas taxas; do mais:
D) portanto, é ilicitamente que, para cobrança coerciva, a R. utiliza - A devolução, por parte da ré, da importância que lhe foi paga pelo
as execuções fiscais, cujo acesso lhe é dado para outros fins, claramente autor, a título de taxas de conservação e de exploração;
expressos na lei; - A condenação da ré a devolver ao autor a quantia que se mostrar
E) como tal, os actos que o A. impugna na presente acção são actos devida por danos patrimoniais e não patrimoniais, a liquidar em exe-
de gestão privada; cução de sentença.
F) em consequência, era – e é! – ao tribunal comum e não ao tribunal Funda esse pedido no facto de a ré, criada no âmbito da obra de fo-
administrativo ou fiscal (na primeira instância, a fls. 136, fala-se no fiscal mento hidroagrícola efectuada pelo Estado, ter vindo a cobrar ao autor
e a fls. 137 no administrativo) que incumbe a decisão da questão; importâncias indevidas, a título de pretensas taxas de exploração e de
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conservação, sem que em Campo de Frade – onde se situam os prédios bloco, pertence ao conjunto dos tribunais (Manuel de Andrade, Noções
rústicos do autor – exista qualquer obra dessa natureza, e, consequente- Elementares de Processo Civil, Ed. de 1979, pp 88/89).
mente, sem que os prédios do autor tenham recebido qualquer benefício As regras de competência judiciária “ratione materiae” são, assim,
decorrente de obra de aproveitamento hidroagrícola. atinentes à distribuição das matérias pelas diversas espécies de tribunais
Por força de Portaria do Ministro da Agricultura, Pescas e Alimenta- dispostos “horizontalmente” (ac. TC nº 114/2000, de 22 de Fevereiro,
ção, de 88.08.29, publicada no DR II série, de 88.09.15, foi a ré Asso- in BMJ 494/48).
ciação de Beneficiários da Obra de Fomento Hidroagrícola do Baixo Sobre a competência em razão da matéria dos tribunais comuns,
Mondego reconhecida como pessoa colectiva de direito público. dispõe a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais
A sua constituição teve em vista atribuir-lhe, além do mais, a tarefa (Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, alterada pela Lei nº 101/99, de 26 de
de assegurar a exploração e conservação das obras de fomento hidro- Julho, pelos DL nº 323/2001, de 17 de Dezembro, nº 38/2003, de 8 de
agricola ou das partes destas que lhes fossem entregues – cfr artº 4°, Março, e nº 105/2003, de 10 de Dezembro) que «são da competência dos
alínea b), do Regulamento das Associações de Beneficiários estabelecido tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem
pelo Decreto Regulamentar n° 84/82, de 04.11, entretanto revogado por jurisdicional» (art. 18, nº 1).
força do DL n° 86/2002, de 06.04, ao revogar o artº 90° do DL n° 269/82, Este preceito está em consonância com o «princípio da plenitude
de 10.07, que previa essa regulamentação. da jurisdição comum» consagrado no art. 211, nº 1 da CRP, de acordo
Para efeitos de pagamentos das despesas da exploração e conservação com o qual os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria
das obras, foi-lhe atribuído o poder de cobrar uma taxa aos respectivos civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas
beneficiários, susceptível de ser cobrada coercivamente pelos tribunais a outras ordens judiciais.
de execuções fiscais, de harmonia com os artºs 66°, 67°, 68° e 69°, do Do modo como se encontra enunciada a regra geral estabelecida no
DL n° 269/82, e, com o artº 4°, alíneas g) e h), 49° e 50°, do citado citado art. 18, nº 1 da LOFTJ que a competência dos tribunais judiciais
Regulamento. comuns é residual, só se verificando quando as regras reguladoras da
Frise-se que o regime que foi alterado pelo citado DL n° 86/2002 competência de outra ordem jurisdicional não abarcam o conhecimento
manteve-se em vigor até à celebração dos contratos para efectivação da questão submetida à apreciação do tribunal.
do novo regime, de concessão, num prazo máximo de três anos, nos De notar, quanto à aplicação da lei no tempo, neste âmbito, dispõe o
termos do respectivo artº 104°, nºs 1 e 2. art. 22 da LOFTJ que «1 – A competência fixa-se no momento em que
Ora, não é difícil concluir que o diferendo aqui em causa surgiu a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que
numa relação em que um dos sujeitos, a ré na acção – pessoa colectiva ocorram posteriormente. 2 – São igualmente irrelevantes as modifica-
regulada pelo direito público – se substituiu ao Estado-colectividade, ções de direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava
prosseguindo a satisfação de um interesse público, munida de poderes afecta ou lhe for atribuída competência que inicialmente carecesse para
de autoridade, praticando, por essa via, actos de gestão pública. o conhecimento da causa».
Cremos, pois, que o litígio que opõe o autor à ré emerge de uma relação Por outro lado, e no que respeita aos tribunais administrativos e fis-
que o inclui na jurisdição administrativa, nos termos do artº 212°, n° 3, cais, o art. 212, nº 3 da Constituição da República, com a redacção da
da CRP, e, dos artºs 3° e 51°, n° 1, alínea h), do mencionado ETAF. revisão constitucional de 1989 (Lei Constitucional de nº 1/89, de 8.8)
Pelas razões expostas, somos de parecer que deverá ser negado pro- e a numeração da revisão constitucional de 1997 (Lei Constitucional
vimento ao presente recurso jurisdicional. de nº 1/97, de 20.9), circunscreve a respectiva competência ao domínio
Cumpre decidir. das «relações jurídicas administrativas e fiscais».
2. A questão que se discute nos presentes autos é a da competência, em Na falta de clarificação legislativa do conceito constitucional de
razão da matéria, dos tribunais judiciais ou dos tribunais administrativos relação jurídica administrativa, deve entender-se que tem o sentido
e fiscais para julgar a acção que o autor, ora recorrente, propôs contra tradicional de relação jurídica administrativa, correspondente a re-
a ré Associação de Beneficiários da Obra de Fomento Hidroagrícola lação jurídica pública, «em que um dos sujeitos, pelo menos, seja
do Baixo Mondego, pedindo que se declare não lhe serem exigíveis uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de
quaisquer quantias a título de taxas de conservação, exploração ou um poder público, actuando com vista à realização de um interesse
qualquer outro e se condene a ré a devolver, por terem sido indevida- público legalmente definido» – J.C. Vieira de Andrade, A Justiça
mente exigidas e pagas, as taxas anteriormente cobradas pela mesma Administrativa (Lições), 55/56.
ré ao autor recorrente. É este o quadro orientador da definição legal da competência dos tribu-
Vejamos, pois. nais administrativos e fiscais, devendo ter-se presente que, recentemente,
Como observa o acórdão deste Tribunal de Conflitos, de 27.10.04- a área do contencioso administrativo foi objecto de profundas alterações,
Conflito nº 2/04, citado no acórdão de 29.6.05-Conflito nº 1/05, são as achando-se hoje revogadas as leis delimitadoras de competência vigentes
leis orgânicas e estatutárias específicas que distribuem por cada categoria à data da propositura da acção a que respeitam os autos.
ou espécies de tribunais a sua medida de jurisdição, ou seja, determinam Com efeito, a Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, aprovou um novo
a categoria de pleitos que a cada um deles é destinada. estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), que entrou
Neste sentido, a competência dos tribunais, em geral, resulta da em vigor em 1 de Janeiro de 2004 (cf. art. 4º da Lei nº 107-D/2003,
medida da jurisdição atribuída aos diversos tribunais, do modo como de 31 de Dezembro) e revogou, no seu art. 8, o ETAF aprovado pelo
entre si fraccionam e repartem o poder jurisdicional que, tomado em DL 129/84, de 27 de Abril.
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Todavia, pela disposição transitória contida no seu art. 4º, nº 1, estabe- Esta a questão que nos ocupa, não cabendo a este tribunal apreciar
leceu que as disposições do novo Estatuto «não se aplicam aos processos os demais pressupostos processuais que deverão estar preenchidos
que se encontrem pendentes à data da sua entrada em vigor». para possibilitar a apreciação do mérito da causa (designadamente o
Assim sendo, e dado que a petição inicial da acção deu entrada na se- interesse processual e a legitimidade das partes), nem as condições de
cretaria do Tribunal Judicial da Figueira da Foz em 12 de Maio de 2003, procedibilidade do pedido formulado, pois que esta questão da compe-
como se vê pelo carimbo constante do rosto da petição inicial de fls. 2, tência em razão da matéria (a única que nos ocupa) precede logicamente
não há que entrar em linha de conta com as regras do contencioso ad- a apreciação jurisdicional pelo tribunal competente de tais questões
ministrativo actualmente em vigor, designadamente as constantes do essenciais.
ETAF aprovado pela citada Lei nº 13/2002. O juízo a formular, quanto à competência, tem de ser elaborado,
À data da propositura da acção, a competência jurisdicional dos independentemente até da idoneidade do meio processual utilizado (2),
tribunais administrativos e fiscais estava traçada pelo ETAF, aprovado bem como da verificação dos demais pressupostos de que a lei faz de-
pela Lei nº 129/84, de 17 de Abril. pender a apreciação do mérito da causa e da verificação das condições
E, de acordo com o art. 3º deste diploma «Incumbe aos tribunais ad- de provimento desta.
ministrativos e fiscais, na administração da justiça, assegurar a defesa Ora, a presente acção foi intentada contra a Associação de Beneficiá-
dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da rios da Obra de Fomento Hidroagrícola do Baixo Mondego.
legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no A fundamentar a mesma acção, o autor, ora recorrente, alega que
âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais». essa obra de fomento hidroagricola, justificativa das taxas que lhe vêm
No art. 4º do mesmo diploma, traçam-se os limites da jurisdição sendo liquidadas e cobradas, ainda não abrange os terrenos de que é
administrativa e fiscal, dela se excluindo, designadamente, as «questões proprietário, não lhe sendo, por isso, exigíveis tais taxas de exploração
de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa colectiva e conservação.
de direito público» [nº 1/f)]. O pedido formulado é, em síntese, o de que se declare a inexigibilidade
Relativamente à competência dos tribunais administrativos de circulo, das quantias que lhe foram e vêm sendo cobradas e se condene a ré, por
o art. 51, nº 1, conferia-lhes a competência para o conhecimento «h) Das enriquecimento sem causa, na devolução dos montantes correspondentes
acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos às taxas abusivamente liquidadas e cobradas, bem como no pagamento,
e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais,
actos de gestão pública, incluindo acções de regresso», ressalvando o na quantia que se mostrar devida, a liquidar em execução de sentença.
nº 3 do mesmo preceito que tal competência «não abrange as matérias Na petição (nºs 20º a 24º), refere o autor, como direito violado, os
respeitantes ao contencioso fiscal». arts 66, nº 1, 67., nº 1 e 68, do DL 269/82, de 10 de Julho, actualizado
Quanto aos tribunais tributários, também o art. 62, nº 1, do ETAF pelo DL 86/2002, de 6 de Abril, que prevêem o pagamento, pelos be-
(red. DL nº 229/96, de 29 de Novembro) lhes conferia competência para neficiários de obras de fomento hidroagrícola, de taxas de conservação
o conhecimento «m) Das acções para reconhecimento de direitos de e exploração em função do volume de água utilizado, bem como a
direitos ou interesses legalmente protegidos em matéria fiscal». respectiva cobrança, a partir da disponibilização da água para regra,
No que diz respeito à aplicação da lei no tempo, dispõe o art. 8º do que, segundo defende o autor, ainda não aconteceu, nos terrenos de
mesmo ETAF, aprovado pela Lei nº 129/84, que «1- A competência que é proprietário.
fixa-se no momento em que a causa se propõe, sendo irrelevantes as A ré Associação de Beneficiários da Obra e Fomento Hidroagrícola
modificações de facto que ocorram posteriormente. 2 - São igualmente do Baixo Mondego foi reconhecida como «pessoa colectiva de direito
irrelevantes as modificações de direito, excepto se for suprimido o público», por Portaria, de 29.8.88, do Ministro da Agricultura, Pescas
tribunal a que a causa estava afecta, se deixar de ser competente em e Alimentação, publicada no DR, II Série, de 15.9.88, nos termos do
razão da matéria e da hierarquia, ou lhe for atribuída competência de DR 84/82, de 4 de Novembro, que estabeleceu a disciplina jurídica
que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa.» das associações de beneficiários de obras de fomento hidroagrícola,
Vistas as regras que definem as categorias de pleitos atribuídas a conforme o previsto no art. 90 daquele DL 269/82.
cada uma das ordens jurisdicionais em causa, retornemos ao caso sub Entre outras, são atribuições da ré, definidas no art. 4 do indicado
judice. DR 84/82, «b) Assegurar a exploração e conservação das obras de
3. Como é entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, a fomento hidroagrícola …» e «d) Realizar trabalhos complementares
competência em razão da matéria é apreciada em função dos termos em destinados às aumenta a utilidade da obra…», competindo-lhe, para
que a acção é proposta e determina-se pela forma como o autor estrutura tanto, «f) Elaborar em cada ano o orçamento das suas receitas e des-
o pedido e os respectivos fundamentos. Neste sentido, veja-se o citado pesas para o ano seguinte …», «h) Fazer directamente a cobrança das
acórdão de 27.10.04, que vimos seguindo, e a demais jurisprudência e taxas de exploração e conservação…», recorrendo, se necessário, às
doutrina nele referenciadas. execuções fiscais, conforme o previsto no nº 5 (3) do art. 69 do citado
É perante os termos em que é estruturada a petição inicial que se DL 269/82.
afere se, atentos os contornos objectivos (pedido e seus fundamen- Assim, como bem considerou o recorrido acórdão da Relação de
tos) e subjectivos (identidade das partes) da acção, a sua pretensão Coimbra, a ré, entidade de direito público, actuou na prossecução de
se enquadra na ordem jurisdicional comum ou na ordem jurisdicional um interesse público definido por lei (DL 269/82), munida de poderes
administrativa e fiscal. de autoridade e praticando actos de gestão pública.
122 123

Pelo que, diversamente do que defende o autor recorrente, o lití- 2 – A taxa de exploração destina-se exclusivamente a cobrir os custos de gestão e exploração
da obra, incluindo os custos de utilização da água …
gio que o opõe à ré Associação de Beneficiários da Obra de Fomento (6) Artigo 49º
Hidroagrícola do Baixo Mondego emerge de uma relação jurídica ad- Participação das associações de beneficiários
ministrativa. Determinada a elaboração do projecto de execução de uma obra dos grupos I, II e III, a
O que, desde logo, afasta a competência dos tribunais judiciais para DRA em cuja área de jurisdição se situe a maior parte dos terrenos a beneficiar, em conjunto
com a IHERA, apoiará a constituição de uma associação de beneficiários e promoverá a sua
o conhecimento da acção em causa (arts 18, nº 1 LOFTJ, 212, nº 3 CRP audição nas componentes do projecto que lhe digam directamente respeito.
e 3 ETAF 84). (7) vd., entre outros, os acs. STA, de 8.9.93-Rº 36 624, de 18.3.97-Rº 34 327, de 29.3.01-
Para além disso, importa ainda notar que o referido litígio resulta da Rº 47165 e de 29.5.01-Rº 47383.
exigência, feita pela ré, do pagamento de quantias que, nos termos legais
(vd. arts. 66 (4) e 67 (5), do DL 269/82), se destinam à satisfação dos
encargos com a conservação, gestão e exploração da obra de fomento
hidroagrícola, em que, por lei (art. 49 (6), DL 269/82 e art. 4, DR 84/82,
cit.), a mesma ré participa, no prosseguimento do interesse público do Acórdão de 25 de Maio de 2006.
desenvolvimento agrícola da região correspondente à respectiva área
de intervenção. Assunto:
Estamos, assim, perante questão fiscal, sendo que, como tal, devem
entender-se, conforme o entendimento repetidamente afirmado na ju- Pedido de reversão de um prédio expropriado. Tribunal com-
risprudência (7), «todas as que emergem da resolução autoritária que petente.
imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária
com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos Sumário:
públicos do Estado e demais entidades públicas, bem como o conjunto
de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções I — A determinação do tribunal materialmente competente
ou que com elas estejam objectivamente conexas ou teleologicamente para conhecer da pretensão formulada pelo autor afere-
subordinadas» – Ac. STA, de 6.10.93 – Rº 26 369 (Ac. DR de 15.10.96, -se em função dos termos em que a acção vem proposta e
4792. com os fundamentos em que ela se estriba e não com as
Pelo que, face às disposições dos citados artigos 51, nº 3 e 62, nº 1, pessoas das partes, a sua legitimidade, ou a procedência
al. m) do ETAF 84, deve concluir-se, em suma, que o conflito deve da acção.
decidir-se atribuindo a competência para o julgamento da acção em II — Deste modo, se os autores intentam uma acção declara-
causa à ordem dos tribunais administrativos e fiscais, concretamente tiva comum onde eregem o pedido de condenação dos
aos tribunais tributários. réus a reconhecer a existência do direito de reversão do
3. Por tudo o exposto, acordam em negar provimento ao recurso e prédio que lhes foi expropriado como sendo o pedido
em declarar competentes para conhecer da presente acção os tribunais principal, o pedido de que tudo depende, e se o funda-
administrativos e fiscais. mentam no facto daquele não ter sido aplicado na fina-
Sem custas. lidade que justificou a sua expropriação, isso significa
que o que questionam é a legalidade da declaração de
Lisboa, 18 de Maio de 2006. — Adérito da Conceição Salvador expropriação e do indeferimento de reversão.
Santos (relator) — Fernando Azevedo Ramos — Fernando Manuel III — Todavia, tanto a declaração da utilidade pública da
Azevedo Moreira — Manuel José da Silva Salazar — Alberto Acácio expropriação como o acto que aprecia (deferindo ou
de Sá Costa Reis — José António Carmona da Mota. indeferindo) o pedido de reversão do prédio expropriado
são actos administrativos proferidos na consequência de
(1) In Direito Administrativo e Fiscal, 1997, p. 55. requerimentos feitos à autoridade competente para a sua
(2) Neste sentido, o acórdão do STA, de 23.3.99-Rº 43 973. prolação, cabendo aos Tribunais Administrativos conhe-
(3) Artigo 69º cer da legalidade da decisão que sobre eles recair.
Afixação dos mapas da taxa de conservação e exploração IV — E, porque assim, é matéria cuja competência está sediada

5 – Na falta de pagamento voluntário das taxas de conservação e de exploração no prazo na jurisdição administrativa.
de 30 dias contados do termo do prazo para reclamações, serão cobradas coercivamente pelos V — Os Tribunais comuns são, pois, incompetentes, em razão
tribunais das execuções fiscais, revertendo ainda a favor da respectiva entidade responsável da matéria, para conhecer do objecto daquela acção
pela conservação e exploração, 50 % dos juros de mora devidos.
(4) Artigo 66º declarativa.
Taxa de conservação
… Processo n.º 26/05-70.
2 – A taxa de conservação destina-se exclusivamente a cobrir custos de conservação Requerentes: Domingos José Soares de Almeida Lima e outros, no
das infra-estruturas …
(5) Artigo 67º conflito negativo de jurisdição, entre o Tribunal Judicial da Comarca
Taxa de exploração de Seixal e os Tribunais Administrativos e Fiscais.
… Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Costa Reis.
124 125

Domingos José Soares de Almeida Lima e outros intentaram no Tri- 4. No caso sub judice, está em causa uma relação jurídica adminis-
bunal Judicial do Seixal, a presente acção declarativa, com processo trativa exercício do direito de reversão, por alegadamente os imóveis
comum e forma ordinária, contra a “Siderurgia Nacional SGPS, S.A.” e expropriados ao ora recorrente terem sido afectos a fim diverso do que
Urbindústria – Sociedade de Urbanização e Infra-estruturas de Imóveis, motivou aquele acto ablativo (vd. artº 212° da CRP; cfr. art.ºs 5.º e 70.º
S.A.” tendo, no decurso da acção, requerido a intervenção principal de e seg.s do CE 91) -, competindo exclusivamente aos Tribunais Admi-
31 pessoas jurídicas das quais foram admitidas o Município do Seixal, nistrativos apreciar da legalidade do acto administrativo que indeferiu
o “Banco Totta e Açores S.A.”, a “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, o o requerimento de reversão apresentado pelo ora recorrente (vd. art.
“IMTA – Indústrias Metalomecânicas de Tecnologia Avançada, S.A” e S1°/1/c) do ETAF aprovado pelo DL 129/84, de 27/04; cfr. Ac. do
“Lopes e Moura, Lda”. Tribunal de Conflitos de 2004.11.04, Conflito n.° 12/04).
Aquele Tribunal, porém, julgou-se incompetente, em razão da 5. A questão nova invocada na conclusão 1.ª das alegações do ora
matéria, para dela conhecer, pelo que - nos termos dos art.ºs 102.º, recorrente, além de claramente inadmissível (vd. art.ºs 676°/1, 680° e
103.º e 105º do CPC - absolveu os Réus da Instância. 690°/1 do CPC), é absolutamente improcedente, pois no caso em análise
Julgamento que o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou. não se discute nem está em causa a susceptibilidade de a pretensão do
Inconformados, os Autores recorreram para o Supremo Tribunal recorrente ser objecto de “apreciação judicial”, mas apenas quais os
de Justiça tendo rematado as suas alegações do seguinte modo: Tribunais que na nossa ordem jurídica têm competência material para
1. A expropriação por utilidade pública, seguida pela venda lucrativa, apreciar a referida pretensão (vd. art.ºs 20° e 212° da CRP).
totalmente fora do âmbito da declaração de utilidade pública, dá azo a 6. O douto Acórdão do STA, de 1996.01.26, já transitado em julgado,
uma injustiça digna de apreciação judicial. rejeitou o recurso contencioso interposto do indeferimento tácito do
2. A competência material deverá ser aferida pelo modo por que a pedido de reversão apresentado pelo ora recorrente que, com a presente
acção seja proposta e pela natureza dos respectivos pedido e causa de acção, mais não pretende do que pôr em causa a força e autoridade do
pedir. caso julgado do referido aresto (vd. art.ºs 671.° e segs. do CPC);
3. O direito de retenção é bifronte: perante a entidade expropriante, 7. A relação material controvertida, tal como foi configurada pelo
assenta numa relação administrativa; mas erga omnes, dá corpo a um ora recorrente, consubstancia um litígio emergente de uma relação
direito real de aquisição. jurídico-administrativa, pretendendo o recorrente ser indemnizado por
4. Os Tribunais Comuns são competentes para apreciar a existência pretensos danos resultantes de actos de gestão pública imputáveis ao
desse direito real de aquisição e as eventuais violações a que possa Senhor Primeiro Ministro (vd. art. 70°/1 do CE 91), sendo os Tribunais
Administrativos os únicos com competência para o seu conhecimento, ex
dar azo.
vi do disposto no art.º 51°/1/h) do ETAF (cfr. art.º 22° da CRP e art.º 2°/1
5. Em especial, compete-lhes constatar a sua presença e condenar os do DL 48051, de 1967.11.21);
intervenientes a respeitá-lo. 8. Os restantes pedidos formulados pelo ora recorrente respeitam a
6. Compete-lhes, ainda, pronunciar-se sobre situações de enriqueci- actos de gestão pública, cujo conhecimento compete igualmente aos
mento ilegítimo daí decorrentes. Tribunais Administrativos (vd. art.º 51°/1/h) do ETAF; cfr. art.º 4°/1g)
7. Também a matéria indemnizatória e a atinente ao registo, puramente e i) do novo ETAF).
instrumentais, têm cabimento no foro comum. A Câmara Municipal do Seixal contra alegou rematando assim as
8. Apenas a assunção da competência necessária para as apontadas suas alegações:
apreciações permitirá evitar a violação, entre outros, dos artigos 20.°, A. O D. Acórdão recorrido não merece censura, pelo que deve ser
n.º 1, 4 e 5, da Constituição, 2.° e 66.° do CPC e 18.° n.º 1 da Lei negado provimento ao presente recurso.
n.º 3/99, de 13/01, violação em que, com o devido respeito, incorreu o B. Contrariamente ao alegado pelo Recorrente, não se verificando
douto acórdão recorrido. o reconhecimento do direito de reversão, inexiste enriquecimento sem
Urbindústria, S.A contra alegou para formular as seguintes con- causa por parte das Recorridas,
clusões: C. Logo, o pedido alegadamente subsidiário de “enriquecimento
1. O douto acórdão recorrido julgou os Tribunais Comuns incompe- sem causa” carece absolutamente de causa de pedir, pelo que o teor da
tentes para decidir a presente acção, por esta pertencer ao âmbito da conclusão 2.ª milita contra o Recorrente.
jurisdição administrativa. D. O teor das conclusões 1.ª e 3.ª mais não constitui do que uma
2. O presente recurso tinha de ser interposto para o Tribunal de Con- tentativa - salvo o devido respeito - “gorada”, de adaptação dos pedidos
flitos (vd. art.º 107°/2 do CPC), devendo, por isso, ser rejeitado (vd. Ac. formulados na D.P.I. e transcritos nas D. Alegações do Recorrente, que
STJ de 1999.01.20, Proc. 1054/98), tanto mais que o douto despacho de permanecem indissociavelmente ligados ao invocado direito à reversão
fls. 1497 dos autos não vincula este Supremo Tribunal (vd. art.ºs 687°/4 da propriedade do prédio expropriado e na sua estreita dependência.
do CPC). E. Assim, ao dirigir-se ao Tribunal Comum nos termos peticionados,
3. A Administração Pública e os Tribunais Administrativos são as o A. ora Recorrente, espera dele que profira decisões que só poderiam
entidades competentes para decidir do pedido de reversão referente a ser tomadas por um Tribunal Administrativo, contrariamente ao alegado
imóveis expropriados, que constitui o pedido principal e o pressuposto nas conclusões 4.ª, 5.ª, 6.ª e 7.ª, que assim se impugnam.
dos restantes pedidos formulados pelo ora recorrente (vd. artº 212° da F. Ao declarar-se incompetente para julgar a acção, o Tribunal de 1.ª
CRP e art.ºs 101.º, 102°, 105.º/1, 288°/1/a), 493° e 494°/a) do CPC). instância outra coisa não poderia ter feito.
126 127

G. Da mesma forma, ao não determinar a reformulação da P.I. e dos a presente acção declarativa pedindo que os Réus fossem condenados
pedidos, também o D. Tribunal da Relação não podia ter feito de outro a reconhecer que a necessidade da expropriação do referido prédio
modo, limitados que estão os seus poderes de cognição às conclusões havia desaparecido, que este estava onerado com o direito de reversão
do recurso! de que os Autores eram titulares, a absterem-se de o alienar, onerar ou
H. Num caso, como noutro, era ao A. e Recorrente que o ónus cabia transformar fosse de que forma fosse e, subsidiariamente, para o caso
e este não se compadece - na expressão do próprio - com “naturais daquele direito não vir a ser reconhecido em sede administrativa, fossem
flutuações de linguagem”. condenados a restituir-lhes o seu valor e a indemnizá-los de todos os
I. Contrariamente ao alegado pelo Recorrente, o D. Acórdão recorrido prejuízos causados pela sua recusa de reconhecimento dos seus direitos.
decidiu bem, no estrito respeito pelas normas aplicáveis, ao confirmar Requereram, ainda, o cancelamento de todos os registos existentes sobre
a D. decisão da 1ªa instância, que se julgou incompetente em razão da esse prédio que fossem posteriores ao registo da sua aquisição a favor
matéria, para o julgamento da causa, absolvendo consequentemente as de José Maria de Almeida Lima.
rés da instância. O que significa que o que os Autores pretendem nesta acção é a
O Supremo Tribunal de Justiça, invocando o disposto no art.º 107.º, obtenção de efeitos que substituam, ou compensem, os efeitos que teriam
n.º 2 do CPC, remeteu o processo para este Tribunal de Conflitos. alcançado se, no recurso contencioso, lhes tivesse sido reconhecido o
O Ilustre Magistrado do MP junto deste Tribunal emitiu parecer no direito de reversão do mencionado prédio.
sentido do não provimento do recurso. Todavia, a Relação de Lisboa, confirmando o julgamento que havia
Mostrando-se colhidos os vistos legais cumpre decidir. sido feito no Tribunal de 1.ª Instância, considerou que os Tribunais
FUNDAMENTAÇÃO comuns careciam de competência material para conhecer dos iden-
I MATÉRIA DE FACTO tificados pedidos e, consequentemente, para decretar as medidas re-
O Tribunal recorrido julgou assentes os seguintes factos: queridas e, nessa conformidade, manteve a decisão que havia absolvido
1. – No seu articulado inicial, que deu entrada em juízo em 30/6/97, os Réus da Instância.
os Autores formularam o seguinte petitório: E justificou assim esse entendimento:
“a) A reconhecer o desaparecimento da necessidade da expropriação “Na verdade, como se enuncia, neste caso bem, na sentença recorrida
do prédio em litígio. todos os pedidos formulados – mesmo os que o foram a título subsidiário
b) A reconhecer, sobre o prédio em litígio, a oneração resultante …….. – estão indissoluvelmente ligados ao invocado direito à reversão
do exercício pelos Autores do direito de reversão previsto nas leis de da propriedade do prédio expropriado e em estrita dependência do
expropriação. mesmo. Ou seja, ao contrário do que é alegado pelo Agravante, este
c) A absterem-se de alienar, onerar ou transformar, directamente, não se limita a «invocar factos materiais de onde retira efeitos civis»,
ou por interposta pessoa, quaisquer parcelas pertencentes ao prédio querendo, antes, que o Tribunal a que se dirige profira decisões que só
em litígio. pode, - poderiam ser tomadas por um Tribunal Administrativo; quando
d) Subsidiariamente, quando o direito de reversão não seja reco- muito, nos Tribunais comuns, poderia discutir-se e decidir-se se o Es-
nhecido em sede administrativa, a restituir aos Autores o valor corres- tado (ou mais exactamente a entidade beneficiária da expropriação)
pondente ao seu enriquecimento, em termos a calcular em execução usou o não o prédio para os fins que foram invocados para justificar
da sentença. essa expropriação e se, por esse facto, sofreram ou não os Autores um
e) Em qualquer dos casos, a indemnizar os Autores por todos os empobrecimento do seu património correspondente ao enriquecimento
prejuízos, despesas e outros custos, causados com recusa injustificada ilegítimo dessa beneficiária ou de uma outra qualquer entidade. Só
em reconhecer os seus direitos, em termos a calcular também em exe- que não foi isso que os Autores pediram e a competência do Tribunal
cução de sentença. determina-se a partir dos concretos pedidos formulados.”
Mais se requer a V.ª Ex.cia o cancelamento de todos os registos E, porque assim, a questão que se nos coloca é a de saber qual a
existentes sobre o prédio em litígio, posteriores ao registo de aquisição jurisdição competente para conhecer da matéria suscitada nesta acção.
a favor de José Maria de Almeida Lima.” Será a administrativa como se decidiu no Tribunal recorrido ou, pelo
2. – Por Acórdão de 23/01/1996 o STA decretou que “os Recorrentes contrário, como se defende neste recurso, será a jurisdição comum?
não têm legitimidade para o presente recurso contencioso de anulação, 1. A jurisdição dos Tribunais Administrativos vinha definida no
devendo rejeitar-se o recurso …. já que do eventual provimento do art. 3.º do ETAF aprovado pelo DL 129/84, de 27/04 - aplicável por
recurso não poderiam obter o efeito jurídico-prático pretendido com vigorar à data da propositura desta acção - do seguinte modo: “incumbe
a interposição do recurso contencioso de anulação do acto tácito de aos Tribunais Administrativos e Fiscais, na administração da justiça,
indeferimento impugnado, ou seja, a reversão da propriedade dos pré- assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos,
dios expropriados, agora na propriedade e posse de terceiros, titulado reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses
em acto administrativo com força de caso resolvido.” públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas
II O DIREITO e fiscais.” (1)
1. Resulta do antecedente relato que os Autores interpuseram recurso Sendo certo, por outro lado, que a CRP estabelece que os “tribunais
contencioso de anulação do indeferimento do seu pedido de reversão do judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem
prédio ora em causa e que tendo esse recurso sido rejeitado, com funda- jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”
mento na sua ilegitimidade, deduziram, no Tribunal Judicial do Seixal, – vd. seu art.º 211°, n.° 1 – o que significa que, como a doutrina e a
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jurisprudência têm afirmado, a jurisdição dos Tribunais Judiciais se sobre o mencionado prédio, com vista a obterem os correspondentes
define por exclusão, cabendo-lhe julgar todas as acções que não sejam benefícios (veja-se o pedido subsidiário), em suma pretendem conseguir
especialmente atribuídas a outras espécies de Tribunais. o que lhes foi recusado no recurso contencioso onde solicitaram a anu-
A determinação do Tribunal materialmente competente para lação do indeferimento do pedido de reversão daquele prédio. E, tanto
conhecer da pretensão formulada pelo Autor afere-se em função dos assim, que eregem o pedido de condenação dos Réus a reconhecer
termos em que a mesma vem proposta e dos fundamentos em que a existência do direito de reversão como sendo o pedido principal,
ela se estriba, “sendo, para esse efeito, irrelevante o juízo de prognose o pedido de que tudo depende, e fundamentam-no no facto do prédio
que se possa fazer relativamente à viabilidade da mesma (por se tratar ora em causa não ter sido aplicado na finalidade que justificou a sua
de questão atinente ao mérito da pretensão), mas sendo igualmente certo expropriação.
que o Tribunal não está vinculado às qualificações jurídicas efectuadas Todavia, tanto a declaração da utilidade pública da expropriação
pelo Requerente ou Autor”. É o que tradicionalmente se costuma expri- como o acto que aprecia (deferindo ou indeferindo) o pedido de re-
mir com a fórmula «a competência determina-se pelo pedido formulado versão do prédio expropriado são actos administrativos proferidos
pelo Autor». – Acórdão do Tribunal de Conflitos de 11/7/00, Conflito na sequência de requerimentos feitos à autoridade competente para
n.º 318 (AD 468/1.630). No mesmo sentido, e a título meramente exem-
a sua prolação, cabendo aos Tribunais Administrativos conhecer
plificativo, vd. Acórdãos desse mesmo Tribunal de 3/10/00, (Conflito
n.º 356), de 6/11/01, (Conflito n.º 373) e de 5/2/03, (Conflito n.º 6/02), da legalidade da decisão que sobre eles recair. – vd. art.ºs 11.º e
do Pleno do STA de 9/12/98, rec. n.º 44.281 (BMJ 482/93) e do STJ de 70.º/1 do CE/91 e art.º 51.º do ETAF aprovado pelo DL 129/84, de
21/4/99, rec. n.º 373/98 e Prof. Manuel de Andrade”, Noções Elementares 27/4, aplicáveis por vigorarem na data em que os Autores requereram
de Processo Civil” pg. 88 e seg.s a declaração desse direito e, entre muitos outros, Acórdão deste STA
“A competência do Tribunal não depende, pois, da legitimidade das de 11/02/99, rec. 37.648).
partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo O que os Autores bem sabiam pois que só depois de verem adminis-
com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor trativamente indeferido o pedido de reversão daquele prédio e só depois
(compreendidos aí os seus fundamentos), não importando averiguar de verem naufragado o recurso contencioso deste indeferimento é que
quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão.” – M. Andrade, interpuseram a presente acção. Só que, como se vê dos respectivos
Obra citada a fls. 91. fundamentos, esta versa sobre a alegada ilegalidade deste acto de
Encontra-se, pois, assente que a determinação da competência ma- indeferimento e, no fundo, é este acto que eles pretendem ver removido
terial de um Tribunal depende dos termos em que o Autor formulou da ordem jurídica.
a sua pretensão e dos fundamentos em que a estribou e, assim sendo, O que significa que o que os Autores pretendem ver discutido nesta
cumpre resolver a identificada questão à luz dos princípios acabados acção é a legalidade de um acto administrativo
de expor. Com efeito, saber se se mantém a necessidade que determinou a ex-
2. Os Autores (ora Recorrentes) interpuseram esta acção no Tribu- propriação do identificado prédio e saber que consequências se devem
nal Judicial do Seixal alegando que haviam herdado um prédio e que retirar desse facto e decidir em conformidade é matéria directamente
este havia sido expropriado, em 1/10/1970, para nele serem implantadas atinente à competência da entidade que declarou a utilidade pública da
as instalações fabris da Siderurgia Nacional, o que não veio a acontecer expropriação e à legalidade deste acto e não matéria relacionada com
por o mesmo ter sido transferido para o património da Urbindústria, S.A. as pessoas dos seus beneficiários. E, porque assim, é matéria cuja
que o urbanizou e alienou os correspondentes lotes a terceiros. competência está sediada na jurisdição administrativa.
Deste modo, e porque o dito prédio não foi aplicado no fim que jus- Os Tribunais comuns são, pois, incompetentes, em razão da ma-
tificou a sua expropriação, reclamam o direito de reversão do mesmo téria, para conhecer do objecto da presente acção.
para a sua titularidade o qual, a não ser reconhecido, determinará um Face do exposto acordam os Juízes que compõem este Tribunal
enriquecimento injusto e ilegal dos Réus que, por isso, ficam consti- de Conflitos em negar provimento ao recurso e, em consequência,
tuídos na obrigação de os indemnizar de todos os prejuízos sofridos mantendo-se o Acórdão recorrido, declarar os Tribunais comuns in-
decorrentes dessa situação.
competentes, em razão da matéria, para conhecer desta acção por
Pedem, assim, a título principal, que os Réus sejam condenados a
reconhecer que desapareceu a necessidade que determinou a referida essa competência pertencer aos Tribunais Administrativos.
expropriação e o seu direito à reversão do prédio expropriado e, conse- Custas pelos Recorrentes, digo sem custas.
quentemente, que sejam condenados a absterem-se de o alienar, onerar Lisboa, 25 de Maio de 2006. — Costa Reis (relator) — Azevedo Mo-
ou transformar. Mas, na improcedência deste pedido e não sendo reco- reira — Angelina Domingues — António Mortágua — Manuel Soares —
nhecido em sede administrativa o direito de reversão, pedem, a título Sebastião Póvoas.
subsidiário, que se condene os Réus a restituir-lhes o valor correspon-
dente ao seu enriquecimento e a indemnizá-los por todos os prejuízos
(1) Sublinhado nosso. O novo ETAF, aprovado pela Lei 13/2002, de 19/02, não se afastou
sofridos em resultado do não reconhecimento dos seus direitos. deste entendimento pois proclamou que “os Tribunais da jurisdição administrativa e fiscal
É, assim, visível que o que os Autores pretendem alcançar nesta são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos
acção é o reconhecimento de que são titulares do direito de reversão litígios emergentes das relações administrativas e fiscais.”
130 131

Acórdão de 31 de Maio de 2006. tensão concretamente formulada e os respectivos fundamentos - pedido


e causa de pedir. (2)
Conflito n.º 5/06. É pois a estrutura da causa apresentada pela parte que recorre ao
Requerente(s): IMOCRAVO — Construções Imobiliária, S. A., no tribunal que fixa o tema decisivo para efeitos de competência material,
conflito negativo de jurisdição entre o 2.º Juízo Civil do Tribunal Judicial o que significa que é pelo quid decidendum que a competência se afere,
da Comarca de Santa Maria da Feira e os Tribunais Administrativos e sendo irrelevante qualquer tipo de indagação atinente ao mérito do
Fiscais. pedido formulado, ou seja, sendo irrelevante o quid decisum. (3)
Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Oliveira Mendes. Do exame e análise da petição inicial da acção que subjaz ao pre-
sente conflito, resulta que a demandante “Imocravo” pretende que o
Acordam no Tribunal de Conflitos: Estado seja condenado a pagar-lhe certa e determinada importância
(€ 12.131,26), bem como a quantia que se vier a liquidar em execução
Imocravo - Construções Imobiliária, SA., com sede em Sabrosas,
de sentença correspondente aos prejuízos que venha a sofrer decorrentes
freguesia de Nogueira do Cravo, concelho de Oliveira de Azemis, in-
da privação da importância pedida (€ 12.131,26), alegando, por um lado,
tentou, no Tribunal Administrativo do Circulo de Coimbra, acção com
processo sumário, contra o Estado Português, em que pediu fosse este a declaração de nulidade de venda de imóvel, que adquiriu em execução
condenado a pagar-lhe a importância de € 12.131,26, bem como a quantia fiscal, por desconformidade da descrição constante do auto de penhora
que se liquidar em execução de sentença, ou em momento oportuno, e dos anúncios atinentes à venda (4) e por outro lado, a circunstância de
decorrente dos prejuízos que venha a sofrer resultantes da privação do haver ficado privada da quantia de € 36.761,41, correspondente à terça
capital pedido, alegando a declaração de nulidade de venda de imóvel, parte do preço do imóvel, quantia que depositou à ordem do processo
que adquiriu em execução fiscal, por desconformidade da descrição de execução fiscal em 14 de Abril de 1999. (5)
constante do auto de penhora e dos anúncios atinentes à venda, bem Daqui resulta que a demandante veio a juízo formular um pedido
como a circunstância de haver ficado privada da quantia de € 36.761,41, de indemnização contra o Estado baseado em responsabilidade civil
correspondente à terça parte do preço do imóvel, quantia que depositou extracontratual (6) por acto praticado por entidade pública, no exercício
à ordem do processo de execução fiscal em 14 de Abril de 1999 (1) dos respectivos poderes, concretamente pela desconforme descrição,
Mediante decisão proferida em 10 de Outubro de 2002, o Tribunal no auto de. penhora e nos anúncios atinentes à venda, do imóvel por
Administrativo do Círculo de Coimbra, na procedência de excepção si adquirido no âmbito de execução fiscal, do que resultou a anulação
arguida pelo Ministério Público, declarou-se incompetente do ponto da compra/venda, bem como pelo facto de ter ficado privada, desde
de vista material, sob a alegação de que a acção não visa dirimir litígio 14 de Abril de 1999, da importância que pagou (€ 36.761,41) e, bem
emergente de relação jurídica administrativa, tendo absolvido o de- assim, pelo facto de a Repartição de Finanças não haver procedido à
mandado da instância. restituição da importância depositada por conta do preço, quer depois
Accionou então aquela sociedade o Estado Português no Tribunal da prolação da decisão judicial anulatória, quer após haver sido por si
Judicial da comarca de Santa Maria da Feira, instância que, na parcial interpelada para tal.
procedência do pedido, condenou o demandado a pagar a quantia de Segunda observação a fazer é a de que os tribunais judiciais gozam
Euros 7.240,48. de competência genérica ou não discriminada, o que significa que são
Interposto recurso pelo Ministério Público para o Tribunal da Relação competentes para o conhecimento de todas as causas que não sejam
do Porto, com arguição da incompetência absoluta do tribunal, veio atribuídas a outra ordem jurisdicional - artigos 211°, da Constituição da
aquela Relação a conceder-lhe provimento, declarando incompetente República Portuguesa e 18°, da Lei de Organização e Funcionamento
o tribunal judicial e competente o tribunal administrativo. dos Tribunais Judiciais.
Inconformada, recorreu a demandante para o Supremo Tribunal de Ao invés, os tribunais administrativos têm a sua competência limitada
Justiça, que se considerou incompetente para o conhecimento do recurso às causas que lhe são especialmente atribuídas, atribuição que segundo o
e ordenou a sua remessa a este Tribunal de Conflitos. artigo 212°, nº 3, da Constituição da República, se cinge ao julgamento
A Exma. Procuradora da República emitiu parecer no sentido de que das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os
a competência para decisão da causa cabe aos tribunais administrativos. litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. (7)
Colhidos os vistos, cumpre decidir. Em concretização da norma constitucional, o artigo 3°, do Estatuto
Única questão a apreciar é a de saber qual o tribunal materialmente dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo DL nº124/84,
competente para conhecer a acção intentada pela demandante “Imo- de 27 de Abril, com as alterações introduzidas pelo DL n° 229/96, de 29
cravo” contra o Estado Português, mais concretamente se a competência de Novembro (hoje revogado pela Lei nº13/02, de 19 de Fevereiro, com
cabe aos tribunais judiciais ou aos tribunais administrativos. início de vigência em 1 de Janeiro de 2004 - artigo 9°, da Lei n° 13/02,
Primeira observação a fazer é a de que a determinação do tribunal de 19 de Fevereiro), aqui aplicável, porquanto a competência se fixa
materialmente competente, como este Tribunal de Conflitos, o Supremo no momento da propositura da acção, sendo irrelevantes as modifica-
Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Administrativo têm afirmado ções de facto e de direito que ocorram posteriormente (artigos 5° do
inúmeras vezes, deve partir da análise da estrutura da relação jurídica actual ETAF e 8° do anterior), estabelece que: «Incumbe aos tribunais
material submetida à apreciação e julgamento do tribunal, segundo a administrativos e fiscais na administração da justiça assegurar a defesa
versão apresentada em juízo pelo autor, isto é, tendo em conta a pre- dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da
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legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no mento assumido no exercício dos seus poderes próprios e na realização
âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais. da sua especifica função pública.
Por outro lado, os artigos 26°, 30°, 32°, 33°, 40°, 41°, 42°, 51° e Termos em que se acorda negar provimento ao recurso, confirmando
62° do diploma em apreço, distribuem a competência, em razão da a decisão recorrida, declarando-se competente para conhecer da matéria
hierarquia, pelos diversos tribunais da jurisdição, sendo que segundo o objecto da acção intentada pela recorrente contra o Estado o tribunal
artigo 51º, n°1, alínea h) - vigente à data da propositura da acção que administrativo de círculo.
subjaz ao conflito: Sem tributação - artigo 96º, do Regulamento aprovado pelo Decreto
«1. Compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer: nº 19243, de 16 de Janeiro de 1931.
… Lisboa, 31 de Maio de 2006. — António Jorge Fernandes de Oliveira
h) Das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes Mendes (Relator) — Pires Esteves — António Fernando da Silva Sousa
públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorren- Grandão — Jorge de Sousa — Rosendo José.
tes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso». (8)
A questão da qualificação dos actos de Administração como actos
de gestão pública ou de gestão privada foi tratada em vários acórdãos (1) Vem ainda alegado que, após a decisão que declarou nula a compra/venda do imóvel
penhorado (prolatada em 17 de Outubro de 2001), foi requerido à Repartição de Finanças
deste Tribunal de Conflitos. de Santa Maria da Feira a restituição da importância de € 36.761,41 depositada por conta do
Actos de gestão pública são os praticados pelos órgãos ou agentes da preço, pedido formulado em 28 de Novembro de 2001, sendo que até à data da propositura
Administração no exercício de um poder público, isto é, no exercício de da acção (o que se verificou em 17 de Janeiro de 2002) nada foi restituído.
Dos elementos juntos aos autos consta que a restituição daquela quantia ocorreu no dia
uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda 4 de Fevereiro de 2002.
que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção; (2) Cf. entre outros os acórdãos do Tribunal de Conflitos, de 91.01.31, AD, 361 e de
actos de gestão privada são os praticados pelos órgãos ou agentes da 93.07.06, Conflito n° 253, do STJ, de 87.02.03, BMJ 364, 591, de 90.02.20, BMJ 394, 453,
de 94.01.12, CJ STJ), II, 1, 328 e de 95.05.09, CJ STJ), III, II, 968, e do STA, de 89.03.09,
Administração em que esta aparece despida de poder e, portanto, numa Recurso n.° 25084, de 93.05.13, Recurso n.°25084, de 93.05.13, Recurso nº31478, de 00.10.03,
posição de paridade com o particular ou os particulares a que os actos Recurso n.°. 356 e de 00.07.11, Recurso n°318.
respeitam, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia No mesmo sentido se pronunciam Alberto dos Reis, Comentário Código de Processo Civil,
1º, 110 e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1°, 88.
proceder um particular com inteira subordinação às normas de direito (3) Como expressamente se refere no acórdão do Tribunal de Conflitos de 03.05.13, pro-
privado (9). ferido no Conflito n.° 11/02, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se pelo
Como referia Antunes Varela (10) actos de gestão pública são os que quid decidendum e não pelo quid decisum, ou seja, a determinação do tribunal materialmente
competente para o conhecimento da pretensão deduzida pela demandante deve partir do teor
visando a satisfação de interesses colectivos, realizam fins específicos dessa pretensão e dos fundamentos em que se baseia sendo, para este efeito, irrelevante o
do Estado ou outro ente público e assentam sobre o jus autorictatis da juízo de prognose que se possa fazer relativamente à viabilidade da mesma, por se tratar de
entidade que os pratica; os actos de gestão privada são, de modo geral, questão atinente ao mérito da causa - no mesmo sentido o acórdão do Tribunal d Conflitos
de 04.09.23, proferido no Conflito n.° 5/04.
aqueles que, embora praticados por órgãos do Estado ou de outras pes- (4) Vem invocado, mais concretamente, que do auto de penhora e dos anúncios constava
soas colectiva públicas, estão sujeitos às mesmas regras que vigorariam que ao prédio deles constantes fora concedido alvará de licenciamento de loteamento urbano
para a hipótese de serem praticados por simples particulares. (11) pela Câmara Municipal da Feira, com o n.° 6/98, de 24 de Abril de 1989, quando é certo
que aquele alvará de loteamento nada tinha a ver com o prédio penhorado e por si adquirido,
Destarte, a solução do problema da qualificação, como de gestão prédio que, sendo parte integrante de uma reserva ecológica, não permitia a implantação de
pública ou de gestão privada, dos actos praticados pelos titulares de qualquer construção, desconformidade que a demandante alega que a Repartição de Finanças
órgãos ou por agentes de uma pessoa colectiva pública, incluindo o de Santa Maria da Feira não podia desconhecer.
(5) Como atrás se consignou, mais alegou a demandante que após a decisão que declarou
Estado, reside em apurar: nula a compra/venda do imóvel penhorado, foi por si requerido à Repartição de Finanças
- Se tais actos se compreendem numa actividade do ente público em respectiva a restituição da importância depositada por conta do preço, pedido que formulou
que este, despido do poder público, se encontra e actua numa posição em 28 de Novembro de 2001; consta dos elementos juntos aos autos que a restituição se
verificou em 4 de Fevereiro de 2002.
de paridade com os particulares a que os actos respeitam, e, portanto, (6) A responsabilidade civil extra-obrigacional do Estado e demais entidades públicas,
nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um abrangendo quer a actividade administrativa, quer a legislativa, quer a judicial, encontra-se
particular, com submissão às normas do direito privado; consagrada no artigo 22°, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual: «O
- Ou se, contrariamente, esses actos se compreendem no exercício Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com
os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no
de um poder público, na realização de uma função pública, indepen- exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos
dentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e e garantias ou prejuízo para outrem», preceito que consagra um princípio geral de directa
independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, responsabilidade civil do Estado, por danos resultantes do exercício das funções política,
legislativa, administrativa e jurisdicional, sendo que o direito de indemnização daí decorrente
que na prática dos actos devem ser observadas (12) está sujeito ao regime dos direitos, liberdades e garantias - artigo 17°, da Constituição da
No caso em apreço, atenta a forma como foi estruturada a causa que República - razão pela qual é directamente aplicável, não dependendo de lei para poder ser
subjaz ao conflito, é de concluir estarmos em presença de uma acção invocado pelo lesado.
(7) Apesar de a competência dos tribunais administrativos ser limitada, por confronto com
sobre responsabilidade civil (extracontratual) do Estado por prejuízos a competência genérica dos tribunais judiciais, pode-se e deve-se actualmente afirmar que
decorrentes de actos de gestão pública. os tribunais administrativos e fiscais são os tribunais comuns em matéria administrativa e
Com efeito, como já atrás deixámos consignado, vem pedida indem- fiscal, tendo reserva de jurisdição nessas matérias, excepto nos casos em que, pontualmente,
a lei atribua competência a outra jurisdição — neste preciso sentido os acórdãos do Tribunal
nização ao Estado por comportamento alegadamente ilícito de um ente Constitucional n°s 508/94 e 347/97, publicados nos DR de 94.12.13 e de 97.07.25, bem como
público (Repartição de Finanças de Santa Maria da Feira), comporta- os acórdãos do STA de 96.10.03 e de 03.02.27, proferidos nos Recursos n.°s 41.403 e 285/03.
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(8) Bold nosso. 4. Recebida a impugnação, esta é distribuída, quando for caso disso,
(9) Neste sentido, podem ver-se os acórdãos do Tribunal de Conflitos de 81.05.11, proferido e imediatamente conclusa ao juiz que, por meio de despacho concisa-
no Processo n.° 124, publicado no BMJ, 311, 195, de 83.10.20, proferido no Processo n.° 153,
publicado em Apêndice ao Diário da República de 86.03.04, 18, de 89.01.12, proferido no mente fundamentado, decide, concedendo ou recusando o provimento,
Processo n.° 198, de 99.05.12, proferido no Processo nº 338, publicado em Apêndice ao Diário por extemporaneidade ou manifesta inviabilidade”.
da República de 00.07.31, 19, e de 06.01.18, proferido no Recurso n.°12/05. No entendimento do TAF 2, muito embora o pedido de apoio judiciário
(10) Obrigações em Geral (7ª edição), 1,643.
(11) Em sentido coincidente pronunciou-se Vaz Serra, RLJ 103°, 350, ao expender que a
se destinasse, no caso em apreço, a intentar uma acção administrativa,
distinção se deve fazer atendendo a se o acto se integra, ou não, numa actividade de direito a aplicação analógica do preceito transcrito, por forma a inscrever na
público da pessoa colectiva: se ele se compreende numa actividade de direito privado da jurisdição administrativa e fiscal a competência para decidir a impug-
pessoa colectiva pública, da mesma natureza da actividade de direito privado desenvolvida nação, não é viável porque está em causa uma situação de competência
por um particular, o caso é de acto praticado no domínio dos actos de gestão privada: se,
pelo contrário, o acto é praticado no exercício de um poder público, isto é, na realização de jurisdicional, na qual a lei teve em vista, apenas, o tribunal judicial de
função pública, mas não nas formas e para a realização de interesses de direito civil, o caso 1ª instância (art.° 62°, n° 1, da Lei 3/99, de 13/1 — LOTJ).
é de acto praticado no domínio dos actos de gestão pública. O magistrado do 7° juízo cível, diversamente, sustenta que o n° 2
(12) Cf o acórdão do Tribunal de Conflitos de 81.05.11, atrás citado. do citado art.° 28° da LAJ impõe a apreciação da impugnação pelo
tribunal materialmente competente para a decisão da causa em relação
à qual foi peticionado o apoio judiciário, conclusão esta que ainda
mais evidente se torna quando, como aqui sucede, aquela causa já se
encontra pendente.
Acórdão de 20 de Junho de 2006. Interpretada à letra, a norma em apreço aponta no sentido que foi
acolhido na decisão do TAF 2: porque a lei não distingue, com efeito,
Processo n.º 13/06-70. os casos em que a decisão impugnada respeita a pedidos de apoio judi-
Requerente: A magistrada do Ministério Público, junto do Supremo ciário que visam procedimentos da competência de órgãos jurisdicionais
Tribunal Administrativo, no conflito negativo de jurisdição entre o 7.° integrados em ordens diferentes da ordem judicial, é lícito entender-se
Juízo Cível da Comarca de Lisboa (3.ª Secção) e os Tribunais Admi- que também o intérprete não deverá distinguir, por estar clara e inequi-
nistrativos e Fiscais — 2. vocamente expresso o pensamento legislativo; e assim, falando a lei
Relator: Ex.mo Cons. Dr. Nuno Pedro de Melo Vasconcelos Cameira. somente em tribunais judiciais, a estes estaria cometida a competência
material para apreciar todas as impugnações de decisões administrativas
Acordam no Tribunal de Conflitos: relativas à concessão de protecção jurídica, independentemente do facto
de esta ser solicitada para causas da competência de tribunais integrados
1. Meinrad Karl Bambush impugnou judicialmente a decisão do Ins-
noutras ordens (nomeadamente a ordem administrativa e fiscal, a ordem
tituto de Segurança Social que lhe indeferiu o pedido de apoio judiciário constitucional e a ordem de fiscalização das contas públicas).
ali formulado para intentar acção administrativa. Só que a interpretação não deve nunca cingir-se à letra da lei; há que
Distribuído o processo ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Lis- tomar em conta, no seu conjunto, os restantes elementos a que alude o
boa 2, foi aí proferida em 17.10.05 decisão a declarar o Tribunal in- art.° 9º, n° 1, do Código Civil, sem perder de vista, por um lado, que
competente em razão da matéria para conhecer da impugnação e a não pode ser considerado um pensamento legislativo sem um mínimo
ordenar o envio dos autos para os Juízos Cíveis da mesma comarca, de correspondência verbal no texto da lei, mesmo que imperfeitamente
nos termos do art.° 28°, n°s 1 a 3, da Lei 34/04, de 29/7 (Lei do Apoio expresso, e, por outro lado, que na fixação do sentido e alcance desta
Judiciário — LAJ). deverá o intérprete presumir que o legislador consagrou a solução mais
Distribuído o processo ao 7º Juízo cível, também este Tribunal se acertada, exprimindo adequadamente o seu pensamento.
declarou por decisão de 28.10.05 incompetente em razão da matéria Ora, a ponderação destes cânones interpretativos leva-nos à conclu-
para apreciar a impugnação, considerando competente o Tribunal Ad- são de que está perfeitamente correcto o entendimento expresso pelo
ministrativo e Fiscal. magistrado do 7° juízo cível de Lisboa.
Tendo ambas as decisões transitado em julgado, gerou-se assim um Na verdade, como se observou num acórdão do STJ de 22.9.05 (P° 05B
conflito negativo de jurisdição cuja resolução nos é pedida pela Exa. 1248), importa não esquecer que a circunstância de o apoio judiciário ter
magistrada do MP junto do Supremo Tribunal Administrativo. deixado de ser um incidente do processo não fez desaparecer as várias
2. O art.° 28° da Lei do Apoio Judiciário dispõe que: razões de peso que aconselham o tratamento conjunto dessa questão com
“1. É competente para conhecer e decidir a impugnação o tribunal da a questão principal (o litígio propriamente dito) debatida no processo.
comarca em que está sedeado o serviço de segurança social que apreciou Avulta entre elas a apertada conexão que inegavelmente existe entre a
o pedido de protecção jurídica, ou, caso o pedido tenha sido formulado acção pendente ou a intentar e o incidente administrativo respeitante à
na pendência da acção, o tribunal em que esta se encontra pendente. concessão de protecção jurídica. Por isso faz todo o sentido pensar-se
2. Nas comarcas onde existam tribunais judiciais de competência que, havendo nova jurisdicionalização da questão do apoio judiciário
especializada ou de competência específica, a impugnação deve respeitar por força do recurso interposto, o legislador não deixou de querer,
as respectivas regras de competência. como dantes já queria, o tratamento de tudo — questão “incidental” e
3. Se o tribunal se considerar incompetente, remete para aquele que questão “principal” — pelo mesmo julgador. E é isto mesmo o que está
deva conhecer da impugnação e notifica o interessado. consagrado no n° 2 do art.° 28° da LAJ, embora, literalmente, só para
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aqueles casos em que o apoio judiciário requerido se destina a acção autos ao Tribunal Judicial de Viseu, na conformidade do n°3° do predito
da competência de tribunais inseridos na ordem judicial, na jurisdição art.28°.
comum. Como resulta do exposto, contudo, a ratio legis do preceito Veio então a ser proferida decisão, por igual transitada em julgado,
vale com a mesma força persuasiva para as outras situações a que nos do 4° Juízo Cível de Viseu, que, reportando-se ao art.29°, n°1°, da
referimos, ou seja, para os casos em que a acção é da competência Lei n°30-E/2000, de 20/12, declinou, por sua vez, a sua competência
duma ordem diferente da ordem judicial. Em boa verdade, tudo leva material para conhecer do recurso aludido, atribuindo-a ao tribunal
a crer que o legislador pretendeu estabelecer regimes idênticos, e não fiscal referido.
opostos, para a jurisdição comum e para as outras ordens jurisdicionais. Em 11/10/2005, o recorrente requereu, ao abrigo do art.117°, n°1°,
Seria aliás contraditório, como se pondera no aresto do STJ já citado, CPC, ao Tribunal da Relação de Coimbra a resolução de conflito (nega-
“invocar a separação das jurisdições para consagrar uma solução em tivo) que disse de competência surgido entre o Tribunal Administrativo
que uma delas fica a decidir o que, em termos substanciais, é um inci- e Fiscal e o Tribunal Judicial, de Viseu, ambos, uma vez que um e outro
dente de uma outra”. Tem plena justificação, assim, interpretando-se declinaram tê-la para conhecer do recurso aludido.
extensivamente a norma jurídica em questão, dizer que as regras de Ouvidas as autoridades em conflito, só o primeiro tribunal referido se
competência ali fixadas se reportam não só à jurisdição comum, mas pronunciou (arts. 118° e 119° CPC), notando estar-se perante conflito
também à jurisdição administrativa e fiscal; é um entendimento que, de jurisdição (e não de competência).
não sendo repelido pela letra do preceito, está nitidamente enquadrado Observado o disposto no art.120°, n°1°, CPC, o mesmo veio a relevar
no seu espírito, tornando desnecessário o recurso à analogia. o M°P°, com referência aos arts.209°, n°1°, e 213° da Constituição, e
3. Nestes termos, acorda-se em declarar competente para conhecer 115°, n°s 1° e 2°, e 116°, n°1°, CPC.
o recurso de apoio judiciário a que os autos se referem a jurisdição Destarte acertada a competência do Tribunal de Conflitos para re-
administrativa e fiscal. solver o impasse acima delineado, foi declarada a incompetência para
Sem custas. tanto da Relação de Coimbra e ordenada a remessa destes autos a este
Tribunal.
Lisboa, 20 de Junho de 2006. — Nuno Pedro de Melo e Vasconcelos O Digno Representante do M° P° junto do mesmo pronunciou-se
Cameira (relator) — Fernando Manuel Azevedo Moreira — Rosendo no sentido da atribuição ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu
Dias José — António Bento São Pedro — António A. Moreira Alves da competência para conhecer do falado recurso do indeferimento de
Velho — Camilo Moreira Camilo. pedido de benefício de apoio judiciário.
Colhidos os vistos legais, há que apreciar e decidir. Assim:
Observando, embora, que, deduzido o pedido de apoio judiciário em
1/2/2005, é a Lei n°34/2004, de 29/7, a aplicável, o M°Pº acompanhou
a citação de Salvador da Costa, “Apoio Judiciário”, 3ª ed., 128, feita
Acórdão de 22 de Junho de 2006. no despacho lavrado no predito Juízo Cível, segundo a qual, em suma,
decorre do art.28°, nºs 1° e 2°, daquela Lei ser competente para conhecer
Processo n.º 10/06-70. do recurso em questão o tribunal que o for para conhecer da acção em
Requerente: Ilídio da Rocha Pereira no conflito negativo de jurisdição, função da qual o apoio judiciário foi requerido, mesmo se ainda não
entre o Tribunal Judicial da Comarca de Viseu e o Tribunal Adminis- pendente em juízo.
trativo e Fiscal de Viseu. Tratando-se, no caso, de um processo de natureza fiscal, daí a com-
Relator: Ex.mo Cons. Dr. Manuel Oliveira Barros. petência material do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu.
Tal assim, prossegue, em vista, ainda, do art.49°, n°1°, al. d), do Esta-
Acordam no Tribunal dos Conflitos: tuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) aprovado pela Lei
n°13/2002, de 19/2, que nomeadamente comete aos tribunais tributários
Ilídio da Rocha Pereira, casado, madeireiro, de Mosteirô, Pepim, a competência para conhecer dos incidentes e das oposições - por sua
Castro Daire, requereu em 1/2/2005, a concessão do beneficio do apoio vez admitindo o art.166°, n°1°, al. c), do Código de Procedimento e
judiciário na modalidade da dispensa de taxas de justiça e demais en- Processo Tributário o incidente do apoio judiciário nos processos de
cargos com o processo para o efeito de deduzir oposição em autos de execução fiscal. Por outro lado:
execução fiscal instaurada nos Serviços de Finanças de Viseu. Como a sua própria designação manifesta, a oposição a que alude o
Por ofício de 4/5/2005, a Segurança Social comunicou-lhe ter-lhe art.203° do Código de Procedimento e Processo Tributário tem por fim
sido concedida protecção jurídica limitada ao pagamento faseado da impugnar a execução fiscal.
taxa de justiça e demais encargos com o processo. Correspondendo aos embargos de executado em processo civil
Interpôs, por isso, recurso para o Tribunal Administrativo e Fiscal (arts. 812° ss CPC), com conhecida natureza instrumental, tem-se, de
de Viseu, nos termos dos arts. 27° e 28° da Lei n°34/2004, de 29/7, de facto, notado que, configurando-se, formalmente, como uma acção, a
impugnação desse despacho do Director do Centro Distrital de Segu- petição inicial respectiva assume, funcionalmente, o papel de contestação
rança Social de Viseu. do pedido executivo, que visa impugnar. Pois bem:
O Tribunal referido declarou-se, no entanto, incompetente em razão Não obstante não se tratar, propriamente, dum incidente da oposição
da matéria para conhecer desse recurso, e ordenou a remessa desses - ainda não deduzida - a execução fiscal, antes, na realidade, se apre-
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sentando como um preliminar dessa oposição, não parece que se possa Outubro de 2002, acrescida de juros de mora à taxa legal de 12 % ao
deixar de ver consagrada no art.28°, nºs 1° e 2°, da Lei n°34/2004, de ano, desde a data da citação até integral pagamento;
29/7, a regra accessorium sequitur principali (de que, nomeadamente, b) no montante de 27.100,00 euros, pelo não fornecimento de bens ou
há afloramento na lei do processo civil em matéria de procedimentos prestação de serviços, no período compreendido entre Outubro de 1999
cautelares, conforme art.383°, nºs 1° a 3°, CPC). e Outubro de 2002, como consequência da conduta dolosa dos réus ao
Como assim conforme com a boa razão a solução proposta pelo não contratarem os serviços da autora, acrescida de juros à taxa legal de
M°P°, decide-se declarar o Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu 12 % ao ano, desde a data da citação até integral pagamento;
competente para conhecer do recurso do indeferimento do pedido de c) no montante de 10.815,48 euros, correspondente à quantia que
benefício de apoio judiciário aludido. dispendeu com a aquisição de inertes e aluguer de equipamentos nos
Sem custas. anos de 1999 e 2000, acrescida de juros à taxa legal de 12 % ao ano,
desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.
Lisboa, 22 de Junho de 2006. — Manuel Oliveira Barros (relator) — Contestaram os réus invocando, em primeiro lugar a incompetência
Rosendo Dias José — Manuel de Simas Santos — Maria Angelina Do- absoluta do tribunal, por entender em suma, que a alegada actuação dos
mingues — António Pereira Madeira — José Manuel da Silva Santos réus releva claramente no âmbito da gestão pública, mais concretamente
Botelho. na denominada responsabilidade extracontratual da Administração Pú-
blica, e portanto, da competência dos Tribunais Administrativos.
Por decisão de 5 de Novembro o Tribunal Judicial de S. Roque do Pico
absolveu os réus da instância por ter entendido que os actos praticados
(ou não praticados) são iniludivelmente administrativos, quer quanto
Acórdão de 04 de Julho de 2006. aos sujeitos requeridos, quer quanto à natureza do objecto, quer quanto
ao fim, e, nessa medida, absolutamente incompetentes, em razão da
matéria, os tribunais da ordem judicial.
Assunto: A autora interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação
Conflito de jurisdição. Actos de gestão pública. de Lisboa.
Por acórdão 5-7-2006, a Relação de Lisboa confirmou a decisão
proferida pelo Tribunal Judicial de S. Roque do Pico, negando provi-
Sumário: mento ao recurso.
I — São actos de gestão pública os compreendidos no exer- A autora inconformada com tal acórdão recorreu do mesmo para o
cício de um poder público, na realização de uma função Supremo Tribunal de Justiça.
pública, independentemente de envolverem ou não o No Supremo Tribunal de Justiça o Ex.mo Conselheiro Relator proferiu
exercício de meios de coerção e independentemente, o seguinte despacho:
ainda, das regras técnicas ou de outra natureza, que “O Tribunal da Relação de Lisboa julgou incompetente em razão
na prática dos actos devem ser observadas. da matéria o Tribunal Judicial de S. Roque do Pico por entender que
II — Os actos e omissões relativos ao licenciamento municipal a causa pertence ao âmbito da jurisdição administrativa. Assim, nos
de obras particulares são actos de gestão pública. termos do disposto no art. 107°, 2 do C. P. Civil, o recurso destinado a
fixar o tribunal competente devia ter sido interposto para o Tribunal de
Processo n.º 11/06-70. Conflitos. Remeta, pois, os autos ao Tribunal de Conflitos e informe o
Requerente: João Gonçalves Martins e Filho, L.da, no conflito nega- Tribunal da Relação de Lisboa”.
tivo de jurisdição, entre o Tribunal Judicial de São Roque do Pico e os No Tribunal de Conflitos, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu
Tribunais Administrativos e Fiscais. parecer no sentido de ser confirmado o acórdão da Relação de Lisboa.
Relator: Ex.mo Cons. Dr. António São Pedro. Com dispensa de vistos foi o processo submetido à conferência para
julgamento.
Acordam no Tribunal de Conflitos: 2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
1. Relatório Com interesse para o julgamento do recurso são relevantes os se-
JOÃO GONÇALVES MARTINS E FILHO LDA. devidamente iden- guintes factos:
tificado nos autos, intentou no Tribunal Judicial de São Roque do Pico, a a) JOÃO GONÇALVES MARTINS E FILHO LDA. intentou no Tri-
presente acção declarativa, com processo ordinário, contra o MUNICÍ- bunal Judicial de São Roque do Pico, a presente acção declarativa, com
PIO DA MADALENA, JORGE MANUEL PEREIRA RODRIGUES e processo ordinário, contra o MUNICIPIO DA MADALENA, JORGE
JAIME ANTONIO SILVEIRA JORGE, pedindo a condenação dos réus MANUEL PEREIRA RODRIGUES e JAIME ANTONIO SILVEIRA
a pagarem uma indemnização a título de danos patrimoniais: JORGE, pedindo a condenação dos réus a pagarem uma indemnização
a) no montante correspondeste à perda de a.078.340,10 euros, relativos a título de danos patrimoniais:
à perda de lucros previsíveis, como consequência da conduta dolosa dos i) no montante correspondeste à perda de a.078.340,10 euros, relativos
réus ao não emitirem a licença de utilização, entre Outubro de 1999 e à perda de lucros previsíveis, como consequência da conduta dolosa dos
140 141

réus ao não emitirem a licença de utilização, entre Outubro de 1999 e a actividade da ora autora, pois sabiam as obras de construção civil
Outubro de 2002, acrescida de juros de mora à taxa legal de 12 % ao estavam isentas de licenciamento, apesar de fazerem crer que não.
ano, desde a data da citação até integral pagamento; VIII - os réus Jorge Rodrigues e Jaime Jorge praticaram actos de
ii) no montante de 27.100,00 euros, pelo não fornecimento de bens ou gestão privada e não de gestão pública, pelo que agiram desprovidos da
prestação de serviços, no período compreendido entre Outubro de 1999 veste pública. Grande parte dos prejuízos causados à autora decorrem
e Outubro de 2002, como consequência da conduta dolosa dos réus ao de actos em que os réus Jorge Rodrigues e Jaime Jorge não estavam
não contratarem os serviços da autora, acrescida de juros à taxa legal de munidos da veste pública” (cfr. Fls. 384).
12 % ao ano, desde a data da citação até integral pagamento; Vejamos.
iii) no montante de 10.815,48 euros, correspondente à quantia que A competência do tribunal afere-se em função da pretensão (pedido
dispendeu com a aquisição de inertes e aluguer de equipamentos nos e causa de pedir) do autor. “A competência do tribunal - ensina Redenti
anos de 1999 e 2000, acrescida de juros à taxa legal de 12 % ao ano, - “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com
desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.
aquilo que será mais tarde o quid decisum)”; (…). É ponto a resolver
b) Contestaram os réus invocando, em primeiro lugar a incompetência
absoluta do tribunal, por entender em suma, que a alegada actuação dos de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão
réus releva claramente no âmbito da gestão pública, mais concretamente do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não impor-
na denominada responsabilidade extracontratual da Administração Pú- tando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”
blica, e portanto, da competência dos Tribunais Administrativos. - MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil,
c) Por decisão de 5 de Novembro o Tribunal Judicial de S. Roque Coimbra, 1079, pág. 91
do Pico absolveu os réus da instância por ter entendido que os actos Na presente acção a autora resume a sua pretensão pedindo o ressar-
praticados (ou não praticados) são iniludivelmente administrativos, quer cimento de três tipos ou categorias de danos.
quanto aos sujeitos requeridos, quer quanto à natureza do objecto, quer Um primeiro tipo de danos emergente pela não emissão dolosa de
quanto ao fim, e, nessa medida, absolutamente incompetentes, em razão uma licença de utilização; um segundo tipo de danos emergente de uma
da matéria, os tribunais da ordem judicial. conduta dolosa dos réus em não celebrarem com a autora contratos de
d) A autora interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação fornecimento de bens e serviços e, finalmente um terceiro tipo de danos
de Lisboa. com aquisição de inertes e aluguer de equipamentos.
e) Por acórdão 5-7-2006, a Relação de Lisboa confirmou a decisão Todos estes danos estão conexionados com a não emissão tempestiva
proferida pelo Tribunal Judicial de S. Roque do Pico, negando provi- da licença de utilização de uma Central de Britagem, entre Outubro de
mento ao recurso. 1999 e Outubro de 2002, englobando os lucros cessantes, a inexistência
2.2. Matéria de direito de contratos com o Município e os gastos no ano de 2000 no aluguer de
A questão que se coloca, neste processo, é a de saber qual a jurisdição máquinas e aquisição de inertes, resultantes de tal indústria.
competente para julgar um pedido de indemnização por factos ilícitos Tal decorre, com toda a clareza do alegado no art. 43º, 44º, 45º, 46º
formulado contra o Município de Madalena, Jorge Manuel Pereira e 47° da petição inicial:
Rodrigues (Presidente da Câmara) e Jaime António Silveira Jorge (fun- “43º
cionário do Município).
Tanto a 1ª instância, como a Relação entenderam que os factos ilícitos Não fora a conduta persecutória dos réus, a autora tinha no mínimo
imputados aos titulares dos órgãos do réu, deveriam ser qualificados obtido o alvará de licença de utilização das obras de construção civil,
como actos de gestão pública e, por isso, consideraram os tribunais da em Outubro de 1999 (quarenta e cinco dias após a entrega do pedido
“ordem judicial” materialmente incompetentes para julgar a acção. No de licenciamento, documento 6, pois as obras existentes nessa data não
recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a autora insurgia-se contra sofreram qualquer alteração).
a declarada incompetência material, com os argumentos já invocados
junto da Relação, ou seja: 44°
“V - o cerne deste caso concreto radica em saber se os réus, ora Na verdade, a conduta dos réus impediu que a Central de Britagem
recorridos, agiram ou não desprovidos da veste pública. iniciasse a sua laboração, pelo menos, durante trinta e seis meses
VI - quando os réus Jorge Rodrigues e Jaime Jorge em conluio, ma-
antes do seu início, ou seja em Outubro de 1999, e em vez de Outubro
nipularam os residentes do lugar dos Toledos, concelho da Madalena
para se manifestarem contra a Central de Britagem de Pedra que a de 2002, como viria a suceder.
autora estava a instalar, parece óbvio que estamos perante um acto 45º
de gestão privada, desprovido de veste pública e como tal deve ser
competente para decidir o Tribunal de São Roque e não os Tribunais O artigo 22° da Constituição da República diz: “O Estado e as demais
Administrativos; entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária
VII - A ré Município da Madalena demorou três anos para deliberar com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções
de que as obras de construção civil de instalação da Central de Britagem ou omissões praticados no exercício das suas funções e por causa do
estavam isentas de licenciamento, não obstante os réus Jorge Rodrigues exercício de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias
e Jaime Jorge, durante esse período terem agido com o intuído de afectar ou prejuízo para outrem.
142 143

46°. titulares de órgãos ou por agentes de uma pessoa colectiva pública,


Os titulares dos órgãos da 1ª ré, neste caso concreto os réus Jorge incluindo o Estado, reside em apurar: — Se tais actos se compreendem
Rodrigues e Jaime Jorge e os seus funcionários não agiram nos termos numa actividade da pessoa colectiva em que esta, despida do poder
a que estavam obrigados no exercício das suas funções. público, se encontra e actua numa posição de paridade com os particu-
lares a que os actos respeitam, e, portanto, nas mesmas condições e no
47° mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão
às normas do direito privado; — Ou se, contrariamente, esses actos se
Os titulares dos órgãos da 1ª ré, ou seja, os réus Jorge Rodrigues compreendem no exercício de um poder público, na realização de uma
e Jaime Jorge, e a 1ª ré tinham de se limitar a emitir o não a licença função pública, independentemente de envolverem ou não o exercício
relativa às obras de construção civil da Central de Britagem de Pedra” de meios de coerção e independentemente, ainda, das regras, técnicas
É, portanto, claro que, tal como a autora desenhou a causa e formulou ou de outra natureza, que na prática dos actos devem ser observadas.»
a sua pretensão, os factos ilícitos geradores da responsabilidade civil No caso dos autos, como se viu, a prática e a omissão de actos re-
são os actos e omissões dos réus Jorge Manuel Pereira Rodrigues e lacionados com a emissão da licença de utilização de uma Central de
Jaime António Silveira Jorge, enquanto “funcionários” do Município Britagem, ou melhor com a sua emissão tempestiva foram, na tese da
réu. autora, os actos que lhe causaram os prejuízos invocados (os actos
A argumentação da autora, alegando que os réus manipularam a po- ilícitos).
pulação contra a instalação da Central de Britagem, não é determinante, Ora, a licença de utilização a emitir pela 1ª ré, era sem dúvida um
pois não foi essa alegada manipulação que lhe causou os peticionados acto de gestão pública. O Dec. Lei 445/91, de 15 de Outubro, com as
danos. Os danos resultaram, sim, do facto sintetizado no art. 15° da modificações introduzidas pelo Decreto-Lei n.° 250/94 de 15 de Outu-
petição inicial, ou seja no facto da autarquia ter estado “três anos para bro atribuía às Câmaras Municipais e ao seu Presidente atribuições em
emitir uma licença de utilização”. matéria de licenciamento de obras particulares. Mais concretamente
A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes a atribuição da licença e alvará de utilização era da competência do
públicos pode ser accionada nos Tribunais Judiciais, quando os actos Presidente da Câmara (art. 26° do citado diploma). O preâmbulo do
lesivos sejam praticados “no exercício de actividades de gestão privada” Dec. Lei 250/94, de 15 de Outubro chama-lhe “regime de licenciamento
(art. 501° do C. Civil). E podem ser accionada na Jurisdição Administra- municipal de obras particulares”.
tiva, quando tais actos sejam praticados no exercício de actividades de O atraso na emissão de tal licença bem como a falta de diligência na
gestão pública (art. 3º e 51º, 1, al. h) do ETAF então em vigor — Dec. análise da respectiva situação de facto, sobre a necessidade, ou não, de
lei 129/84, de 27 de Abril). licenciamento da construção, também são actos inerentes às atribuições
“Actos de gestão pública — como se diz no Acórdão do Tribunal de que em matéria de licenciamento de obras são cometidas aos órgãos do
Conflitos de 4-4-2006, proferido no 08/03 - são os praticados pelos Município. O autor juntou, inclusivamente, aos autos fotocópia do auto
órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, de embargo relativo à instalação de uma Britadeira, o que mostra que
isto é, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas toda a actividade causadora dos danos se relacionava com as funções da
de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício Câmara Municipal no âmbito dos seus poderes públicos no licenciamento
de meios de coerção; actos de gestão privada são os praticados pelos
municipal de obras particulares.
órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida de
poder e, portanto, numa posição de paridade com o particular ou os Não é duvidoso que o regime de licenciamento de obras particulares,
particulares a que os actos respeitam, nas mesmas condições e no mesmo implicando um condicionamento do “jus aedificandi”, por razões de
regime em que poderia proceder um particular com inteira subordinação interesse geral (ordenamento do território, salubridade e estética das
às normas de direito privado - Neste sentido, podem ver-se os seguintes povoações) tem natureza de direito público, pelo que a intervenção das
acórdãos: — do Tribunal dos Conflitos de 5-11-1981, processo n.° 124, entidades com atribuições nesta matéria, no âmbito das mesmas, traduz
publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.° 311, página 195; — o exercício de uma actividade de gestão pública,
do Tribunal dos Conflitos de 20-10-1983, processo n.° 153, publicado em Nos termos do art. 51, al. h) do ETAF compete aos tribunas admi-
Apêndice ao Diário da República de 3-4-1986, página 18; — do Tribunal nistrativos de círculo conhecer das acções sobre responsabilidade civil
dos Conflitos de 12-1-1989, processo n.° 198, publicado em Acórdãos do Estado e dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e
Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n° 330, página 845; agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo
— do Tribunal dos Conflitos de 12-5-1999, processo n.° 338, publicado acções de regresso.
em Apêndice ao Diário da República de 31-7-2000, página 19; — do Assim, deve negar-se provimento ao recurso, considerando os tribu-
Supremo Tribunal Administrativo de 22-11-1994, recurso n.° 33332, pu- nais judicias incompetentes em razão da matéria para apreciar a presente
blicado em Apêndice ao Diário da República de 18-4-1997, página 8256; acção, sendo competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta
— de 29-6-2004, do Tribunal dos Conflitos, recurso n.° 1/04.)“ Delgada — cfr. art. 107°, 2 e 3 do C.P. Civil.
Como se destaca no acórdão do Tribunal de Conflitos proferido no 3. Decisão
processo n.° 124 citado: «A solução do problema da qualificação, como Face ao exposto, os juízes do Tribunal de Conflitos acordam em
de gestão pública ou de gestão privada, dos actos praticados pelos negar provimento ao recurso, considerando incompetente em razão da
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matéria o Tribunal Judicial de S. Roque do Pico e competente o Tribunal apenas os casos em que as acções pendentes ocorrem na ordem dos
Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada. tribunais judiciais;
Sem custas. b) Assim, “o tribunal judicial de 1ª instância será o competente para
conhecer da impugnação, não só na hipótese de o pedido de protec-
Lisboa, 4 de Julho de 2006. — António Bento São Pedro (relator) — An- ção jurídica haver sido formulado para os procedimentos em geral da
tónio da Silva Henriques Gaspar — Manuel Maria Duarte Soares — João competência dos tribunais tributários, administrativos, de contas ou do
Moreira Camilo — António Políbio Ferreira Henriques — Edmundo tribunal constitucional, a implementar subsequentemente junto deles,
António Vasco Moscoso. como também nos casos em que o pedido de protecção jurídica foi
formulado na pendência de procedimentos em alguns deles”.
6. As decisões em causa transitaram, respectivamente, em julgado
em 20 de Outubro de 2005 e 24 de Novembro de 2005.
7. Está configurado um conflito negativo de jurisdição.
Acórdão de 6 de Julho de 2006. 8. Foram notificadas as partes para se pronunciarem e foi dada vista
ao M.º P.º
Processo n.º 7/06-70 9. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
Recorrente: magistrada do Ministério Público junto do STA, no con- II. Questão prévia será a de determinar a lei aplicável.
flito negativo de jurisdição entre o 9.° Juízo Cível da Comarca de Lisboa O último diploma sobre apoio judiciário é a Lei 34/2004 de 29/07,
e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa (2.°Juízo). cujo início de vigência foi determinado para o dia 1 de Setembro de
Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Paulo Armínio de Oliveira e Sá. 2004 (art. 51.°).
Adjuntos: João Camilo, Madeira dos Santos, José Cândido de Pinho, Segundo o n.° 2 dessa disposição, esta lei será aplicável aos processos
Borges Soeiro e Alberto Augusto. iniciados após a sua vigência, ou seja, após 1 de Setembro de 2004.
O pedido de apoio foi apresentado em 10 de Fevereiro de 2005 (certi-
Acordam no Tribunal de Conflitos: dão de fls.28/29), pelo que lhe é aplicável a Lei 34/2004 e não a revogada
1. Ana Rita de Sampaio Palhinha da Silva Correia apresentou nos Lei 30-E/2000, de 20 de Dezembro.
Juízos Cíveis da Comarca de Lisboa recurso de impugnação judicial Segundo o n.° 1 do art. 28.° da citada Lei, o tribunal competente para
da decisão do Centro Distrital de Lisboa do Instituto de Solidariedade e a impugnação judicial é o “tribunal da comarca” em que está sediado o
Segurança Social, que indeferiu o seu pedido de concessão do benefício serviço da Segurança Social que apreciou o pedido ou, caso este tenha
sido formulado na pendência da acção, o “tribunal” em que esta se
de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais
encontra pendente.
encargos, com vista a deduzir oposição a uma execução fiscal. Acrescenta o n.° 2 que “nas comarcas onde existem tribunais de
2. Distribuído o processo ao 9.º Juízo Cível, o M.mo Juiz proferiu competência especializada ou de competência específica, a impugnação
decisão, datada de 28 de Setembro de 2005, declarando a incompetência deve respeitar as respectivas regras de competência”.
material desse tribunal para a tramitação dos autos, ordenando a remessa Sobre o preceito antes citado diz SALVADOR DA COSTA (O Apoio
ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa (doravante TAF). Judiciário, 5ª Edição actualizada e ampliada, Almedina, Coimbra, 2005,
3. Fundamenta-se tal decisão no seguinte: pp. 184 e 185): “Ao reportar-se ao tribunal de comarca, contra a realidade
a) O pedido de apoio judiciário em causa destina-se a deduzir oposição das coisas envolvente da existência de ordens de tribunais diversa da
a uma execução fiscal que já corre termos no TAF de Lisboa; judicial cujos processos comportam a concessão da protecção jurídica,
b) A decisão em análise não cabe na previsão da primeira parte do a lei apenas teve em vista o tribunal judicial de 1ª instância (artigo 62.°,
n.° 1 do artigo 28.°, da Lei n.° 34/04, de 29 de Julho, segundo a qual n.° 1, da Lei n.° 3/99, de 13 de Janeiro).
é competente para conhecer e decidir a impugnação o tribunal da co- “Como a segunda parte deste normativo está directamente conexio-
marca em que está sediado o serviço de Segurança Social que apreciou nada com a primeira, a competência para decisão da impugnação no
o pedido de apoio judiciário, caso de a protecção jurídica haver sido pedida para acções pendentes
c) antes cai na previsão da segunda parte dessa disposição, de acordo só visou as hipóteses de essa pendência ocorrer na ordem dos tribunais
com a qual, caso o pedido tenha sido formulado na pendência da acção, judiciais.
é competente o tribunal em que esta se encontra pendente. “Nesta perspectiva, o tribunal judicial de 1ª instância será o com-
4. Porém, remetidos os autos ao TAF de Lisboa (2.° Juízo) foi, também petente para conhecer da impugnação, não só na hipótese de o pedido
aí, proferida decisão, em 8 de Novembro de 2005, a julgar-se incom- de protecção jurídica haver sido formulado para os procedimentos em
petente, em razão da matéria, para conhecer da referida impugnação geral da competência dos tribunais tributários, administrativos, de contas
e a determinar a remessa dos autos aos Juízos Cíveis da Comarca de ou do Tribunal Constitucional, a implementar subsequentemente junto
Lisboa, por serem os competentes, ao abrigo do n.° 1 do artigo 28.°, deles, como também nos casos em que o pedido de protecção jurídica
da Lei n.º 34/04. foi formulado na pendência de procedimentos em alguns deles.”
5. Sustenta o M.mo Juiz do TAF que: Refere ainda mais adiante (idem, pp. 186 e 187) o mesmo Autor:
a) Face à primeira parte do nº. 1 do artigo 28.° e seu n.° 2, a 2ª parte “Já se suscitou a questão de saber se a regra de competência que o
do n.° 1 da citada disposição legal, deve ser interpretada como visando normativo em análise insere não deverá ser adaptada às situações em
146 147

que a impugnação da decisão administrativa incida sobre o pedido de Acontecendo que a causa conexa é da competência da jurisdição
protecção jurídica destinado a acções ou procedimentos da competência fiscal, onde pende e tratando-se aqui da competência jurisdicional, deve
de tribunais inseridos em ordens diversas da judicial, como é o caso dos entender-se ser o tribunal onde corre a execução (acção, no sentido do
tribunais administrativos, fiscais, do Tribunal de Contas e do Tribunal artigo 2.°, n.° 2 do Código de Processo Civil e 20.° n.°1 da Constitui-
Constitucional. ção da República Portuguesa) o competente para apreciar o pedido de
“Na realidade, há estreita conexão entre a causa judicial concreta impugnação do indeferimento do apoio judiciário.
pendente ou a intentar e o incidente administrativo da concessão da Ou seja, o TAF de Lisboa.
protecção jurídica III. Decisão:
(…). Pelo exposto, acordam em declarar competente o Tribunal Admi-
“A lógica da previsão sobre esta matéria implicaria a solução geral nistrativo e Fiscal de Lisboa (2.° Juízo) para conhecer do recurso de
de que a competência para a decisão da impugnação se inscrevesse no impugnação judicial da decisão do Centro Distrital de Lisboa do Instituto
órgão jurisdicional onde o procedimento estivesse pendente ou, no caso de Solidariedade e Segurança Social, que indeferiu o pedido de concessão
de ainda não estar pendente, no órgão competente para dele conhecer. do benefício de apoio judiciário formulado.
“Mas não foi isso, coerente ou incoerentemente, que ficou consagrado Sem custas.
na lei ao não distinguir as hipóteses de a decisão recorrida se reportar a Lisboa, 6 de Julho de 2006. — Paulo Armínio Oliveira e Sá (rela-
pedido de protecção jurídica com vista a procedimentos da competência tor) — João Moreira Camilo — Azevedo Moreira — Borges Soeiro —
de órgãos jurisdicionais integrados em ordens de tribunais diversas da Madeira Santos — Jorge de Sousa.
ordem judicial.
“Tendo em conta que se está perante uma situação de competência
jurisdicional, não se afigura viável a aplicação analógica do referido
normativo aos casos em que a impugnação da decisão administrativa se
reporta a pedidos de protecção jurídica relativos a causas da competência Acórdão de 6 de Julho de 2006.
de órgãos jurisdicionais integrados em ordens de tribunais diversas da
ordem judicial.”
Não perfilhamos inteiramente esta posição interpretativa. Assunto:
De facto, nos termos do artigo 17.° da Lei 34/04 o “regime de apoio
REFER, E. P. Admissibilidade do recurso. Responsabilidade
judiciário aplica-se a todos os tribunais e nos julgados de paz, qualquer civil extracontratual. Estatutos da REFER. Norma atribu-
que seja a forma do processo” (n.° 1), bem como, com as devidas apli- tiva de competência. Constitucionalidade.
cações “aos processos de contra-ordenações e aos processos de divórcio
por mútuo consentimento, cujos termos corram nas conservatórias de
registo civil” (n.° 2). Sumário:
Da referência feita atrás a todos os tribunais, parece dever distinguir- I — Nada obsta a que o Tribunal dos Conflitos conheça
-se, na interpretação do artigo 28.°, entre tribunal de comarca ou tribunal do recurso interposto de um acórdão da Relação que
judicial de primeira instância e tribunal “tout court”. deveria ser-lhe direccionado mas que, por um erro ini-
A regra da competência, em primeira linha, para o tribunal judicial cial depois corrigido, fora interposto e admitido para
de 1ª instância e a explicitação, só aqui necessária, da regra do n.° 2 do o STJ.
citado artigo é facilmente compreensível, uma vez que não é exigível à II — O artigo 32.º, n.º 1, dos estatutos da REFER, aprovados
Segurança Social que tenha exacta noção de qual a espécie de tribunal pelo Decreto-Lei n.º 104/97, de 29 de Abril, dispunha
ou a entidade que tem competência para decidir do pedido que se pre- que competia aos tribunais judiciais o julgamento das
tende formular e, porque se pretende evitar a ocorrência de conflitos acções em que ela fosse demandada por responsabili-
de jurisdição. dade civil extracontratual.
Já não assim, se já existe uma acção pendente em tribunal. III — Essa norma, na medida em que reproduzia quase «ip-
Neste caso, o legislador não utiliza a designação de “tribunal de sis verbis» o estatuído no então vigente artigo 46.º do
comarca” ou “tribunal judicial” e, havendo um processo pendente, o Decreto-Lei n.º 260/76, de 8 de Abril, não padecia de
n.° 2 do citado normativo não é de aplicar. inconstitucionalidade material ou orgânica.
A expressão “tribunal» parece, pois, dever ser entendida, tal como no IV — A mesma norma prevalecia sobre quaisquer considera-
atrás citado artigo 17.° e de acordo com a formulação do artigo 209.°, ções que «in concreto» se tecessem acerca da natureza
n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa. administrativa do litígio ou que «in abstracto» se pre-
Com efeito, as razões que justificaram, na nossa perspectiva, a opção tendessem extrair do anterior ETAF.
do legislador quanto ao primeiro segmento do n.° 1 do artigo 28.° da V — Assim, compete aos tribunais judiciais conhecer da
Lei 34/04, já não se verificam no segundo segmento da norma, registando- acção, interposta em 2003, em que a autora visa obter
-se, pelo contrário, a favor desta distinção, vantagens de economia e a condenação da REFER no pagamento de uma indem-
celeridade processuais. nização pelos prejuízos sofridos em resultado de uma
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obra executada numa estação ferroviária e em áreas se aplica o disposto nos termos do n.º 1 do referido art. 32º, que funciona
limítrofes, danos esses que teriam advindo de a obra ter como verdadeiro repositório residual de competência judicial.
dificultado o acesso do público a um estabelecimento D – Independentemente, porém, da existência de lei expressa e es-
comercial da autora que assim viu drasticamente redu- pecial, para mais posterior ao ETAF aplicável à data da propositura da
zida a respectiva facturação. acção (pelo que nem sequer é preciso entrar em linha de conta com o
estatuído no art. 7º, n.º 3, do Código Civil, sendo certo que, mesmo que
Processo n.º 28/05-70. assim não fosse, sempre salientaria a competência «in casu» dos juízos
Requerente: Panificação Reunida de Queluz, L.da, no conflito negativo comuns e a consequente incompetência dos tribunais administrativos),
de jurisdição entre a 2.ª Vara Mista da Comarca de Sintra e os Tribunais sempre haveria de se levar em linha de conta o seguinte:
Administrativos e Fiscais. E – Existe uniformidade jurisprudencial no sentido de que a compe-
Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Madeira dos Santos. tência se afere pelo pedido do autor e que, não cabendo uma causa na
competência de outro tribunal, ela é da competência do tribunal comum
Acordam no Tribunal dos Conflitos: (v. acórdão do STJ de 3/2/87, «in» BMJ, 364º, 591), conforme resulta
Panificação Reunida de Queluz, Ld.ª, interpôs no Tribunal Judicial do art. 213º da CRP, dos arts. 13º, 14º e 56º da LOTJ e dos arts. 66º e
da comarca de Sintra uma acção fundada em responsabilidade civil e 67º do CPC.
na qual pediu a condenação da ré Rede Ferroviária Nacional – REFER, F – O critério dominante para se aferir da competência do tribunal não
EP, no pagamento da quantia de 467.128,80 euros e respectivos juros é tanto, pois, o de saber quem pratica o acto ou a omissão, mas qual a
moratórios. natureza do acto em causa, havendo, portanto, que ter em consideração
Suscitada pela ré a incompetência do tribunal «ratione materiae», os termos em que a acção foi proposta e a natureza do acto praticado.
o Mm.º Juiz julgou essa excepção improcedente por considerar que G – No caso vertente, a causa de pedir apresentada pela autora e ora
a alegada responsabilidade civil dimanava da execução de obras que agravante entronca na responsabilidade civil emergente da execução de
traduziam «um manifesto acto de gestão privada». obras ou, melhor dizendo, dos efeitos secundários destas e do seu reflexo
Desse despacho, a REFER agravou para a Relação de Lisboa. E este na zona circundante, quer no plano físico, quer humano, traduzida pelos
tribunal de 2.ª instância, através do acórdão cuja cópia consta de fls. 74 factos concretos alegados na petição inicial, constituindo o pedido, por-
a 78 destes autos, qualificou as sobreditas obras como uma actividade tanto, o ressarcimento dos danos provocados por aqueles factos.
de «gestão pública», determinante do conhecimento do pleito pelos H – Não há, portanto, entre agravante e agravada, qualquer relação
tribunais administrativos – pelo que concedeu provimento ao agravo e jurídica administrativa, sendo certo que aquela se limita a demandar esta,
absolveu a ré da instância. a título de responsabilidade civil extracontratual, pela prática de acto
A autora recorreu desse aresto, tendo sucessivamente indicado, como lícito, já que uma das funções da agravada é justamente a construção
tribunal «ad quem», o STJ e este Tribunal dos Conflitos – como melhor e manutenção da infra-estrutura ferroviária, sendo portanto a obra em
veremos «infra». E terminou a sua alegação de recurso com o ofereci- causa efectuada no âmbito das suas funções.
mento das conclusões seguintes: I – Contudo, entende a agravante que o âmago da questão, justamente
A – Dispõe o art. 32º do Estatuto anexo ao DL n.º 104/97 (Estatuto da por não residir na prática do acto – que não se questiona – mas sim pela
agravada), cuja epígrafe é «tribunais competentes», o seguinte: natureza das suas consequências, que em termos de danos extravasam
“n.º 1 – Sem prejuízo decorrente do disposto na alínea a) do n.º 2 do claramente, pela sua natureza e dimensão, os limites estabelecidos
art. 3º, compete aos tribunais judiciais o julgamento de todos os litígios pelo art. 266º da CRP, pois, mesmo entendendo-se que as obras cons-
em que seja parte a REFER, EP, incluindo as acções para efectivação tituem «gestão pública», a verdade é que esta pressupõe uma actuação
da responsabilidade civil dos titulares dos seus órgãos para com a res- correspondente ao exercício do poder de autoridade e exige que os
pectiva empresa. meios utilizados sejam adequados ao prosseguimento das atribuições
n.º 2 – São da competência dos tribunais administrativos os julgamen- conferidas por lei ao agente.
tos dos recursos dos actos dos órgãos da REFER, EP, que se encontrem J – No caso vertente, tal não sucedeu. Basta ater ao arrastar das obras,
sujeitos a um regime de direito público, bem como o julgamento das ao cerceamento do fluxo normal de pessoas, à intransitabilidade das
acções sobre validade, interpretação ou execução dos contratos admi- ruas limítrofes e dos respectivos acessos, tudo factos que originaram em
nistrativos celebrados pela empresa.” termos brutais e deveras anormais os danos cujo ressarcimento se pede,
B – Daí decorre que o tribunal competente para julgar o presente pleito que o legislador não quis, com toda a certeza, «legalizar», considerando-
é o tribunal comum, no caso concreto as Varas Cíveis da comarca de -os como «gestão pública».
Sintra, uma vez que há preceito expresso e taxativo que assim estabelece L – Ora, quando, como é o caso, uma entidade, mesmo pública, e
e que, como lei especial, sempre se sobreporia a qualquer interpretação ainda que prosseguindo um fim público, assim actua, não está a agir
em contrário que porventura decorresse do ETAF aplicável à data da investida de qualquer poder de autoridade, nem ao abrigo de normas de
interposição da presente acção – a lei especial revoga a lei geral. direito público, ou a praticar actos de «gestão pública».
C – Com efeito, o caso em lide não se subsume a qualquer uma das M – De facto, passa a estar sujeita exactamente às mesmas regras,
situações referidas nos arts. 3º, n.º 2, al. a), e 32º, n.º 2, do Estatuto da deveres e obrigações que resultariam para um particular colocado na sua
agravada, que constitui o anexo I do citado DL n.º 104/97, razão pela qual posição, pelo que os seus actos e respectivas consequências passam a
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constituir «gestão privada», ou seja, são destituídos de «jus auctoritatis», regime jurídico das empreitadas de obras públicas – art. 1º, n.º 1, do
regendo-se por normas de direito privado. DL 405/93, de 10/12, na redacção da Lei 94/97, de 23/8.
N – Sucede que os tribunais administrativos, como se escreve no 10 – Tendo, assim, a mesma a natureza de contrato administrativo
acórdão do Supremo de 4/3/97, «in» CJ, V, 1.º, 125 (Acs. STJ) só diri- – art. 1º, n.º 4, do DL 405/93, dado que se trata de uma empreitada de
mem litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e nunca obra pública.
questões de direito privado; daí que a responsabilidade civil extracon- 11 – Tratando-se, assim, claramente, de um acto de gestão pública
tratual da agravada, que só envolve questões de direito privado, seja da ou, pelo menos, dentro do fim típico que a recorrente preconiza, inde-
competência dos tribunais comuns, conforme resulta, aliás, do art. 4º, pendentemente de qualquer relação com a recorrente.
n.º 1, al. f), do ETAF aplicável. 12 – Por último, no art. 4º, al. g), do ETAF, com a redacção da
O – Tem, por isso, razão a douta sentença da 1.ª instância, que clas- Lei 13/02, de 19/2, alterada pela Lei 4-A/2003 e proposta de lei 102/IX,
sifica a questão em lide – ressarcimento de danos – à luz da «gestão alterada e aprovada pela Assembleia da República em 19/12/03, foi
privada», quando sustenta que a posição da agravada não se pauta nem estabelecida a competência exclusiva da jurisdição administrativa para
se desenvolve com «jus auctoritatis». apreciação de litígios em que esteja em causa a responsabilidade civil
A REFER contra-alegou, formulando as conclusões seguintes: extracontratual de uma pessoa colectiva de direito público, independen-
1 – Tendo o Tribunal da Relação de Lisboa declarado o tribunal temente da natureza pública ou privada do acto praticado.
judicial incompetente para a causa, em razão da matéria, o tribunal 13 – Tendo tais normas revogado, nos termos do art. 7º, ns.º 2 e 3,
competente para conhecer do presente recurso é o Tribunal de Conflitos do Código Civil, todas as disposições anteriores, incompatíveis com as
– art. 107º, n.º 2, do CPC. mesmas, como resulta também do preâmbulo da proposta de lei 102/IX,
2 – Não podendo, consequentemente, o STJ conhecer do recurso, em que há intenção inequívoca do legislador em submeter exclusiva-
devendo ser julgado findo, dado que o recurso foi interposto e admitido mente à jurisdição administrativa a apreciação de litígios respeitantes
para este Supremo Tribunal, opondo-se também a recorrida ao aprovei- a responsabilidade civil extracontratual de pessoa colectiva de direito
tamento do processado, nos termos do art. 105º, n.º 2, do CPC. público.
3 – O recurso da recorrente vem circunscrito a matéria de direito 14 – Tendo tal norma – art. 4º, al. g), do ETAF – carácter adjectivo,
– competência em razão da matéria – porém, a recorrente, nas suas a mesma é inclusivamente, salvo melhor opinião, aplicável no presente
conclusões, não indica as normas jurídicas violadas nem as normas que, caso.
em sua opinião, o tribunal deveria ter aplicado, verificando-se ainda O Ex.º Magistrado do MºPº junto deste Tribunal dos Conflitos emitiu
falta de síntese nas suas conclusões. douto parecer em que, secundando a posição veiculada no acórdão
4 – Assim, não deu cumprimento ao exigido no art. 690º, ns.º 1 e 2, recorrido, se pronunciou pelo não provimento do recurso.
als. a) e c), do CPC, pelo que se requer que seja aplicado o disposto no Não há que atender a quaisquer factos distintos das várias ocorrências
art. 690º, n.º 4, do CPC, sob pena de não se conhecer do recurso. processuais documentadas nos autos, pelo que passaremos imediata-
5 – Em relação ao art. 32º, n.º 1, dos Estatutos da recorrida, anexos ao mente à decisão «de jure».
DL 104/97, de 29/4, norma invocada pela recorrente como determinante Todavia, temos de começar pelas três questões prévias suscitadas pela
da competência do tribunal cível para a presente acção, tal norma não recorrida nas quatro primeiras conclusões da sua contra-alegação; e,
tem o sentido que a recorrente pretende extrair da mesma. dentro desse genérico domínio, impõe--se que confiramos uma natural
6 – Com efeito, a mesma deve ser interpretada no sentido de serem da primazia ao problema da admissibilidade deste recurso – de que tratam
competência dos tribunais judiciais todos os litígios em que seja parte a as 1.ª e 2.ª conclusões da referida peça.
REFER, EP, quando essa competência não esteja reservada, obviamente, O presente recurso foi expressamente interposto e tacitamente admi-
a outra ordem jurisdicional, sob pena de a mesma colidir com a regra tido para o STJ. Depois, ao oferecer a sua alegação, ainda na Relação de
constitucional do tribunal cível não poder exercer jurisdição em áreas Lisboa, a recorrente requereu ao respectivo relator que considerasse o
atribuídas a outras ordens judiciais – art. 211º, n.º 1, da CRP. recurso como dirigido ao Tribunal dos Conflitos; e, apesar da oposição
7 – Pelo que a interpretação da norma do art. 32º, n.º 1, dos Estatutos da aqui recorrida, o relator satisfez aquele requerimento, já que ordenou
da recorrida, anexos ao DL 104/97, de 29/4, no sentido de serem da a remessa dos autos a este tribunal. Ora, coloca-se a questão de saber
competência dos tribunais cíveis todos os litígios em que seja parte a se os descritos acontecimentos acarretam, ou não, a inadmissibilidade
recorrida, mesmo que em razão da matéria pertençam a outra jurisdição, do presente recurso.
é inconstitucional por violação do disposto no art. 211º, n.º 1, da CRP. Dado o preceituado no art. 107º, n.º 2, do CPC, é indiscutível que o
8 – Por outro lado, nos termos do art. 51º, al. h), do ETAF (DL 129/84), recurso devia ser imediatamente interposto para o Tribunal dos Conflitos;
compete aos tribunais administrativos conhecer das acções sobre res- houve, pois, um erro na direcção que originariamente lhe foi imprimida.
ponsabilidade civil dos entes públicos por prejuízos decorrentes de E, para perfeitamente determinarmos as consequências desse erro, con-
actos de gestão pública. vém que especulemos sobre o que se passaria se ele não tivesse sido
9 – A empreitada em causa nos autos, da qual, alegadamente, teriam corrigido pelo relator, a solicitação da recorrente. Ora, se acaso o presente
resultado prejuízos para a recorrente, insere-se no âmbito do serviço recurso tivesse subido ao STJ, ocorreria decerto uma situação com que
público, exclusivo, que a recorrida detém de gestão, construção, insta- vulgarmente nos deparamos no Tribunal dos Conflitos – que é a de os
lação e renovação da infra-estrutura ferroviária nacional, a que alude Srs. Conselheiros relatores daquele Supremo, aliás em observância dos
o art. 2º, ns.º 1, 2 e 3, do DL 104/97, estando também abrangida pelo princípios não formalistas que actualmente permeiam o nosso processo
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civil (em que avulta o denominado princípio «pro actione» – «vide», Sendo assim, qualquer denúncia desse tipo de vícios, como a feita pelos
sobretudo, o art. 265º do CPC), reenviarem «ex officio» a este tribunal os recorridos nas suas alegações, configura uma simples sugestão de que
recursos aludidos no art. 107º, n.º 2, do CPC. Essa prática jurisprudencial aqueles juízes exerçam os ditos poderes de controle; e a circunstância
tem como pressuposto óbvio a possibilidade de convolação, limitada aos de uma tal sugestão não ser seguida – como, no presente caso, não foi
aspectos referidos, do requerimento de interposição do recurso; e, se ela – nenhuns efeitos acarreta em sede de conhecimento do recurso, pois
fosse seguida «in casu», este tribunal, fiel à sua linha decisória pretérita, que singelamente significa que a respectiva alegação estava em perfei-
iria conhecer do recurso por entender que aquela prática constitui um tas condições de ser contraditada pelo recorrido e de ser decidida pelo
modo legítimo de garantir o conhecimento do fundo da questão, reme- tribunal. Portanto, a mera prolação deste aresto traduz, «ea ipsa», a falta
tendo os aspectos processuais para o papel instrumental – e, portanto, de fundamento da denúncia que esteve em apreço.
secundário – que naturalmente lhes corresponde. Ante o exposto, soçobram todas as questões prévias que a recorrida
Sendo as coisas assim, nenhum motivo há para que julguemos inad- deduziu nas quatro primeiras conclusões da sua contra-alegação. Por isso,
missível o presente recurso. Com efeito, se tranquilamente o aceitaríamos estamos agora em condições de conhecer do problema de fundo posto
na hipótese de ele subir ao STJ e daí nos ser remetido, temos também, e no presente recurso, que consiste em decidir qual a ordem jurisdicional
«a fortiori», de o considerar admissível no caso vertente – em que, por competente para julgar a acção dos autos.
uma intervenção correctiva do próprio tribunal «a quo», ele ascendeu Através dessa acção, interposta em 2003, a aqui recorrente almeja
a este Tribunal dos Conflitos tal como era imposto «secundum legem». obter a condenação da REFER, ora recorrida, a pagar-lhe uma indem-
Ao invés, a pretensão de que concedêssemos primazia ao despacho de nização pelos prejuízos que diz ter sofrido em resultado de uma obra da
admissão do recurso sobre o despacho seguinte do Sr. Desembargador iniciativa da ré e executada na estação ferroviária de Queluz, da linha
relator e, por isso, encarássemos o recurso como deduzido para o STJ, de Sintra, e em áreas limítrofes; e esses danos teriam precisamente
para aí o enviando, propiciaria o absurdo resultado de o recurso nos advindo do facto de a obra ter dificultado por um tempo excessivo o
voltar mais tarde, então sob o impulso de um despacho do Sr. Conselheiro acesso do público a um estabelecimento comercial da autora, que assim
relator naquele Supremo; ora, a extravagância da solução constitui a viu drasticamente reduzida a respectiva facturação.
prova intrínseca e automática de que ela não é aceitável. A competência material dos tribunais – tanto a que os diferencia
Ademais, da «linha decisória pretérita» deste Tribunal dos Conflitos, dentro da mesma ordem jurisdicional, como a que os distingue segundo
a que acima nos referimos, decorre imediatamente a admissibilidade do jurisdições diversas – afere-se normalmente pelo pedido formulado
recurso. Na verdade, aquela aceitação de recursos reenviados pelo STJ na acção que esteja em presença, caso, aliás, em que a natureza desse
tem um fundamento e uma teleologia que manifestamente abrangem
pedido deve ser esclarecida ou iluminada pela causa de pedir de que
a situação presente – pois trata-se sempre de conhecer de recursos de-
duzidos de arestos das Relações e dirigidos, num primeiro momento, a ele dimane. Mas este critério geral, que acabava por apelar à distinção
um tribunal «ad quem» que não era o apropriado. entre gestão pública e gestão privada e que era, aliás, indiscutível em
Portanto, o presente recurso é admissível – e acrescente-se que, contra face do bloco de legalidade vigente aquando da instauração da causa,
essa admissibilidade, é absolutamente vão que a recorrida invoque o não operaria plenamente se porventura houvesse uma disposição legal
disposto no art. 105º, n.º 2, do CPC, já que esta norma nada tem a ver expressa, atributiva de competência «ex vi legis».
com o assunto. Todavia, ela também sustenta que as conclusões da A recorrida foi criada pelo DL n.º 104/97, de 29/4, cujo anexo I con-
alegação da recorrente enfermam de vícios formais; e, como já atrás tém os estatutos da REFER, EP. Ora, o art. 32º, n.º 1, desses estatutos
dissemos, este assunto tem de ser enfrentado antes de podermos passar dispunha que, salvo no que toca à «cobrança de taxas» prevista no
ao conhecimento do fundo do recurso. art. 3º, n.º 2, al. a), «compete aos tribunais judiciais o julgamento de
Desde logo, a recorrida diz que a parte adversa não indicou as normas todos os litígios em que seja parte a REFER, EP, incluindo as acções
jurídicas violadas pelo aresto «sub judicio». Contudo, olhando-se as três para efectivação da responsabilidade civil dos titulares dos seus órgãos
primeiras conclusões da alegação de recurso, logo se capta «de visu» para com a respectiva empresa»; e, afastando-se da regra estabelecida
que a recorrente sustenta que o acórdão da Relação de Lisboa ofendeu no n.º 1, o n.º 2 do mesmo artigo atribuía aos tribunais administrativos a
o estatuído no art. 32º do estatuto anexo ao DL n.º 104/97, de 29/4. E, competência para «os julgamentos dos recursos dos actos dos órgãos da
ante a indicação de uma norma jurídica violada, falece imediatamente REFER, EP, que se encontrem sujeitos a um regime de direito público,
o intuito de que se extraiam consequências processuais da falta absoluta bem como o julgamento das acções sobre validade, interpretação ou
de indicações desse género. execução dos contratos administrativos celebrados pela empresa».
Seguidamente, a recorrida afirma que a recorrente não concluiu de A recorrente acha que o artigo «supra» citado resolve o presente
um modo sintético. Esta denúncia envolve alguma surpresa, pois as conflito de jurisdição por forma a que a competência seja atribuída
catorze conclusões da alegação de recurso são em número exactamente aos tribunais judiciais. Mas a recorrida entende que não, por quatro
igual às da contra-alegação. Mas importa sobretudo dizer que, em pro- fundamentais motivos – relacionados com a interpretação da norma,
cesso civil, a prolixidade das conclusões oferecidas pelos recorrentes com a sua conformidade à CRP, com a natureza da actividade de que
é ultimamente controlada pelo relator (no seu primeiro contacto com o terão emergido os danos e com o novo regime estatutário dos tribunais
recurso) e pelos adjuntos (quando têm vista do processo), ou seja, pelos administrativos. Avaliemos estas objecções, ponto por ponto, tendo
juízes que compõem o tribunal «ad quem» e sempre num momento em mente que as reflexões a fazer se hão-de sempre reportar à data da
anterior ao do julgamento do recurso (cfr. o art. 690º, n.º 4, do CPC). propositura da acção.
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Segundo a recorrida, o mencionado art. 32º, n.º 1, deve ser interpre- dispusessem. Consequentemente, atento o que preceitua o art. 7º, n.º 3,
tado no sentido de serem da competência dos tribunais judiciais todos do Código Civil, o art. 32º dos estatutos da REFER permaneceu em
os litígios em que a REFER seja parte e que a lei não haja reservado vigor apesar da edição do DL n.º 558/99.
para outra ordem jurisdicional. «Primo conspectu», esta proposta de Vigorando o art. 32º e não havendo razões de inconstitucionalidade que
interpretação tornaria o preceito completamente inútil e redundante, impusessem a sua desaplicação na data em que a lide foi instaurada, tudo
já que ele, em vez de introduzir por si qualquer regra de competência, indica que será à luz dessa norma que o dissídio ora em presença haverá
limitar-se-ia ao reconhecimento servil da competência definida noutras de ser solucionado. Na verdade, o preceito dizia com clareza qual a ordem
normas. Ademais, o referido texto legal não aponta para esse improfícuo jurisdicional competente para julgar a acção dos autos – pois atribuía,
sentido, pois a sua letra amplamente sugere que o legislador, ao editá-lo, «recte», aos «tribunais judiciais» a competência para esse efeito.
quis precisar que seria à jurisdição comum que competiria conhecer dos Contra essa indicação normativa, é vão argumentar com a efectiva
litígios em que fosse parte a REFER, com a óbvia exclusão da cobrança natureza do litígio em presença; pois, e como dissemos já, os critérios
de taxas e do contencioso de actos ou contratos administrativos. gerais a que se recorre para resolver conflitos de jurisdição só intervêm
Todavia, não é de excluir que, para salvaguarda da constitucionalidade do e operam na hipótese de não haver – como aqui havia – um preceito
mencionado art. 32º, ele deva ser alvo de uma interpretação restritiva, con- especial que expressamente contemple e solucione o assunto. Portanto,
forme à propugnada pela aqui recorrida – o que nos remete para a segunda todos os elementos do caso que porventura apontassem para a natureza
objecção por ela levantada. Na óptica da REFER, a regra de competência administrativa do litígio tornam-se inúteis ante a presença de uma dispo-
introduzida no art. 32º, se tomada nos amplos termos que da letra do preceito sição legal que estatui em sentido inverso. E isto afasta a argumentação
fluem, ofenderia o disposto no art. 211º, n.º 1, da CRP, dado que culminaria da recorrida no sentido de aqui relevarem a natureza administrativa do
numa atribuição governamental de competência aos tribunais judiciais em contrato de empreitada – cuja execução terá originado os danos – ou a
matérias já atribuídas pela lei geral à ordem administrativa. previsão genérica constante do art. 51º, n.º 1, al. h), do anterior ETAF.
Mas não colhe esta denúncia de que uma interpretação corrente do E, se o anterior ETAF não opera como critério resolutivo do problema
art. 32º padeceria de inconstitucionalidade – fosse ela material ou formal. em apreço, também o novo ETAF carece manifestamente dessa aptidão.
É que a dita norma constitui uma aplicação particular, e feita quase «ipsis É que este diploma apenas entrou em vigor em 1/1/04 (cfr. o art. 4º da
verbis», do então vigente art. 46º do DL n.º 260/76, de 8/4. Este diploma Lei n.º 107-D/2003, de 31/12), numa altura, portanto, em que a acção
viera, ainda antes da emergência da CRP, estabelecer o regime geral das dos autos já estava instaurada; como aquele ETAF só rege para o futuro
empresas públicas; e esse regime, que incluía o dito artigo, persistiu in- (art. 12º, n.º 1, do Código Civil), é debalde que a recorrida invoca o seu
questionavelmente na ordem jurídica após o ulterior início da vigência da art. 4º, al. g), para resolução do presente conflito.
Lei Fundamental, nunca se hesitando sobre a suficiente compatibilidade Afastadas as várias objecções da recorrida à aplicabilidade, «in casu»,
entre aquele art. 46º e o disposto nos artigos 211º e 212º da CRP. Sendo do art. 32º dos estatutos da REFER, e porque outras se não vislumbram,
assim, o referido art. 32º não correspondeu a uma qualquer actuação há que concluir que nesse preceito reside o critério normativo que regula
inovadora do Governo em matéria de reserva relativa da Assembleia da o assunto em presença. Pelo que, contrariamente ao decidido pela Re-
República (cfr. o art. 165º, n.º 1, al. p), da CRP), mas traduziu somente lação de Lisboa, que aliás se absteve de ponderar aquela norma, não é
a reiteração, para o caso de uma certa empresa pública, de algo que a aos tribunais administrativos, mas aos tribunais judiciais, que incumbe
legislação em vigor no país já genericamente dispunha. Ora, na medida em o julgamento da acção de condenação dos autos.
que o Governo não alterou, «motu proprio» e através do art. 32º introdu- Nestes termos, acordam em conceder provimento ao presente recurso,
zido pelo DL n.º 104/97, a definição então existente acerca da repartição em revogar o acórdão recorrido e em declarar a jurisdição comum
das competências dos tribunais, necessário é concluir que tal preceito competente para conhecer da referida acção.
dos estatutos da REFER não pode padecer da inconstitucionalidade que Sem custas.
exclusivamente adviria dessa suposta intervenção inovadora.
Lisboa, 6 de Julho de 2006. — Madeira dos Santos (relator) — Mo-
Entretanto, o DL n.º 260/76 foi revogado pelo DL n.º 558/99, de 17/12,
reira Camilo — Azevedo Moreira — Borges Soeiro — Jorge de Sousa —
cujo art. 18º veio regular em moldes aparentemente novos a questão
Alves Velho.
de se saber quais os tribunais competentes para julgar os litígios em
que intervenham empresas públicas. Assim, poderia questionar-se se o
art. 32º dos estatutos da REFER, dada a sua assinalada similitude com o
art. 46º do DL n.º 260/76, não será deveras e materialmente uma norma
geral, ainda que contida num diploma especial – e, por isso, susceptível Acórdão de 11 de Julho de 2006.
de derrogação por aquele art. 18º. Contudo, é de excluir radicalmente
essa possibilidade de se considerar o dito art. 32º revogado pela «lex Processo nº. 12/06-70.
generalis». Com efeito, a recepção, no art. 32º dos estatutos da REFER, Requerente: TNL — Sistemas de Equipamentos Tecnológicos e
da solução geral que o art. 46º do DL n.º 260/76 previa corresponde Sistemas Ambientais, L.da, no conflito negativo de jurisdição entre o
a um intuito de particularização que obrigava a considerar, doravante, Tribunal Judicial de São João da Madeira (4.º Juízo) e os Tribunais
aquele preceito dos estatutos como «lex specialis»; e nada nos permite Administrativos e Fiscais.
concluir que o legislador quis sobrepor a solução acolhida no art. 18º Relator: Ex.mo Cons. Dr. Manuel David da Rocha Ribeiro de Al-
do DL n.º 5558/99 a quaisquer preceitos especiais que diferentemente meida.
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Acordam no Tribunal de Conflitos Entre os Tribunais especiais, e no que ao caso interessa, compete
1) Em recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto, julgou aos tribunais administrativos e fiscais, os litígios originados no âm-
incompetente o tribunal judicial por a causa pertencer ao âmbito da bito da administração pública globalmente considerada, com excepção
jurisdição administrativa e fiscal. daqueles que o legislador atribua a outra jurisdição - cf. Artigo 1º do
Tal entendimento do tribunal filiou-se no facto da matéria controver- ETAF, aprovado pela Lei 13/2002 de 19/02 alterada pela Lei 4-A/2003
tida ser subsumível ao contrato de fornecimento regulado pelo Decreto- e 107-D/2003.
-Lei 197/99 de 8/06, e por isso ser da competência dos tribunais adminis- Por não bastar a qualidade pessoal da chamada - Câmara Municipal
trativos como estabelecido na alínea e) do Artigo 4º do ETAF aprovado - para se poder afirmar que ela no caso concreto prossegue um interesse
pela Lei 13/2002 de 19/02. público e ainda menos que o seu procedimento tivesse de ser sujeito
2) TNL intentou acção de condenação contra Euroreciclagem, tendo ao regime pré-contratual de aquisição de bens aprovado pelo citado
a Câmara Municipal de São João da Madeira intervindo na acção na Decreto-Lei 197/99 de 8/06, este sim da competência dos Tribunais
qualidade de chamada. Administrativos, o que não é tema de discussão nestes autos. Mas dos
A Autora alega na sua petição inicial e em resumo que exerce a elementos que constam dos autos não se pode concluir que exista uma
actividade de fabricação, comercialização, importação e exportação, relação jurídica constituída pela celebração de um contrato subsumível
representação, colocação de equipamentos ambientais e gestão de pro- a procedimento pré-contratual, pelo que o Decreto-Lei invocado não
jectos ambientais e gestão de resíduos. se aplica.
No exercício da sua actividade profissional a Autora forneceu à A causa de pedir que subjaz ao pedido decorre da responsabilidade
Réu Euroreciclagem, a pedido desta, mercadorias no valor global de civil pelo não pagamento do preço de material fornecido á Ré.
€ 87.539,02. É da competência dos Tribunais Administrativos conhecer das acções
Na sua contestação a Réu Euroreciclagem alega, no que para a ex- em que se discuta a responsabilidade do Estado e demais entes públicos
cepção assume relevância, que o material, equipamento em causa foi - entre eles as autarquias - por pedidos de indemnização por danos
encomendado pela Câmara Municipal de S. João da Madeira, tendo sido decorrentes da gestão pública.
instalado em terreno da autarquia, sem nunca ter passado pela posse da A Ré imputa á Câmara a compra dos equipamentos ambientais e seu
Réu Eurorecidagem. Mais diz que a Euroreciclagem não teve qualquer uso, tendo tão só
interferência na montagem do material em causa e que o mesmo tem intermediado o negócio com a Autora.
sido utilizado pelos munícipes de S. João da Madeira. Acto de gestão pública define-se como sendo o que se compreende no
A Câmara entende que é matéria controvertida saber quem encomen-
exercício de um poder público, integrando a sua prática, a realização de
dou tais equipamentos, quem os usa e a quem compete o pagamento
dos mesmos. uma função pública da pessoa colectiva, independente do uso de meios
- Tal matéria é subsumível aos contratos administrativos de forneci- de coerção ou de regras de ordem técnica a observar.
mentos, cujo regime de direito público está consagrado no Decreto-lei Gestão privada compreende-se na actividade do ente público quando
n° 197/99 de 8 de Junho. despido de poder público, encontrando-se a actuar numa posição de
3) O Exmo. Procurador emitiu parecer no sentido de que deve ser paridade com os particulares a que o acto respeita, ou seja, tal e qual
atribuída a competência aos tribunais comuns. como actua um particular.
Colhidos os vistos cumpre decidir. Acontece que se discute nos autos quem procedeu á encomenda dos
4) Os factos são os que constam em 2). equipamentos, quem os usa e quem os deve pagar.
5) A única questão a resolver consiste em saber se competentes para Ora a aquisição ou não dos equipamentos é um acto de gestão pri-
apreciar a causa são os Tribunais Administrativos como foi decidido vada, e não é pelo facto de intervir uma Câmara que se pode e deve
ou se são competentes os Tribunais Judiciais comuns, como defende o afirmar, sem mais, que persegue um interesse público, e muito menos
Exmo. Procurador. que a aquisição do equipamento tivesse que estar sujeito ao regime do
Dentro da organização judiciária os Tribunais Judiciais gozam de Decreto-Lei 197/99.
competência genérica, tendo os tribunais de outra ordem jurisdicional, O Tribunal competente em razão da matéria é o tribunal comum.
uma competência limitada em razão da matéria que lhe compete apre- 6) No caso não se pode afirmar a existência de uma relação jurídica
ciar. Aqueles constituem a regra e gozam, por isso, de competência não regulada por normas de direito público.
discriminada e assim também residual. Acorda-se em declarar competente para apreciar e conhecer da acção
A competência em razão da matéria distribui-se por “categorias de em causa a jurisdição comum - Artigo 18 n.º 1 da LOFTJ.
tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhum rela- Sem custas.
ção de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre eles - Prof.
Antunes Varela — “Manual de Processo Civil” 2ª ed, pág. 207. Lisboa, 11 de Julho de 2006. — Manuel David da Rocha Ribeiro de
Não cabendo a causa na competência de nenhum tribunal especial, Almeida (relator) — Fernando Manuel Azevedo Moreira — João Vaz
será o tribunal comum o competente - cf. Artigo 66 do Código Processo dos Santos Carvalho — Rosendo Dias José — José Norberto de Melo
Civil. Baeta de Queiroz — António Alves Velho.
158 159

Acórdão de 26 de Setembro de 2006. tência em razão da matéria, com a consequente absolvição da requerida
da instância.
I.3. De tal despacho recorreu a ACOP para o Tribunal da Relação de
Assunto: Coimbra, pedindo a revogação daquele despacho.
Conflito de jurisdição. Providência cautelar não especificada. I.4. Naquele Tribunal Superior foi proferido o acórdão de fls. 338-340
Questão fiscal. Competência dos tribunais tributários. que, sufragando o entendimento do Tribunal da Comarca de Figueira
da Foz, negou provimento ao agravo.
I.5. Continuando inconformada, a ACOP interpôs recurso de agravo
Sumário: para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), tendo rematado a concernente
Compete aos tribunais administrativos e fiscais, concreta- alegação com as seguintes CONCLUSÕES:
mente aos tribunais tributários, de harmonia com o disposto 1. A concreta espécie de facto opõe a ACOP- Associação de Con-
nomeadamente nos artigos 4.º, n.º 1, alínea d), e 49.º, n.° 1, sumidores de Portugal e a Águas da Figueira, S.A., sendo certo que a
alínea e), subalíneas i) e iv), do ETAF vigente, conhecer ACOP é uma associação de consumidores de âmbito nacional e interesse
de providência cautelar não especificada tendente à sus- genérico (artigo 17 da Lei 24/96), em representação dos consumidores
pensão do tarifário de consumo de água, saneamento e de em geral, ex vi dos artigos 10, 13 e 18 da Lei 24/96.
«disponibilidade», aprovado pela assembleia municipal 2. A espécie controvertida é de natureza eminentemente, dir-se-ia,
do concelho da Figueira da Foz e a cobrar pela empresa exclusivamente privatística - consumidores versus fornecedor de água:
municipal a quem foi concessionado o serviço público de Lei 24/96 - artigos 2°, 1102 e 9°, nos 1 e 8.
captação, tratamento e distribuição de água bem como do 3. Sendo de natureza privatística (contrato de consumo), a ordem de
sistema de recolha. jurisdição própria é a judicial - Lei 3/99, artigo 1° e segts e artigo 66°
do C.P.C..
Conflito n.º 14/06-70. 4. Que não a administrativa, pese embora tratar-se, no limite, de uma
Requerente: ACOP — Associação de Consumidores de Portugal, no relação trilateral - município/concessionária/consumidores (representa-
conflito negativo de jurisdição, entre o Tribunal Judicial da Comarca dos por uma estrutura associativa legítima).
da Figueira da Foz e os tribunais administrativos e fiscais. 5. Os contratos de concessão de serviços de interesse geral subsumem-
Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. João Belchior. -se em toda a sua disciplina - e para todos os efeitos - ao direito do con-
sumo: Lei do Consumidor e diplomas avulsos de desenvolvimento.
Acordam no Tribunal de Conflitos (TC): 6. Donde o douto Acórdão recorrido violar os preceitos legais supra
I. RELATÓRIO referidos nas conclusões 2ª e 3ª.
I.1. “ACOP - Associação de Consumidores de Portugal” (dora- I.6. Por seu lado, a requerida “Águas da Figueira, S.A.” contra-alegou,
vante ACOP), com os demais sinais nos autos, intentou no Tribunal tendo formulado as seguintes Conclusões:
Judicial da Figueira da Foz (TJFF), contra “Águas da Figueira, S.A.”, 1. A recorrente pretende ver reconhecida a competência do tribunal
também devidamente identificada nos autos, procedimento cautelar judicial da Figueira da Foz para apreciar o presente litígio fundando-se
não especificado, pedindo que fosse decretada a suspensão de todo o no exclusivo argumento de que a relação de fornecimento estabelecida
tarifário de consumo de água, saneamento e de disponibilidade, entrado entre a Concessionária, ora Recorrida, e o utente constitui uma relação
em vigor em 1 de Janeiro de 2005 no concelho da Figueira da Foz, com de direito privado.
a consequente reposição do que vigorava antes dessa data. 2. Sucede, no entanto, que não só não é verdade que tais relações
Mais peticionou que fosse decretada a suspensão, até decisão final, entre utentes e concessionárias sejam exclusivamente reguladas pelo
da chamada “tarifa de disponibilidade”, bem como a obrigatoriedade da direito privado, como o que está em causa no presente processo não é um
requerida proceder à emissão mensal das facturas, porquanto entende que litígio de direito privado relativo a tal contrato, mas antes um pedido de
os aumentos dos preços foram desnecessários e injustificados, a aludida suspensão de um tarifário aprovado unilateralmente ao abrigo de normas
tarifa é ilegal e, bem assim a periodicidade da facturação bimestral. de direito público e relativo à prestação de um serviço público.
Citada a requerida para deduzir oposição, veio a mesma para o que 3. O tarifário que se pretende que seja suspenso foi aprovado ao abrigo
ora interessa alegar a incompetência daquele tribunal em razão da ma- de poderes públicos de autoridade, aplicando-se a todos os actuais e aos
téria. futuros utentes dos serviços, tendo assim natureza regulamentar. Um
Notificada a requerente, para se pronunciar ao abrigo do artigo 3°, litígio, como aquele que aqui está em causa, em que se pretende a sua
n° 2 do Código de Processo Civil, alegou o carácter privatístico das suspensão - e previsivelmente em acção principal a respectiva anulação
relações ora em apreço (entre consumidores e concessionária) e, daí - não pode ser obviamente caracterizado como um litígio relativo a uma
o recurso aos tribunais judiciais, concluindo pela improcedência das relação contratual de fornecimento.
excepções alegadas. 4. Na realidade, tal tarifário foi aprovado pelos órgãos competentes
I.2. Naquele Tribunal foi proferido o despacho de fls. 277/283 que, do Município da Figueira da Foz, o que torna clara a natureza admi-
com invocação dos artigos 101º, 105°, n° 1, 493°, n° 2 e 494º, n° 1, nistrativa - e regulamentar - de tal acto, e a competência dos tribunais
alínea a), todos do Código de Processo Civil, concluiu pela incompe- administrativos nos termos do n. 1, alinea b) do artigo 4º do ETAF.
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5. Nada impede a Recorrente de impugnar tal tarifário, o qual tem Tribunal de Justiça, no recurso que vier a ser interposto, decidir qual
natureza regulamentar, nos termos do artigo 72.° do CPTA, não se o tribunal competente. Neste caso, é ouvido o Ministério Público e no
colocando aqui a questão levantada pela Recorrente relativamente à tribunal que for declarado competente não pode voltar a suscitar-se a
legitimidade para intentar uma acção sobre contratos contra o Município questão da competência.
(o qual não é parte do contrato). Porém, o seu n° 2 acrescenta que se a Relação tiver julgado incom-
6. Mas ainda que se tenha em conta a relação tal como o ora Recor- petente o tribunal judicial por a causa pertencer ao âmbito de jurisdição
rente a configurou e que se pressupusesse que tal tarifário fora fixado administrativa e fiscal, o recurso destinado a fixar o tribunal competente
pela Concessionária (a qual teria competência para o suspender), ainda é interposto para o Tribunal de Conflitos.
assim se manteria a competência dos tribunais administrativos para o Daqui resulta claramente que o presente recurso devia ter sido in-
presente processo, pois continuaria a estar em causa um acto unilateral terposto para o citado Tribunal de Conflitos e não para este Supremo
regulamentar emitido ao abrigo de poderes públicos de autoridade. Tribunal.
7. A concessionária exerce uma actividade de prestação de serviço E compreende-se a razoabilidade deste regime legal. Com efeito, se o
público, por lei reservada à Administração, para a qual foi habilitada “conflito” é entre vários tribunais do foro comum: entre a competência
por acto do poder público. Exerce assim uma função administrativa, material do Tribunal de Família e Menores e do Tribunal de Trabalho,
designadamente no que diz respeito a um eventual poder de fixar e por exemplo, o Supremo pode decidir o litígio, por ter jurisdição sobre
suspender tarifas, pelo que os litígios que digam respeito ao exercício todos estes tribunais, o que não acontece sobre os Tribunais Adminis-
de tal função - como é o caso - são claramente litígios respeitantes a trativos e Fiscais.
uma relação jurídica administrativa. Pese embora haver uma decisão do Tribunal de Conflitos - de 25-2-99,
8. E mesmo que se entenda - o que se admite, sem conceder, por mera DR de 31-07-2000, pág. 2 - que entendeu que o recorrente perdeu o
cautela de patrocínio - que o que está aqui em causa é a relação contratual direito a ver o litígio ser apreciado pelo tribunal competente, entende-
entre os utentes e a Concessionária, também essa relação contratual, em mos que deve ser mandado seguir o recurso para o tribunal competente,
especial no que compete ao acto de fixação de tarifas, é hoje do foro aproveitando-se os termos já processados.
administrativo, nos termos da alínea f) do n.° 1 do artigo 4° do ETAF. E que, por um lado, há uma certa confusão entre o Tribunal de Con-
9. Note-se, finalmente, que aquilo que a ora recorrente pretende dis- flitos, o Supremo Tribunal Administrativo e o Supremo Tribunal de
cutir no presente processo não são questões jurídico-privadas relativas Justiça, derivado, desde logo, do facto de os membros que constituem
a uma eventual relação de direito privado entre a concessionária e os o primeiro serem provenientes dos demais tribunais citados.
utentes, mas antes eventuais violações de normas de direito adminis- Por outro lado, o princípio do aproveitamento do processado, tanto
trativo relativamente fixação de um tarifário pela prestação de um quanto possível, em caso de nulidade, previsto no art. 201° do Cód. de
serviço público. Não se vê como poderiam ser os tribunais judiciais, Proc. Civil e ainda a preferência do legislador pela decisão de mérito em
designadamente à luz das novas normas de contencioso administrativo, detrimento da decisão de forma reforçada com a reforma do Cód. de Proc.
os competentes para tal apreciação. Civil de 1995-1996, apontam claramente para a solução proposta.
I.7. O Excelentíssimo Relator no Supremo Tribunal de Justiça a quem Desta forma, seguirá o presente recurso para o Tribunal de Conflitos,
os autos foram distribuídos proferiu o despacho de fls. 384/385 no qual apesar de ter havido erro na sua interposição e na sua admissão.
expendeu o seguinte: Remeta os autos ao Tribunal de Conflitos”.
“O presente recurso de agravo foi interposto do acórdão da Relação I.8. Neste TC a Digna Procuradora-Geral-Adjunta emitiu o seguinte
de Coimbra que confirmou a decisão proferida no Tribunal Judicial da PARECER:
Figueira da Foz e que julgou aquele tribunal incompetente em razão da “A nosso ver o presente recurso deverá ser decidido atribuindo-se
matéria para conhecer do presente procedimento cautelar não especifi- a competência para a apreciação do litígio em causa aos tribunais da
cado que a ACOP - Associação de Consumidores de Portugal requereu jurisdição administrativa e fiscal, em concreto, aos tribunais tributários.
contra a sociedade Aguas da Figueira, S. A. Em conformidade com o art° 212°, no 3, da CRP, compete aos tri-
Segundo a referida decisão da 1ª instância, a razão da incompetência bunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos
deveu-se a ser competente para conhecer da presente lide o tribunal contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das
administrativo. relações jurídicas administrativas e fiscais, sendo que esta cláusula geral
Foi, igualmente, este o entendimento do referido acórdão em re- veio a ser reafirmada no art° 1º, n° 1, do actual ETAF.
curso. Relativamente a esse preceito constitucional, suscitou-se a questão de
Tendo a requerente ficado inconformada com o mesmo acórdão, saber se consagra uma reserva material absoluta de jurisdição atribuída
dele interpôs o presente agravo para este Supremo Tribunal de Justiça, aos tribunais administrativos, no duplo sentido de que, por um lado, os
o que foi deferido naquela Relação, sendo apresentadas as respectivas tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito admi-
alegações e contra-alegações. nistrativo, e de que, por outro lado, só eles poderão julgar tais questões.
Distribuído neste Supremo o referido recurso, há que apreciar e Como nos dá conta o recente acórdão deste Tribunal dos Conflitos
decidir. de 2006.04.26, no conflito n° 1/06, é hoje dominante, na Doutrina, a
Nos termos do art. 107°, n° 1 do Cód. de Proc. Civil, se a Relação interpretação no sentido de que a norma consagra uma reserva relativa,
decidir em via de recurso, que um tribunal é incompetente, em razão da um modelo típico, que deixa à liberdade do legislador ordinário a intro-
matéria ou da hierarquia, para conhecer de certa causa, há-de o Supremo dução de alguns desvios, aditivos ou subtractivos, desde que preserve
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o núcleo essencial do modelo constitucionalmente definido, segundo O art° 13°, n° 2, do DL n° 379/93, de 05.11, estabelece que “a con-
o qual o âmbito regra da jurisdição administrativa deve corresponder cessionária, precedendo aprovação pelo concedente, tem direito a fixar,
à justiça administrativa em sentido material; e esta linha interpretativa liquidar e cobrar uma taxa aos utentes, bem como a estabelecer o regime
é também acolhida pela Jurisprudência do Tribunal Constitucional, e de utilização, e está autorizada a recorrer ao regime legal da expropria-
perfilhada pela Jurisprudência do STA. ção, nos termos do Código das expropriações, bem como aos regimes
Como refere Vieira de Andrade, a generalidade das alíneas do n° 1 de empreitadas de obras públicas”.
do art° 4º do actual ETAF - com excepção de parte das alíneas b), e), g) É indiscutível que a requerida, enquanto concessionária, actua na
e h), relativas a matéria de contratos e de responsabilidade civil - visa prossecução de um interesse público, munida de poderes de autoridade e
apenas a concretização positiva do conceito de “litígios emergentes de praticando actos de gestão pública, o que faz incluir o presente litígio no
relações jurídicas administrativas, não levantando, por isso, problemas âmbito da alínea d) do n° 1 do art° 4° do ETAF, afastando a competência
de maior”. dos tribunais judiciais nos termos do art° 18°, n° 1, da LOFTJ.
É o caso da alínea d) do referido n° 1, que aqui importa ter em atenção, Além disso, o litígio resulta da exigência, imposta autoritariamente
nos termos da qual compete aos tribunais da jurisdição administrativa pela requerida, do pagamento de quantias que correspondem a uma
e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a fiscalização contrapartida pelo serviço público prestado (art° 13°, n° 2, e art° 15°,
da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por do DL n° 379/93). Estamos, assim, perante uma questão fiscal, sendo
sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de que se deve entender como tal - de acordo com o entendimento firmado
poderes administrativos. na jurisprudência - “todas as que emergem da resolução autoritária que
Como refere o citado Professor, é de notar a preocupação legal de imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária
delimitação do âmbito da jurisdição através da referência aos “poderes com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos
administrativos” e ao regime de “direito público” naquelas alíneas que públicos do Estado e demais entidades públicas, bem como o conjunto
possam abranger actos jurídicos praticados por sujeitos privados: v., de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções
por exemplo, a alínea d), sobre a fiscalização da legalidade de normas ou que com elas estejam objectivamente conexas” - cfr ac. do STA de
e actos jurídicos...”. 93.10.06, processo n° 26369, e ac. de 2006.05.18, processo n° 4/05.
Cai no âmbito desta alínea d) o procedimento cautelar aqui em causa, A jurisdição competente para conhecer do litígio é, assim, a jurisdi-
atenta a sua dependência da acção principal onde se apreciará a legali- ção dos tribunais administrativos e fiscais, concretamente os tribunais
dade do tarifário de água e da tarifa de disponibilidade cuja suspensão
tributários, dado o disposto no art° 490, n° i, alínea e)-i) e iv), do actual
aqui é requerida.
ETAF.
Conforme constitui ponto assente na jurisprudência, a competência
em razão da matéria é apreciada em função dos termos em que a acção Nestes termos, deverá ser negado provimento ao recurso jurisdicional,
é proposta e determina-se pela forma como o autor estrutura o pedido declarando-se competentes os tribunais tributários”.
e os respectivos fundamentos. Colhidos os vistos da lei vêm os autos à conferência para apreciar
No presente litígio é requerente, ACOP — Associação de Consumi- e decidir.
dores de Portugal, e, requerida Águas da Figueira, SA. II. FUNDAMENTAÇÃO
Esta última é concessionária do serviço público de exploração do II.1. Está em causa a definição da jurisdição competente relativa-
sistema de captação, tratamento e distribuição de água e do sistema de mente a providência cautelar não especificada instaurada pela requerente
recolha, tratamento e rejeição dos efluentes do concelho da Figueira contra as “Águas da Figueira, SA” (concessionária do serviço público
da Foz. de captação tratamento e distribuição de água bem como do sistema de
Pretende a requerente, além do mais: recolha, qualidade essa atribuída pelo respectivo Município através do
- que seja decretada a suspensão de todo o tarifário de consumo de competente concurso) no Tribunal Judicial da Figueira da Foz (TJFF) em
água, saneamento e de disponibilidade, entrado em vigor em 2005.01.01, que a requerente pretende, em síntese, que seja decretada a suspensão de
no concelho da Figueira da Foz, com a consequente reposição do anterior todo o tarifário de consumo de água, saneamento e de disponibilidade,
vigente a essa data; entrado em vigor em 2005.01.01, no concelho da Figueira da Foz (com
- que seja decretada a suspensão, até decisão final, da tarifa de dis- a consequente reposição do que vigorava anteriormente a essa data), e
ponibilidade. o decretamento da suspensão da chamada “tarifa de disponibilidade”.
Como revelam os autos, através de um contrato de concessão, foi Como se viu, quer o TJFF, quer o Tribunal da Relação de Coimbra
atribuída pela Câmara Municipal da Figueira da Foz (concedente) à (TRC), que em recurso apreciou decisão da 1ª instância, são no sentido
sociedade Águas da Figueira, S.A. (concessionária), o serviço público de que a competência material cabe aos tribunais administrativos, es-
de exploração do sistema de captação, tratamento e distribuição de água sencialmente por duas ordens de razões:
e do sistema de recolha, tratamento e rejeição dos efluentes do concelho - por um lado, o acto jurídico que se visa impugnar – o aludido
da Figueira da Foz. tarifário do serviço público respectivo – tem natureza exclusivamente
Nos termos do artigo 73º do contrato de concessão “a concessionária administrativa, por haver sido fixado unilateralmente por entidade admi-
cobrará o fornecimento da água e a prestação dos serviços de saneamento nistrativa (Município da Figueira da Foz, concretamente por deliberação
de acordo com uma tabela de tarifas...”. da Assembleia Municipal);
164 165

- por outro lado, entre aquele Município e as “Águas da Figueira, SA”, Preceitua, por seu lado, o art.º 1° do Estatuto dos Tribunais Admi-
foi outorgado um contrato de concessão tipicamente administrativo e nistrativos e Fiscais (ETAF vigente) que, “Os tribunais administrativos
cuja validade a requerente também pretende por em causa. da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com
A requerente da providência faz assentar o entendimento de que a competência para a administrar a justiça em nome do povo, nos litígios
competência pertence à jurisdição comum na seguinte ordem de pon- emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 1) (1).
derações: Importa ainda atentar no artº 4º nº 1 do mesmo ETAF que enuncia
- A espécie controvertida é de natureza exclusivamente privatística o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal através de enumerações,
- consumidores versus fornecedor de água (cf. Lei 24/96 - artigos 2° e definindo a título exemplificativo, pela positiva os litígios nela incluídos
9°, nos 1 e 8), estando em causa um singelo contrato de consumo; (cf. nº 1 (2)), e pela negativa os litígios dela excluídos (cf. nº 2 e 3).
- por outro lado, “os contratos de concessão de serviços de interesse A generalidade das alíneas do n° 1 do art° 4º do actual ETAF - com
geral subsumem-se em toda a sua disciplina - e para todos os efeitos excepção de parte das alíneas b), e), g) e h), relativas a matéria de con-
- ao direito do consumo: Lei do Consumidor e diplomas avulsos de tratos e de responsabilidade civil - visa apenas a concretização positiva
desenvolvimento”. do aludido conceito de matriz constitucional, litígios emergentes de
Vejamos pois. relações jurídicas administrativas (3).
II.1. A competência (ou jurisdição) de um tribunal afere-se pela forma É o caso da alínea d) do referido n° 1, que aqui importa particularmente
como o autor configura a acção, definida pelo pedido e causa de pedir, ter em atenção, nos termos da qual compete aos tribunais da jurisdição
ou seja, pelos objectivos prosseguidos pelo mesmo. administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto
Tal competência, em geral, e como é recordado em recente acórdão a fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos pra-
deste TC (proferido a 18.05.06-Proc. nº 04/05), resulta da medida da ticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no
jurisdição atribuída aos diversos tribunais, do modo como entre si exercício de poderes administrativos.
fraccionam e repartem o poder jurisdicional que, tomado em bloco, II.3. Sublinhe-se que a requerente da providência pretende que seja
pertence ao conjunto dos tribunais (cf. Prof. Manuel de Andrade, Noções decretada a suspensão do aludido tarifário respeitante ao consumo de
Elementares de Processo Civil, Ed. de 1979, págs. 88/89). água, saneamento e de disponibilidade e o decretamento da suspensão
As regras de competência judiciária ratione materiae são, assim, da “tarifa de disponibilidade”, tarifário esse fixado pela entidade pública
atinentes à distribuição das matérias pelas diversas espécies de tribunais concedente como contrapartida do aludido serviço público, ao abrigo de
dispostos horizontalmente (cf. ac. TC nº 114/2000, de 22 de Fevereiro, normas de direito administrativo [sendo que, a actividade de “Captação,
in BMJ 494/48).
tratamento e distribuição de água para consumo público…”, nos termos
Como é sabido, os tribunais comuns detêm competência genérica,
exercendo jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens da alínea a) do nº 1 da Lei n.º 88-A/97 de 25 de Julho, é vedada a em-
jurídicas (cf. art.º 211, n.º 1, da CRP, 66.º do CPC e 18.º, n.º1, da Lei presas privadas e a outras entidades da mesma natureza, salvo quando
nº 3/99 - LOTJ, de 13 de Janeiro, alterada pela Lei nº 101/99, de 26 de concessionadas] questionando-se a sua legalidade.
Julho, pelos DL nº 323/2001, de 17 de Dezembro, nº 38/2003, de 8 de Tal actividade de concessionário (4) integra um serviço público que,
Março, e nº 105/2003, de 10 de Dezembro), pelo que cumpre indagar se “nunca deixa…de ser uma atribuição e um instrumento da entidade
a matéria que integra o pedido dos autos se encontra deferida à jurisdição concedente, que continua dona do serviço, sendo o concessionário a
administrativa, tal como foi decidido. entidade que recebe o encargo de geri-lo…”(5).
II.2. Prescreve o art.º 212.º, n.º3, da CRP, que, “compete aos tribunais Naquela qualidade de concessionário pode a requerida da providência,
administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contencio- “…, precedendo aprovação pelo concedente…fixar, liquidar e cobrar
sos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações uma taxa aos utentes, bem como a estabelecer o regime de utilização…”
jurídicas administrativas e fiscais.” [nº 2 do artº 13º do DL nº 379/93, de 5 de Novembro, que fixou o regime
Em anotação a idêntico preceito contido no art.º 214.º, n.º 3 da CRP de exploração e gestão dos sistemas multimunicipais e municipais de
(aditado pela LC n.º 1/89), escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira: captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de
“estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico- recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de
-administrativas (ou fiscais) (n.º 3, in fine). Esta qualificação transporta resíduos sólidos], sendo porém que no caso o aludido tarifário foi fixada
duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem pela entidade concedente do serviço público, embora tal questão não
sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, interesse para a decisão do que vem posto a este Tribunal, pois sempre
funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da se trataria de acto unilateral emitido ao abrigo de poderes de autoridade.
administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, É que, e como é assinalado no acórdão recorrido, a fixação de tal
sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em tarifário foi levada a efeito sem que lhe tivesse presidido alguma nego-
termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios ciação com os ulteriores contratantes-consumidores, antes sim de forma
de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um unilateral e no exercício de jus imperii.
litígio emergente de relações jurídico-adimistrativas e fiscais será uma Justamente, o que está em causa nos autos não é um litígio de direito
controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito privado relativo a algum contrato entre a requerente da providência e a
administrativo e/ou fiscal” (in Constituição da República Portuguesa requerida (nomeadamente relativo a uma relação contratual de forneci-
Anotada, 3.ª ed.). mento), antes sim aquele tarifário que se pretende suspender, aprovado
166 167

ao abrigo dos já aludidos poderes públicos de autoridade, sendo de e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e
aplicação a todos os actuais e aos futuros utentes dos serviços, tendo execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita
que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito
assim natureza regulamentar. Uma tal fixação insere-se na satisfação público;
de necessidades colectivas definidas, seleccionadas e ordenadas pela f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível
lei como é próprio da função administrativa (6). de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de
direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que as
Pelo exposto, pode já concluir-se e sem necessidade de mais inda- partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
gações, que a competência dos tribunais administrativos, resulta desde (…)”
logo, da previsão do nº 1, alínea d), do artigo 4º do ETAF, pois que a Sobre os limites da jurisdição administrativa e fiscal prescrevia o artº 4º do anterior ETAF,
requerida, enquanto concessionária e no plano que vem questionado, dela se excluindo, designadamente, as «questões de direito privado, ainda que qualquer das
partes seja pessoa colectiva de direito público» [nº 1/f].
actua na prossecução de um interesse público, munida de poderes de Cf. o Prof. Vieira de Andrade, in A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA – 5ª ED., a p. 118
autoridade e praticando actos de gestão pública, assim se afastando e segs.
a competência dos tribunais judiciais nos termos do citado art° 18°, (3) Cf. o Prof. Vieira de Andrade, in A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA – 5ª ED., a p. 118
n° 1, da LOFTJ. e segs.
(4) Concessão de serviços públicos, constitui o contrato administrativo (cf. art. 178º do CPA)
II.4. Por outro lado, como já acima aludiu e como também é assina- através do qual o particular se encarrega de montar e explorar um serviço público, durante
lado pelo Ministério Público no seu referido parecer, o litígio em apreço certo tempo, e por sua conta e risco (cf. anotação àquele preceito do CPA, por Santos Botelho,
resulta da exigência, imposta autoritariamente pela requerida, do paga- Cândido Pinho e Pires Esteves em CPA ANOTADO. Veja-se o artº 13º nº 1 do DL 379/03).
mento de quantias como contrapartida pelo serviço público prestado (cf. (5) In Prof. Marcello Caetano, “MANUAL…”, a p. 1801 e ss.
(6) Cf. Prof. MARCELO REBELO DE SOUSA, in LIÇÕES DE DIREITO ADMINIS-
citado art° 13°, n° 2, e ainda o art° 15°, ambos do DL n° 379/93). TRATIVO, fls. 15 e segs.
Estamos, assim, perante uma questão fiscal, entendendo-se como
tal, “todas as que emergem da resolução autoritária que imponha aos
cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à
obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do
Estado e demais entidades públicas, bem como o conjunto de relações
jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções ou que com Acórdão de 4 de Outubro de 2006.
elas estejam objectivamente conexas” – cfr. citado acórdão deste TC de
2006.05.18 (Proc. n° 4/05), e vasta jurisprudência ali registada. Recurso n.º 3/06-70.
II.5. Pode pois concluir-se que a jurisdição competente para conhecer Requerente: Hélder José Contente Gomes, no conflito negativo de
do litígio em apreciação é, assim, a jurisdição dos tribunais administra- jurisdição entre o 3.° Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa e os
tivos e fiscais, concretamente os tribunais tributários, atento o disposto tribunais administrativos e fiscais.
no art° 49º, n° 1, alínea e)-i) e iv), do ETAF vigente. Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Sousa Fonte.
III. DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes Acordam no Tribunal de Conflitos:
deste Tribunal em negar provimento ao presente recurso jurisdicional, 1.
declarando-se competentes os tribunais tributários. 1.1. Hélder José Contente Gomes, com os sinais dos autos, propôs
Sem custas. acção emergente de contrato individual de trabalho contra a TAP AIR
Lisboa, 26 de Setembro de 2006. — João Manuel Belchior (relator) — Ar- Portugal, S.A., pedindo a condenação da Ré:
tur José Alves da Mota Miranda — Jorge Manuel Lopes de Sousa — António a) a reconhecer que a renda mensal paga pela habitação do A., en-
Políbio Ferreira Henriques — José Vaz dos Santos Carvalho — Políbio quanto seu representante na Venezuela, no Senegal e ria República
Rosa da Silva Flor. da Africa do Sul, constituía subsídio de renda de casa que era devido
como retribuição;
(1) Sob o regime do ETAF/84 prescrevia a tal respeito o art.º 3° que, “incumbe aos tribunais b) a regularizar a situação junto do Centro Distrital de Solidariedade
administrativos e fiscais, na administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses e Segurança Social (CDSSS) de Lisboa, declarando a totalidade das
legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses remunerações correspondentes ao subsídio de renda de casa e efectuando
públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
(2) Para o que interessa, transcreve-se tal normativo: os pagamentos das contribuições em dívida;
“1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios c) a entregar no mesmo CDSSS as quantias que reteve a título de
que tenham nomeadamente por objecto: contribuições do A. para a Segurança Social sobre um complemento
a)… de rétribuição auferido pelo Natal dos anos de 1992 a 1996, no valor
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas
colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem de €6.718,75;
como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade d) a pagar ao A. as quantias em que este vier a ter agravada a tribu-
do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração; tação em sede de IRS, em consequência das regularizações, a liquidar
c)…
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos em execução de sentença.
privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos; A R. contestou, pugnando pela improcedência da acção.
168 169

E, deduzindo reconvenção, pediu a condenação do A. a pagar-lhe a 2. Decidindo:


quantia de €38.048,65, acrescida de juros. 2.1. As instâncias consideraram provados os seguintes factos:
Na audiência de julgamento o A. reduziu o pedido de entrega de con- «1. O A. foi admitido ao serviço da R. em 25 de Outubro de 1966,
tribuições no CDSSS formulado na ai. c) para a quantia de €1.650,26, para lhe prestar a sua actividade, sob as suas ordens, direcção e fisca-
o que foi admitido. lização.
Na sentença de primeira instância, Tribunal do Trabalho julgou-se 2. O A. esteve ininterruptamente ao serviço da R. desde a data da sua
incompetente para conhecer do pedido de condenação da Ré a entregar os admissão até 05 de Junho de 2002, data em que o A. passou à situação
descontos retidos sobre as “utilidades” pagas ao A., em 1996 — pedido de reforma por velhice antecipada, com efeitos a partir de 23 de Maio
constante da al. c) —, e a Ré foi absolvida do pedido quanto ao mais de 2002.
— pedidos constantes das als, a), b) e d). 3. Desde 02 de Fevereiro de 1990 até 31 de Dezembro de 1996
Foi ainda julgado extinto, por prescrição, o crédito invocado na re- o A. desempenhou as funções de Representante/Delegado da R. na
convenção e o A. absolvido do correspondente pedido. Venezuela.
1.2. Não se conformando com tal decisão, o A. interpôs recurso de 4. Para o efeito o A. e a R. subscreveram o “Acordo” constante a
apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, restringindo o recurso fls. 87 a 91 dos autos (doc. nº 1 junto com a contestação) e o “Acordo
à parte da sentença que julgou improcedentes os pedidos formulados de deslocação” constante a fls 92 a 94 dos autos (doc. n° 2 junto com
nas alíneas a) e b) do seu petitório. a contestação).
Por acórdão de fls. 490 e ss., o Tribunal da Relação julgou impro- 5. Até Março de 1992 o A. esteve alojado em hotéis, pagos pela R..
cedente a apelação, confirmando, consequentemente a sentença re- 6. A partir de Abril de 1992 o A. esteve alojado numa casa arren-
corrida. dada.
1.3. Mais uma vez inconformado, o A., interpôs recurso de revista para 7. Para o efeito o A. subscreveu, na qualidade de arrendatário, o
o STJ, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões: contrato de arrendamento constante a fls 8 a 10 dos autos (doc. n° 3
«1ª A renda da casa paga mensalmente pela habitação do A. enquanto junto com a petição inicial).
esteve destacado ao serviço da R., constituía retribuição em espécie, 8. As rendas eram pagas à senhoria pela R., e os respectivos recibos
como se previa no n.° 2 do art.° 82° do revogado D.L. n.° 49.408, de eram emitidos ou em nome do A., na qualidade de “presidente” ou
24 de Novembro de 1969; “Director geral” da R., ou em nome da R..
2ª Assim, como se estipula na alínea m) do art.° 2° de Decreto Re- 9. A aludida renda teve o valor mensal de USD 3 300,00 até Dezembro
gulamentar n.° 12/83, de 12 de Fevereiro, sobre o valor de cada renda
de 1995 e de USD 2 800,00 a partir de Janeiro de 1996.
mensal incidiam as taxas contributivas para a segurança social;
3ª Competia à R., como se estipulava no n.° 3 do art.° 24° da Lei 10. Em 29.11.1982 a R. publicou a Ordem Geral de Serviço (OGS)
n.° 28/84, de 14 de Agosto, proceder mensalmente à entrega das con- A5-25-82, a qual contém o Estatuto do Pessoal Deslocado no Estran-
tribuições devidas, as suas e as do A., nos serviços competentes da geiro, e consta a fls 135 a 145 destes autos (doc. n° 44 junto com a
Segurança Social. contestação).
4ª O Tribunal do Trabalho é competente, em razão da matéria, para 11. Em 20.4.1992 a R. publicou a OGS n° 3/92, a qual contém o
conhecer e decidir do pedido do pagamento e entrega pela R. dos descon- Estatuto do Pessoal Deslocado por mais de 90 dias no Estrangeiro, com
tos para a Segurança Social, uma vez que este pedido emerge de relação efeitos a partir de 01.5.1992 e consta a fls 156 a 177 destes autos (dcc.
conexa com a relação de trabalho entre A. e R. por dependência e cumula- n°55 junto com a contestação).
-se com pedido para o qual o Tribunal é directamente competente. 12. Em 11.12.1995, tendo recebido da senhoria o pedido de a renda
5ª Decidindo como decidiu, confirmando a sentença da ? instância, o passar a ser paga numa conta em dólares americanos nos Estados Unidos
Acórdão recorrido violou, por errada interpretação e aplicação, o disposto da América, tendo como contrapartida a sua redução para USD 2 800,00,
no art.° 82° do (ora) revogado D.L. n.° 49.408, de 24 de Novembro de o A. pediu instruções à R., nos termos da comunicação constante a fls 134
1969, na al. m) do Decreto Regulamentar n.° 12/83, de 12 de Fevereiro, dos autos (doc. n°43 junto com a contestação).
no art.° 24° da Lei n.° 28/84, de 14 de Agosto, e nas alíneas b) e o) da 13. No “Acordo” referido em 4 ficou estipulado que, sem prejuízo de
Lei 3/99, de 3 de Janeiro». eventuais e futuras actualizações, o A. auferiria uma remuneração global
A ré contra-alegou, defendendo a manutenção do julgado. calculada na base anual de USD 49 000,00, a qual incluiria quaisquer
1.5. Pelo acórdão de fls. 556 e segs., o Supremo Tribunal de Justiça prestações remuneratórias porventura estabelecidas pela legislação local,
considerou verificada a situação prevista no art.107°, n.° 2 do CPC e as quais, a existirem, importariam o desdobramento daquela retribuição
ordenou a remessa dos autos para este Tribunal dos Conflitos. global, em conformidade.
Aqui, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer de fls. 576 14. Os serviços administrativos da delegação da R. na Venezuela
a 578, no sentido de que deverá julgar-se o Tribunal do Trabalho de processavam a aludida remuneração anual em 15 prestações mensais,
Lisboa incompetente para conhecer da acção intentada pelo recorrente incluindo subsídio de férias e de Natal e, no final de cada ano, uma
e competentes os Tribunais Administrativos e Fiscais. 15ª prestação, a qual, conjugada com a 14ª prestação, era designada na
1.6. Notificadas as partes do dito parecer e obtidos os vistos dos Venezuela por “utilidades”.
Senhores Juízes Conselheiros designados para intervir no conflito, 15. Os serviços administrativos da delegação da R. na Venezuela, ao
cumpre decidir. calcularem o valor das “utilidades” (14ª e 15ª prestação) a serem pagas
170 171

em cada ano ao A., incluíram nelas o valor das rendas referidas em 8 e Em face dos concretos contornos que assumiu a presente acção e da
9, por entenderem que tal era imposto pela legislação venezuelana. específica restrição do objecto da apelação e da revista a que procedeu
16. Os serviços centrais da R. autorizaram e procederam ao pagamento o recorrente — com o inerente trânsito em julgado da decisão da 1ª
ao A. das utilidades referidas em 2.15. instância quanto às matérias que não foram objecto de recurso —,
17. A título de “utilidades” correspondentes às aludidas rendas o A. tal tarefa reconduz-se à questão de saber se a apreciação dos pedidos
recebeu da R. os seguintes valores: daquelas alíneas a) e b) se inscreve na competência jurisdicional dos
Esc. 901 064$00 (€ 4 494,49) em 1992; Esc. 1 055 634$00 (€ 5 265,48) tribunais administrativos e fiscais ou na competência jurisdicional dos
em 1993; Esc. 1189 138$00 (€5 931,40) em 1994; Esc. 975 986$00 tribunais judiciais comuns (nos quais se incluem, desde a Lei n.° 82/77
(€4 868,20) em 1995; Esc. 828 109$00 (€4 130,59) em 1996. de 6 de Dezembro, como tribunais de competência especializada, os
18. No ano de 1996 a R. fez incidir, sobre o total da quantia recebida tribunais do trabalho).
pelo A. a titulo de “utilidades”, no valor de USD 15 225,76, o desconto 2.2.2. Como refere Manuel de Andrade, a competência dos tribunais
de 11 %, destinado à segurança social portuguesa. em geral resulta da medida de jurisdição atribuída aos diversos tribunais,
19. Para produzir efeitos em 01.7.1997, em 04.6.1997 a R. emitiu a do modo como entre si fraccionam e repartem o poder jurisdicional que,
OGS n° 03/97, a qual aprovou o novo Estatuto do Pessoal Deslocado tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais (1).
por mais de 90 dias no Estrangeiro, o qual substitui o estatuto anterior- Quanto aos tribunais judiciais, estabelece o art. 18°, n.° 1 da LOFTJ
mente aprovado, e consta a fls 178 a 197 destes autos (doc. n° 56, junto (aprovada pela Lei n.° 3/99 de 13 de Janeiro e alterada pela Lei n.° 101/99
com a contestação). de 26 de Julho, pelo DL n° 323/2001 de 17 de Dezembro, pelo DL
20. Desde Janeiro de 1997 até 31 de Maio de 2000, o A. desempenhou nº 38/2003 de 8 de Março e pelo DL n° 105/2003 de 10 de Dezembro),
as funções de representante da R. no Senegal. que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam
21. Em 20.12.1996 a R. enviou ao A. o memorando documentado a atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
fls 198 destes autos (doc. n° 57 junto com a contestação), enunciando Este preceito está em consonância com o “princípio da plenitude da
as “condições básicas” da sua “expatriação” no Senegal, o qual o A. jurisdição comum” consagrado no art. 211°, n.° 1, da CRP, de acordo
aceitou, com a ressalva “no pressuposto do respeito da legislação apli- com o qual os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria
cável e em vigor”. cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas
22. Nos primeiros meses o A. esteve alojado num hotel. a outras ordens judiciais.
23. A partir de Agosto de 1997 o A. esteve alojado numa casa ar- Entre os tribunais judiciais a que se reporta a LOFTJ, encontram-se
os tribunais do trabalho — cfr. os arts. 64°, 78° e 85° e ss.
rendada.
A competência especializada dos tribunais do trabalho encontra-se
24. Para o efeito o A. subscreveu o contrato de arrendamento constante definida naquele art. 85°, nos termos da qual lhes compete conhecer,
a fls 11 a 15 dos autos (doc. n° 4 junto com a petição inicial). em matéria cível, entre outras:
25. As rendas eram pagas à senhoria pela R., e os respectivos reci- “b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado
bos eram emitidos ou em nome de “Monsieur Helder Gomes (Tap Air e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de
Portugal)” ou em nome da R.. trabalho;
26. No Senegal a renda teve o valor mensal de F CFA 1 450,400. (...)
27. Desde, pelo menos, Outubro de 2000, e até Fevereiro de 2002, i) Das questões entre instituições de previdência ou de abono de
o A. desempenhou as funções de representante da R. na África do Sul. família e seus beneficiários quando respeitem a direitos, poderes ou
28. O A. esteve alojado numa casa arrendada, desde 14 de Outubro obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de umas ou outros,
de 2000, tendo para o efeito a R. celebrado o contrato de arrendamento sem prejuízo da competência própria dos tribunais administrativos e
constante a fls 16 a 21 dos autos (doc. n° 5 junto com a p.i.). fiscais;
29. As rendas eram pagas pela R. ao senhorio e os recibos eram (...)
emitidos em nome da R.. o) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho
30. As rendas tiveram os seguintes valores mensais: R. 9 290,34, no ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações
período de 14 a 31 de Outubro de 2000; R 16 600,00, de Novembro conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementa-
de 2000 a Outubro de 2001; R 17 600,00, de Novembro de 2001 até ridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o
Fevereiro de 2002. tribunal seja directamente competente;”
31. A R. nunca fez incluir nas folhas de remuneração enviadas à Se- A propósito da aplicação da lei no tempo neste âmbito, dispõe o
gurança Social, relativas ao A., prestações a titulo de subsidio de renda art. 22° da LOFTJ que:
de casa, nem sobre elas fez incidir contribuições». “1 - A competência fixa-se no momento em que a acção se propõe,
2.2. O Direito sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posterior-
2.2.1. Incumbe ao Tribunal dos Conflitos decidir a questão da com- mente.
petência em razão da matéria sobre que se pronunciou o Tribunal da 2 - São igualmente irrelevantes as modificações de direito, excepto
Relação de Lisboa e fixar qual o tribunal competente para apreciar e se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribu-
decidir a causa, dirimindo este conflito de jurisdição, nos termos do ída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento
disposto no art.107°, n.° 2, do CPC. da causa.”
172 173

Em matéria de competência dos tribunais administrativos e fiscais, incidência contributiva das contribuições e quotizações para a Segurança
o art. 212°, n.° 3, da Constituição da República Portuguesa (com a re- Social e, ainda, que a R. não entregou na Segurança Social nos anos
dacção da revisão constitucional de 1989 (2) e a numeração da revisão de 1992 a 1996 a quotização relativa a um complemento de retribuição
constitucional de 1997 (3)) circunscreve a competência destes tribunais pago ao A., pelo Natal de cada ano, designado “utilidades”.
ao domínio das “relações jurídicas administrativas”, ou seja, das que O pedido nela formulado traduz-se na condenação da Ré a reconhecer
conferem poderes de autoridade ou impõem restrições de interesse pú- que a renda paga ao A. constituía retribuição e a regularizar as declara-
blico à administração perante os particulares, ou que atribuem direitos ções e pagamentos das contribuições e quotizações à Segurança Social
ou impõem deveres públicos aos particulares perante a administração (4). relativamente ao subsídio de renda de casa e ao complemento de retri-
À data da propositura da presente acção (2003.05.13), a competência buição pago no Natal, bem como a pagar ao A. o valor do agravamento
jurisdicional dos tribunais administrativos e fiscais estava traçada pelo de IRS que resultar das regularizações peticionadas.
ETAF, aprovado pelo DL nº 129/84 de 27 de Abril, sendo este o diploma Quanto aos pedidos referentes ao pagamento das quotizações relati-
a atender nos presentes autos em face da disposição transitória contida vamente ao complemento de retribuição (‘utilidades”) pago no Natal,
no art. 4º, n.° 1, da Lei n.° 13/2002 de 19 de Fevereiro que aprovou o bem como ao pagamento do valor do agravamento de IRS que resultar
novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (5), de acordo com das regularizações peticionadas, mostra-se a R. absolvida com trânsito
o qual as disposições do novo Estatuto “não se aplicam aos processos em julgado, respectivamente, da instância e do pedido.
que se encontrem pendentes à data da sua entrada em vigor”. O litígio entre as partes subsiste, apenas, quanto aos pedidos de reco-
De acordo com o art. 3° do ETAF aprovado pelo DL n° 129/84, nhecimento do carácter retributivo da renda mensal paga pela habitação
“Incumbe aos tribunais administrativos e fiscais, na administração da do A. e de condenação da R. a regularizar as declarações e pagamentos
justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, das contribuições e quotizações à Segurança Social relativamente à
reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses mesma — pedidos das alíneas a) e b) do petitório.
públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas Como se refere no acórdão do STJ proferido a fls. 556 e ss. dos autos,
e fiscais”. embora as instâncias tenham cindido esta matéria em duas questões
Relativamente à competência dos tribunais administrativos de círculo, distintas, analisando, por um lado, o carácter retributivo da renda de ha-
o art. 51°, n°1, al. f) conferia a estes a competência para o conhecimento bitação que era paga ao Autor pela sua entidade patronal, e pronunciando-
das “acções para obter o reconhecimento de um direito ou interesse -se, por outro lado, quanto à competência do tribunal sobre o pedido de
legalmente protegido”. condenação da Ré na entrega das contribuições à segurança social, “a
Quanto aos tribunais tributários, também o art. 62°, n.°1, al. m), do verdade é que essas questões se encontram indissociavelmente ligadas
ETAF (na redacção que lhe foi conferida pelo DL n° 229/96 de 29 de e integram um único pedido”.
Novembro) lhes conferia competência para o conhecimento das “acções Com efeito, o A. não pediu que a R. fosse condenada a pagar-lhe de-
para reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos terminadas importâncias que considerasse possuírem carácter retributivo,
em matéria fiscal”. mas unicamente pretendeu obter a sua condenação a regularizar a sua
No que diz respeito à aplicação da lei no tempo nesta matéria, dispõe situação perante a Segurança Social, mediante a entrega ao respectivo
o art. 8° do ETAF aprovado pelo DL n° 129/84 que: Centro Distrital de Segurança Social de Lisboa dos descontos corres-
“1 - A competência fixa-se no momento em que a causa se propõe, pondentes à aludida renda de casa.
sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posterior- Este pedido, continua o acórdão do STJ, “enquadra-se exclusivamente
mente. no âmbito da relação jurídica contributiva e destina-se a assegurar,
2— São igualmente irrelevantes as modificações de direito, excepto em particular, o cumprimento da obrigação contributiva da entidade
se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta, se deixar de ser empregadora, tal como se encontra definida no actual artigo 45° da Lei
competente em razão da matéria e da hierarquia, ou lhe for atribuída n.° 32/2002, de 20 de Dezembro (Lei de Bases da Segurança social).
competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da Tendo em conta que o montante das contribuições da entidade patronal
causa.” é determinado por referência à remuneração do trabalhador (artigo 46°,
2.2.3. Conforme doutrina e jurisprudência pacíficas, a competência n.° 1, da mesma Lei), a caracterização da falada renda de casa como
em razão da matéria é apreciada em função dos termos em que a acção retribuição constitui, neste contexto, o fundamento do pedido — e integra
é proposta e determina-se pela forma como o autor estrutura o pedido a causa de pedir na acção -, visto que esse é um elemento indispensável
e os respectivos fundamentos (6). para considerar, como se pretende, que a incidência contributiva abranja
A presente acção foi intentada pelo A. Hélder José Contente Gomes as quantias pagas a esse título.
contra a TAP-Air Portugal, S.A.. Em qualquer caso, na qualificação da renda de casa como retribuição,
Como fundamento da mesma, o A. invoca que esteve ao serviço da R. para o aludido efeito, não está em causa a aplicação do conceito jus
entre 1966 e 5 de Junho de 2002, que auferiu, em determinados períodos laboral de remuneração, mas antes o noção de remuneração que, para
que identifica, subsídio de renda de casa e que a R. nunca fez incluir este efeitos contributivos, nos fornece o artigo 2° do Decreto-Regulamentar
subsídio nas folhas de remuneração enviadas à Segurança Social, nem n.° 12/83, de 12 de Fevereiro, que justamente visa determinar a base de
nunca sobre ele fez incidir as contribuições devidas e quotizações rela- incidência das contribuições para a segurança social.
tivas ao A., apesar de tal parcela constituir remuneração para os efeitos Como bem se vê, os aspectos jurídicos analisados pelas instâncias
do que se encontra previsto na legislação relativa ao âmbito da base de englobam afinal apenas uma questão — a incidência contributiva da
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renda de casa —, pelo que a declaração de incompetência material do designadamente tendo poderes para intervenções coactivas, que as
tribunal de trabalho, agora confirmada pela Relação, deve entender-se entidades empregadoras têm que cumprir a sua obrigação contributiva.”
como referente ao único pedido formulado e que apenas tem a ver com Além disso, importa ter presente que, como também se sublinhou no
aquela matéria.” dito acórdão do Tribunal dos Conflitos, “as contribuições para a Segu-
Aliás o A. alega na sua petição inicial que o comportamento ilícito rança Social, enquanto verdadeiras quotizações sociais, não são impostos
da R. decorre de ela nunca ter feito incidir sobre a renda da habitação ou taxas (dos quais se distinguem quanto aos objectivos, à estrutura
as contribuições e quotizações relativas ao A., apesar de aquela parcela jurídica e à própria cobrança (9)), mas imposições para fiscais”.
constituir remuneração “para os efeitos do que se encontra previsto na Na verdade, tais prestações inscrevem-se no universo das imposi-
legislação relativa ao âmbito da base de incidência contributiva das ções financeiras públicas, ou seja, constituem prestações pecuniárias
contribuições e quotizações para a Segurança Social, designadamente estabelecidas ou impostas por lei a favor de organismos do Estado ou
no Decreto Regulamentar n.° 12/83 de 12/12”, aqui fundamentando a de instituições investidas de autoridade pública que têm a seu cargo a
sua pretensão rio sentido de a R. ser compelida a regularizar a situação realização de acções necessárias à efectivação do direito à Segurança
contributiva perante a Segurança Social. Social, constitucionalmente reconhecido no art. 63° da Lei Fundamental,
E vem a precisar, nas alegações da revista, que a obrigação da R. com o fim imediato de obter meios ou recursos destinados ao financia-
de proceder mensalmente à entrega das contribuições devidas (as suas mento das acções de protecção social.
e as do A.), nos serviços competentes da Segurança Social resulta do De acordo com Ilídio das Neves (10), os tributos parafiscais são “im-
estipulado no n.° 3 do art.° 24° da Lei n.° 28/84, de 14 de Agosto (Lei posições financeiras sociais com algumas características técnicas e
de Bases da Segurança Social). jurídicas idênticas ou semelhantes às que são próprias das imposições
2.2.4. A obrigação que o A. invoca na presente acção impender so- tributárias, mas com objectivo específico (protecção social), regime
bre a R. e que pretende ver apreciada e reconhecida pelo tribunal é, financeiro autónomo e um quadro normativo bastante particular”.
pois, a obrigação de pagamento à Segurança Social das contribuições 2.2.5. As competências jurisdicionais para a apreciação das matérias
e quotizações relativas à renda de casa que a R. pagou enquanto o A. do Direito da Segurança Social foram sendo perspectivadas pelo legis-
desempenhou o cargo de representante da R. na Venezuela, no Senegal lador, ao longo do tempo, de modo diverso: se, numa primeira fase, os
e na África do Sul, entre 1992 e 2002. tribunais do trabalho abarcavam todas as competências jurisdicionais
De acordo com o que estabelece o art. 24° da Lei n.° 24/84, de 14 em matéria de Direito da Segurança Social, depois, o legislador passou
de Agosto, e também os arts. 60.° e 62.° da Lei n.° 27/2000, de 8 de a recorrer de forma crescente à jurisdição fiscal, no âmbito da obrigação
contributiva e, posteriormente, à jurisdição administrativa, no âmbito
Agosto (que revogou a Lei n.° 28/84), bem como os arts. 45.° e 47.° da
da obrigação prestacional da Segurança Social.
Lei n.° 32/2002, de 20 de Dezembro (que revogou a Lei n.° 27/2000), Verificou-se assim uma intervenção crescente da jurisdição tributá-
a propósito da obrigação contributiva e da responsabilidade pelo pa- ria em conflitos emergentes da relação jurídica contributiva (que, no
gamento das contribuições, a contribuição é uma prestação pecuniária caso dos trabalhadores por conta de outrem, se efectiva como relação
que consubstancia o objecto de uma verdadeira obrigação, a que cor- jurídica bilateral entre a entidade empregadora e a instituição da Se-
responde um direito por parte da Segurança Social, estabelecendo-se gurança Social).
entre o contribuinte e a instituição de Segurança Social uma relação E verificou-se, também, uma intervenção crescente da jurisdição
jurídica contributiva. administrativa nos conflitos emergentes da relação jurídica prestacional
Resulta também dos mesmos preceitos que os titulares da obrigação (que, no caso dos trabalhadores por conta de outrem, se estabelece entre
contributiva são os trabalhadores e as entidades patronais e que, no caso o beneficiário e a instituição da Segurança Social).
dos trabalhadores por conta de outrem, há uma obrigação unitária de Esta crescente intervenção das jurisdições administrativa e tributária
pagamento das contribuições, a cargo da entidade patronal. nos conflitos relacionados com a matéria do Direito da Segurança Social
Assim, como se refere no Acórdão deste Tribunal dos Conflitos encontra a sua explicação, consoante as relações jurídicas em causa, nas
n.° 2/04, de 2004.10.27 (7), que num caso similar considerou caber aos seguintes circunstâncias:
tribunais tributários a competência material para conhecer de um pedido - quanto à relação jurídica prestacional (que se estabelece entre o be-
de condenação do empregador a pagar à Segurança Social as contribui- neficiário e a instituição), na circunstância de a actividade da instituição
ções devidas no âmbito de um contrato individual de trabalho “a relação da Segurança Social se inscrever na actividade administrativa indirecta
jurídica contributiva, filiada embora na relação laboral, não se confunde do Estado (sujeita às regras de Direito Administrativo);
com ela, e concretiza-se sob a forma de uma relação jurídica bilateral - quanto à relação jurídica contributiva (que se estabelece entre o
dado que apenas incide sobre um dos sujeitos passivos, a entidade contribuinte e a instituição da Segurança Social), na natureza parafiscal
patronal, a quem cabe a liquidação e pagamento das contribuições, da obrigação contributiva.(11)
mesmo na parte respeitante ao trabalhado” (8). 2.2.6. Perante as regras legais enunciadas que fixam a medida de
Ainda de acordo com o mesmo aresto, no âmbito desta relação jurí- jurisdição, quer dos tribunais administrativos e fiscais, quer dos tribunais
dica contributiva, a entidade empregadora não está constituída perante do trabalho enquanto tribunais de competência especializada dentro da
o trabalhador em qualquer dever jurídico. “É perante as instituições de ordem dos tribunais judiciais comuns, entendemos que os pedidos em
Segurança Social, que integram a chamada administração indirecta do causa na presente acção versam sobre matéria que é da competência
Estado, pois são entidades públicas, revestidas de autoridade pública, dos tribunais fiscais.
176 177

Com efeito, o que o A. essencialmente pretende com os mesmos é parte respeitante ao trabalhador) e o Estado (sujeito activo), relação
que a R. seja condenada a proceder ao pagamento de contribuições jurídica esta que tem natureza parafiscal.
que entende a mesma dever à Segurança Social por considerar que a Se o facto de o contrato de trabalho ser um dos pressupostos da relação
incidência contributiva abrange as quantias pagas pela R. como renda de jurídica contributiva que se estabeleceu entre a entidade empregadora
casa, ou seja, pretende se reconheça impender sobre a R. uma obrigação e o Estado (relação jurídica que, verdadeiramente, é objecto da acção)
contributiva e que esta cumpra tal obrigação. poderia levar a sustentar que esta causa se enquadra nas hipóteses do
Ou seja, o objecto da acção é a relação jurídica contributiva da qual art. 85°, al. b) da LOFTJ, a expressa previsão do art. 62°, n.°1, al. m)
emerge uma obrigação da ré (enquanto sujeito passivo da obrigação) do ETAF aplicável reconduz para o âmbito da jurisdição administrativa
perante a Segurança Social. e fiscal, concretamente para a competência dos tribunais tributários, a
O art. 62°, n.° 1 al. m) do ETAF aprovado pelo DL n.° 128/84, de 27 apreciação do litígio que, de acordo com a alegação da petição inicial
de Abril (na redacção que lhe foi conferida pelo DL n.° 229/96, de 29 de e as normas que prevêem a obrigação da ré nela afirmada pelo autor,
Novembro) atribui aos tribunais tributários competência para conhecer se destina a reconhecer um interesse legalmente protegido em matéria
das “acções para obter o reconhecimento de um direito ou interesses que se integra no direito fiscal.
legalmente protegidos em matéria fiscal”. Independentemente da procedibilidade da pretensão do autor atenta a
Tendo em atenção o disposto nos arts. 3° e 62°, n.° 1, al. m), do ETAF matéria sobre que versa a presente acção, a ordem jurisdicional compe-
revogado, mas aqui aplicável, e o supra exposto quanto à transferência tente para a sua apreciação não é aquela em que se incluem os tribunais
gradual de competências do âmbito da jurisdição dos tribunais do tra- do trabalho, mas a ordem dos tribunais administrativos e fiscais.
balho para a jurisdição administrativa e fiscal, e uma vez que a presente Deve salientar-se que, também aqui, como ocorreu no caso a que se
acção — em face da alegação do autor e do modo como fundamenta o reporta o Conflito n° 2/04 sobre que incidiu o acórdão de 2004.10.27,
seu pedido —, se destina a obter o reconhecimento de um interesse legal- apesar de esta operação positiva de subsunção da matéria sobre que versa
mente protegido em matéria parafiscal, a apreciação do litígio inscreve- a acção às regras delimitadoras da competência jurisdicional da ordem
-se na competência jurisdicional dos tribunais tributários. dos tribunais administrativos e fiscais ser decisiva quanto à atribuição
Neste sentido decidiram recentemente os acórdãos deste Tribunal, o da competência a estes para o conhecimento do litígio, também de modo
já citado, de 2004.10.27 (Conflito n.° 2/04), e o de 2005.06.29 (Conflito negativo — pelo não preenchimento das diversas hipóteses em que a lei
n.° 1/05). atribui competência em razão da matéria à jurisdição laboral, enquanto
Diga-se que o novo ETAF, aprovado pela Lei n.° 13/2002 de 19 jurisdição especializada — se concluiria não ser competente para o
conhecimento da presente acção o Tribunal do Trabalho.
de Fevereiro (alterada pelas Leis n.°s 4-A/2003 de 19 de Fevereiro e
Com efeito, da análise dos arts. 18° (delimitação negativa da com-
107-D/2003 de 31 de Dezembro) contém uma regra de atribuição de petência do tribunal do trabalho) e 85° a 87° (delimitação positiva da
competência aos tribunais tributários com o mesmo conteúdo do art. 62°, competência do tribunal do trabalho), da LOFTJ resulta que aos tribunais
n.° 1, al. m), do anterior. Assim, a al. c) do art. 49° atribui aos tribunais do trabalho compete julgar as causas não atribuídas a outras ordens
tributários competência para conhecer das “acções destinadas a obter jurisdicionais (art. 18°), mas que estejam mencionadas na sua área de
o reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos em competência especializada (arts. 85° a 87°).
matéria fiscal” e a regra geral do seu art. 4°, n.°1, inclui no âmbito Ora, como se passará a expor, nenhuma das alíneas do art. 85° relativas
de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais “a apreciação de à competência cível se mostra preenchida no caso “sub-judice”, maxime
litígios que tenham nomeadamente por objecto: a) Tutela de direitos a referenciada pelo recorrente.
fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos De acordo com a al. b) do art. 85.°, compete ao tribunal do trabalho
dos particulares directamente fundados em normas de direito adminis- conhecer, em matéria cível, das “questões emergentes de relações de
trativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo trabalho subordinado”.
de disposições de direito administrativo ou fiscal”. É este o núcleo essencial das questões submetidas à apreciação dos
2.2.7. Invoca o recorrente que o Tribunal do Trabalho é competente, tribunais do trabalho, núcleo este que é completado por sucessivos nú-
em razão da matéria, para conhecer e decidir do pedido do pagamento cleos de alargamento a problemas conexos, de maneira cada vez mais
e entrega pela R. dos descontos para a Segurança Social, uma vez que mediata, com este núcleo fundamental.
este pedido emerge de relação conexa com a relação de trabalho entre Por isso deve considerar-se que esta alínea se reporta apenas aos
A. e R. por dependência e cumula-se com pedido para o qual o Tribunal litígios directamente relacionados com o nascimento, a vida e a morte
é directamente competente. do contrato e não a quaisquer outros, a não ser que expressamente refe-
Ora, embora a obrigação contributiva da entidade empregadora tenha renciados nas demais alíneas do preceito (que alargam a competência a
como pressuposto a existência de um contrato de trabalho — já que é por questões bem delimitadas que têm atinências com a relação de trabalho
virtude da celebração deste que a entidade empregadora paga retribuições mas não emergem directamente dela).
ao trabalhador e é deste pagamento que resultam as obrigações, quer Como se refere no Ac. do STJ de 2000.05.03, as questões emergentes
do trabalhador, quer da entidade empregadora, de pagar ao Estado as da relação laboral a que se reporta a al. b) deverão ser consideradas
contribuições —, ela concretiza-se, como vimos, sob a forma de uma apenas as que são conteúdo essencial dessa relação, ou seja, aquelas
relação jurídica bilateral entre a entidade empregadora (sujeito passivo que respeitam a direitos e deveres recíprocos, a ela inerentes, daqueles
da obrigação, a quem cabe a liquidação das contribuições, mesmo na que aí são partes (12).
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Atendendo a que o pedido de reconhecimento do carácter retributivo trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o
da renda de habitação paga pela ré não tem autonomia face ao pedido pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente
de condenação desta a regularizar a sua situação contributiva perante competente”.
a Segurança Social no que àquelas rendas diz respeito e considerando, Como refere Leite Ferreira (16), a alínea o) contempla um caso de
também, que a obrigação contributiva da entidade empregadora perante extensão de competência em razão da matéria, uma vez que as questões
a Segurança Social sobre que versam estes pedidos não tem obviamente aí referidas se situam, em regra, fora do círculo de competência dos
a ver com o núcleo essencial do contrato de trabalho, é manifesto que tribunais do trabalho, mas para ele são atraídos em consequência de
a referenciada al. b) do art. 85.° da LOFTJ não se mostra preenchida uma posição de conexão que mantém com as causas especializadas,
na presente acção. ou melhor dizendo, com as questões de competência específica ou
Por seu turno a al. i) do art. 85° da LOFTJ atribui competência para estrutural daqueles tribunais. Dei as se poderá dizer, continua aquele
o conhecimento das «questões entre instituições de previdência ou Autor, que são estranhas, pela sua própria natureza, ao domínio directo
de abono de família e seus beneficiários quando respeitem a direitos, da competência dos tribunais do trabalho, mas que com ele se mostram
poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de umas conexas de certa maneira. Trata-se de questões de que os tribunais do
ou outros, sem prejuízo da competência própria dos tribunais adminis- trabalho não podem conhecer quando se apresentam isoladamente, mas
trativos e fiscais”. que o legislador entendeu por bem atribuir-lhes quando se cumulem com
Também esta hipótese se não mostra integrada, desde logo porque outras para as quais sejam directamente competentes.
a presente acção não versa sobre um litígio entre o trabalhador e uma Poder-se-ia dizer que esta alínea estaria liminarmente afastada no caso
instituição de Segurança Social. “sub judice” por na presente acção não estar neste momento em causa
A questão submetida à apreciação judicial não se reporta à relação qualquer outro pedido para além do pedido de condenação da ré no paga-
jurídica prestacional (entre o beneficiário e a Segurança Social) mas à mento das contribuições para a Segurança Social relativas às prestações
relação jurídica contributiva (entre a entidade empregadora contribuinte de renda de habitação no período enunciado na petição inicial.
e a Segurança Social). Na verdade, e como se viu, o pedido de reconhecimento da natureza
Deve contudo dizer-se que, mesmo relativamente à relação jurídica retributiva dessa renda [al. a) do pedido] não tem autonomia face aquele
prestacional, a crescente intervenção dos tribunais administrativos no pedido de condenação [al. b) do pedido], inserindo-se ambos no âmbito
âmbito da Segurança Social, agora definida em razão da natureza jurídica do reconhecimento da obrigação contributiva da R.
da instituição (sendo certo que a Lei n.° 28/84 transformou as institui- Quanto aos demais [als. c) e d) do pedido], foi já proferida decisão
ções de Segurança Social em serviços do Estado, embora integrados na com trânsito em julgado a absolver a R., da instância e do pedido,
administração indirecta), determinou um alargamento da competência respectivamente.
do contencioso administrativo neste âmbito (13). Não nos parece contudo que assim se deva perspectivar a presente
Como se faz notar no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria- acção para efeito de aferir qual a ordem jurisdicional com competência
-Geral da República de 1995.07.14, “a alínea i) do artigo 64° da Lei material para proceder à sua apreciação.
n.º 38/87, de 23 de Dezembro (com igual redacção ao actual art. 85°, Esta competência, uma vez reconhecida em face das leis orgânicas e
i), da Lei n.° 3/99, de 13.01), confere aos tribunais de trabalho uma estatutárias específicas que distribuem por cada categoria ou espécies
competência residual para conhecer das questões de natureza cível entre de tribunais a sua medida de jurisdição, mantém-se até ao julgamento
as instituições de segurança e seus beneficiários, na medida em que final da causa independentemente da sorte dos diversos pedidos nela
não sejam da competência dos tribunais administrativos e fiscais.” (14) formulados.
Também no acórdão deste Tribunal, de 14 de Março de 1996 (Con- Como se viu, é perante os termos em que é estruturada a petição
flito n.° 2/96), se sublinhou que “a partir da Lei n.° 28/84, em vez de se inicial que se afere se, atentos os contornos objectivos (pedido e seus
considerar determinante a natureza sucedânea da relação de segurança fundamentos) e subjectivos (identidade das partes) da acção, a sua
social face à relação laboral para justificar a confiança do contencioso apreciação se enquadra na ordem jurisdicional comum ou na ordem
da segurança social aos tribunais de trabalho, entendeu-se atribuir re- jurisdicional administrativa e fiscal.
levo decisivo à natureza pública das instituições de segurança social e Se eventualmente a competência do tribunal para a apreciação da
retirar daí as devidas consequências quanto à determinação da ordem globalidade dos pedidos é afirmada em virtude de na acção se ter formu-
dos tribunais chamada a intervir na matéria”. lado um pedido para que o tribunal é directamente competente — como
Daí a orientação jurisprudencial praticamente uniforme no sentido sucede na hipótese da al. o) do art. 85.° da LOFT — e o pedido for-
de que são competentes para o conhecimento dos litígios relativos à mulado na petição inicial que determina a atribuição da competência
relação jurídica prestacional, entre as instituições de Segurança Social vem a ser julgado improcedente, não é por isso que o tribunal perde
e os respectivos beneficiários (por se tratar de relações reguladas pelo a competência (que ganhara com a formulação daquele pedido) para
direito administrativo, em que uma das partes é uma pessoa colectiva apreciar os demais pedidos.
de direito público), os tribunais administrativos (15). Mas, mesmo perspectivando a totalidade dos pedidos, não se vê que
Resta-nos a al. o) do aludido art. 85°, norma que atribui competência nesta acção tenha sido formulado um pedido para o qual o Tribunal do
ao tribunal do trabalho para o conhecimento das “questões entre su- Trabalho fosse directamente competente.
jeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos Especificamente o constante da al. d) do petitório (de condenação
é terceiros; quando emergentes de relações conexas com a relação de da R. a pagar ao A. as quantias em que este vier a ter agravada a tribu-
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tação em sede de IRS em consequência das regularizações a efectuar da 4ª Secção), os Acs. do STA de 93.05.13 (Rec. n.° 31.478), de 96.05.28 (Rec. n.° 39.911),
de 99.03.03 (Rec. n.° 40.222) e de 99.10.13 (Rec. n.° 44.068).
à Segurança Social, a liquidar em execução de sentença), não emerge (7) Disponível em texto integral na base de dados do ITIJ (www.dgsi.pt)
directamente da relação de trabalho e, manifestamente, não se cumula (8) Vide também o Ac. do STJ de 2003.02.05 (proferido na Revista n.° 2673/02 da 4ª
com outro pedido para o qual o tribunal é directamente competente Secção) e Ilídio das Neves, in “Direito da Segurança Social — Princípios Fundamentais numa
(sendo esta uma condição que a alínea em causa estabelece de modo Análise Prospectiva”, 1996, p.328.
(9) Aqui se destacando a possibilidade do pagamento voluntário retroactivo de contribuições
cumulativo com a verificação da aludida conexão). prescritas (e, por isso, não exigíveis coercivamente).
Os pedidos das alíneas a), b) — e também c) — da petição inicial, já (10) In ob. cit., p 366.
o vimos, são todos da competência directa dos tribunais tributários na (11) Vide numa análise histórica exaustiva Ilídio das Neves, in ob. cit., pp. 632 e ss., o citado
Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 2004.10.27. e o de 1996.03.14 (in BMJ 455/222).
medida em que as questões com eles colocadas pelo autor ao tribunal (12) In CJ, Acórdãos do STJ, II, p. 39.
se reconduzem à apreciação da extensão e âmbito da relação jurídica (13) Cfr. os arts. 73° da Lei n.° 17/2000 e 78° da Lei n.° 32/2002.
contributiva estabelecida entre a R. e a Segurança Social (17). (14) In DR, II série de 18 de Agosto de 1995
Ora a relação jurídica contributiva estabelece-se tendo como pres- (15) Vide os Acs. do Tribunal dos Conflitos de 2003.05.13 e de 97.07.01 (ambos disponíveis
da base de dados do ITIJ), o citado Ac do Tribunal dos Conflitos de 1996.03.14 (in BMJ
suposto a existência de um contrato de trabalho, mas não emerge de 455/222) e os Acs. do STJ de 2002.03.06 (proferido na Rev. n.° 3359/01 da 4ª Secção) e do
qualquer relação conexa com a relação de trabalho. STA de 1997.06.12 (também disponível na base de dados do ITIJ).
Aliás, e como bem se nota no citado acórdão deste Tribunal, de (16) Código de Processo do Trabalho, Coimbra Editora, 1989, pag. 71 e seguintes.
(17) É de notar que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando a
2004.10.27, “não faria sentido que o legislador - a considerar serem incompetência material dos tribunais do trabalho para conhecer da falta de pagamento das
conexos com o contrato de trabalho os vínculos entre os sujeitos do con- contribuições devidas à Segurança Social pelas entidades empregadoras, quer em acções
trato de trabalho (trabalhador ou entidade empregadora) e a Segurança em que nenhum outro pedido se formula, quer em acções em que se discutiam questões
Social - simultaneamente, atribuísse aos Tribunais de Trabalho, na al. o) directamente emergentes do contrato de trabalho ou outras para que o tribunal do trabalho
tinha competência directa - vide os Acórdãos do STJ de 2005.02.15 (Revista n.° 3037/04 da
competência para o julgamento das questões emergentes desses vínculos, 4.ª Secção) e de 2005.02.23 (Revista n.° 1148/04 da 4.ª Secção).
se já na al. i) incluía a competência para o julgamento das questões entre
um dos sujeitos do contrato e a Segurança Social”.
Se as questões entre os trabalhadores ou entidades empregadoras (de
um lado) e a Segurança Social (de outro) fossem de considerar “emer-
gentes de relações conexas com a relação de trabalho” naqueles termos, Acórdão de 12 de Outubro de 2006.
não faria qualquer sentido o alargamento tímido (em face da parte final
do preceito, que ressalva a competência dos tribunais administrativos e Recurso n.º 23/05-70.
fiscais) constante da al. i). Requerente(s): Maria Manuel Matias de Lacerda Magalhães Mexia,
22.8. É pois de concluir que o “conflito” se deve decidir atribuindo no conflito negativo de jurisdição entre o Tribunal Judicial da Comarca
competência para o julgamento desta acção à ordem dos tribunais ad- da Lousã e os tribunais administrativos e fiscais.
ministrativos e fiscais, concretamente aos tribunais tributários. Relator: Ex.mo Cons. Dr. Manuel Oliveira Barros.
3. Decisão:
Pelo exposto, acordam no Tribunal de Conflitos em julgar o Tribunal Acordam no Tribunal dos Conflitos:
do Trabalho de Lisboa incompetente, em razão da matéria, para conhecer
da presente acção intentada pelo Autor Hélder José Contente Gomes Maria Manuel Matias de Lacerda Magalhães Mexia requereu em
contra a TAP AIR Portugal, S.A., e considerar competentes para conhecer 3/3/2005 no Tribunal Judicial da comarca da Lousã a instauração de
da matéria a que os autos se reportam os Tribunais Tributários. inventário para separação de meações.
Sem custas. No processo assim iniciado, foi no seguinte dia 17 proferido despacho
liminar que, com fundamento, em termos de facto, em que se tratava de
Lisboa, 4 de Outubro de 2006. — João Manuel Sousa Fonte (rela- processo com carácter acidental relativamente a processo de execução
tor) — Azevedo Moreira — Manuel Joaquim Sousa Peixoto — Santos a correr termos na Repartição de Finanças da Lousã, e louvando-se,
Botelho — Mário Manuel Pereira — Rosendo José. em termos de direito, no art.151°, n°1°, do Código de Procedimento e
Processo Tributário (CPPT), ordenou a remessa do processo ao tribunal
(1) In “Noções Elementares de Processo Civil”, ed. de 1979, pp.88-89. tributário de 1ª instância territorialmente competente.
(2) Lei Constitucional n.° 1/89 de 8.8 Em despacho de 23/5/2005, o Tribunal Administrativo e Fiscal de
(3) Lei Constitucional n.° 1/97 de 20.9
(4) Vide Freitas do Amaral, in “Lições de Direito Administrativo”, edição policopiada, Coimbra declinou a competência em razão da matéria dessa ordem
p. 423. jurisdicional para conhecer daquele processo, indeferiu liminarmente,
(5) O novo ETAF, entretanto alterado pelas Leis n.°s 4-A/2003 de 19 de Fevereiro e nos termos dos arts. 16° CPPT e 234°-A CPC, o requerimento inicial
107-D/2003 de 31 de Dezembro, e vigente desde 1 de Janeiro de 2004 (cfr. o art. 4º da Lei
n.° 107-D/2003 de 31 de Dezembro).
do mesmo, e, na falta de declaração formal, expressa, da sua própria
(6) Vide Manuel de Andrade, in ob. cit., pp. 90 e ss., José Alberto dos Reis, in “Comentário incompetência material por parte do tribunal judicial referido, ordenou
ao Código de Processo Civil”, I, p. 110, José Manuel Santos Botelho in “Contencioso Admi- que os autos aguardassem por 14 dias a contar do trânsito dessa decisão
nistrativo Anotado e Comentado”, 3ª edição, 2000, pp. 13 e ss. e, entre outros, os Acórdãos que a requerente do inventário requeresse a remessa do processo ao
do Supremo Tribunal de Justiça de 78.06.06 (in B.M.J. 278/122), de 98.02.12 (in CJ, Acs.
do STJ, I, p 263), de 2003.05.14 (proferido na Rev. n.° 414/03 da 4ª Secção), de 2003.10.01 Tribunal Judicial da Lousã, nos termos do art.18°, n°1°, CPPT - o que
(proferido na Rev. n.° 2059/03 da 4ª Secção) e de 2004.01.14 (proferido na Rev. n.° 743/03 esta efectivamente fez em 25/5/2005.
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Foi então proferido nesse Tribunal, em 6/6/2005, despacho, por igual ocorrência extraordinária que perturba o movimento normal do processo,
transitado em julgado (cfr. o certificado a fls.68), que, desta vez expres- visto que determina a suspensão da execução fiscal até à sua decisão.
samente, declinou, invocando os arts.66°, 96°, 101º, 102°, 103° e 105° No Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra discorreu-se, em
CPC, a sua competência em razão da matéria para conhecer do processo suma, e bem que em ordem diversa, como segue:
aludido, atribuindo-a aos tribunais tributários de 1ª instância. O âmbito da jurisdição fiscal encontra-se definido nos arts.212° da
O requerimento da instauração do inventário pretendido foi, por isso, Constituição e 4° e 49° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e
indeferido liminarmente. Fiscais, de que decorre que compete aos tribunais fiscais pronunciar-se
Em 24/6/2005 a requerente do inventário requereu, ao abrigo do apenas sobre as relações jurídicas fiscais.
art.117°, n°1°, CPC, ao Exmo. Presidente do Tribunal da Relação de Entende-se como questão fiscal a que emerge duma resolução auto-
Coimbra a resolução de conflito de jurisdição assim gerado, que como ritária que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação
tal ajustadamente qualificou. pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de
Autuado esse requerimento como relativo a conflito de competência, encargos públicos do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas,
o relator a que esses autos foram distribuídos, reportando-se ao disposto bem como o conjunto das relações jurídicas com tal objectivamente
nos arts.115°, n°1°, e 116°, n°1°, 1ª parte, CPC, conjugado, este, com os conexas ou teleologicamente subordinadas.
arts.33°, al.b), a contrario, e 36°, al.d), Lei de Organização e Funciona- O inventário para separação de meações que emerge duma execução
mento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ - Lei n°3/99, de 13/1, republicada fiscal não integra uma questão fiscal, mas sim uma questão privada
em anexo à Lei n°105/2003, de 10/12), e 59°, § 2°, do Regulamento do entre cônjuges.
Tribunal de Conflitos, julgou, com invocação ainda de acórdão deste Esse inventário para partilha dos bens comuns do casal destina-se a
mesmo Tribunal de 27/2/75, publicado nos Acórdãos Doutrinais do Su- garantir os interesses dum cônjuge contra os encargos do outro.
premo Tribunal Administrativo n°172, 303, ser ao Tribunal de Conflitos O Estado intervem nele nos mesmos termos que qualquer outro credor
que cabe resolver o conflito em questão, ordenando, consoante art.117°, do cônjuge executado.
n°2°, CPC, a remessa dos autos a este Tribunal. Tornado necessário por os processos de execução fiscal, apesar de
Ouvidas as autoridades em conflito (arts.118° e 119° CPC), nada terem carácter judicial, correrem termos, conforme art.103° da Lei Geral
vieram dizer. Tributária, nos serviços das finanças, o art.151° CPPT visa apenas regu-
Observado o disposto no art.120°, n°1°, CPC, o M°P°, com referência lar as questões de competência adentro do processo de execução fiscal
- não também as questões de competência entre a jurisdição comum e
aos arts.209°, n°1°, e 212° da Constituição, e 115°, nºs 1° e 2°, e 116°,
a jurisdição administrativa e fiscal.
n°1°, CPC, pronunciou-se no sentido da atribuição ao tribunal judicial
Trata-se, nesse preceito, de separar as águas num processo em que
da competência para proceder à separação de bens pretendida. participam, em momentos distintos, um órgão administrativo e um órgão
Louvou-se para tanto no disposto nos arts.151°, n°1°, e 166° CPPT judicial, competindo àquele praticar actos de natureza não jurisdicional
e 18°, n°1°, LOFTJ e nas razões indicadas no despacho do Senhor Juiz e a este dirimir as questões de natureza jurisdicional suscitadas no
do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra. Aditou ter essa solução processo de execução fiscal.
respaldo na doutrina, citando Jorge Lopes de Sousa, “CPPT Anotado “, O inventário para separação de meações não faz parte dos inciden-
4ª ed., 956-957. tes típicos da execução fiscal previstos no art. 166° CPPT, nem é um
Colhidos os vistos legais, importa decidir. Assim: incidente atípico, pois não se trata de ocorrência extraordinária que
Na tese da Senhora Juíza da comarca da Lousã, está-se perante inci- interfira com o andamento normal do processo, constituindo, isso sim,
dente de processo de natureza fiscal, atípico, visto que não referido no questão prejudicial que determina a suspensão da execução fiscal até à
art. 166° CPPT. Daí a competência material do Tribunal Administrativo sua decisão no tribunal competente.
e Fiscal de Coimbra, conforme art.151°, n°1°, CPPT. Finalmente:
Fundamentou essa posição em que o processo de inventário em ques- Uma vez que, como se vê dos arts.1770° e 1771° C.Civ., o inventário
tão deriva de execução fiscal pendente na Repartição de Finanças da para separação de meações se destina a produzir efeitos também fora da
Lousã em que foi penhorado bem comum do casal, constituindo incidente execução de que depende, e como bem assim resulta do art.96°, n°2°,
só surgido depois da citação efectuada nesse processo nos termos do CPC, que afasta o caso julgado material quando a decisão da questão
art. 220° CPPT. incidental importe violação dessas regras, as regras de competência
Do conhecimento dos tribunais tributários as questões relativas a absoluta obstam à apensação determinada no art.1406° CPC.
tais processos, a partir dessa citação, “todo o processo emerge duma Vejamos então:
relação jurídica tributária, que, neste caso, significa, salvo o incidente Um dos critérios de repartição do poder jurisdicional no plano interno
de separação judicial de bens, a responsabilização do cônjuge por dívi- é, como se sabe, o do objecto do litígio. A instituição de diversas espé-
das tributárias do outro”; e “todo o incidente é regulado, num primeiro cies de tribunais e a definição da respectiva competência em razão da
momento, pela legislação processual fiscal”, o que indicia ser essa a matéria ou objecto da causa, ou seja, da natureza da relação substancial
jurisdição competente, conforme art.151°, n°1°, CPPT. pleiteada obedece a um princípio de especialização, com as vantagens
Tal assim apesar de não incluído nos incidentes típicos referidos no que lhe são inerentes, desde logo, uma maior garantia de acerto ou
art.166° CPPT, mas por se tratar de incidente atípico, dado constituir perfeição da decisão. (1)
184 185

O art.49°, n°1°, al.d), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Acórdão de 19 de Outubro de 2006.
Fiscais (ETAF) aprovado pela Lei n°13/2002, de 19/2, comete, nome-
adamente, aos tribunais tributários a competência para conhecer dos Recurso n.º 9/06.
incidentes e das oposições. Segue-se, deste modo, regra clássica, segundo Requerente: José Carlos Ferreira, no conflito negativo de jurisdição
a qual accessorium sequitur principali. entre o 4.° Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa e os tribunais
Na definição de Mortara, subscrita por Alberto dos Reis, “Comentário “, administrativos e fiscais.
III, 563 (v. também 564), transcrita em Ac. STJ de 24/1/89, BMJ 383/521, Relator: Ex.mo Cons. Dr. Carlos Alberto Andrade Bettencourt de
o incidente é uma forma processual secundária que apresenta o carác- Faria.
ter de episódio ou acidente em relação ao processo da acção (no caso,
executiva fiscal) (2) Acordam no Tribunal dos Conflitos:
Inumeráveis as questões que podem surgir no decurso das causas e José Carlos Ferreira instaurou no 4° Juízo do Tribunal do Trabalho
de que a discussão se reveste de carácter incidental, a grande maioria de Lisboa a presente acção contra Portugal Telecom SGPS e PT Comu-
constitui objecto de incidentes inominados ou atípicos; outras são assunto nicações, pedindo que a condenação das rés a:
de incidentes perfeitamente definidos e assim intitulados - incidentes pagarem-lhe a quantia de € 21.911,10 referente às prestações mensais
nominados, típicos (3) que devem integrar a sua pensão de aposentação, bem como nas demais
Posto que têm por objecto questão que não é a questão fundamental que se venderem até efectivo e integral pagamento;
da causa, visando, antes, questões secundárias ou acessórias, enxertadas a pagarem / provisionarem na mensalidade da pensão de aposentação
as prestações mensais de isenção de horário de trabalho, a remuneração
na questão principal, os incidentes constituem ocorrências estranhas ao adicional venc. 14 e os rendimentos em espécie que auferia à data da
desenvolvimento normal da lide - ou, na expressão dos tribunais refe- cessão do contrato de trabalho;
ridos, ocorrências extraordinárias que perturbam o movimento normal a comunicarem à Caixa Geral das Aposentações (CGA) o total das
do processo. remunerações auferidas pelo autor e proceder aos respectivos descon-
Destinada a separação de meações pretendida a salvaguardar o pa- tos.
trimónio dum dos cônjuges da responsabilização por dívida do outro, Na sua contestação as rés excepcionaram a incompetência em razão
opera-se em processo especial, de inventário, autónomo e com tramitação da matéria do tribunal do trabalho, alegando que o que estava em causa
específica. E conquanto, é certo, apenas eventual, e determinante da era a legalidade de um acto duma pessoa colectiva de direito público - a
suspensão da execução, mas prevista que, na realidade, se encontra na CGA - , ou seja, a decisão desta de aposentar o autor e de lhe atribuir
própria regulamentação do processo executivo, bem, afinal, não se vê uma pensão de aposentação no valor mensal de € 4.228,17.
como considerar a dedução do pedido de separação das meações como Respondeu o autor que não impugna o cálculo efectuado pela dita
ocorrência extraordinária, estranha ou anormal. CGA, mas sim as omissões das rés que levaram a tal cálculo.
Por outro lado, determinada a competência material pela vocação No despacho saneador o Juiz julgou a excepção em causa impro-
específica das diversas espécies de tribunais, bem, de facto, não se vê cedente.
Desta decisão agravaram as rés, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa
também como incluir na própria dos tribunais tributários a de proceder
declarado incompetente o tribunal do trabalho em razão da matéria para
a inventário para separação de meações. conhecer dos autos.
Como assim conforme com a boa razão a solução propugnada pelo Recorreu o autor para este tribunal, nos termos do art° 107° nº 2 do
M°P°, decide-se declarar o Tribunal Judicial da comarca da Lousã o C. P. Civil.
competente para levar a efeito o inventário para separação de meações Nas suas alegações de recurso apresenta as seguintes conclusões:
em questão. 1 A competência do Tribunal determina-se de acordo com os pedidos
Sem custas. formulados pela recorrente na sua p. i., pelo que, face aos mesmos,
Lisboa, 12 de Outubro de 2006. — Manuel Oliveira Barros (relator) — resulta inequívoco que os pedidos emergem da relação laboral existente
com as recorridas, em consequência, o tribunal do trabalho é compe-
António Fernando Samagaio — Manuel Maria Duarte Soares — Fernando tente em razão da matéria, nos termos das alíneas i) e o) do art° 35°
Manuel Azevedo Moreira — Carlos Alberto Bettencourt de Faria — Rosendo da LOFT.
Dias José. 2 O recorrente, no seu articulado inicial, pretende o reconhecimento
como retribuição de todos os montantes que lhe eram pagos pelas re-
(1) Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil” (1976), 94-II-a), Antunes corridas como contrapartida da sua prestação laboral, o que estas não
Varela e outros, “Manual de Processo Civil”, 2.ª ed., 207 (n.° 66) e 222. querem reconhecer, não tendo efectuado os respectivos descontos e, por
(2) V. também, ARC de 18/12/84, CJ, IX, 5.°, 99-III e 100, 2.ª col.; desenvolvidamente, via disso, os cálculos da pensão da CGA também os não reconhece.
Parecer da PGR n.° 53/62, de 25/10/62, no BMJ 120/181 ss; e, mais recentemente, Ac. STJ 3 A relação jurídico laboral do recorrente com as recorridas é de natu-
de 16/4/98 , BMJ 476/305-I.
(3) Transcreveu-se enunciado de Lopes Cardoso, “Manual dos Incidentes da Instância”, reza privada, sendo a relação jurídica controvertida do foro laboral.
2.ª ed. (1965), 10. V. também Salvador da Costa, “Os Incidentes da Instância”, 4.ª ed. (2006), 4 Por aplicação das alíneas b), i) e o) do art° 35° da LOFT é compe-
10 a 12. tente o Tribunal do Trabalho.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir. Termos em que se conclui pela competência da jurisdição adminis-
Apreciando trativa e fiscal para conhecer desta causa, através dos tribunais tribu-
1 O recorrente inicia as suas conclusões de recurso alegando que tários.
a competência do Tribunal determina-se de acordo com os pedidos Pelo exposto, acordam em julgar competente para conhecer da pre-
formulados na petição inicial. Naquele articulado referiu que lhe eram sente acção os tribunais tributários.
devidas certas retribuições, pelo que limitou-se a invocar a relação labo- Sem custas.
ral existente entre ele e as recorridas, a qual é de natureza privada.
Vejamos. Lisboa, 19 de Outubro de 2006. — Carlos Alberto Andrade Betten-
Com efeito, no essencial, o recorrente pede que seja reconhecida a court de Faria (relator) — António Fernando Samagaio — Fernando
obrigação das recorridas de efectuarem determinado descontos para a Manuel Azevedo Moreira — Manuel Maria Duarte Soares — Rosendo
Caixa Geral de Aposentações. Ou seja, pretende obter a condenação Dias José.
destas a regularizarem a sua situação perante a Segurança Social, me-
diante a entrega dos devidos descontos.
No Acórdão deste Tribunal dos Conflitos nº 2/04 de 27.10.04 entendeu-
-se que “as contribuições para a Segurança Social, enquanto verdadeiras
quotizações sociais, não são impostos ou taxas (dos quais se distinguem
quanto aos objectivos, à estrutura jurídica e à própria cobrança) mas Acórdão de 26 de Outubro de 2006.
imposições parafiscais”.
Isto porque tais prestações inscrevem-se no universo das imposições
financeiras públicas a favor de organismos do Estado, ou de instituições Assunto:
investidas de autoridade pública que têm a seu cargo a realização de
acções necessárias à efectivação do direito à Segurança Social, como se Responsabilidade civil extracontratual. Pessoas colectivas de
considerou no Acórdão n° 3/06, também deste Tribunal dos Conflitos, direito público. Município. ICERR. Pedido de indemniza-
de 04.10.06. ção. Violação dos deveres de sinalização. Passeio público.
Assim e seguindo tal jurisprudência, temos que o objecto da presente Competência dos tribunais administrativos.
acção é a relação jurídica contributiva da qual emerge uma obrigação
da ré perante a Segurança Social. Sumário:
O art° 62° n° 1 alínea m) do ETAF, aprovado pelo DL 128/84 de 27/4
na redacção que lhe foi conferida pelo DL 229/96 de 29.11 - , atribui I — Nos termos da alínea g) do n.º 1 do artigo 4.º do actual
aos tribunais tributários competência para conhecer das “acções para Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF),
obter o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegidos aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na
em matéria fiscal”. redacção da Lei n.º 107-D/2003, de 31 de Dezembro,
Esta disposição é aqui aplicável, pelo que a apreciação do litígio compete aos tribunais da jurisdição administrativa a
inscreve-se na competência jurisdicional dos tribunais tributários.
apreciação de litígios que tenham por objecto questões
Aliás, normas de competência com o mesmo conteúdo encontram-se
nos art° 49° alínea c) e 4° nº 1 do ETAF aprovado pela Lei n° 13/2000 em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade
de 19.02. civil extracontratual das pessoas colectivas de direito
2 Invoca o recorrente que aquilo que pede é a apreciação duma relação público, quer, pois, por actos de gestão pública (como
jurídica laboral. no ETAF84) quer por actos de gestão privada praticados
Sendo certo que a prestação contributiva devida pela entidade empre- no exercício da função pública.
gadora tem como pressuposto a existência de um contrato de trabalho, II — Daí que sejam competentes os tribunais administrati-
a verdade é que essa obrigação concretiza-se através duma relação vos para conhecer de uma acção em que se pede uma
jurídica entre a mesma entidade e o Estado, que tem, como vimos, a indemnização a um município e ao ICERR para res-
natureza parafiscal. sarcimento de danos resultantes da queda da A. por o
Acresce que esta questão, embora resulte duma relação laboral, não passeio público por onde caminhava não se encontrar
respeita a direitos e deveres recíprocos das partes no contrato, a relações sinalizado de que estava em obras nem conter guarda
jurídicas entre elas directamente estabelecidas. Razão pela qual não
pode aqui ser aplicado o disposto no art° 85° alínea b) da LOFT, quando ou protecção de uma ravina adjacente.
estabelece a competência dos tribunais do trabalho para conhecer das
questões emergentes das relações de trabalho subordinado. Recurso n.º 18/06-70.
Acresce também que a alínea j) do mesmo art° 85° estipula a com- Requerente: Maria da Paz Garcia Fernandes, no conflito negativo
petência da jurisdição laboral para a apreciação das questões entre a de jurisdição entre o Tribunal Judicial da Comarca de Melgaço e os
Segurança Social e os seus beneficiários, mas não entre esta e os seus tribunais administrativos e fiscais.
contribuintes. Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. António Samagaio.
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Acordam no Tribunal de Conflitos tomia “actos de gestão pública - actos de gestão privada -, mas sim no
critério constitucional plasmado no art. 212°, n° 3 da Lei Fundamental,
MARIA DA PAZ GARCIA FERNANDES, viúva, residente no lugar
ou seja, compete aos tribunais dessa jurisdição especial o “julgamento
de Lamprejão, nº 350, Freguesia de Cristelo, concelho de Caminha,
de acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das
interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (posteriormente relações jurídicas administrativas”,
reencaminhado para este Tribunal de Conflitos) do acórdão do Tribunal X) Âmbito assim definido com apelo ao mesmo critério na legislação
da Relação de Guimarães, que, confirmando a decisão do Tribunal Infra-constitucional (conf, arts. 3° do ETAF 84 e 1° do ETAF 2002).
Judicial de Melgaço, concluiu pela incompetência desse Tribunal, em XI) Trata-se nos presentes autos de uma actividade, acto, comporta-
razão da matéria, para conhecer da acção declarativa de condenação sob mento ou conduta, vista da perspectiva de um lesado (terceiro) particular,
a forma de processo ordinário proposta contra o INSTITUTO PARA cuja avaliação, para efeitos do apuramento da respectiva responsabili-
A CONSERVAÇÃO E EXPLORAÇÃO DA REDE RODOVIÁRIA dade civil é regulada, por normas de direito privado, que não por normas,
(ICERR) E MUNICÍPIO DE MELGAÇO, para ser ressarcida dos princípios e critérios de direito público.
danos que lhe advieram da queda por uma ravina em consequência de se XII) Ora, a uma tal apreciação/avaliação não subjaz qualquer rela-
ter desequilibrado em virtude do passeio público por onde caminhava, ção jurídico-administrativa, uma relação jurídica regulada pelo direito
na cidade de Melgaço, se ter desmoronado parcialmente, resultando- público, mas uma mera relação jurídico-privada, como tal regulada
-lhe ferimentos por todo o corpo, não existindo no local e no passeio pelo direito privado.
em causa qualquer guarda ou protecção nem qualquer sinalização que XIII) Rege, neste domínio, o princípio de que os tribunais de jurisdição
indicasse que o passeio estava em obras, ou que existia perigo de queda ordinária, na circunstância os tribunais de comarca, são os tribunais-
para peões. -regra por força da delimitação negativa do nº 1 do art. 18° da LOFTJ
Alegou, tendo formulado as seguintes conclusões: 99, aprovada pala Lei nº 3/99 de 13/1 e do art. 66° do CPC, nos termos
“I) Na presente acção apenas contestou o Réu Município de Melgaço, dos quais “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não
tendo o mesmo invocado a excepção de incompetência absoluta, em sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”,
razão da matéria, dos tribunais civis. XIV) Regra/princípio ainda hoje aplicável a titulo subsidiário, tal
II) A excepção invocada foi julgada procedente pelo tribunal de 1ªª ins- como resulta do art. 7º do novo ETAF, aprovado pela Lei n° 13/2002
tância, que julgando os tribunais comuns incompetentes em razão da ma- de 19/2.
téria para conhecer da presente acção, absolveu os RR. da instância. XV) Trata-se, no fundo, da apreciação dos pressupostos da respon-
III) Ambos os RR. são pessoas colectivas de direito público. sabilidade civil extracontratual vasados no art. 483º e segs, do C. Civil.
IV) Considerou o tribunal a quo, aderindo aos fundamentos e teor da XVI) Trata-se de uma “questão de direito privado” - aquela que as
decisão proferida em 1ª -instância, que sendo ambos os RR. pessoas partes submeteram à apreciação do tribunal - ainda que ambos os RR.,
colectivas de direito público e, estando em causa a efectivação de res- alegadamente responsáveis, sejam pessoas de direito público, para uti-
ponsabilidade extracontratual, é aplicável a alínea g) do n° 1. do art. 4° lizar a expressão contemplada na al. f) do nº 1 do art. 4° do ETAF.
do ETAF, facto que determina que a competência para julgar a acção XVII) Questão essa que deve ser aferida por normas, princípios e
cabe aos tribunais administrativos. critérios próprios do direito privado, e, como tal, a respectiva dirimência
V) A agravante não se conforma com tal decisão. encontrar-se-á, por sua própria natureza, arredada da jurisdição especial
VI) Perante a conduta alegadamente atribuível às RR., enquanto ór- dos tribunais administrativos.
gãos públicos há, desde logo, que saber se as mesmas exerciam ou não XVIII) Acresce que, o n° 1 do art 7° do Dec.-Lei n° 558/99, de 17
um poder público enquanto entidades integradoras da Administração de Dezembro (a chamada Lei das Bases Gerais das Empresas Públicas)
do Estado, ou se agiram despidas dessa qualidade “status” tal como se prescreve que “sem prejuízo do disposto na legislação aplicável às
fosse uma entidade privada. empresas públicas regionais, intermunicipais e municipais, as empresas
VII) Os RR. mesmo sendo, como são, pessoas colectivas de direito públicas regem-se pelo direito privado, salvo no que estiver disposto no
público, podem limitar-se a exercer as suas atribuições em pleno pé de presente diploma e nos diplomas que tenham aprovado os respectivos
igualdade com os particulares, portanto desprovidos do poder de supre- estatutos”
macia que em principio lhes advém da sua qualidade de ente público XIX) Na ausência de preceito legal expresso de alcance geral (apli-
administrativo. Os actos assim praticados já seriam de qualificar como cável a todas elas) ou do respectivo estatuto em contrário, as empresas
de “gestão privada” públicas - todas elas - se encontram sujeitas ao direito privado, comun-
VIII) O verdadeiro “distinguit”, para efeitos da apreciação/avaliação gando desta natureza os actos jurídicos que as mesmas levam a cabo
de um certo acto, ou facto, causador de prejuízos a terceiros (particulares) nestas circunstâncias.
numa ou noutra das aludidas categorias (gestão privada/gestão pública) XX) O tribunal de 1ª instância é competente em razão da matéria
reside em saber se as concretas condutas alegadamente ilícitas e danosas para apreciar a matéria em discussão nos autos.
se enquadram numa actividade regulada por normas comuns de direito XXI) Não devia proceder a excepção de incompetência absoluta em
privado (civil ou comercial) ou antes numa actividade disciplinada por razão da matéria dos tribunais comuns.
normas de direito público administrativo. XXII) Deve ser revogada a Douta Decisão recorrida, porquanto viola,
IX) A “pedra de toque” para efeitos de determinação da competência nomeadamente, o disposto no n° 3 do art. 212º da Constituição da Re-
material dos tribunais administrativos não reside propriamente na dico- pública Portuguesa, bem como o art. 4°, nº 1, al. f) do ETAF”.
190 191

Os RR não contra-alegaram. seio público estava em obras ou que existia perigo de queda para peões,
O Ex.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do recurso nem existindo no mesmo qualquer guarda ou protecção relativamente à
ser improvido, e, em consequência, julgarem-se os tribunais adminis- ravina, consubstanciava actos de gestão pública, pelo que competentes
trativos como os materialmente competentes para o conhecimento da para conhecer da acção igualmente seriam os tribunais administrativos
acção, por os actos imputados aos RR serem de gestão pública. à luz do critério que toma por base os actos de gestão pública e actos
A) A A. interpôs, para o STJ, recurso do acórdão da Relação de Gui- de gestão privada.
marães, que, confirmando a decisão do tribunal judicial de Melgaço sobre Contra o assim decidido reagiu a A., ora Recorrente para quem, em
a sua incompetência em razão da matéria, por competente ser o tribunal síntese, os tribunais cíveis são os competentes em razão da matéria por
administrativo, negou provimento ao recurso. Tratando-se, porém, de a conduta dos RR ser regida por normas de direito privado – art. 483º e
um pré-conflito, nos termos do nº 2 do art. 107º do CPC, segundo o qual segs. do C.C. sobre os pressupostos da responsabilidade civil extracon-
“Se a Relação tiver julgado incompetente o tribunal judicial por a causa tratual - que não por normas, princípios e critérios de direito público à
pertencer ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, o recurso qual não subjaz qualquer relação jurídica administrativa, como estatui
destinado a fixar o tribunal competente é interposto para o Tribunal de o art. 212º, nº 3 da Constituição da República, sendo a existência desta
Conflitos”, pelo que não se deveria ter recorrido para o STJ. o traço distintivo entre a competência, em razão da matéria, dos tribu-
Tal não obsta ao conhecimento do recurso em causa por este Tribunal nais cíveis e os tribunais administrativos, pela responsabilidade civil
de Conflitos dado tratar-se de erro na sua espécie, face ao disposto no extracontratual das pessoas colectivas de direito público.
nº 3 (2ª parte) do art. 687º do CPC no qual se estatui que “(…) tendo-se Acrescenta, ainda, que o critério diferenciador da competência em
interposto recurso diferente do que competia, mandar-se-ão seguir os razão da matéria entre a jurisdição civil e administrativa é a existência
termos do recurso que se julgue apropriado”. de relação jurídica administrativa, pelo que não ocorrendo esta no caso
B) A A. intentou a presente acção contra o Município de Melgaço e vertente a competência é dos tribunais cíveis, por serem estes “os tri-
o ICERR sendo certo que a responsabilidade de um exclui a do outro. bunais–regra por força da delimitação negativa do nº 1 do art. 18º da
Aqui e agora, porém, apenas está em causa determinar qual o tribunal Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ)
competente para julgar a causa pelo que será aquele a decidir a questão aprovada pela Lei nº 3/99, de 13/01, segundo o qual são da competên-
da legitimidade dos RR. cia dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra
C) O ICERR, que sucedeu à JAE, foi extinto e integrado no IEP pelo ordem jurídica.
art. 1º, nº 1, do DL nº 227/02, de 30/10. Os factos pelos quais a A pede A A., porém, elabora em manifesto equívoco não obstante o seu
indemnização aos RR ocorreram em 21 de Abril de 2002 e a acção deu esforço, ao longo de várias páginas de alegações e de conclusões, para
entrada no tribunal a 15/04/2005, numa altura, pois, em que aquele
convencer da credibilidade da sua argumentação.
Instituto já não tinha existência legal. Esta é, porém, outra questão com
que este Tribunal não tem de ocupar-se pelas razões já expostas, pois O critério diferenciador da competência entre a jurisdição admi-
será, por certo, objecto de apreciação pelo tribunal competente. nistrativa e a jurisdição cível arrancava, na vigência do ETAF84, da
D) A competência dos tribunais determina-se pela forma como o A, existência, respectivamente, dos actos de gestão pública e de gestão
configura a acção, recortada esta pela respectiva causa de pedir e do privada, até à data em que entrou em vigor o actual Estatuto dos Tri-
pedido. bunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de
No caso vertente, a A. formula um pedido de indemnização contra os 19 de Fevereiro. Esta era a jurisprudência pacífica e abundante deste
RR. por danos causados numa queda por uma ravina em consequência de Tribunal de Conflitos. A título de exemplo cfr. Acs. de 4.4.2006, pro-
se ter desequilibrado em virtude do passeio público por onde caminhava, ferido no Proc. nº 08/03, de 25.10.2005, Proc. nº 06/04, de 3.11.2004,
na cidade de Melgaço, se ter desmoronado parcialmente, resultando- Proc. nº 028/03 e de 17.06.2003, Proc. nº 012/02, in www. dgsi.pt. Na
-lhe ferimentos por todo o corpo, não existindo no local e no passeio Doutrina, cfr., igualmente, por todos, Gomes Canotilho e Vital Moreira,
em causa qualquer guarda ou protecção nem qualquer sinalização que em anotação ao nº 3 do art. 212º “in” “Constituição da República Por-
indicasse que o passeio estava em obras, ou que existia perigo de queda tuguesa Anotada”, 3ª ed.
para peões. Trata-se, assim, de responsabilidade civil extracontratual Outro, porém, é o critério legal consagrado na alínea g), nº 1, do art. 4º
imputada aos RR pela A. do ETAF actualmente em vigor, desde 1 de Janeiro de 2004, quanto à
O acórdão recorrido, estribando-se no disposto na alínea g), nº 1, do competência dos tribunais administrativos no âmbito da responsabi-
art. 4º do novo ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, lidade civil extracontratual, que passou a abranger não só os actos de
segundo o qual compete aos tribunais da jurisdição administrativa e gestão pública como os actos de gestão privada das pessoas colectivas
fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto de direito público.
“Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil Estatui, efectivamente, esta norma sobre o âmbito da jurisdição ad-
extracontratual das pessoas colectivas de direito público (…) “concluiu ministrativa que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e
que, sendo os RR pessoas colectivas de direito público, eram os tribunais fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto.
administrativos os competentes para julgar a presente acção. “Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade
Anote-se, contudo, que o acórdão recorrido, concordando com a civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, in-
decisão do tribunal da 1ª instância, também concluiu que a conduta cluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função
imputada aos RR, ou seja, falta de sinalização que indicasse que o pas- legislativa”.
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Com a consagração deste critério no domínio da responsabilidade “questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil
civil extracontratual (que não também da contratual) o legislador pre- extracontratual” dessas pessoas.”
tendeu acabar com a morosidade processual resultante da determinação E mais adiante: “(…) diremos então (respeitando a intenção da lei atrás
do tribunal competente pois a distinção entre actos de gestão pública referida e a vontade expressa na “Exposição de Motivos” da Proposta
e actos de gestão privada nem sempre foi fácil de fazer pelos tribunais de Lei que veio dar origem ao ETAF) que, sempre que essas pessoas
administrativos e tribunais cíveis, originando inúmeros recursos para devam responder extracontratualmente por prejuízos causados a outrem,
este Tribunal de Conflitos. o julgamento da respectiva causa pertencerá à jurisdição administrativa,
Mário Aroso de Almeida, em “O NOVO REGIME DO PROCESSO independentemente da qualificação do acto lesivo como acto de gestão
NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVO”, 4ª ed., revista e actualizada, pública ou de gestão privada”
a págs. 99, salienta que: “a) Compete à jurisdição administrativa apre- Finalmente, Sérvulo Correia, in Direito do Contenciosa Adminis-
ciar toda e qualquer questão de responsabilidade civil extracontratual trativo I, a pág. 714, salienta que “No tocante à responsabilidade civil
emergente da actuação de órgãos da Administração Pública. É o que extracontratual, o ETAF adoptou critérios distintos para determinar o
claramente decorre do artigo 4º, nº 1, alínea g) do ETAF, que confere âmbito da jurisdição administrativa. Em relação às pessoas colectivas
aos tribunais administrativos uma competência genérica para apreciar públicas e aos respectivos titulares de órgãos, funcionários, agentes e
as questões de responsabilidade civil extracontratual das pessoas co- demais servidores públicos, privilegiou um factor de incidência sub-
lectivas de direito público”. jectiva. Independentemente da natureza jurídica pública ou privada da
E, mais adiante salienta: “Todos os litígios emergentes de actuações situação de responsabilidade, esta cabe no âmbito da jurisdição exercida
da Administração Pública que constituam pessoas colectivas de direito pelos tribunais administrativos só porque é pública a personalidade da
público em responsabilidade civil extracontratual pertencem, portanto, entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram
à competência dos tribunais administrativos”, invocando no mesmo os titulares de órgãos ou servidores públicos”.
sentido, em nota de rodapé (65) João Caupers, Introdução ao Direito Anote-se que, e ao contrário do que defende a A., mesmo os actos
Administrativo, 7ª ed., Lisboa, 2003, pág. 265. de gestão privada praticados no quadro de actividades funcionalmente
Também Santos Serra, Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tri- administrativas pelas pessoas colectivas de direito público, ou pelos
bunal Administrativo, numa intervenção em “A Nova Justiça Adminis- titulares dos seus respectivos órgãos, tais como os descritos na petição
trativa e Fiscal Portuguesa”, no Congresso Nacional e Internacional de inicial, dão lugar à existência de uma relação jurídico-administrativa,
Magistrados, VI Assembleia da Associação Iberoamericana dos Tribu- disciplinada pelo direito público, como, por exemplo, o DL nº 58 081,
nais de Justiça Fiscal e Administrativa, Cidade do México, 28 de Agosto de 21/11/1967, isto é, esta relação emerge de actos de gestão pública e
de 2006, refere, depois de descrever a evolução do nosso contencioso actos de gestão privada.
administrativo e tendo em mente o actual ETAF que” Existindo agora Forçoso é, pois, concluir que, após a entrada em vigor do actual ETAF,
uma cláusula positiva de demarcação da competência da jurisdição os tribunais administrativos são os competentes para apreciar as questões
administrativa, a fronteira entre justiça administrativa e a dita justiça de responsabilidade civil extracontratual, como é o caso, emergentes
comum sai clarificada, e os tribunais administrativos, esses, ganham da actuação de órgãos ou respectivos titulares de pessoas colectivas de
um espaço privativo de actuação – um conjunto nuclear de tarefas que direito público no exercício da função pública.
os torna, finalmente, verdadeiros e próprios tribunais, compondo uma É evidente que o Município contra quem a A. intentou a presente
jurisdição administrativa e fiscal autónoma, em tudo equivalente à acção é uma pessoa colectiva de direito público.
chamada jurisdição comum, inclusive no nível de garantias prestadas Quanto ao ICERR, contra quem a A. também demandou nestes au-
a quem se lhe dirige em busca de protecção. tos, igualmente não subsistem dúvidas que é uma pessoa colectiva de
Assim, e para dar apenas um exemplo, no plano da responsabilidade direito público, pois é dotado de autonomia administrativa e financeira
civil extracontratual, esse espaço de actuação inclui hoje: 1) todas as e de património próprio – nº 1 do art. 1º dos seus Estatutos, in anexo
questões de responsabilidade civil extracontratual da Administração, ao DL nº 237/99, de 25/06 –, que representa o Estado como autoridade
independentemente dessa responsabilidade emergir de uma actuação de nacional de estradas em relação às infra-estruturas rodoviárias nacionais
gestão pública ou de gestão privada; 2) as questões em que haja lugar a não concessionadas, competindo-lhe zelar pela manutenção permanente
responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito de condições de infra-estruturação e conservação e de salvaguarda do
público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e Estatuto da Estrada, que permitam a livre e segura circulação – nº 2 do
da função legislativa”. art. 5º daquele DL - , que tem como atribuições fundamentais, entre
Igualmente em “Código do Processo nos Tribunais Administrativos outras, “Assegurar a conservação e exploração das estradas e pontes
e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados”, vol, I, nacionais sob a sua jurisdição” – a), nº 1 do art. 4º, do seu referido
pág. 59, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, sus- Estatuto - o qual para o exercício das suas atribuições detém poderes,
tentam que “Segundo a actual redacção desta alínea g) – posta pela Lei prerrogativas e obrigações conferidos ao Estado pelas disposições legais
nº 107-D/2003 (de 31.XII) com o propósito de esclarecer pela positiva e regulamentares aplicáveis quanto, “inter alia”, “À responsabilidade
as dúvidas que a redacção inicial do preceito suscitava em relação à civil extracontratual , nos domínios dos actos de gestão pública” – h),
inclusão no âmbito da jurisdição administrativa das acções de respon- nº 3, ainda daquele diploma legal.
sabilidade por actos de gestão privada das pessoas colectivas de direito Por outro lado, a presente acção foi proposta a 15 de Abril de 2005,pre-
público -, pertencem à jurisdição administrativa, em primeiro lugar, as tendendo a A., através dela, fazer valer, a seu favor, a responsabilidade
194 195

civil extracontratual dos RR, porquanto pede uma indemnização pelos confirmou a sentença proferida em lª instância, tendo julgado improce-
danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de ferimentos vários dente as alegações de recurso formuladas pelo ora recorrente.
que lhe advieram da queda por uma ravina em consequência de se ter 2.° - Nos presentes autos, e já na sentença recorrida, o Tribunal
desequilibrado em virtude do passeio público por onde caminhava, na julgou-se incompetente em razão da matéria, relativamente ao pedido
cidade de Melgaço, se ter desmoronado parcialmente, tendo aqueles formulado contra o Estado Português, entendendo que a apreciação
violado o dever de sinalização de obras em que se encontrava ou que daquele pedido cabe aos Tribunais Administrativos.
existia perigo de queda para os peões, violando ainda o dever de colo- 3.° - A presente acção foi proposta contra o então Instituto de Acção
cação de guarda ou protecção da ravina. Social Escolar, que tinha sido criado e se regulava pelos D.L. nº. 178/71
Consequentemente, sendo os RR. pessoas colectivas de direito público de 30 de Abril e pelo D.L. n.º 223/73 de 11 de Maio, tendo sido objecto
e pretendendo a A. accionar a responsabilidade civil extracontratual dos de indeferimento liminar.
mesmos, face ao disposto na alínea g), nº 1, do art. 4º do actual ETAF, 4.° - Desse despacho o recorrente recorreu para o Tribunal da Re-
é a jurisdição administrativa a competente para conhecer da presente lação de Lisboa, tendo este decidido que assistia razão ao recorrente,
questão, como o seria na vigência do ETAF84, por se tratar de acto ou mandando prosseguir os autos.
actos de gestão pública. 5.° - Considerando a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, está
Pelo exposto, e sem necessidade de mais desenvolvidas considera- subjacente à mesma, o reconhecimento da competência dos Tribunais
ções, acordam em negar provimento ao presente recurso jurisdicional, comuns para a apreciação do pedido formulado contra o Instituto de
confirmando o acórdão recorrido, e declarar competentes os tribunais Acção Social Escolar.
administrativos para conhecer da presente acção. 6.° - Pois se assim não fosse, deveria desde logo a Relação de Lisboa
Sem custas. ter decidido no sentido da absolvição da instância quanto ao segundo
Lisboa, 26 de Outubro de 2006. — António Fernando Samagaio réu, o Instituto, se efectivamente entendesse que a competência cabia
(relator) — António Fernando da Silva Sousa Grandão — José Antó- aos Tribunais Administrativos, o que não aconteceu e os autos pros-
nio de Freitas Carvalho — Manuel Maria Duarte Soares — Edmundo seguiram.
Moscoso. 7.° - No decorrer do processo e por causa da extinção do antigo Insti-
tuto de Acção Social Escolar, foi julgado habilitado nos presentes autos
o Estado Português, uma vez que foi este que sucedeu nas atribuições
e competências do antigo Instituto.
Acórdão de 2 de Novembro de 2006. 8.° - Porém, e tal como consta do D.L. n.º 178/71 de 30 de Abril e
do D.L. nº. 223/73 de 11 de Maio, o Instituto gozava de personalidade
Conflito n.º 6/06. jurídica e gozava de autonomia administrativa e financeira.
Requerente: Paulo Jorge Gomes Taveira Lima no conflito negativo 9.° - Por esse motivo, entendia a jurisprudência e a doutrina que
de jurisdição entre o 2.° Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca para apreciar e decidir a responsabilidade do Instituto de Acção Social
do Seixal e os tribunais administrativos e fiscais. Escolar, eram competentes os Tribunais comuns e não os Tribunais
Relator: Ex.mo Cons. Dr. Marques Benardo. Administrativos.
10.° - Foi por esse motivo que a presente acção foi intentada no Tri-
Acordam, em conferência, no Tribunal de Conflitos: bunal comum, também na parte em que se pede a condenação daquele
I- Instituto a indemnizar o ora recorrente.
Na presente acção, intentada por Heitor Taveira Lima e mulher Maria 11.° - E considerando que a legislação aplicável ao Instituto lhe confe-
Antónia Rosa Gomes Lima (cujo posição processual foi assumida pelo ria personalidade jurídica e autonomia administrativa e financeira, bem
filho quando atingiu a maioridade Paulo Jorge Gomes Taveira Lima) como, que a jurisprudência e a doutrina entendiam igualmente que os
contra Joaquim Alves Pereira Neto (entretanto habilitado por ter falecido) Tribunais competentes eram os Tribunais comuns, deverá entender-se,
e Estado (por sucessão do Instituto de Acção Social Escolar, que teve que continuam a ser os Tribunais comuns os competentes para apreciar
sede na R. Duque d’Ávila, 135 Lisboa, o Tribunal do Seixal proferiu e decidir a responsabilidade do Instituto no que respeita à indemnização
sentença em que: a pagar ao ora recorrente.
Absolveu da instância por incompetência material o Estado; Absolveu 12.° - Na douta sentença de 1ª instância, invoca-se o art. 17.° da
do pedido os demais RR. Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo aprovada pelo DL
O A. Recorreu, mas o Tribunal da Relação confirmou totalmente a nº. 40.768 de 8 de Setembro de 1956.
decisão. 13.° - Porém, aquele artigo aplicava-se, tal como constava expressa-
Recorreu novamente, agora para o Supremo Tribunal de Justiça, con- mente do mesmo, aos contratos administrativos e bem como às acções
tinuando a insurgir-se, quer contra a absolvição da instância do Estado, destinadas a efectivar a responsabilidade do Estado ou de instituto
quer quanto à absolvição do pedido dos outros, como se pode ver das público no âmbito desses mesmos contratos administrativos.
conclusões das alegações que são do seguinte teor: 14.° - O que significa que aquele artigo não se aplicava ao caso
1.° - O presente recurso de revista vem interposto do douto Acórdão concreto dos presentes autos, pois não estava em causa um contrato
proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa nos presentes autos, que administrativo, estando em causa, sim, um contrato de seguro, figura
196 197

jurídica do direito privado, e como tal da competência dos Tribunais 7. A acção foi indeferida liminarmente com o fundamento em ma-
comuns. nifesta improcedência;
15.° - Para além do acima exposto, há que considerar que nos pre- 8. Este despacho foi revogado pelo Tribunal da Relação, por entender
sentes autos o Tribunal declarou-se competente em razão da matéria no que este fundamento não podia ser tido em conta em acções, como
despacho saneador, por duas vezes, conforme se pode constatar a fls. 59 esta, sumárias;
e a fls. 283 dos presentes autos. 9. A dado passo da tramitação que se seguiu, o filho do autor atingiu
16.º - Assim, e no momento que a lei confere para esse efeito, o Tri- a maioridade e assumiu a parte activa da acção.
bunal não se declarou incompetente em razão da matéria, relativamente 10. A folhas 109 foi proferido despacho saneador em que se julgou
ao peticionado contra o Instituto de Acção Social Escolar, sendo que até o tribunal “absolutamente competente”.
dispôs de duas ocasiões para o efeito, declarando-se expressamente, em 11. A folhas 203 e seguintes foi deduzido articulado superveniente,
ambas as ocasiões, competente. ampliando-se o pedido.
17.° - Pelo exposto, deve concluir-se que os Tribunais comuns são 12. A folhas 262 foi considerado habilitado o Estado Português
competentes para conhecer do pedido formulado pelo recorrente contra -Ministério da Educação em substituição do extinto Instituto de Acção
o Instituto de Acção Social e Escolar, devendo ser proferida decisão de Social Escolar.
mérito quanto a esse aspecto da presente causa. 13. A folhas 276 e 277 foram declarados nulos todos os actos pro-
18.°- A presente acção foi julgada improcedente no que se refere à cessuais posteriores ao despacho que designou dia para uma tentativa
responsabilidade dos recorridos, porque o Tribunal “a quo” entendeu de conciliação.
que não ficou provado que o pai do Fernando Neto não tenha cumprido 14. A folhas 283 foi proferido novo despacho saneador em que se
o seu dever de vigilância. declarou o “tribunal competente em razão da matéria, da hierarquia e
19....... da nacionalidade”.
Contra-alegou o Digno Magistrado do Mº. Pº. junto do Tribunal da 15. A folhas 365 teve lugar nova ampliação do pedido.
Relação, rebatendo os argumentos invocados e entendendo, no que nos 16. A folhas 445 foi proferida a sentença. Absolveu-se o R. Estado
importa, que são os tribunais administrativos os competentes, sem que da instância por incompetência do tribunal em razão da matéria. E
haja, nomeadamente, caso julgado formal em sentido contrário. absolveram-se os demais RR do pedido.
Entendeu-se, todavia, no Supremo Tribunal de Justiça que o Tribunal 17. Houve recurso, mas o Tribunal da Relação julgou-o improce-
dente.
competente para decidir do conflito era o Tribunal de Conflitos, atento
18. Foi interposto novo recurso para o Supremo Tribunal de Jus-
o disposto no nº. 2 do art. 107º do CPC.
tiça.
II - 19. Aqui entendeu-se que a questão - que vinha levantada - da com-
Temos, pois, que decidir se: petência dos tribunais judiciais para conhecimento do pedido relativo ao
Quanto ao pedido relativo ao, então existente, Instituto de Acção Estado cabia ao Tribunal de Conflitos nos termos do nº. 2 do art. 107.°
Social Escolar e agora, por sucessão, ao Estado, são competentes os do CPC.
tribunais judiciais ou os tribunais administrativos. ......................................................................................
III – IV -
Os factos, retirados dos elementos do processo, são os seguintes: A presente acção foi instaurada em 22.11.1984, de sorte que a ques-
1. No dia 22.11.1984 deu entrada no Tribunal Judicial do Seixal a tão da competência que se discute terá, antes do mais, que ser fixada
presente acção; no tempo.
2. Intentada por Heitor Taveira Lima e mulher Maria Antónia Rosa Esta fixação vai encontrar tradução no art. 63.° do CPC na redacção
Gomes Lima contra Joaquim Alves Pereira Neto (entretanto habilitado de 1961. Esta regra teve sequência no art. 18.º da Lei nº. 38/87, de 23.12
por ter falecido) e Instituto de Acção Social Escolar, com sede na R. e actualmente temos o artº.22º. da Lei nº. 3/99, de 13.1.
Duque d’Ávila, 135 Lisboa; As redacções dos preceitos que se sucederam nem sempre foram
3. Pedindo a condenação solidária dos RR a pagar-lhes a indemnização coincidentes e dúvidas houve de interpretação, mas tudo passa à margem
de 397 mil escudos; do presente caso.
4. Em virtude dos danos corporais sofridos pelo filho deles, Paulo É incontroverso que a competência terá de ser aferida tendo em conta
Jorge Gomes Taveira Lima - que frequentava a Escola Secundária do as normas vigentes no dia da instauração da acção.
Seixal - emergentes de agressão com uma pedra por parte do menor V-
Fernando Carlos Rodrigues Neto; Vigorava, em 1984, a Lei Orgânica do Supremo Tribunal Adminis-
5. Quando o filho se encontrava a descer as escadas de acesso à Escola trativo, aprovada pelo DL nº 40.768, de 8.9.1956.
Secundária de Amora. Cujo art. 17.° dispunha que são propostas nas auditorias administra-
6. Alegando, nomeadamente, que “Ao Instituto de Acção Social Es- tivas as acções que tiverem por objecto efectivar a responsabilidade do
colar está confiada a prestação de serviços de seguro escolar de todos Estado ou de institutos públicos.
os alunos inscritos no serviço escolar oficial dependente do Ministério Já estava, outrossim, estabelecida a distinção entre responsabilidade
da Educação”. do Estado e demais pessoas colectivas públicas por gestão privada
198 199

e por gestão pública. Além vigorava o art. 501.° do CC e aqui o DL seguradora e a respectiva cobertura financeira, na diversas modalidades
nº. 48 051, de 21.11. de seguro aplicáveis ao estudante, enquanto tal.
Este DL conferiu, no art. 10.°, nº. 2, nova redacção à alínea b) do No seguimento destas disposições, veio a lume a Portaria nº.703/79,
§ 1.° do art. 815.° do Código Administrativo, reportando o contencioso de 26.12 que aprovou o Regulamento de Acção Social Escolar nos Es-
administrativo à responsabilidade por actos de gestão pública. tabelecimentos de Ensinos Preparatório e Secundário e nas Escolas do
Resume-se, pois, já então, a questão da competência que aqui se nos Magistério Primário, a qual, no nº. 6, estatuía que o seguro escolar tem
levanta a saber se estamos perante actos de gestão pública ou de gestão como objectivo, para além duma política de prevenção de acidentes,
privada. Conforme jurisprudência deste Tribunal de Conflitos expressa a garantia da transferência de responsabilidade civil, sempre que os
no Ac. de 5.11.1981 (BMJ 311, 195). mesmos se verifiquem.
VII - IX -
Deste aresto podemos recolher as definições - ali profusamente fun- A própria lei alude aos “poderes” e, de todo o contexto destes diplo-
damentadas - de actos de gestão pública e actos de gestão privada. mas, resulta reforçada a ideia de que o exercício da competência que
Os primeiros são “os praticados pelos órgãos ou agentes da Adminis- determinou que o IASE fosse demandado na presente acção nos situa
tração no exercício de um poder público, ou seja, no exercício de uma dentro do conceito de gestão pública, a nosso ver, bem longe mesmo
função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que da fronteira com a gestão privada.
não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção”. X-
Os segundos correspondem ao “praticados pelos órgãos ou agentes Depois, sucederam-se vários Diploma no tempo.
da Administração em que esta aparece despida de poder público e, Por um lado, foi extinto o IASE, passando as suas competências para
portanto, numa posição de paridade com o particular ou particulares o Estado (al. j) do art.20º. do DL nº. 133/93, de 26.4);
a que os actos respeitam e, daí, nas mesmas condições e no mesmo Por outro entraram em vigor o ETAF, a Lei. de Processo dos Tribunais
regime em que poderia proceder um particular, com inteira submissão Administrativos e Fiscais e, já mais recentemente, as que integram a
às normas de direito privado”. chamada Reforma do Contencioso Administrativo.
A diferença tem sido constantemente objecto de decisões do Supremo Nenhuma destas leis bole com a nossa construção, atento, logo à
Tribunal Administrativo, mas mantém-se, no essencial, firme ao longo partida, o que ficou dito em IV.
do tempo, a linha de fronteira. De entre muitos, pode-se atentar no Ac. Mas, se carecêssemos de atentar no respectivo conteúdo, conferindo-
de 2.2.05 sumariado em www.dgsi.pt. -lhes a categoria de normas interpretativas, não teríamos de alterar os
VIII - nossos parâmetros de raciocínio. A diferença entre gestão pública e
O Instituto de Acção Social Escolar foi criado pelo DL nº. 178/71, gestão privada continuou a ser a pedra de toque distintiva das com-
de 30.9, alterado pelo DL nº. 223/73, de 11.5. petências.
Segundo o art. 1.°, nº. 1 do primeiro daqueles normativos, o IASE XI -
tinha por fim possibilitar os estudos a quem tenha capacidade intelectual Toda esta construção cederia se se considerasse o caso julgado formal
para os prosseguir, bem como proporcionar aos estudantes em geral derivado:
condições propícias para tirarem dos estudos o máximo rendimento. Do acórdão da Relação que revogou o despacho de indeferimento
Para tal - e já no art. 2.° - dispõe-se que: liminar; Ou
1. Na realização da finalidade referida no artigo anterior, são atri- Da declaração de competência material do tribunal judicial levada a
buições do Instituto de Acção Social Escolar o estudo da problemática cabo no despacho saneador de folhas 283.
global da acção social escolar e execução no âmbito do Ministério da XII -
Educação Nacional, da política de acção social escolar definida pelo Quanto à primeira hipótese não há, no dito acórdão, qualquer refe-
Governo. rência à competência. A acção havia sido indeferida por manifestamente
2. Para tanto, compete ao Instituto de Acção Social Escolar praticar improcedente e o tribunal superior decidiu que, tratando-se de acção
todos os actos necessários ou convenientes à integral prossecução das sumária, tal fundamento não era pertinente.
suas atribuições e, em especial, exercer os poderes de administração, XIII -
de cooperação, de superintendência e de prestação enumerados nos Quanto à segunda, vigorava, então e já ao tempo de propositura
artigos seguintes. da acção, o nº. 2 do art. 104.° do CPC que dispunha que o despacho
No art. 6.° refere-se que, no exercício da sua competência de pres- saneador só constituía caso julgado em relação às questões concretas
tação, pertence ao Instituto criar os serviços necessários à realização, de competência que tenham sido decididas.
em benefício da população estudantil, das prestações de acção social Interpretando-o, foi proferido o Assento do STJ de 1.2.1963 no sen-
escolar, entre as quais, e agora já no art. 7.°, nº. 3 f), se inclui a prestação tido de que é definitiva a declaração em termos genéricos, no despacho
relativa a seguros. saneador transitado, relativamente à legitimidade, salvo a superveniência
E é no prosseguimento dessa competência que - de acordo com o de factos que nela se repercutam.
art. 16.° do segundo daqueles diplomas - toma sob a sua dependência o Face a este Assento dividiram-se as opiniões:
Fundo Nacional do Seguro Escolar, criado pelo Decreto-Lei nº. 24618, Para uns, a sua interpretação devia estender-se a qualquer questão de
de 29.10.1934. Fundo este definido naquele mesmo art. 16.° como um forma decidida em termos genéricos no saneador (Prof. Castro Mendes,
serviço que se destina a garantir, em regime de mutualidade, a actividade Direito Processual Civil, Lições de 1971-72, III, 162);
200 201

Para outros, não devia estender-se, continuando a valer o que resul- Sumário:
tava da interpretação puramente literal daquele nº. 2 (Prof. A. Varela e
Outros, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 395). I — O critério para a repartição de competência entre tri-
Cremos nós que discussão terá terminado com o Assento (hoje com bunais administrativos e tribunais judiciais para co-
força de Acórdão Uniformizador) do STJ de 27.11.1991, publicado no nhecimento de acções de responsabilidade civil extra-
Diário da República, I Série, de 11.1.1992. Só a decisão sobre as questões contratual do Estado por factos ocorridos no domínio
concretamente apreciadas faz caso julgado. da actividade dos tribunais passa pela distinção entre
Aquele art. 104.° foi revogado, mas temos idêntico texto no art. 510.°, os casos em que estando em causa a responsabilidade
nº. 3 do CPC. emergente da função de julgar, e todos os outros actos
Não há caso julgado que impeça a confirmação da decisão de incom- e omissões de juízes, bem como toda a actividade e
petência que teve lugar no acórdão recorrido. actuação dos restantes magistrados, órgãos e agentes
XIV - estaduais que intervenham na administração da justiça,
Não podemos, todavia, deixar de expressar que esta solução leva a em termos de relação com os particulares ou outros
grande injustiça. órgãos e agentes do Estado, e, portanto, sejam estranhos
Depois de mais de 20 anos de pendência da acção, o autor vê-se con- à específica função de julgar.
frontado com uma declaração de absolvição da instância do Estado. II — Na primeira situação a competência cabe aos tribunais
Decerto que o legislador não deixou de atender à economia proces- judiciais, pois os actos e actividades próprias dos juízes
sual e permitir no nº. 2 do art. 105.° do CPC que se aproveite parte do na sua função de julgar são praticados no exercício
tramitado, desde que haja acordo das partes nesse sentido. específico da função jurisdicional e não da função ad-
O Estado, que através dos seus órgãos não conseguiu proporcionar ministrativa.
ao autor uma decisão transitada em tempo útil, terá talvez um débito III — Nas restantes situações, a competência cabe aos tribu-
ético no sentido desse acordo. nais administrativos, uma vez que tais actividades se
Mas isso transcende - é mais que evidente - o objecto do presente inscrevem nos conceitos de actos e actividades admi-
recurso. nistrativas ou de «gestão pública administrativa», da
XV - competência da jurisdição administrativa.
Independentemente disso, há a considerar que no recurso de revista, o IV — Assentando a causa de pedir em omissões de respon-
autor impugna também a absolvição do pedido que visou o outro R. sabilidade difusa ou repartida (v. g. não comunicação
Deve o processo, também por isso, voltar ao Supremo Tribunal de das penhoras ao processo executivo em que a penhora
Justiça. foi efectuada em primeiro lugar), bem como em defi-
XVI - ciente cumprimento de despacho judicial por parte de
Nestes termos: oficiais de justiça (v. g. venda de bens penhorados por
Nega-se provimento ao recurso do Acórdão da Relação de folhas 536 negociação particular em vez de carta fechada, como
e seguintes, na parte em que manteve a decisão, vinda da 1ª instância, fora ordenado, são os tribunais administrativos os com-
de julgar o tribunal judicial incompetente em razão da matéria para petentes para o conhecimento da acção proposta.
conhecimento do pedido contra o Estado, por competentes para tanto
serem os tribunais administrativos. Conflito n.º 3/05-70.
Quanto ao mais, determina-se que, após trânsito, os autos se remetam Requentes: Arnaldo dos Santos Ruivo e João Tomás Cardoso, no
ao Supremo Tribunal de Justiça. conflito negativo de jurisdição, entre o Tribunal Judicial da Comarca
Sem tributação. de Águeda e os Tribunais Administrativos e Fiscais.
Lisboa, 2 de Novembro de 2006. — João Luís Marques Bernardo Relator: Ex.mo Cons. Dr. Freitas Carvalho.
(relator) — Rosendo Dias José — Abílio Vasconcelos de Carvalho —
Jorge Manuel Lopes de Sousa — José Rodrigues dos Santos — Alberto Acordam no Tribunal de Conflitos:
Acácio de Sá Costa Reis. Arnaldo dos Santos Ruivo e João Tomás Cardoso, identificados nos
autos, recorrem para este Tribunal de Conflitos, ao abrigo do artigo 107,
do C. P. Civil, do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de
Acórdão de 29 de Novembro de 2006. fls.541 e seg.s, que negou provimento ao agravo interposto da decisão
do Tribunal Judicial da Comarca de Águeda que julgou o Tribunal
incompetente, em razão da matéria, para conhecer do pedido de indem-
Assunto: nização por ele formulado na acção ordinária que intentaram contra o
Acção de responsabilidade civil extracontratual do Estado. Estado Português.
Actividade respeitante a administração de justiça. Actos Pedem a revogação do acórdão recorrido e a resolução do conflito com
e actividades estranhos a função de julgar. Competência a atribuição da competência aos tribunais comuns, no caso ao Tribunal
em razão da matéria. Judicial da Comarca de Águeda, onde a acção foi proposta.
202 203

Os recorrentes concluem as suas alegações da forma seguinte: No mesmo sentido se pronunciou o Exmº Procurador Geral Adjunto
1. Os Recorrentes interpuseram acção contra o Estado Português junto deste Tribunal, emitindo parecer que se passa a transcrever na
por actos e omissões praticados no exercício da função jurisdicional parte relevante:
na jurisdição comum; “É vasta a jurisprudência relativa à questão da delimitação da com-
2. O Meritíssimo Juiz da 1ª instância declarou-se absolutamente petência material das jurisdições administrativas e comuns para o
incompetente, deferindo a competência para a apreciação da acção à conhecimento de acções de responsabilidade civil extracontratual do
jurisdição administrativa; Estado por factos ocorridos no domínio da actividade dos tribunais,
3. Em recurso, o Tribunal da Relação manteve nos seus precisos do que é demonstrativo as variadas decisões judiciais a esse respeito
termos a decisão da 1ª instância; proferidas no STA, STJ e neste Tribunal de Conflitos que já foram citadas
4. Compete, agora, a este Tribunal de Conflitos fixar definitivamente em diversas peças processuais nestes autos.
a competência para o conhecimento da acção — artigo 107°, n° 2, do Ora, afigura-se-me consubstanciar ideia-força que subjaz a essa
Código de Processo Civil; produção jurisprudencial que o critério decisivo para a repartição da
5. A Lei n° 13/2002, de 19/02, introduziu alterações no Estatuto dos competência entre os tribunais administrativos e judiciais passa pela
Tribunais Administrativos e Fiscais, passando a prever expressamente determinação da causa de pedir em cada uma das acções intentadas.
que compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de Assim, a competência será dos tribunais judiciais quando a causa
litígios que tenham por objecto questões em que, nos termos da lei, haja de pedir seja um facto ilícito imputado a um juiz no exercício da sua
lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de função jurisdicional (ou seja, quando é instado a resolver uma questão
direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicio- de direito), será dos tribunais administrativos quando se reporte a um
nal — artigo 4°, n° 1, al. g); facto ilícito imputado a um órgão da administração judiciária ou a um
6. Porém, à data da propositura da acção - 20/06/2003 -, dominava serviço globalmente considerado, a que é estranha a função de julgar
na jurisprudência administrativa o entendimento de que os tribunais - cfr., entre outros, os já citados acórdão do tribunal de Conflitos de
administrativos apenas conheciam dos conflitos de interesses públicos 30-0496 e 23-01-01, nos conflitos n.°s 266 e 294.
e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas — artigo 3° Sabendo-se que a questão da competência material dos tribunais
do ETAF (Decreto-Lei n° 129/84 de 27 de Abril) e artigo 214°, n° 3, da administrativos e judiciais se afere pelos termos da relação jurídica-
Constituição da República Portuguesa; -processual apresentada em juízo, aí relevando a causa de pedir confi-
7. Entendendo-se por relações administrativas as que emergem dos gurada e a pretensão deduzida, importará de seguida apurar se no caso
vínculos que se estabelecem entre os órgãos, agentes ou entidades ad- sob apreciação a causa de pedir na acção intentada pelos recorrentes
ministrativas e os particulares e/ou entre órgãos, agentes ou entidades se traduz num facto ilícito decorrente da função de julgar ou se, ao
administrativas distintas, no âmbito do exercício da função administra- invés, o dever do Estado indemnizar os recorrentes resulta do mau
tiva do Estado stricto sensu; funcionamento da sua “máquina de administração da justiça” como
8. Os actos praticados no âmbito da função jurisdicional estariam, se concluiu no acórdão em recurso.
assim, pela sua natureza e qualidade excluídos da função administrativa A elucidação desta questão, a meu ver, não é isenta de algumas
do Estado stricto sensu; dificuldades.
9. E não se poderiam configurar como actos de gestão pública qua Na verdade, a causa de pedir na acção concretiza-se num quadro
tale. factual de alguma complexidade em que interferem actos de raiz juris-
Contra alegou o Exmº Magistrado do M.º P.º junto do Tribunal da dicional (v.g. despacho judicial a suspender a execução), com omissões
Relação de Coimbra, concluindo pela improcedência do recurso in- de responsabilidade difusa ou repartida (v.g. não comunicação das
terposto, sustentando que, de acordo com Jurisprudência do Supremo penhoras ao processo executivo em que a penhora foi efectuada em
Tribunal Administrativo, que cita, “haverá ainda que distinguir entre as primeiro lugar), bem como em deficiente cumprimento de despacho
acções de responsabilidade civil extracontratual, por danos decorrentes judicial por parte de oficiais de justiça (v.g. venda de bens penhorados
e causados pela prática de actos específicos das respectivas funções por negociação particular em vez de carta fechada, como fora orde-
pelos juízes e pelos magistrados do M°P° designadamente, em processos nado). De todo o modo, antes que de um ou outro facto ou omissão
criminais, em que será competente a jurisdição comum, e acções em individualmente considerado, a causa de pedir na acção reconduz-se
que não esteja em causa qualquer decisão, mas apenas o ressarcimento e assenta, na sua essência, no deficiente funcionamento da “máquina
de danos causados pela falta da sua prolação em prazo razoável, ou em judiciária” do Estado (entendida esta como um todo orgânico e funcio-
que causa de pedir sela um facto ilícito imputável a um órgão da admi- nal) — cfr. artigos 10º, 12.°, 39.°,48.°,53.º,54.º,55.°,61.°,62.°, 66.°,74.°
nistração judiciária, globalmente considerado, casos esses em que serão e 106.° da petição inicial.
competentes os tribunais administrativos”, pelo que “em casos como o Nesta conformidade, sou de parecer que os tribunais administrativos
dos presentes autos, em que a responsabilidade pedida ao Estado, não devem ser declarados os competentes para conhecer e julgar a acção de
decorre de facto ilícito imputado a um juiz na sua função de julgar, mas responsabilidade civil extracontratual instaurada no Tribunal Judicial
sim de danos resultantes de actos e omissões de funcionamento de um de Águeda.”
órgão da administração judiciária (globalmente considerado), se deva II. Os AA., aqui recorrentes, intentaram, no Tribunal Judicial de
entender que a competência para o julgamento da acção é dos tribunais Águeda, contra o Estado Português acção comum sob a forma ordinária
administrativos e não dos tribunais comuns.” pedindo a condenação deste a pagar a quantia de € 29.728,35 ao Autor
204 205

João Cardoso e a quantia de € 29.209,60 ao Autor Arnaldo Ruivo, ambas III. No presente recurso os recorrentes, invocando o entendimento da
a título de danos patrimoniais, bem como a quantia de € 12.500,00 a jurisprudência administrativa no sentido de que os tribunais administra-
cada um deles, para compensação dos danos não patrimoniais, todas elas tivos, à data da propositura da acção (em que estava em vigor o ETAF
acrescidas de juros legais contados a partir da data da data da citação, aprovado pelo Decreto-Lei n° 129/84 de 27 de Abril), apenas conheciam
até integral pagamento, alegando, em síntese, o seguinte: dos conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações
- em 13-03-2001, os recorrentes intentaram uma acção executiva do jurídicas administrativas, nos termos do artigo 3°, de referido ETAF, e
Tribunal do Trabalho de Águeda contra a sociedade Galop — Indústria artigo 214°, n° 3, da CRP, sustentam que, integrando-se os actos prati-
para Veículos de Transporte, Lda, para quem trabalharam, com vista cados no âmbito da função jurisdicional, estariam, pela sua natureza e
à cobrança coerciva dos créditos laborais sobre esta, à qual coube o qualidade, excluídos da função administrativa do Estado stricto sensu,
n° 2-B/2001, onde, por despacho de 16-03-2001, foi convertido em não se podendo configurar como actos de gestão pública qua tale, pelo
penhora o arresto da máquinas e equipamentos e do direito de arren- que, ao contrário do decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, deve
damento e trespasse do estabelecimento pertencentes à executada, an- ser declarado competente o Tribunal Judicial de Águeda
teriormente decretado; Vejamos.
- por despacho de 10-01-2002, foi ordenada a suspensão dessa execu- A posição sustentada pelos recorrentes corresponde à chamada tese
ção nos termos do art. 93º do CPT e a comunicação ao processo executivo judicialista, segundo a qual, por força dos princípios constitucionais e
n° 109-A/2000, nos termos e para os efeitos do n° 2 desse preceito; da separação de poderes e da independência dos tribunais, os tribunais
- dos bens penhorados na acção em que são exequente, apenas administrativos só teriam competência para julgar questões inerentes
dois deles (verbas n°s 1 e 6) tinham penhora anterior na execução aos actos e actividades de “gestão pública” em sentido estrito, isto é,
n.º 109-A/2000, pelo que, em 28-02-2002, pediram a aclaração daquele actos e actividades da Administração Pública, excluídos os praticados
despacho, sem resposta até ao presente; por quaisquer órgãos do Estado no âmbito das funções política, le-
- a execução 2-B/2001 foi sustada até à venda naquele processo gislativa, jurisdicional e parajurisdicional, caso em que o julgamento
n.º 109-A/2000; das acções de responsabilidade civil extracontratual emergente de
- em início de Outubro de 2002, tomaram conhecimento que todos acções ou omissões desses órgãos ou agentes seria da competência
os bens em causa já haviam sido vendidos e que tal ocorreu na exe- dos tribunais judiciais.
cução n° 229-A/2000 desse mesmo Tribunal, em que era exequente o Tal corrente jurisprudencial, foi, porém, objecto de análise no acórdão
Ministério Público e onde também haviam sido penhorados, tendo sido de 12-05-1994, deste Tribunal de Conflitos, proferido no Proc. n.º 266,
já repartido o respectivo produto; in Ap DR de 30-04-1966, que, depois de enunciar e criticar os funda-
- apresentaram requerimentos pugnando pela nulidade das omissões mentos das duas teses opostas que, então, dividiam a jurisprudência
praticadas na execução 2-B/2001 e dos actos praticados na execução – a que chamou “judicialista” e “administrativista”, respectivamente
229-A/2000, tendo o respectivo Juiz respondido encontrar-se esgotado - discorreu nos seguintes termos:
o seu poder jurisdicional e que nada podia fazer, estando a instância “A judicialista parece enfermar do pecado original de ter nascido
nesta última execução já extinta, o que os impediu de lançar mão de quando imperava o ensinamento do prof. Marcello Caetano que entendia
qualquer recurso; que os tribunais administrativos, posto que se chamassem de tribunais
- tal ocorreu por falha do Tribunal, que não cumpriu o referido e os respectivos juízes gozarem da mesmas garantias de independência
art. 93º do CPC quanto à primeira penhora efectuada no P.º executivo e imparcialidade dos juízes dos tribunais judiciais, não eram verdadei-
n.º 229-A/2000, sendo que havia conhecimento do referido arresto, mas ros tribunais, não se integrando na função judicial, sendo, outrossim,
a secretaria nada informou, apesar de lhe competir; órgãos superiores da Administração Pública com a missão, exercida
- também não foi comunicada a penhora ocorrida na sequência da com independência dos órgão e agente da administração activa, de
conversão do arresto requerido pelos recorrentes julgar da legalidade dos actos e da responsabilidade extracontratual
- os ditos bens foram vendidos pelo preço de € 3.990,40, muito inferior decorrente de actos praticados por estes últimos são a égide do direito
ao resultante da avaliação sendo o real não inferior a € 30.000,00; administrativo (…).
- foi-lhes vedada, em virtude da actuação não diligente do Tribunal, a Desta causa primeira fazia-se decorrer, como corolário lógico ne-
possibilidade de cobrarem o seu crédito, acrescendo ainda que a secre- cessário e, ao tempo até o seria: a natureza parajurisdicional ou, por
taria expediu deprecada para venda por negociação particular, quando outras palavras, não administrativa, de todos e quaisquer actos prati-
tinha sido ordenada a venda por propostas em carta fechada, o que levou cados e actividades desenvolvidas nos Tribunais judiciais praticados
à venda por valor inferior ao que seria alcançado. pelos juizes dos tribunais judiciais no exercício da sua função, mesmo
Concluem que essa negligência na actuação e o erro e ilegalidade dos que não correspondentes à estrita função de julgar e por funcionários
procedimentos adoptados pelo Tribunal resultaram para eles prejuízos dos tribunais judiciais, fazendo apelo à teoria da função intermédia ou
patrimoniais - por não obterem a cobrança dos seus créditos, já que a função-ponte, entre a função jurisdicional propriamente dita e a função
devedora não possui outros bens - além de danos não patrimoniais, que administrativa comum, a que os acórdãos mais representativos dessa
o Estado está obrigado a indemnizar por ter incorrido em responsabi- corrente se acolhiam.
lidade civil por actos (ou omissões) praticados no exercício da função Ora, nem a causa subsiste, nem a teoria tem, agora, utilidade e
jurisdicional. fundamento constitucional e legal.”
206 207

E continua o dito aresto: aos tribunais administrativos a apreciação e julgamento de todos os


“A Constituição da República Portuguesa, na versão resultante da litígios originados no âmbito da administração pública, globalmente
Lei de Revisão Constitucional n.º 1/80, de 8/7, partindo da utilidade considerada, com excepção dos que o legislador ordinário tenha ex-
do sistema judiciário, instituiu várias ordens ou categorias de tribu- pressamente atribuído, ou venha a atribuir, a outra jurisdição.
nais – artº 211º - cada um deles consagrado como órgão de soberania E isto, aliás, que dizem os artigos 3.º, 4.º, n.° 1, alínea g), e 51°, nº 1,
— art° 205°/l — e a cada categoria ou ordem atribuindo, explicitamente alínea f) do ETAF, ao estabelecer que «incumbe aos tribunais admi-
ou implicitamente, espaço de jurisdição devidamente delimitado, não em nistrativos e fiscais, na administração da justiça, assegurar a defesa
função de uma estrita e absoluta especialização, que funciona apenas dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da
como critério indicativo, mas, em obediência a critérios organizacionais legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âm-
e de racionalidade na distribuição das matérias respeitantes à adminis- bito das relações jurídicas administrativas e fiscais, salvo os que forem
tração da justiça, por intermédio da actividade específica dos juízes, excluídos por lei, e os recursos e as acções pertencentes ao contencioso
função do Estado pertencente, em globo, à função judicial e ao poder administrativo para que não seja competente outro tribunal.
soberano dos tribunais — art°s 213°, 214”, 215º e 216º. Por outras palavras, aos tribunais administrativos está atribuída a
Todas as jurisdições, assim criadas, são no plano constitucional e jurisdição comum em matéria administrativa.”
abstractamente, de igual dignidade e competência técnico-jurídica no Sendo certo que a questão da competência material para o julgamento
respectivo âmbito material - 205º/1 e 2- todos os tribunais e juízes de de acções para efectivação da responsabilidade extracontratual por actos
tribunais estaduais gozam das mesmas garantias de imparcialidade e e omissões de órgãos ou agentes da administração judiciária, praticados
independência - art° 206° e 218° no exercício das suas funções ou por causa delas, foi bastante discutida
Entre as jurisdições instituídas, com organização constitucionalmente como se dá nota no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 12-05-1994,
estabelecida, surge a jurisdição administrativa e fiscal, com estatuto cuja doutrina se acabou de transcrever, hoje, é pacífico o entendimento
autónomo e com competência específica, nos termos do disposto no jurisprudencial, na linha deste último aresto, de que estando em causa
art° 214º, para “o julgamento das acções e recursos contenciosos que a responsabilidade emergente da função de julgar, a competência cabe
tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas aos tribunais judiciais, pois os actos e actividades próprias dos juízes na
administrativas e fiscais”, sua função de julgar são praticados no exercício específico da função
Nenhuma dúvida, portanto, que a jurisdição administrativa cabe o jurisdicional e não da função administrativa; todos os outros actos e
julgamento de questões, em termos decisórios finais, com força de caso omissões de juízes, bem como toda a actividade e actuação dos restantes
julgado material, prevalecente e imperativo, conforme ao disposto no magistrados, órgãos e agentes estaduais que intervenham na administra-
art° 209°/2 da Constituição, que tenham por objecto “dirimir litígios ção da justiça, em termos de relação com os particulares ou outros órgãos
emergentes de relações administrativas” sem quaisquer limitações ou e agentes do Estado, e, portanto, sejam estranhos à específica função de
restrições de ordem constitucional. lugar, inscrevem-se nos conceitos de actos e actividades administrativas
…. ou de “gestão pública administrativa”, da competência da jurisdição
Há que fixar-se, pois, como ponto de partida incontestável, que, em administrativa - (cfr. entre outros, além do supra transcrito aresto de
princípio, cabe aos tribunais da jurisdição administrativa o julgamento 12-05-1994, os acórdãos deste Tribunal de Conflitos de 23-01-2001,
de quaisquer acções que tenham por objecto dirimir litígios emergentes Conflito n.º 294, e de 21-02-06, Conflito n.º 340, e, ainda, entre outros, os
das relações jurídicas administrativas. Acórdãos do STA de 13.02.1996, Proc. n.º 38.474, in AP DR de 31-8-98,
Em princípio, dissemos, porque nada obsta, de acordo com os citados 1095; de 15.10.98, Proc. n.º 36.811; de 12.10.2000, Proc. n.º 45.862, in
preceitos constitucionais, como acima advertimos, que o legislador AP DR de 12-2-2003, 7360; de 12.10.2000, Proc. n.º 46.313, in AP DR
ordinário possa, ressalvadas as matérias de natureza criminal, no uso de 12-2-2003, 7378; e de 22-05-2003, Proc. n.º 532/03).
de seu poder conformador concreto do interesse público, atribuir a Analisando o caso em apreço, como acima se viu, o pedido de in-
uma jurisdição competência de julgar sobre “matéria” que, em prin- demnização formulado pelos Autores, tal como estes o configuram na
cípio e em geral, caberia a outras jurisdições, conforme ao critério da respectiva petição inicial, assenta nos seguintes factos:
especialização, meramente indicador e operacional, na repartição de - existindo um processo executivo (Proc. n.º 229-A/2000) a correr no
competências das várias ordens de tribunais que instituiu. Tribunal contra a empresa devedora dos créditos dos AA./ recorrentes
Resulta isso da filosofia subjacente ao sistema judicial unitário cons- contra a qual estes instauraram também a respectiva execução judicial
titucionalmente instituído e do disposto no art° 168°/1, q) da Constitui- (Proc. n.º 2-B/2001), em que foram penhorados bens da devedora que,
ção, onde se consagra a reserva relativa da Assembleia da República anteriormente, haviam sido por eles arrestados, não foi comunicado à
para legislar sobre «organização e competência dos tribunais e do primeira execução, onde ocorreu a primeira penhora dos mesmos bens,
Ministério Público» nos termos do artigo 93, do CPT, a existência da penhora na segunda
Sendo, pois, exacto que ao definir a competência da jurisdição admi- execução;
nistrativa, reportando-se às relações jurídicas administrativas, ou seja, - a secretaria informa, naquela primeira execução, que os mesmos
ao círculo de interesses que se jogam no âmbito do direito aplicável à bens se encontravam penhorados na execução n.º109-A/2000, do mesmo
Administração Pública, abrangendo as relações jurídicas, que nasçam e Tribunal, com penhora igualmente anterior à dos recorrentes, quando,
se desenvolvam sob a égide do direito administrativo, já não sob a égide na verdade, apenas existia penhora em relação a dois dos seis bens
do direito público em geral, como se dizia antes, caberá, naturalmente, penhorados no processo em que eram exequentes os recorrentes;
208 209

- foi sustada a execução n.º 2-B/2001, ao abrigo do artigo 93 do CPT, por actos praticados na construção de uma estrada,
aguardando a venda na execução n.º 109-A/2000, do mesmo Tribunal, actividade essa que se insere nas suas atribuições como
não tendo sido comunicada à execução n.º 229-A/2000 a penhora ali pessoa colectiva de direito público e é desenvolvida ao
efectuada a pedido dos recorrentes; abrigo de normas de direito público.
- a secretaria expediu deprecada para a venda por negociação particu- III — Os actos referidos são de qualificar como actos de gestão
lar quando tinha sido ordenada a venda por propostas em carta fechada, pública.
sendo a venda efectuada por valor muito inferior ao real; IV — O que determina a competência do tribunal para jul-
- todos os bens da executada foram vendidos, e repartido o respectivo gar uma acção de indemnização não é a natureza do
produto, no processo executivo n.º 229-A/2000, ficando os recorrentes direito violado mas sim, exclusivamente, a veste com
sem possibilidade de cobrar os seus créditos. que a entidade pública actua quando viola direitos de
O pedido indemnizatório assenta, pois, nos prejuízos decorrentes da terceiros. Se agir munida do ius imperium os tribunais
actuação negligente do Tribunal na tramitação dos processos de execução administrativos serão os competentes, caso contrário,
nele pendentes contra a executada, da qual os Autores eram credores, serão os tribunais comuns.
e não de qualquer acto praticado no exercício da função de julgar, ou
como bem refere o Exm.º Procurador Geral Adjunto no seu parecer, de Conflito n.º 16/03-70.
fls. 594 a 596, “a causa de pedir na acção reconduz-se e assenta, na Requerentes: Maria Joaquina Teixeira Fernandes e outros no conflito
sua essência, no deficiente funcionamento da «máquina judiciária» do negativo de jurisdição entre o Tribunal Judicial da Comarca de Felgueiras
Estado (entendida como um todo orgânico funcional)”. e o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
Está-se, pois, no âmbito das relações jurídicas administrativas que se Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Rui Botelho.
podem estabelecer entre a administração judiciária e os particulares na
administração da justiça e não no âmbito da específica função de julgar, Acordam no Tribunal dos Conflitos:
pelo que, de acordo com a jurisprudência acima citada, e nos termos
dos artigos 3º, do ETAF/84, 212, n.º3, da CRP, há que concluir que I Relatório
incumbe aos tribunais administrativos o julgamento da acção proposta Maria Joaquina Teixeira Fernandes, Maria de Salete Fernandes
pelos aqui recorrentes. de Vasconcelos Teixeira, Jaime Fernandes de Vasconcelos Teixeira,
IV. Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, Maria Haidé Fernandes Vasconselos Teixeira, António Fernando
mantendo a decisão recorrida e declarando os tribunais administrati- Fernandes de Vasconcelos Teixeira e Paula Cristina Fernandes de
vos competentes, em razão da matéria, para o conhecimento da acção Vasconcelos Teixeira, com melhor identificação nos autos, interpuseram
proposta a fls. 2. recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (posteriormente reenca-
minhado para este Tribunal), do acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa, 29 de Novembro de 2006. — José António de Freitas Car- Guimarães, que, confirmando a decisão do Tribunal Judicial da Comarca
valho (relator) — Adelino César Vasques Dinis — Armindo dos Santos de Felgueiras, concluiu pela incompetência desse Tribunal, em razão da
Monteiro — Maria Angelina Domingues — Salvador Pereira Nunes da matéria, para conhecer da acção declarativa ordinária de condenação
Costa — Rosendo Dias José. proposta contra o ICOR, Instituto para a Construção Rodoviária,
pelo facto de ter ocupado - no âmbito do processo de construção de uma
variante municipal denominada “Variante de Felgueiras” - parte de um
prédio que lhes pertencia, no qual também foram provocados danos.
Acórdão de 29 de Novembro de 2006. Os recorrentes terminaram a sua alegação formulando as seguintes
conclusões:
“1- Vêm os ora Agravantes, interpor recurso do mui douto Acórdão
Assunto: promanado pelo Tribunal a quo.
Responsabilidade civil extracontratual. Competência dos 2- O presente recurso versa, apenas e somente, sobre a apreciação
Tribunais Administrativos. Instituto para a Construção da competência material do Tribunal de 1.ª Instância, apreciada que foi
Rodoviária (ICOR). Actos de gestão pública. oficiosamente “Excepção de Incompetência Absoluta”,
3- Com efeito, o Tribunal a quo entendeu que, no caso sub judice era
Sumário: materialmente incompetente para o conhecimento da causa o Tribunal
Judicial de 1.ª Instância, transferindo-se no seu entendimento essa com-
I — A competência (ou jurisdição) de um tribunal afere-se petência para o Tribunal Administrativo, porquanto a presente acção teria
pela forma como o autor configura a acção, definida como objecto tão somente a responsabilidade civil extracontratual por
pelo pedido e pela causa de pedir, isto é, pelos objectivos factos ilícitos resultante da verificação de actos danosos da propriedade
com ela prosseguidos. de terceiros na prática de um acto de gestão pública por parte da Agra-
II — São competentes os tribunais administrativos para o vada e como realização de uma função pública de pessoa colectiva.
conhecimento de acção em que é pedida indemnização 4- Ora tal decisão, salvo o devido respeito e melhor opinião, é injusta
ao Instituto para a Construção Rodoviária (ICOR), e não conforme ao direito tendo em atenção toda a factualidade existente,
210 211

porquanto, e sem qualquer espécie de rebuço, é da responsabilidade 13- Portanto no direito hodierno é muito mais importante conhecer o
da Agravada a “ocupação ilegal” de uma certa parte do imóvel que se conceito de relação jurídica administrativa só relevando para a justiça
constitui como propriedade dos Agravantes efectuada fora do âmbito de publicista as relações jurídicas administrativas públicas, as reguladas
qualquer processo expropriatório e de uma forma não temporária, não se por normas de direito administrativo aquelas em que um dos sujeitos
tendo consubstanciado pela Agravada o pagamento de quaisquer valores pelo menos actue na veste de ius imperii no sentido de realização do
aos Agravantes que pudessem configurar uma JUSTA INDEMNIZA- interesse público legalmente definido.
ÇÃO e CONTEMPORÂNEA como dona da obra o manter, preservar 14- Porém nem todos os actos da ora Agravante são de gestão pú-
e diligenciar pelo bom estado de todas as construções e edificações blica, como nem todos os actos que integram a gestão pública haverão
circundantes ao empreendimento por si efectuado. de representar todos o exercício imediato do ius imperii ou reflectirão
5- Sendo que quanto à situação descrita em supra os Recorrentes em directamente o poder de soberania do próprio Estado e das demais
algum momento e por alguma forma prestaram o seu consentimento à pessoa colectivas.
Agravada para que esta consumasse a sua conduta ilícita, verificando-se 15- Ora os actos praticados pela Agravante consubstanciam-se em
deste modo um esbulho da sua propriedade plena e exclusiva perpetrado actos violadores do direito de propriedade e são geradores da obrigação
pela Recorrida na ocorrência em mérito com graves prejuízos para a de indemnizar sendo que não se integram em qualquer relação jurídica
esfera jurídico-patrimonial dos Agravantes que ascendem ao montante administrativa regulada pelo direito público.
de 144.978,10 EUR. 16- Como, aliás, entendeu e bem o Tribunal da Relação de Guimarães
6- Além do mais, a habitação implantada na propriedade dos Agravan- no mui douto Acórdão em oposição promanado em 19 de Julho de 2002
tes sofreu diversos e elevadíssimos danos materiais como consequência - Processo nº. 66/02-2- 2ª. Secção, que enunciou o seguinte:
necessária e directa das obras levadas a cabo pela Agravada. “Por tal motivo, há ofensa de direito privado (direito de propriedade).
7- Todos estes actos praticados pela Agravada foram de molde a Não pode ser considerado como um acto administrativo, pois “o direito
originar o desprovimento quanto às pessoas dos Agravantes da parcela dos Autores que então invocam como ofendidos é um direito privado
de terreno em equação com correspectiva depreciação da parte sobrante e não um direito público ou uma garantia de natureza publicista”. Não
do imóvel, derivada da construção por parte da Agravada de um muro se está em tais casos “...perante o exercício do jus imperium mas de
de betão com vários metros, o que impossibilita a vista que o imóvel uma actuação qualquer pública ou privada, singular ou colectiva que
anteriormente possuía, e além disso, retirando-lhe grande parte do apro- na sua gestão comum pode praticar, violando normas exclusivamente
veitamento da luz Solar, existindo actualmente uma perda brutal da de direito privado.”
qualidade ambiental e uma desvalorização considerável em termos de 17- Pode-se afirmar, aliás, na sequência de vários arestos e do dito
utilidade económica, patrimonial e capacidade do prédio com reflexos pelos Profs. Osvaldo Gomes e Alves Correia que uma coisa é proceder
no seu valor de mercado. à abertura de uma estrada expropriando os terrenos que são mister à sua
8- Não respeitando assim a Agravada o dever de no exercício da implantação e realizando por administração directa ou por Empreitada
sua função pública não poder ofender do direito de propriedade de a obra, coisa bem diferente é causar danos em propriedade alheia sem
terceiros. autorização dos donos ou prévia expropriação - Cfr. AC, RC de 2/7/96,
9- Não se consumindo na verificação da ilegalidade da conduta o CJ, Tomo IV, Pags. 25; Ac. RP de 30/4/02, CJ, Ano XXVII, Tomo II,
requisito da ilicitude no domínio da responsabilidade de entes públi- Págs. 221 a 225; AC, RP de 0/5/02, Proc. n°. 628/02 -3ª. Secção,
cos, podendo ainda compreender a inobservância de regras técnicas ou 18- Por outro lado se a deliberação da realização da obra e a aprovação
cânones de prudência comum. do respectivo projecto e a sua concretização devem qualificar-se como
10- A Agravada apesar de se constituir como uma pessoa colectiva do actos de gestão pública no que concerne à execução prática da estrada,
direito público não significa que não esteja sujeita ao regime do direito mormente os eventuais danos para terceiros decorrentes dessa execução
privado respondendo civilmente perante ofensas de direitos de terceiros já não se afigura assim - Cfr. também o AC. Tribunal de Conflitos de
(reivindicação de propriedade e indemnizatórios). designadamente por 5/11/98, BMJ, 311, Pág. 195.
actos de gestão privada na realização dos fins de interesse público a 19- Ademais, mesmo que se entendesse que devido à situação de
elas cometidos. estarmos perante um acto de gestão pública ser competente na sua veste
11- Assim de acordo com o disposto no artigo 34º., n.º 1. alínea f) de Tribunal Especial o Tribunal Administrativo para apreciar o presente
do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais estão excluídos da dissídio o simples facto da conduta em que incorreu in casu a Agravante
jurisdição administrativa os recursos e acções que tenham por objecto ter na sua génese a omissão de um dever de cuidado e vigilância a que
questões de direito privado ainda que qualquer das partes seja pessoa aquela se encontrava adstricta, originou a sua colocação num plano de
colectiva de direito público sendo por isso da competência dos Tribunais paridade e igualdade de tratamento com o particular e o cidadão adqui-
Judiciais a competência residual de tais acções. rindo esta sua redita omissão a natureza de um acto de gestão privada.
12- Do disposto no artigo 212°., n°. 3 da nossa Lei Fundamental por- 20- Para que então se possa assim evitar que do alto do seu “ius
que compete aos Tribunais Administrativos o julgamento de acções que imperium”, o ente público não se sinta constantemente tentado por via
tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas da sua superior posição a “desleixar-se” nos cuidados e deveres a que
administrativas resultou esvaziado muito do seu conteúdo o conceito se encontra vinculado, tendente à prossecução dos interesses públicos
tradicional de acto de gestão pública. que terá de realizar.
212 213

21- Assim sendo como é, face ao anteriormente expendido, e com 10- Porquanto a mesma não faz parte do mapa anexo à “Declaração
o devido respeito, pensa-se ser competente para apreciar a questão em de Utilidade Pública” para aquele troço de via;
mérito o douto Tribunal Comum, tal qual como foi configurado pelos 11- Traduzindo-se num aumento da área - propriedade dos Autores
Agravados ab initio na sua Petição Inicial, por via dos artigos 18º., nº. 1 - sacrificada aos interesses da Ré;
da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, e 66º., 12- Com a construção de um muro e ocupação parcial do jardim;
67º. e 74º.,. n°. 2 do Código de Processo Civil, devendo por isso com o 13- Da “Declaração de Utilidade Pública” publicada em Diário da
devido respeito e salvo melhor opinião ser não só revogado o Acórdão República não consta a denominada parcela - Cfr. Diário da República,
recorrido mas também ser Uniformizada a Jurisprudência no sentido de II Série, n.º 35 de 11 de Fevereiro de 1999;
fixar o Tribunal Comum como materialmente competente para apreciar 14- Isto é, não haverá pelos prejuízos suportados pelos Autores qual-
questões de reivindicação de propriedade e pedidos indemnizatórios quer responsabilidade indemnizatória em sede de expropriação por
formulados por um cidadão comum, quando a entidade esbulhadora utilidade pública;
seja uma pessoa colectiva de direito público ainda que na prossecução 15- Tal qual, aliás, já foi doutamente decidido pelo Tribunal Judicial
da respectiva actividade.” desta comarca;
O recorrido concluiu a sua alegação sustentando a improcedência 16- No processo n°. 204/01 do 2°. Juízo que neste Tribunal correu
do recurso. termos e cuja cópia autenticada de decisão se junta e dá por integralmente
O Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no mesmo sentido, reproduzida para os devidos e legais efeitos (Doe. nº. 2);
defendendo a manutenção do julgado. 17- Relegando-se essa matéria para o regime geral da responsabilidade
Cumpre decidir. - vide também artigo 18°., nº. 4 do Código das Expropriações;
II 18- Ora esta ocupação da propriedade privada, não obstante vir dizer-
Com o presente recurso visa-se, apenas, determinar a jurisdição com- -se a coberto de uma “Declaração de Utilidade Pública” - o que não está
petente para conhecer da acção. como vimos supra - não deixa de constituir uma ocupação que desvirtua
Embora não estejamos perante um verdadeiro conflito de jurisdição, a legalidade, tanto mais que não é temporária;
pois os tribunais administrativos não tiveram a oportunidade de se 19- Tanto mais que não acompanhada da JUSTA INDEMNIZAÇÃO
pronunciar, cabe ao Tribunal dos Conflitos dirimir esta controvérsia, ou e CONTEMPORÂNEA com prejuízos graves para os Autores tal como
pré-conflito, e fixar definitivamente a jurisdição competente, nos termos iremos escalpelizar infra;
do n.º 2 do art.º 107 do CPC, assim prevenindo um eventual conflito. 20- Embora, mal grado diversos contactos e trocas epistolares, a Ré
III Direito continuou e continua a fazer o que entende por bem e sempre dentro da
Vejamos. propriedade dos Autores, não obstante a posição de descontentamento
1. As recorrentes, no Tribunal Judicial da Comarca de Felgueiras, por estes assumida em razão dos danos avultados que sofreram e ainda
na petição inicial, para sustentarem a procedência da acção, alegaram sofrem;
o seguinte: 21- E sempre fora do âmbito material do “Processo Expropriató-
“1- Os Autores são donos e legítimos possuidores do prédio composto rio”;
por uma construção com dois pisos e logradouro com jardim, inscrito 22- Ocuparam parcialmente a propriedade dos Autores já identifi-
na respectiva matriz predial sob o artigo n.º 319 sito na freguesia de S. cados nos Autos;
Jorge da Várzea, concelho de Felgueiras; 23- Ocupação que não cuidou de acautelar os mais fundamentais
2- O qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial direitos daqueles;
sob o n.º 00244/160891; 24- Bem assim como de providenciar pelo terreno sobrante, segurança
3- Com as seguintes confrontações: Norte: EN 207; Sul: Autores; e demais apoios para que os sacrifícios a suportar e danos tossem redu-
Nascente: Autores; Poente: Estado. zidos ao mínimo possível e ajustado às circunstâncias concretas;
4- Factos que, ademais, são incontestados pela Ré tal qual melhor 25- Na verdade, os Autores viram-se privados da utilização de um
se expende por cópia de “Vistoria Ad Perpetuam Rei Memoriam” que poço (abastecido por nascente própria);
se junta e dá por integralmente reproduzida para os devidos e legais 26- Encontrando-se coarctados de fruição de água durante aproxima-
efeitos (Doc. nº. 1); damente três semanas porquanto a redita água foi cortada sem reposição
5- Acontece que parte do prédio e que assumiu a identificação de em termos definitivos;
parcela 39.3 com área de 35 m2 foi ocupada pela Ré; 27- Ora sucede que os Autores se viram na contingência de modo
6- Ocupação que se deve à construção de uma variante municipal próprio requisitar o “abastecimento de água domiciliário” disponibili-
denominada “Variante de Felgueiras”; zado pela Câmara Municipal de Felgueiras;
7- A Ré afectou pois uma parte do prédio dos Autores para além área 28- A água originária do poço em mérito, afora ser gratuita, abastecia
prevista para expropriação; os consumos domésticos de duas habitações e um estabelecimento co-
8- Dizendo para o efeito que “por necessidade de execução dos tra- mercial (café) e, bem assim era utilizada para rega de diversos terrenos
balhos da obra foi necessário ocupar a área que constitui a parcela n°. propriedade dos Autores;
39.3 que não estava incluída na expropriação inicial”. 29- Com esta situação forçada passaram a pagar mensalmente as
9- Com efeito, a redita parcela não consta do “Processo Expropria- seguintes quantias: contadores (3) a Esc. 225$00 Esc. 775$00: consumos
tório”; médios globais Esc. 12.000$00;
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30- Tendo ainda despesas de instalação e inutilização ou tomados ficos poderes de império. Os actos em causa reportam-se à actividade
obsoletos os seguintes bens: 1 poço Esc. 600.000$00; tubagens em funcional e específica da entidade que os praticou - ICOR - Instituto
hidronil Esc. 90.000$00; 1 motor trifásico Esc. 90.000$00; despesas de para a Construção Rodoviária - que é um Instituto Público, dotado de
instalação (nova) Esc. 60.000$00; pichelaria Esc. 60.000$00; personalidade jurídica e autonomia administrativa e financeira, sujeito
31- Para além dos danos descritos ficaram os Autores desprovidos à tutela e superintendência do Ministro do Equipamento Social, tendo
da parcela de terreno acima indicada e viram depreciada consideravel- como escopo institucional essencial a construção de novas estradas,
mente a parte sobrante, nomeadamente pela construção de um muro em pontes e túneis, e a execução de trabalhos de grande reparação ou re-
betão com vários metros o que impossibilita a vista que anteriormente formulação do traçado ou características de pontes e estradas existentes
o imóvel possuía e, além disso, retirando-lhe grande parte do aprovei- que lhe forem cometidos, estando, para o exercício das suas atribuições
tamento da luz solar; equiparado ao Estado (cfr. Artigos 1°, 5° do DL n° 237/99, de 25/6 e
32- Com efeito, verifica-se uma perda brutal da qualidade ambiente artigos 3° e 4° dos Estatutos deste Instituto anexos ao citado Decreto-
nessa parte e uma desvalorização considerável em termos de utilidade -Lei). Resultando, assim, o pedido de indemnização formulado pelos
económica e patrimonial e capacidade do prédio; Autores, de danos para eles resultantes de acto de gestão pública, bem
33- Sendo certo que até à referida obra o prédio se encontrava situado se decidiu ao julgar-se absolutamente incompetente o tribunal comum
numa área de sossego e envolvente de qualidade e com esta construção para o conhecimento da questão. Pelo que nenhuma censura merece a
ficou com essa estrada e barulhos inerentes encostado ao sobrante; decisão recorrida.
34- Ou seja, hoje o mesmo prédio não proporciona os mesmos có- 2. Dir-se-á, desde já, que o decidido é para confirmar.
modos que anteriormente proporcionava e que tem reflexos, designa- Sobre esta mesma questão - responsabilidade civil extracontratual do
damente, no valor de mercado afecto ao mesmo; ICOR (ou JAE, que o antecedeu) por danos infligidos no decurso da
35- Além do mais, a habitação implantada na propriedade dos Au- sua actividade de construtor de estradas - este Tribunal dos Conflitos
tores observa danos materiais importantes em consequência directa e pronunciou-se já, repetidamente, sempre no sentido da competência dos
necessária das obras levadas a cabo pela Ré; Tribunais Administrativos. Veja-se, como meros exemplos, os acórdãos
36- Assim, a redita ampliação da área ocupada para a obra referida de 4.3.04 no Conflito n.º 10/03, de 6.5.04 no Conflito n.º 14/03 e de
em supra e esta de per si implicou, designadamente, os seguintes danos 4.4.06 no Conflito n.º 8/03. Por ser o último, e por corresponder a uma
e prejuízos pecuniários:” situação em tudo idêntica à dos presentes autos ir-se-á transcrever os
O recorrido apresentou contestação que, todavia, foi mandada de- trechos relevantes do acórdão proferido no Conflito n.º 8/03.
sentranhar. “À face do ETAF de 1984, a competência dos tribunais administra-
Com fundamento nestes factos aquele tribunal decidiu que: tivos relativamente a acções de responsabilidade civil extracontratual
“Assim sendo, e atento o acima exposto, é de concluir que, de acordo emergente de actos do Estado, demais entes públicos e dos titulares
com a petição inicial, nos alegados actos lesivos dos direitos dos AA. dos seus órgãos ou agentes restringe-se aos casos em que esta deriva
praticados pelo ICOR, para a realização das suas atribuições próprias, de actos de gestão pública, como decorre do preceituado no art. 51.º,
destinadas à prossecução do interesse público, o ICOR está investido n.º 1, alínea h), daquele diploma. (Esta norma estabelece que com-
em poder público, tratando-se, pois, de acto de gestão pública: efecti- pete aos tribunais administrativos de círculo conhecer de «acções
vamente, e segundo a petição inicial, foi no âmbito da sua actividade sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e
própria de construção de estradas - designadamente, na construção de dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de
uma variante municipal denominada “Variante de Felgueiras” - que o actos de gestão pública, incluindo acções de regresso»). A questão da
ICOR violou os direitos dos autores. Tem, assim, de entender-se que a qualificação dos actos de Administração como actos de gestão pública
presente acção está subtraída à competência deste tribunal, estando antes ou de gestão privada foi tratada em vários acórdãos deste Tribunal dos
submetida à competência material do tribunal administrativo. Verifica- Conflitos. Actos de gestão pública são os praticados pelos órgãos ou
-se, pois, a incompetência material deste tribunal para a presente acção, agentes da Administração no exercício de um poder público, isto é, no
excepção que, nos termos do art. 102.º do Cód. Proc. Civil, é de conheci- exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito
mento oficioso e de que ora se conhece de imediato. Em conformidade, público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios
e nos termos conjugados do disposto nos arts. 101.º, 102.º, 105.º, 288.º, de coerção; actos de gestão privada são os praticados pelos órgãos ou
n.º 1, al. a), 493° n.º 1 e n.º 2, e 494.º, al. a), todos do Cód. Proc. Civil, agentes da Administração em que esta aparece despida de poder e,
51.º, n.º 1, al. h), do E.T.A.F. e 6.º, n.º 1, do DL n.º 237/99, de 15/06, portanto, numa posição de paridade com o particular ou os particulares
julgo este Tribunal absolutamente incompetente, em razão da matéria, a que os actos respeitam, nas mesmas condições e no mesmo regime
para conhecer da presente acção, pelo que absolvo da instância o réu em que poderia proceder um particular com inteira subordinação às
ICOR - INSTITUTO PARA A CONSTRUÇÃO RODOVIÁRIA.” normas de direito privado. (Neste sentido, podem ver-se os seguintes
O Tribunal da Relação de Guimarães, confirmando a decisão da 1.ª acórdãos: do Tribunal dos Conflitos de 5-11-1981, processo n.º 124,
Instância, concluiu que: publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 311, página 195; do
“Os Autores assentam o pedido de indemnização na responsabili- Tribunal dos Conflitos de 20-10-1983, processo n.º 153, publicado em
dade civil extracontratual por factos ilícitos praticados pelo Réu. A Apêndice ao Diário da República de 3-4-1986, página 18; do Tribunal
invocada responsabilidade civil do Réu dimana de acto que não pode dos Conflitos de 12-1-1989, processo n.º 198, publicado em Acórdãos
ser praticado por qualquer pessoa, resultando do exercício de especí- Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n° 330, página 845;
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do Tribunal dos Conflitos de 12-5-1999, processo n.º 338, publicado em Réu são de qualificar como actos de gestão pública, à face do critério
Apêndice ao Diário da República de 31-7-2000, página 19; do Supremo atrás referido, e a responsabilidade deles emergente é responsabilidade
Tribunal Administrativo de 22-11-1994, recurso n.º 33332, publicado por actos de gestão pública. Para efeitos desta qualificação não releva a
em Apêndice ao Diário da República de 18-4-1997, página 8256; de circunstância de os actos que se invocam como geradores de responsabi-
29-6-2004, do Tribunal dos Conflitos, recurso n.º 1/04). «A solução do lidade civil extracontratual serem actos de natureza jurídica ou operações
problema da qualificação, como de gestão pública ou de gestão privada, materiais ou técnicas, pois estas operações «deverão qualificar-se como
dos actos praticados pelos titulares de órgãos ou por agentes de uma de gestão pública se na sua prática ou no seu exercício forem de algum
pessoa colectiva pública, incluindo o Estado, reside em apurar: -Se modo influenciados pela prossecução do interesse colectivo, ou porque
tais actos se compreendem numa actividade da pessoa colectiva em o agente esteja a exercer poderes de autoridade ou porque se encontre a
que esta, despida do poder público, se encontra e actua numa posição cumprir deveres ou sujeito a restrições especificamente administrativos,
de paridade com os particulares a que os actos respeitam, e, portanto, isto é, próprios dos agentes administrativos. E será gestão privada no
nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder caso contrário». (FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo,
um particular, com submissão às normas do direito privado; -Ou se, volume III, página 493, cuja posição é seguida no acórdão do Tribunal
contrariamente, esses actos se compreendem no exercício de um poder dos Conflitos de 4-3-2004, proferido no recurso n.º 10/03). Por outro
público, na realização de uma função pública, independentemente de lado, não se verifica qualquer situação em que esteja em causa uma
envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independente- questão de direito privado, pois o regime da responsabilidade civil extra-
mente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na prática contratual por actos de gestão pública é regulado por normas de direito
dos actos devem ser observadas» (Acórdão do Tribunal dos Conflitos público, designadamente, o Decreto-Lei n.º 48051, de 21-11-1967. Por
proferido no processo n.º 124, citado).” isso, são competentes os tribunais administrativos para o conhecimento
No caso dos autos, os recorrentes, como se viu, formularam um pedido da presente acção, pelo que bem decidiram as instâncias ao julgarem
de indemnização por danos causados pelos trabalhos de construção incompetente o Tribunal Judicial de Felgueiras.”
de uma estrada, denominada “Variante de Felgueiras”, imputando ao A circunstância de a acção ter tido igualmente como fundamento
Réu, na qualidade de dono da obra e responsável pela sua execução, a a ocupação de uma parcela com a consequente violação do direito de
responsabilidade por estragos ocorridos no seu prédio, situado junto a propriedade dos recorrentes é irrelevante, para este efeito, uma vez
essa estrada, e ainda pela ocupação de uma parcela de 35m2. Ou seja, que a competência do tribunal para julgar a acção de indemnização é
os recorrentes pretendem efectivar a responsabilidade do recorrido por determinada, como se viu, não pela natureza do direito violado mas sim,
actos por ele praticados na actividade de construção de estradas. exclusivamente, pela veste com que a entidade pública actua quando
“O ICOR foi criado pelo Decreto-Lei n.º 237/99, de 15 de Janeiro, viola direitos de terceiros. Se agir munida do ius imperium os tribunais
sendo-lhe atribuída a natureza de pessoa colectiva, do tipo instituto administrativos serão os competentes, caso contrário, serão os tribunais
público, dotada de autonomia administrativa e financeira e de patrimó- comuns.
nio próprio (arts. 1.º, n.º 1, daquele diploma e 1.º, n.º 1, dos Estatutos Haverá de concluir-se, portanto, tal como se decidiu, que sendo a com-
do ICOR por ele aprovados). No art. 4.º destes Estatutos indicam-se as petência dos tribunais administrativos, por estar em causa uma relação
atribuições fundamentais do ICOR, nos seguintes termos: jurídica administrativa (art.º 212, n.º 3, da CRP e art.º 3 do ETAF), está
1 - São atribuições fundamentais do ICOR: excluída a competência dos tribunais comuns (art.º 66 do CPC).
a) Assegurar a construção de novas estradas, pontes e túneis pla- Improcedem, assim, todas as conclusões da alegação da recorrente.
neados pelo Instituto das Estradas de Portugal (IEP) e a execução de IV Decisão
trabalhos de grande reparação ou reformulação do traçado ou carac- Nos termos e com os fundamentos expostos acordam em negar provi-
terísticas de pontes e estradas existentes que lhe forem cometidos; mento ao recurso e em confirmar o acórdão recorrido, assim se declarando
b) Promover a realização dos projectos de empreendimentos rodovi- competentes para conhecer da acção os tribunais administrativos.
ários que forem necessários ao exercício das suas atribuições; Sem custas.
c) Assegurar a fiscalização, acompanhamento e assistência técnica
nas fases de execução de empreendimentos rodoviários; Lisboa, 29 de Novembro de 2006. — Rui Manuel Pires Ferreira
d) Promover a expropriação dos imóveis e direitos indispensáveis à Botelho (relator) — António da Silva Henriques Gaspar — Rosendo
execução de empreendimentos rodoviários da sua responsabilidade; Dias José — João Manuel de Sousa Fonte — Fernando Manuel Azevedo
e) Zelar pela qualidade técnica e económica dos empreendimentos Moreira — Salvador Pereira Nunes da Costa.
rodoviários em todas as suas fases de execução;
f) Assegurar a participação ou colaboração relativamente a outras
instituições nacionais e internacionais que prossigam finalidades no
âmbito da construção de empreendimentos rodoviários.
É, assim, inequívoco que a construção de novas estradas, sua reparação Acórdão de 29 de Novembro de 2006.
e reformulação do traçado se insere entre as atribuições do ICOR, pelo
que os actos que os Autores indicam como geradores dos prejuízos que Assunto:
invocam consubstanciam o exercício de funções de natureza pública,
previstas em normas de direito público. Assim, os actos imputados ao Execução fiscal. Reversão. Hipoteca. Tribunal competente.
218 219

Sumário: 7ª Os direitos patrimoniais, mormente o direito de propriedade, são


direitos de natureza civi1, competindo aos tribunais comuns assegurar
Instaurada uma execução fiscal contra o devedor originário, a defesa dos interesses emergentes desses direitos, quando violados
posteriormente revertida contra aquele que a administra- (arts. 1311°. e segts. do CC e arts. 202°.2 e 211°,1, lª parte da CRP).
ção fiscal considera ser o devedor subsidiário, se este, com 8ª O disposto no art. 4°. do ETAF, mormente na al. a) do seu nº 1,
fundamento na ilegalidade da reversão e da hipoteca legal terão que ser interpretados de harmonia com o princípio da interpretação
constituída sobre bens imóveis seus, pretender a conde- das leis conforme a Constituição e os princípios da unidade do sistema
nação do Estado no cancelamento do registo da referida jurídico, este imanente ao princípio de direito, consagrado no art. 1°, da
garantia e no pagamento de indemnização pelos prejuízos Constituição e reconhecido no art° 8°,1 do CC, bem como com o disposto
que ela lhe vem causando, deverá mover a correspondente nos já aludidos arts. 62°, 17º, 16°, 2, 202°,2 e 211°,1 da Constituição, e
acção na jurisdição administrativa e fiscal, a cujo tribunal ainda com o disposto no nº 3 do art. 212°, da Lei Fundamental.
tributário da área onde corre a execução caberá a respec- 9ª Assim, aos tribunais administrativos e fiscais compete apreciar
tiva competência. os conflitos emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais,
mas não retira aos tribunais comuns o dever de apreciar os factos pra-
Processo n.º 16/06-70. ticados pela Administração Pública que violem direitos absolutos cuja
Requerente: Florinda Ferreira Gomes Martins no conflito negativo defesa seja da competência dos tribunais comuns, sob pena de violar o
de jurisdição entre o Tribunal Judicial de Santo Tirso e os Tribunais disposto no art°. 13° da CRP, mormente quando a AF inventa relações
Administrativos e Fiscais. tributárias inexistentes.
Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Cândido de Pinho. 10ª Doutro modo, com o pretexto da existência de uma relação jurídica
administrativa ou fiscal, invocando normas jurídicas administrativas
Acordam no Tribunal de Conflitos: ou fiscais, com total despropósito, ao contrário do que poderiam fazer
I- Florinda Ferreira Gomes Martins, inconformada com o teor do os sujeitos de direito provado, e abusando assim dos inconstitucionais
acórdão da Relação do Porto que, em sede de recurso de agravo da princípios da presunção de legalidade dos seus actos e do benefício da
decisão proferida em 7/11/2005 do Tribunal Judicial de Santo Tirso nos execução prévia, a A.F. ficava com o campo aberto para criar situações de
autos de acção de condenação sob a forma ordinária intentada contra o facto altamente gravosas para os cidadãos, que assim ficavam impedidos
de reagir pela via da acção e meios cautelares comuns.
Estado Português, manteve a incompetência em razão da matéria daquele
11ª Esta dualidade não é suprida com o recurso aos tribunais adminis-
tribunal para conhecer dos pedidos ali formulados - entre os quais o da trativos e fiscais, nomeadamente quando estão em causa factos praticados
condenação em pagamento de indemnização - reconhecendo-a, por outro pela A.F., pois, na jurisdição fiscal, não existem para os sujeitos de direito
lado, aos Tribunais Administrativos e Fiscais, recorre para este Tribunal privado os meios pertinentes, p. ex., os procedimentos cautelares de
de Conflitos, ao abrigo do disposto no art. 107º, nº2, do CPC. defesa reivindicação e defesa da posse e da propriedade.
Nas alegações, concluiu da seguinte maneira: 12ª Os direitos dominiais têm pois a natureza de direito civil, com-
«lª A Recorrente alegou, na conclusão 7ª das alegações de recurso petindo aos tribunais comuns a apreciação das questões relativas à
para o Tribunal da Relação do Porto, que “o direito violado tem a na- defesa dos interesses protegidos por esses direitos, mesmo quando o
tureza de direito absoluto, e, como tal, a sua tutela efectiva faz-se nos facto violador vem enroupado com a capa de uma relação jurídica ad-
tribunais comuns”. ministrativa ou fiscal. Por isso os tribunais comuns, como tribunais de
2ª O Tribunal recorrido não se pronunciou sobre esta matéria; por jurisdição plena, não podem deixar de averiguar se, por baixo da capa,
isso o douto acórdão recorrido é nulo (art°. 668°.1, d) ex vi art°, 716°,1, está coisa séria ou coisa ilícita.
ambos do CPC). 13ª Deste modo de ver as coisas resulta que o disposto na al. a) do nº, 1,
Sem prescindir: do art. 4°, do ETAF não foi interpretado de harmonia com as normas
3ª Os tribunais administrativos e fiscais apreciam e julgam os conflitos constitucionais aqui invocadas; mas se o seu sentido é aquele que lhe
emergentes de relações jurídicas administrativas ou fiscais, mas não as foi dado nas interpretações recorridas, então essa norma é inconstitu-
de direito penal ou civil. cional porque viola as normas e princípios constitucionais invocados
4ª Os tribunais comuns são os tribunais competentes para o cidadão aí nestas conclusões.
se defender de factos praticados pela A.F., mesmo que estes se baseiem 14ª. Pese o muito respeito que lhes é devido, pelas razões e direito
numa relação jurídica fiscal, por ela alegada mas inexistente. aduzidos nestas conclusões, as doutas decisões recorridas deverão ser
5ª Nos tribunais administrativos e fiscais o cidadão pode pedir a revogadas».
revogação desse acto, mas isso não impede que ele, pela via da acção A entidade recorrida pugnou pelo improvimento do recurso.
e dos procedimentos cautelares cíveis, defenda a posse e propriedade Cumpre decidir.
dos seus bens nos tribunais comuns. II- Os Factos
6ª Os direitos patrimoniais, tal como os direitos de natureza de perso- Considera-se assente a seguinte factualidade:
nalidade, são direitos absolutos, com a natureza de direitos fundamentais 1- A recorrente, Florinda Ferreira Gomes Martins, é dona e possui-
do cidadão (art°. 1305°. do CC e actos. 62°, 17° e 16°, 2 da CRPP, com dora dos prédios rústicos “terreno de cultura e Mato”, “Cerrado da
referência ao art. 17°. da Decl. Univ. dos Dtos do Homem). Vessada”, “Campo do Lameiro Novo” e “campo da Cortinha”, todos
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sitos no lugar de Espinheiros, freguesia de Monte Córdova, concelho Como é sabido, o requisito da competência resulta de necessidade de
de Santo Tirso, inscritos na matriz sob os nºs 2501, 2500, 2490 e 2498, se repartir o poder jurisdicional pelos vários tribunais segundo critérios
descritos na Conservatória do Registo Predial daquele concelho sob diversos.
os nos 01799/281201, 01800/281201, 00812/071196 e 00811/071196, No plano interno, à frente de todos, surge o critério da especiali-
respectivamente (docs. Fls. 8 a 22). zação. A lei, em função do reconhecimento da vantagem em reservar
2- Estes prédios foram objecto de hipoteca legal a favor da Fazenda para cada um dos tribunais aquelas matérias que constituem o núcleo
Nacional, no âmbito de uma acção executiva fiscal intentada contra preferencial da sua actividade, fixa a regra da competência (Antunes
“Martimor –Acessórios e Ferramentas Lda”, como garantia de paga- Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, in Manual de Processo Civil,
mento de créditos fiscais de IVA relativo aos anos de 2001 a 2002 e 1987, pag. 197).
coima fiscal do ano de 2003 e respectivos juros e custas, no valor de Ora, no que respeita à jurisdição administrativa e fiscal o art. 1º do
51,499,79 euros (docs. loc. cit. e ainda fls. 56), hipoteca que viria a novo ETAF estatui que «os tribunais da jurisdição administrativa e
ser registada ao abrigo dos arts. 195º, nº3 do CPPT e 687º e 693º do fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a
Código Civil (fls. 57). justiça…nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas
3- Alegando nada dever ao Fisco, nem sequer subsidiariamente a e fiscais».
título de reversão por dívidas de “Martimor-Acessórios e Ferramentas, Numa fórmula semelhante, a Constituição da República Portu-
limitada”, sociedade de que nunca foi gerente, nem de direito, nem de guesa comete «aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento
facto, intentou acção declarativa de condenação no Tribunal Judicial das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os
de Santo Tirso (fls. 1/6). litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais»
3- O Tribunal Judicial de Santo Tirso julgou procedente a excepção (art. 212º, nº3), ao mesmo tempo que, por exclusão, estabelece que
de incompetência material arguida pelo Estado Português na referida «tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal
acção, absolvendo-o da instância (fls. 71/73). e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens
4- O Tribunal da Relação do Porto, em sede de recurso jurisdicional, judiciais» (art. 211º, nº1).
acolheu esta posição, por considerar que a competência para a acção O que quer dizer que o primado na determinação da competência
pertencia à jurisdição administrativa e fiscal (fls. 102/107). vai inteiro para a lei. De tal modo que se a lei não atribuir competência
III- O Direito a alguma jurisdição especial, então a causa cai na alçada do tribunal
judicial (art. 66º do CPC).
1- Da nulidade do acórdão da Relação
O ETAF, a este propósito, aponta em alguns dos seus preceitos a frac-
O presente recurso é típico para a fixação de competência. E porque
ção do poder jurisdicional que pode ser exercida pelos tribunais adminis-
incide sobre uma decisão do Tribunal de Relação que confirma a decisão trativos, fixando-lhes o espaço jurisdicional da actividade a desenvolver
da 1ª instância (de julgar o tribunal judicial incompetente para a acção), no pleito. Mas essa é a competência abstracta, de que destacamos em
ele não consubstancia um conflito de competência entre tribunais ou de matéria contenciosa administrativa, v.g., os arts. 24º, 37 e 43º.
jurisdições distintas, mas representa aquilo a que vulgarmente se designa Resta saber se o tribunal concreto pode julgar a causa que as partes
“pré-conflito” ou, na expressão de Alberto dos Reis, a “prevenção de lhe submetem, tarefa que cai já sob o domínio da competência concreta
conflito futuro”, (C.P.Civil Anotado), obrigatoriamente dirigido ao de cada tribunal.
Tribunal de Conflitos. Pode dizer-se que o tribunal administrativo é competente para a acção
De qualquer maneira, sempre visa a solução para a excepção de se entre esta e aquele (tribunal) existir um nexo jurídico de competência
competência, o que nos leva a concluir que por aí haverá de ficar a (Castro Mendes, in Direito Processual Civil, pag. 646), ou, para utilizar
parcela de jurisdição que ao TC cabe, o que, de resto, nos parece obter as palavras de outro autor, se entre ambos for possível configurar uma
acolhimento pleno no disposto no art. 116º, nº1, do CPC e, ainda mais conexão relevante e decisiva por lei (Anselmo de Castro, in Lições de
especificamente, no art. 107º, nº2 do mesmo Código, “in fine”, quando Processo Civil, II, pag. 400).
estabelece que o recurso interposto para este tribunal é «…destinado Para o efeito importa perscrutar os índices de competência, olhando
a fixar a competência». Por isso, aí se esgota, portanto, o nosso poder para a acção de acordo com os termos em que ela foi proposta, seja
decisório, o que impede o Tribunal de Conflitos, por exemplo, de co- quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solici-
nhecer de questões que transcendem o seu específico objecto, como é, tada, natureza do direito para o qual pretende a tutela judiciária, facto ou
por exemplo, o caso da nulidade do acórdão recorrido. acto donde teria resultado esse direito, etc), seja quanto aos elementos
Na verdade, a nulidade de sentença por omissão de pronúncia sus- subjectivos (identidade e natureza das partes).
citada (art. 668º, nº1, al. d), do CPC) não cabe no âmbito deste tipo O pedido do autor é, neste aspecto, o limite da competência. A compe-
de recurso, o qual, mesmo ordinário (Ac. do TC de 1//12/97, Proc. nº tência, ensina Redenti, «afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum,
000316), apenas tem por missão a “resolução dos conflitos”, quando em antítese com aquilo a que será mais tarde o quid decisum)». Costuma
existam (cfr. art. 98º da LPTA) ou “fixar a competência” para decidir o dizer-se, neste caso, que a competência se determina pelo pedido do
mérito da questão submetida ao tribunal. autor (Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil,
Eis por que não apreciaremos a arguida nulidade. pags. 90/91; Acs. do STA de 26/05/1999, Rec. nº 40 648; de 30/06/1999,
2- Do mérito do recurso Rec. nº 46 161. Também do Tribunal de Conflitos, de 11/07/2000, Proc.
222 223

Nº 318, in AD nº 468/1630; 5/02/2003, Proc. Nº 6/02; 8/07/2003, Rec. comum que representa «aquilo que é necessário para que os homens
nº1/03 e de 9/07/2003, Proc. Nº 9/02, entre outros). vivam, mas vivam bem», segundo São Tomás de Aquino) que se associa
Tivéssemos nós unicamente presente que, afinal de contas, o que se à satisfação de necessidades colectivas (F. Amaral, in Direito Admi-
discutia era um direito de propriedade do A., pretensamente violado, nistrativo, II, pag.36). Sendo assim, trata-se de uma noção que acentua
numa perspectiva unicamente civilista, teríamos já a solução para a a ideia de interesse geral ou interesse comum, de modo a favorecer a
controvérsia, pois que os tribunais administrativos não são especialmente totalidade ou pelo menos uma parte importante de uma comunidade.
aptos para resolução de questões emergentes de conflitos de direitos de Um interesse público, geral, colectivo, comum, é assim um interesse
propriedade sobre imóveis. objectivo, insusceptível de individualização: por pertencer a um grupo
Se, no entanto, virmos mais de perto os termos em que a acção foi indiferenciado, não se identifica com os interesses próprios dos seus
proposta, quer quanto aos elementos objectivos, quer quanto aos sub- membros.
jectivos, até mesmo quanto à essência dos pedidos formulados, já a Ora, não se duvida que o interesse da Administração Fiscal na co-
solução se nos afigura, necessariamente, outra. É que, a alegada “vio- brança da obrigação tributária deriva de um interesse público: o interesse
lação” do direito de propriedade só surge “ex vi” do accionamento do Estado na obtenção de receitas públicas para levar a cabo as múltiplas
de uma garantia patrimonial em ordem ao pagamento de uma dívida funções e tarefas que lhe incumbem e que dele demandam avultados
fiscal. Isto é, não está em discussão nos autos se a propriedade sobre meios económicos. Na medida em que a despesa que o Estado efectua
determinados bens pertence por direito à autora, pois sobre isso não há assenta no dever de promover o desenvolvimento do país e o bem estar
conflito que urja composição, mas sim, se a hipoteca legal accionada dos seus cidadãos, a receita que o direito fiscal lhe proporciona serve
sobre aqueles bens assenta em pressuposto de facto existente e válido, para atingir esse fim e, assim, realizar o interesse geral e colectivo.
quer dizer, se houve reversão válida contra a autora e se esta é ou não E é precisamente nesse pressuposto que a natureza dos interesses
devedora, mesmo subsidiariamente, à Administração Fiscal de alguma impõe que os litígios verificados a esse nível se dirimam nos tribunais
soma de dinheiro. Sejamos, portanto, rigorosos: o que a autora quer é tributários, dentro da ordem dos tribunais administrativos, como este
ver afastada a hipoteca sobre os seus bens. Só que isso conduz-nos logo mesmo tribunal já concluiu (neste sentido, v.g., Ac. do Tribunal de
para outro campo de estudo, que acabará por desaguar em conclusão Conflitos, de 12/10/2004, Proc. nº 03/04).
contrária àquela por que a autora se bate. Mas, se por fim quisermos levar em linha de conta a posição dos
Mas vejamos em mais pormenor. sujeitos da relação jurídica estabelecida entre a Administração e o con-
Recordemos que em causa estava um crédito tributário de IVA, de tribuinte, é bem claro que aquela intervém com uma qualidade que lhe
coima e juros respectivos e que, por falta de pagamento voluntário, viria
confere, por lei, e em razão do interesse publico que prossegue, uma
a ser alvo de um processo de execução fiscal. Crédito que o Fisco detinha
sobre o devedor originário, “Martimor Acessórios e Ferramentas, Lda”, posição de “potestas” e de supremacia sobre o outro sujeito da relação,
mas cuja execução viria a ser revertida contra a autora por despacho de impondo-lhe unilateralmente a sua vontade, por via da necessidade de
fls. 58, ao abrigo dos arts. 24º, nº1, al.b) da Lei Geral Tributária e 8º, realização do referido fim (Ac. do Tribunal de Conflitos, 18/12/2003,
nº1 do Regime Geral das Infracções Tributárias. Proc. nº 02/03).
Ora, a execução fiscal é o mecanismo posto à disposição da Admi- Essa posição de sujeito activo está patente não só na criação do
nistração Fiscal tendente à cobrança coerciva de tributos e de coimas imposto, do tributo, isto é, no poder de instituir impostos tout court - e
(entre outras dívidas: art. 148º,CPPT). Nasce, assim, de uma relação que não exorbita de um poder tributário de feição legislativa (mas não
jurídico-fiscal, que mesmo sendo obrigacional (obrigação fiscal), não é esse o poder que aqui interessa evidenciar) -, mas ainda na titulari-
deixa de ser de direito público (Soares Martinez, in Direito Fiscal, dade do crédito tributário no âmbito de uma relação tributária material
Almedina, pag. 161). O direito fiscal, ou direito tributário, é, de resto, ele e, finalmente, com particular ênfase e especial interesse para o caso
mesmo um ramo de Direito Público (António Braz Teixeira, Princípios que nos ocupa, na relação tributária formal no quadro já de um poder
de Direito Fiscal, Vol. I, 3ª ed., pag. 23). instrumental de aplicação da norma tributária e, assim, no uso concreto
Mas, além de disciplinada pelo direito público aquela relação, se- de um processo tendente à cobrança da dívida (Soares Martinez, in
rão, por outro lado, públicos os interesses que o Estado nela defende? Manual de Direito Fiscal, 1990, Almedina, pag. 275 e sgs.).
A importância da resposta decorre do facto de, segundo o critério da Tudo se passa, por conseguinte, numa ambiência publicística.
natureza dos interesses, a relação ser de direito administrativo se em Como se diz no citado aresto do Tribunal de Conflitos «O Estado
causa estiver um interesse da colectividade (M. Caetano, in Manual de actuou no exercício de um poder público, apreendendo judicialmente
Direito Administrativo, I, pag. 45; Pires de Lima e Antunes Varela, o bem, para se garantir de uma divida de que é credor, ou nessa qua-
Noções Fundamentais de Direito Civil, 1973, I, pag. 45). lidade.
Por nossa parte, desde já adiantaremos, sem esforço, que o interesse Usou das “armas de Estado”, como Administração fiscal e como
subjacente era, efectivamente, público. titular do poder tributário sobre os seus cidadãos – pessoas singulares
Como se costuma dizer, público é aquele que respeita à existên- ou jurídicas (…). Tanto é dizer que, a qualidade em que intervém o
cia, conservação e desenvolvimento da colectividade política e so- Estado, na relação conflituosa donde emerge o recurso, não é idêntica
cialmente organizada, daí que esteja presente em todas as normas a um qualquer exequente particular, a requerimento do qual se fizesse
jurídico-administrativas (M. Caetano, ob. cit., I, pag. 49). É o interesse judicialmente a penhora de um determinado bem, para garantir uma
colectivo, o interesse geral de uma comunidade, é o bem comum (bem divida privada, que atingisse esfera jurídica de outrem, não devedor. A
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divida é fiscal, (Por outras palavras, trata-se de “um crédito emergente Acórdão de 5 de Dezembro de 2006.
de relação juridico-tributária proveniente de tributo fiscal”».
Já agora, “ex abundanti”, por nos parecer de particular utilidade à Recurso n.º 8/06-70.
hermenêutica em apreço, importa olhar para o que dispõe o art. 151º Requerentes: Manuel João Leitão Ferreira Dias e outros, no conflito
do CPTT: negativo de jurisdição entre o 2.º Juízo do Tribunal do Trabalho de
«1.Compete ao tribunal tributário de 1ª Instância da área onde correr a Lisboa e os Tribunais Administrativos e Fiscais.
execução, depois de ouvido o Ministério Público nos termos do presente Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. João Camilo.
Código, decidir os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando
incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, a gradua- Acordam no Tribunal dos Conflitos:
ção e verificação de créditos e as reclamações dos actos materialmente
administrativos praticados pelos órgãos de execução fiscal. Manuel João Leitão Ferreira Dias e outros, com os demais sinais nos
2. O disposto no presente artigo não se aplica quando a execução fiscal autos, intentaram no Tribunal do Trabalho de Lisboa “acção declarativa
deva correr nos tribunais comuns, caso em que cabe a estes tribunais o emergente de contrato individual de trabalho”, sob a forma de processo
integral conhecimento das questões referidas no número anterior». comum, contra o Instituto de Solidariedade e Segurança Social (dora-
Também para o art. 4º, nº1, do ETAF: vante ISSS), também devidamente identificado nos autos, pedindo que
«1. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a o Réu fosse condenado:
apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: a) a “cumprir o Contrato de Comissão de Serviço celebrado com os
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como direitos e interesses autores, até à data do seu termo, como Directores do CDSSS e (…) a
legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas pagar 4.452,68 euros mensais desde 24 de Setembro de 2001 até 1 de
de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos pra- Fevereiro de 2004, a que haverá que deduzir o vencimento das actu-
ticados ao brigo de disposições de direito administrativo ou fiscal». ais funções que desempenham, pelo que o ISSS deve ser condenado
Tanto basta. Se tudo isto é assim, e se o que a autora pretende é afastar a pagar aos autores os salários vencidos e vincendos (nos seguintes
a hipoteca e respectivo registo legal sobre seus prédios no âmbito de montantes …),
um processo de execução fiscal (e apensos) instaurado no Serviço de b) “subsidiariamente, sem conceder, e se assim não se entender [fosse]
Finanças de Paços de Ferreira – hipoteca, de resto, constituída ao abrigo o ISSS condenado a pagar [aos autores] pela cessação da Comissão de
do art. 195º, nº1, do CPTT (DL nº 433/99, de 26/10) – com o argumento Serviço a indemnização, também, nos montantes referidos na alínea a)
de que nada deve ao Fisco e de que, por isso, ela fora ilegal, também por deste pedido” e
atentar contra o seu direito de propriedade, então a reacção que o presente c) “[em] juros vincendos a partir da citação”.
processo patenteia, independentemente da forma de processo utilizada e O Réu contestou, suscitando – no que agora interessa –, a título de
da nomenclatura mais adequada - impugnação de actos lesivos (art. 49º, excepção dilatória, a questão da incompetência absoluta do Tribunal do
nº1, al.a), iii, e d) do ETA), oposição (cit. art. al. d)), impugnação da sua Trabalho de Lisboa para conhecer do pedido formulado pelos Autores,
legitimidade enquanto responsável subsidiária (cit. art, al. d)), até mesmo chamando à colação a natureza da relação jurídica subjacente, que disse
reclamação (art. 276º do CPTT) - é própria de um processo a correr ser de funcionalismo público e, por conseguinte, regulada pelo direito
perante os tribunais tributários, pois que assim o impõem os arts. 151º administrativo, razão pela qual “a excepção dilatória de incompetência
do CPTT e 4º e 49 do ETAF (no mesmo sentido, ver citado acórdão do absoluta do Tribunal” devia ser julgada “procedente” e, em consequência,
Tribunal de Conflitos de 12/10/2004, Proc. nº 03/04). ser o Réu “[absolvido] (…) da instância”.
O que tudo significa, sem adicionais e escusadas delongas, que a Responderam os Autores, concluindo pela improcedência da excep-
jurisdição apropriada ao conhecimento da acção em que é pedido o ção, porquanto estava “claramente demonstrada a existência de relação
cancelamento do registo da hipoteca, com fundamento na ilegalidade da laboral entre os Autores e o réu”, à qual será de aplicar o “regime jurídico
reversão e da garantia, e bem assim o pagamento de indemnização pelos do contrato individual de trabalho e o preceituado nos regulamentos
prejuízos que a hipoteca vem causando ao revertido é a administrativa internos do ISSS”, caindo, deste modo, no âmbito da competência, em
e fiscal, a cujo tribunal tributário da área onde corre a execução caberá razão da matéria, do Tribunal do Trabalho de Lisboa.
O Tribunal do Trabalho de Lisboa entendeu que a relação jurídica
a respectiva competência.
estabelecida entre os Autores e o Réu era de direito administrativo, pelo
IV- Decidindo
que, por despacho a fls. 587 e ss, julgou “procedente a excepção de
Face ao exposto, acordam os juízes deste Tribunal de Conflitos em
incompetência [absoluta] do Tribunal do Trabalho” e, em consequência,
negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido e decla-
absolveu o réu da instância, nos termos do disposto nos art.s 101.º, 102.º,
rando o tribunal tributário da área onde pende a execução o competente
103.º, 105.º e 288.º, n.º 1, alínea a), todos do CPC, aplicáveis ex vi
para a acção.
alínea a) do n.º 2 do art. 1.ºdo CPT.
Sem custas (art. 97º do Dec. nº 19243, de 16/01/1931).
E recordou que os Autores (dirigentes por nomeação em comissão
Lisboa, 29 de Novembro de 2006. — José Cândido de Pinho (re- de serviço para o desempenho dos cargos de directores do CDSSS)
lator) — João Manuel de Sousa Fonte — Rui Manuel Pires Ferreira já haviam reagido judicialmente – por via de recurso contencioso de
Botelho — José Amílcar Salreta Pereira — Jorge Artur Madeira dos anulação, acção que ainda se encontra a correr termos nos Tribunal Ad-
Santos — Maria Laura de Carvalho Leonardo. ministrativos – contra o então projecto de despacho de Sua Excelência
226 227

a Secretária de Estado da Segurança Social e Solidariedade, quando Determinada segundo vários critérios, a competência encontra-se
notificados do sentido provável da decisão, ainda na fase de audiência dividida pelas várias espécies de tribunais, entre outros fundamentos,
dos interessados, decisão essa que se consubstanciava em fazer cessar segundo a natureza da matéria, distribuindo-se assim os litígios por
as correspondentes comissões de serviço. “categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal,
Inconformados com este despacho que julgou procedente a excepção sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência)
de incompetência do Tribunal do Trabalho, os Autores dele interpuseram entre elas” (v. Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2.ª
recurso de agravo para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual foi ad- Edição, p. 207).
mitido e cujo âmbito se reconduziu tão-só à questão da (in)competência. Os tribunais judiciais constituem, a par dos tribunais administrativos
Atendendo a que “a competência material do tribunal se afere pelos e fiscais e do Tribunal de Contas, uma das três categorias, constitu-
termos em que a acção é proposta (…) e que se determina pela forma cionalmente consagradas, de tribunais permanentes. Por outro lado,
como o autor estrutura ou configura o pedido e os respectivos funda- “constituem a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam
mentos ou causa de pedir”, (…) “sendo irrelevantes, para este efeito, as de competência não discriminada (competência genérica), enquanto os
qualificações jurídicas dessa pretensão efectuadas pelo autor, bem como restantes tribunais, constituindo excepção, têm a sua competência limi-
o juízo de prognose que se possa fazer relativamente à viabilidade da tada às matérias que lhes são especialmente atribuídas” (idem, p. 208)
mesma, por se tratar de questão atinente ao mérito da causa”, o Tribunal É o que resulta do art. 211.º, n. 1, da CRP, bem como do art. 18.°
da Relação de Lisboa, tendo em conta os factos alegados na petição da LOFTJ e do seu regulamento, aprovados pela Lei n.º 3/99, de 13
inicial, qualificou os Autores como funcionários públicos. de Janeiro, Decretos-Lei n.º186-A/99, de 31 de Maio, e 178/2000,
Terminando o aresto da seguinte forma: de 9 Agosto, respectivamente, normas que consagram a competência
“os cargos dos enquanto Directores do CDSSS, se iniciaram e ces- dos tribunais judiciais para as causas que não sejam atribuídas a outra
saram por meio de actos administrativos, invocando a cessação ilegal ordem jurisdicional.
das suas comissões de serviço, por despacho do Secretário de Estado, De modo que, primeiramente, ter-se-á que aferir se o caso em apreço
como aliás, os próprios recorrentes reconhecem ao interporem recurso cai no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, âmbito genericamente
contencioso para os tribunais administrativos.” definido em termos constitucionais pelo art. 212.º, n.º 3, da CRP, ao
“Deste modo, estando em causa a legalidade de actos administrativos, atribuir aos tribunais administrativos e fiscais a competência para o
que se repercutiam sobre os contratos administrativos de direito público, “julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto
que os autores detêm com o Estado face à sua qualidade de funcionários dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e
públicos, à luz do art. 85 ª da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, (LOTJ) fiscais”, e concretizado, em termos ordinários, pelo art. 3.º do ETAF,
os tribunais do trabalho são incompetentes em razão da matéria para o aprovado pelo Decreto-Lei n.º 124/84, de 27 de Abril.
conhecimento desta acção.” Sem esquecer que, na aferição da competência, o tribunal não está
E, nestes termos, foi proferido acórdão a “[negar] provimento ao vinculado à qualificação jurídica, e o mesmo se diga relativamente às
recurso, [confirmando] o despacho recorrido.” considerações de direito, que os Autores fazem dos factos apresentados
Novamente inconformados, os recorrentes interpuseram recurso de na petição inicial, pois a competência deve ser apurada tendo em conta
agravo, em 2.ª instância, para o Supremo Tribunal de Justiça, que veio tão só e apenas o modo como estruturaram a causa de pedir e exprimiram
a ser admitido, por despacho de 22 de Novembro de 2005, pelo Tri- a correspondente pretensão em juízo.
bunal a quo. Este entendimento doutrinal tem vindo a ser afirmado pela jurispru-
O Réu, na contra-alegação, suscitou a questão prévia do conhecimento dência, designadamente, a deste Tribunal de Conflitos, nomeadamente,
do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça por considerar o Acórdão, de 7/5/91, proferido no processo n.º 231 (Apêndice ao
caber antes a sua apreciação ao Tribunal dos Conflitos. DR de 30/10/93), o Acórdão, de 6/5/91, proferido no processo nº. 230
E, de facto, invocando o disposto no art. 107.º do CPC, o Supremo (Apêndice ao DR de 30/10/93) e o Acórdão, de 26/9/96, proferido no
Tribunal de Justiça decidiu que “não cabe [a este] Supremo Tribunal processo nº. 267 (Apêndice ao DR de 28/11/97), bem como, entre outros,
conhecer do presente agravo, sendo competente para dele conhecer os Acórdãos do STJ, de 12/01/94, 09/05/95 e 04/03/97, in Colectânea
o Tribunal de Conflitos, a quem se remeterão, oportunamente, os de Jurisprudência do STJ n.º 94 – 1º., p. 38, n.º 95 – 2º, p. 68 e 97, 1º,
autos.” pág. 125, respectivamente).
O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal dos Interessa caracterizar a relação estabelecida entre os Autores e o Réu
Conflitos emitiu douto parecer, segundo o qual “o conhecimento da tal como foi apresentada por aqueles, por conseguinte, atender-se-á:
presente acção contra o ISSS, com fundamento em contrato individual a) Ao primeiro pedido, que consiste em condenar o Réu no cumpri-
de trabalho, pertence aos Tribunais Judiciais e destes aos Tribunais do mento do “Contrato de Comissão de Serviço celebrado com os autores,
Trabalho (art.s 18.º e 85.º, al. b) da LOFTJ)”, devendo, assim, “conceder- até à data do seu termo, como Directores do CDSSS e seja o réu con-
-se provimento ao recurso, revogar-se o acórdão recorrido e declarar-se denado a pagar 4.452,68 euros mensais desde 24 de Setembro de 2001
competente para o conhecimento da acção o Tribunal do Trabalho de até 1 de Fevereiro de 2004, a que haverá que deduzir o vencimento das
Lisboa”. actuais funções que desempenham, pelo que o ISSS deve ser condenado
Vejamos. a pagar aos autores os salários vencidos e vincendos (nos seguintes
A competência baliza a jurisdição de cada tribunal. montantes …)”,
228 229

b) Ao segundo pedido, formulado subsidiariamente (“sem conceder, e [No que concerne ao aditamento, os Autores invocam o vício de
se assim não se entender”), que visa a condenação do Réu no pagamento incompetência absoluta, que gera a nulidade, para além de alegarem
de uma indemnização, também, nos montantes referidos na alínea (ante- tratar-se de uma alteração ao contrato de comissão de serviço sem
rior), a favor do “autor pela cessação da Comissão de Serviço”. necessário consentimento dos Autores, pelo que a estas comissões de
c) E ainda um terceiro, segundo o qual “o réu [deverá ser] condenado serviço não poderia ser aplicável esta forma de cessação do exercício
em juros vincendos a partir da citação”. do cargo, caso contrário seria violado o princípio da boa fé das partes
Daqui se retira que os traços estruturais que os pedidos empres- contratantes e, se outro fundamento não existisse, seria um claro abuso
tam à acção não são decisivos para a caracterizar como pertencente a de direito.]
qualquer das espécies em confronto – “acção emergente de contrato 6. Ter sido na sequência desta alteração que Sua Excelência a Secretá-
individual de trabalho” ou “meio contencioso pertencente aos tribunais ria de Estado da Solidariedade Social, por despacho de 19 de Setembro
administrativos”. de 2002, fez cessar as comissões de serviço dos Autores;
Acontece, porém, que a ausência de tais elementos decisivos não se 7. Não ser de aplicar às comissão de serviço dos Autores, em termos
verifica somente nos traços estruturais, pois, na verdade, não se retira de de Direito de Trabalho, o Decreto-Lei n.º 49/99, de 22 de Julho, que se
todo o teor do pedido da acção qualquer marca decisiva ou impressiva aplica exclusivamente aos dirigentes do Estado.
que nos reconduza à natureza juslaboral ou administrativa da matéria. 8. Só contavam estar e estavam (os Autores) abrangidos pelas cláu-
Ou seja, não é de excluir que aqueles pedidos pudessem resultar de sulas contratuais decorrentes do Despacho de Nomeação em Comissão
uma acção sobre contratos administrativos, bem como de uma acção de Serviço, as do Regulamento de Pessoal Dirigente e de Chefia, as dos
sobre responsabilidade civil, meios de acesso aos tribunais adminis- Estatutos do ISSS e, subsidiariamente, as leis do regime jurídico do
trativos previstos no ETAF e na LPTA e que integram o “contencioso contrato individual de trabalho.
(administrativo) por atribuição”. Ora, é certo que os Autores, aqui e ali, avocam uma terminologia
De igual modo, também não será de excluir que esses mesmos pe- própria do Direito Administrativo para imputarem ilegalidades ao acto
didos pudessem resultar de um litígio laboral, por constar no teor dos que determinou a cessação de comissão de serviço, terminologia que
pedidos a expressão “salários vencidos e vincendos”. Pese embora, tal corresponde ao domínio do direito público, referenciando até a existência
expressão, desacompanhada de outras, tenha um valor indicativo ou de de um litígio na jurisdição administrativa, mas, na verdade, resulta do
simples sugestão, não relevando, pela insuficiência que lhe é inerente, articulado que as alegadas invalidades derivam da introdução da alínea f)
de forma decisiva ou impressiva para se poder reconduzir o litígio ao ao n.º 1 do Regulamento do Pessoal Dirigente e de Chefia do Instituto de
contencioso juslaboral. Solidariedade Social pelo Despacho n.º 18 006/2002, de 19 de Setembro
Será então necessário apreciar a causa de pedir para que esta indagação de 2002, que os Autores advogam ser inaplicável e/ou ilegal.
se complete, visto ser necessário caracterizar a relação estabelecida entre Daí que os Autores tenham aceitado, em sede de resposta às excep-
os Autores e o Instituto de Solidariedade Social. ções, que a questão da invalidade do Despacho acima identificado “pode
Pertinentemente, releva dos autos (no que à causa de pedir respeita), ser considerada uma questão prejudicial a esta acção” e que por esse
além do mais, o seguinte: fundamento a instância pode ser suspensa – o que a final requerem (cf.
1. Ser o Réu uma pessoa colectiva de direito público dotada de auto- fl. 522 dos autos).
nomia administrativa, financeira e patrimonial, com natureza de instituto Todavia, no caso vertente, é patente que os Autores localizaram a
público, nos termos dos respectivos estatutos; origem do litígio numa relação de direito laboral, identificaram a fonte
2. Terem os autores sido nomeados, em regime de comissão de serviço, como sendo um contrato individual de trabalho e somente invocaram as
para o exercício dos referidos cargos públicos, pelos despachos (…) de cláusulas contratuais decorrentes do despacho de nomeação em comissão
Sua Excelência o Ministro do Trabalho e da Solidariedade; de serviço, as do Regulamento de Pessoal Dirigente e de Chefias, as
3. Terem os Autores ficado a auferir, mensalmente, a remuneração dos Estatutos do ISSS e, subsidiariamente, as leis do regime jurídico
base correspondente a Director Distrital, nos termos do Regulamento do do contrato individual de trabalho.
Pessoal Dirigente e de Chefia (Despacho n.º 11464, DR, II Série, de 30 O Tribunal dos Conflitos, no Acórdão de 19 de Janeiro de 2006 (proc.
de Maio) e previsto na tabela remuneratória aprovada pelo Ministério n.º 13/05), salientou: “o que releva para a questão da competência em
do Trabalho e da Solidariedade; razão da matéria é o facto de o Autor alegar estar vinculado ao Réu
4. Não ter havido nenhuma deliberação do Conselho Directivo do através do regime de contrato individual de trabalho, de os termos com
ISSS no sentido de cessar as referidas comissões de serviço que, a existir, que caracteriza a sua situação serem compatíveis com um contrato deste
conforme o art. 12.º, n.º 2, do Regulamento de Pessoal Dirigente e de tipo e de ser esse contrato de direito privado o fundamento da pretensão
Chefia, teria que ser fundamentada; formulada de ver reconhecidos direitos que a lei estabelece para os
5. Ter havido, por iniciativa de Sua Excelência a Secretária de Estado trabalhadores vinculados por contratos deste tipo.”
da Solidariedade, um aditamento às alíneas do art. 12.º do Regulamento Hodiernamente, o Estado, bem como outras pessoas colectivas pú-
do Pessoal Dirigente e de Chefia do ISSS, que se consubstanciou na blicas, mantém com muitas pessoas relações de colaboração fora do
inclusão de uma alínea f) ao art. 12.º do dito Regulamento, consagrando domínio do direito público e, por conseguinte, de qualquer relação de
a possibilidade de as comissões de serviço cessarem por despacho fun- emprego público – é justamente o caso do pessoal do ISSS, sujeito ao
damentado do Ministro da Segurança Social e do Trabalho nos termos regime do contrato individual de trabalho (cf. artigos 23.º, 25.º, 29.º,
do artigo 20.º, n.º 2, al. a) da Lei n.º 49/99, de 22 de Julho. 37.º e ss, todos do Decreto-Lei n.º 316-A/2000, de 7 de Dezembro) e,
230 231

neste sentido, v. Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 26 de Abril de que, subsequentemente, manteve natureza idêntica (carácter jurídico
2006, proc. n.º 06/05. público)” – in Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 18 de Janeiro de
Mas também é verdade que nas relações estabelecidas há inúmeras 2006, no âmbito do processo n.º 19/05.
vezes uma aplicação miscigenada do direito público e do direito privado, Aliás, situação, desde logo, salvaguardada pelo art. 38.º dos Estatutos
tornando legítima a atracção dos litígios daí emergentes para a jurisdição do ISSS, sob a epígrafe “Mobilidade”, que especialmente prevê esta
administrativa, chamada para a resolução total do litígio, mesmo que situação.
implique a análise de aspectos de natureza privada que, por princípio, Nesta medida, o “regime jurídico do pessoal do quadro específico,
caberiam a outra jurisdição. definido nos Estatutos do ISSS e no Regulamento de Pessoal Dirigente
Contudo, sempre se dirá que podem ser estabelecidos por via regu- e de Chefia do ISSS e, subsidiariamente, nas normas e princípios que
lamentar os moldes queridos para as condições de recrutamento, de regem o contrato individual de trabalho, não tem o condão de alterar
exercício e de cessação dos cargos de pessoal dirigente de uma pessoa a natureza do vinculo jurídico-administrativo anteriormente existente,
colectiva de direito público dotada de autonomia administrativa, finan- como bem flui da leitura conjugada dos referidos artigos 37.º e 38.º dos
ceira e patrimonial, designadamente, de um instituto público, regime Estatutos do ISSS” – in Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 18 de
esse que pode apresentar um pendor mais administrativista ou, pelo Janeiro de 2006, proc. 19/05.
contrário, mais privatista. Eis os pontos que relevam para a questão da competência em razão
In casu, decorre do art. 37.º do Estatuto do ISSS, aprovado pelo Decreto- da matéria.
-Lei n.º 316-A/2000, de 7 de Dezembro, que “ao pessoal do ISSS aplica-se Compulsados os autos, junto se acha uma outra dificuldade – não ser
o regime jurídico do contrato de trabalho e o preceituado nos regulamentos admissível a presente cumulação de Autores.
internos do ISSS, sem prejuízo do disposto nos presentes estatutos e no Entre os Autores encontram-se, por um lado, funcionários públicos,
diploma que os aprova” e, bem assim, do art. 41.º do mesmo estatuto que vieram exercer funções de dirigentes, por via de uma comissão de
que “as carreiras do pessoal do ISSS abrangido pelo regime jurídico serviço, na pessoa colectiva de direito público que é o ISSS.
do contrato de individual trabalho constam do regulamento interno do Esse status, resultante da relação jurídica de emprego público no
ISSS” (artigos sistematicamente inseridos no capítulo V, cuja epígrafe serviço de origem, impede que o fundamento da pretensão formulada
é “Do pessoal”). pelos Autores se possa identificar, tão só e apenas, com um contrato de
No que concerne à estrutura orgânica interna deste Instituto, será de trabalho regulado pelo direito privado.
atender ao Regulamento do Pessoal Dirigente e de Chefia do ISSS – que Por outro lado, encontramos Autores que, não sendo funcionários
foi aprovado por Despacho n.º 11 463/2001, de 23 de Abril de 2001,
públicos, vieram exercer funções de dirigentes, por via de uma comis-
(entretanto alterado pelo Despacho n.º 18 006/2002, de 17 de Julho
de 2002), ao abrigo do art. 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 316-A/2000, são de serviço, na pessoa colectiva de direito público que é o ISSS,
e do art. 41.º, n.º 1, dos Estatutos do ISSS e, ainda, da delegação de apresentando como fundamento da pretensão formulada as relações
competências do Ministro da Solidariedade – para, então, se proceder laborais estabelecidas e às quais é de aplicar o regime de contrato
à análise dos moldes em que se pautam os regimes de recrutamento, individual de trabalho.
nomeação e exercício do cargo de director de centro distrital de soli- Decisão:
dariedade e segurança social e, seguidamente, podermos concluir se os Por derivar dos termos em que a acção foi proposta que, entre os
Autores poderiam exercer, ou não, uma relação de colaboração fora do Autores, uns são funcionários públicos, posições subjectivas que im-
domínio do direito público. primem às relações jurídicas estabelecidas contornos que não fogem
Um director de um centro distrital de solidariedade e segurança ao direito administrativo, e outros não o são, trazendo a juízo relações
social exerce, nos termos do regulamento invocado, um cargo diri- jurídicas que escapam ao direito administrativo por lhes ser aplicável
gente (art. 2.º), dentro da categoria intitulada “Pessoal dirigente e de o direito do trabalho, caberá:
chefia”, que não constitui uma carreira e que é exercido em regime de - À jurisdição administrativa e fiscal apreciar os pedidos formulados
comissão de serviço (art. 3.º), cujo recrutamento é feito por escolha pelos Autores que detêm o estatuto jurídico de funcionários públicos
de entre as pessoas que possuam os requisitos previstos nesse mesmo no serviço de origem,
Regulamento (art. 4.º). - À jurisdição comum apreciar os pedidos formulados pelos demais
Inevitavelmente, haverá que distinguir aqueles que detêm o estatuto de Autores, que se apresentaram na qualidade de titulares de um contrato
funcionários públicos no serviço de origem e que aceitam desempenhar individual de trabalho, e, dentro desta ordem jurisdicional, aos tribunais
um cargo de dirigente no ISSS, pois, neste caso, a presença, ainda que do trabalho, por força do preceituado no art. 85.º, al. b), da LOFTJ.
de forma latente, do regime jurídico do funcionalismo público impede Pelo exposto, e nessa medida, decide-se:
a aplicação sem mais do regime jurídico do contrato individual de tra- a) Revogar parcialmente o acórdão da Relação de Lisboa, julgando-se
balho na relação que entretanto foi estabelecida com o Réu, por estar competentes os tribunais judiciais (art. 18º. da LOFTJ) e, dentro desta
subjacente a impossibilidade de operar “uma conversão do contrato ordem jurisdicional, o Tribunal do Trabalho, por força do preceituado
administrativo existente (…) num contrato de trabalho regulado pelo no artigo 85º., al. b), da LOFTJ, para conhecer dos pedidos formulados
Direito Privado, pois [tratando-se de um funcionário público], a comissão pelos Autores que na acção não se apresentam com o estatuto de fun-
de serviço limitou-se a consubstanciar, não um facto constitutivo de uma cionário público, mas tão só e apenas na qualidade de titulares de um
relação nova, mas um facto modificativo de uma relação pré-existente, contrato individual de trabalho;
232 233

b) Confirmar o acórdão da Relação de Lisboa na parte em que julgou ções de interesse público, que prosseguem, que as leva
competentes os tribunais administrativos para conhecer dos pedidos a não poder adoptar procedimentos diferentes dos nele
formulados pelos Autores que na acção se apresentam com o estatuto tipificados e a actuar numa posição de supra-ordena-
de funcionário público. ção que lhes possibilita o estabelecimento de cláusulas
Sem custas, por não serem devidas (artigo 96.º do Regulamento exorbitantes; ou seja, são contratos administrativos.
aprovado pelo Decreto n.º 19 243, de 16 de Janeiro de 1931). IV — Face ao referido em I, II e III, é de concluir que são compe-
Lisboa, 5 de Dezembro de 2006. — João Moreira Camilo (relator) — tentes os tribunais administrativos para apreciar acção
António da Silva Henriques Gaspar — Rosendo Dias José — Fernando respeitante a questão(ões) derivada(s) da execução de
de Azevedo Ramos — Azevedo Moreira — Baeta de Queiroz. um contrato de empreitada (regulada pelo Decreto-Lei
n.º 59/99, de 2 de Março) para a construção de um cen-
tro social e paroquial celebrado entre uma instituição
particular de solidariedade social e um empreiteiro.

Acórdão de 19 de Dezembro de 2006. Conflito n.º 25/05-70.


Requerente: Construtora da Bairrada — Sociedade de Construções, S. A.,
no conflito negativo de jurisdição entre o Tribunal Judicial da Comarca de
Assunto: Oliveira do Bairro e os Tribunais Administrativos e Fiscais.
Conflito de jurisdição. Empreitada de obras públicas. Insti- Relatora: Ex.ma Sr.ª Cons.ª Dr.ª Maria Angelina Domingues.
tuição privada de solidariedade social. Competência dos
Tribunais Administrativos. Acordam no Tribunal de Conflitos:
1.1. Construtora da Bairrada – Sociedade de Construções, SA., (id.
Sumário: a fls.2), intentou no Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro, “Processo
de Injunção” contra o Centro Paroquial de Angeja, com sede em An-
I — As instituições particulares de solidariedade social são geja, pedindo a notificação deste a fim de lhe ser paga a quantia de
pessoas colectivas de direito privado, com autonomia, € 261.846.45, sendo € 240.314,71 a título de capital e € 21.372,12 a
não administradas pelo Estado, que prosseguem os título de juros de mora. Indicou como causa de pedir o “fornecimento
objectivos enunciados nas diversas alíneas do n.º 1 do de bens ou serviços”.
artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 118/83, de 25 de Fevereiro, Juntou diversas facturas, que alegou respeitarem a autos de medição
que estabelece o seu estatuto legal (artigos 1.º e 3.º desse de trabalhos contratuais.
diploma). 1.2. Invocada, pelo Réu, a incompetência do Tribunal em razão de
II — Estão sujeitas à tutela do Estado, cuja autorização matéria, o Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro, por decisão proferida
dos serviços competentes é necessária para a prática a fls. 164 e segs, julgou procedente a aludida excepção, considerando
de determinados actos, nomeadamente a aquisição de competente para o conhecimento da causa o Tribunal Administrativo
bens imóveis a título oneroso ou a alienação de imóveis de Círculo.
a qualquer título (artigo 32.º, n.º 1), os seus orçamentos
1.3. Inconformada com a decisão referida em 1.2, a Autora interpôs
e contas carecem do visto dos serviços competentes
(artigo 33.º), que poderão ordenar a realização de in- recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual, por acórdão de
quéritos, sindicâncias e inspecções a estas instituições fls. 230 e segs, negou provimento ao agravo, confirmando a decisão do
e seus estabelecimentos (artigo 34.º); as empreitadas Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro.
de obras de construção ou grande reparação deverão 1.4. A Autora interpôs recurso do acórdão da Relação referenciado
ser feitas em concurso ou hasta pública, conforme for em 1.3 para o S.T.J.
mais conveniente (artigo 23.º, n.º 1). Concluiu as respectivas alegações do seguinte modo:
III — Da conjugação da disciplina estabelecida nos preceitos “1ª - O documento de fls. 67 não permite concluir que a empreitada
enunciados no número anterior com a estabelecida no de construção em causa foi financiada, pelo I.S.S.S., em mais de 50 %
artigo 3.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.° 59/99, do respectivo valor de adjudicação à recorrente,
de 2 de Março, é de concluir que a sua gestão está 2ª - Sendo certo que nem pelo recorrido foi junta aos autos, nem
sujeita a um controlo por parte do Estado, donde de- pelos Tribunais Judicial de Oliveira do Bairro e da Relação de Coimbra
corre que estas pessoas são de considerar donas de foi oficiosamente solicitada, certidão comprovativa do concreto valor
obras públicas; o que significa que os contratos por de tal financiamento.
elas celebrados são contratos de empreitada de obras 3ª - O n°5 da Portaria 138/88 de 13 de Março, citado naquele docu-
públicas, regulados pelo referido Decreto-Lei n.° 59/99. mento, expressamente preceitua que o custo total dos empreendimentos
São contratos praticados a coberto de uma ambiência de a financiar pela Segurança Social, inclui, além do custo da construção
direito público, resultante do predomínio de preocupa- propriamente dito, os encargos decorrentes da revisão de preços e de
234 235

erros e omissões do projecto inicial, quando existam, bem como, o do (estes já de todo excepcionais), onde não têm lugar autos de medição,
equipamento fixo e móvel. porque não são “trabalhos”.
4ª - Tal significa que o legislador claramente pretendeu repartir 4ª - Logo, a totalidade da comparticipação concedida pelo Estado, já
a comparticipação estatal por outras vertentes do empreendimento a de si superior a 50 % do valor da adjudicação, destinava-se, toda ela, à
financiar (revisão de preços e de erros e omissões do projecto inicial e obra do contrato de empreitada.
equipamento fixo e móvel) por forma a acautelar que a IPSS interessada 5ª - Desconhece-se a fiabilidade e actualidade da informação constante
utilizasse exclusivamente tal comparticipação na respectiva componente do site oficial da Segurança Social, que nada prova de particularmente
de construção civil, e descurasse, designadamente, a componente de útil para o presente caso, circunscrito, aliás, à questão de direito.
equipamento indispensável ao funcionamento do empreendimento. 6ª - O contrato de empreitada celebrado entre Recorrente e Recorrido
5ª - Isso mesmo foi esclarecido ao recorrido sob o § 4° do documento é um contrato administrativo e, consequentemente, criou entre ambas
de fls. 67. as partes uma relação jurídica administrativa.
6ª - Pelo que, salvo o melhor opinião, face à lei e ao conteúdo de tal 7ª - O Recorrido é uma ‘pessoa colectiva de direito privado e interesse
documento, não colhe o argumento usado no acórdão recorrido de que público’, identificada constitucionalmente como instituição particular de
é “... irrelevante que o financiamento pudesse abranger também 80 % solidariedade social, constituída ao abrigo da legislação que regula estas
do valor dos equipamentos, porque estes não são objecto da empreitada entidades e a quem, por força deste estatuto, o Estado-Administração
e se esta esgotar o «tecto» da comparticipação, esses bens apenas e já devolveu, ou delegou, uma parcela das suas funções em matéria de
não poderão ser candidatos ao financiamento” (sic, fls. 232); solidariedade e de assistência à infância, aos jovens e aos idosos, e a
7ª - Acresce que, da consulta do sítio oficial na Internet do Departa- quem foi, por isso, conferido, pela Administração Pública, o estatuto de
mento de Prospectiva e Planeamento do Ministério das Finanças em ‘pessoa colectiva de utilidade pública.
www.dpp.pt/gestao/ficheiros/piddac_reg_2004.pdf e 8ª - A obra, cuja construção o Recorrido promoveu, foi a do edifício
www.dpp.pt/gestao/ficheiros/piddac_reg_2005.pdf do Centro Social, logo pois uma obra de interesse público, perfeita-
8ª - Resulta que, incluindo equipamento, o ISSS disponibilizou ao mente inserida no seu escopo de entidade vocacionada para as tarefas
recorrido para a realização do projecto de Centro de Dia para 40 idosos, de solidariedade e assistência social.
Apoio Domiciliário para 15 idosos e um ATL para 40 jovens (cfr. doc. 9ª - O Recorrido anunciou a abertura do concurso da construção com
fls. 67) a comparticipação total de 147.290.00 euros, o que corresponde indicações precisas de que os encargos da obra seriam também suporta-
a 29.528.993$78 escudos, dos pela Administração Pública e que o contrato seria regulado em todos
os seus pormenores por normas de direito administrativo.
9ª - Valor muito inferior a 50 % do preço global da empreitada de
10ª - Pelo que a Recorrente sabia, desde o momento em que decidiu
construção adjudicada à recorrente (135.001.304$00). concorrer à construção da obra, que era uma obra também paga pelo
10º - Não estamos, pois, no caso sub júdice no âmbito da previsão Estado, que se destinava a fins de interesse público e que ao contrato
do n° 5, do art° 2°, do DL 55/99, de 2 de Março, seriam aplicadas as normas do regime jurídico das empreitadas de
11ª - Pelo que a empreitada em causa não pode ser equiparada a obras públicas.
«empreitada de obra pública» e, como tal, não está subordinada “ao 11ª - E assim, tratando-se de um contrato administrativo, também por
regime do w contrato administrativo de empreitada de obras públicas» aqui (e talvez até sobretudo por aqui) só os tribunais administrativos são
estabelecido no DL 55/ 99 de 2 de Março. competentes para o julgamento dos respectivos litígios.
12ª - Contrariamente ao sustentado no acórdão recorrido, não se 12ª - Face ao disposto no artigo 684°-A/1 CPCvil, o Recorrido pre-
aplicam, pois, àquele contrato as normas dos art°s 2° , n° 5, e 253°, no tende, no caso de, por mera hipótese, ser atendido o recurso agora
2 desse D.L. 55/99, que, assim, foram violadas pelo Tribunal “a quo”, interposto pela Recorrente, que seja apreciada a questão da natureza
12ª - Sendo, por isso, competente para conhecer do mérito da presente administrativa do contrato de empreitada.”
causa, à luz do preceituado no art° 66° do CPC, que igualmente foi 1.6. No Supremo Tribunal de Justiça, foi proferido pelo Relator do
violado, o Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro.”. processo o seguinte despacho:
1.5. O Réu contra-alegou pela forma constante de fls. 254 e segs, “Construtora da Bairrada — Sociedade Construções, S.A., agra-
concluindo: vou do acórdão da Relação que, negando provimento ao agravo para
“1ª - Para a caracterização do contrato de empreitada como de di- si interposto, confirmou a sentença a julgar competente para conhecer
reito público ou de direito privado, o que é determinante é a definição da acção que propôs contra Centro Paroquial de Angeja o foro ad-
inicial do valor da adjudicação e o montante da comparticipação, e não ministrativo.
a entrega efectiva desta. Ao abrigo do disposto no art. 107-2 CPC competente para fixar o
2ª - Se a caracterização dependesse do efectivo pagamento da compar- tribunal competente é o Tribunal de Conflitos.
ticipação, o contrato teria diferentes naturezas, consoante o respectivo Como assim, remetam-se os autos ao mesmo.”
montante ainda não atingisse, ou ultrapassasse a fasquia dos 50 %. 1.7. No Tribunal dos conflitos, a Exmª Procuradora da República
3ª - Ao prever-se que a comparticipação do Estado era paga através de emitiu o seguinte parecer:
autos de vistoria e de medição dos trabalhos, e com facturas das mesmas “Trata-se de recurso do acórdão da Relação de Coimbra que não
datas, está a excluir-se, ou quando muito a reduzir-se a proporções resi- foi interposto para este Tribunal de Conflitos, como impunha o n.º 2
duais e ínfimas o pagamento de fornecimentos ou de erros de medição do art. 107° do CPC, mas para o Supremo Tribunal de Justiça, que
236 237

não tomou conhecimento do recurso e ordenou a sua remessa a este fundações de solidariedade social da Direcção-Geral da Segurança
Tribunal. Social, com efeitos desde 28 de Junho de 1989. [fls.77]
O referido acórdão, confirmando a sentença do Tribunal Judicial 2. O réu publicitou o anúncio do “concurso público para arrematação
da Comarca de Oliveira do Bairro, julgou esse tribunal incompetente da empreitada de construção do Centro Social e Paroquial de Angeja”
em razão da matéria para conhecer das questões trazida pela autora, na III Série do Diário da República de 19 de Outubro de 2000, onde se
atribuindo tal competência aos tribunais administrativos. refere expressamente que se trata de um “concurso público, nos termos
Ora, conforme este Tribunal de Conflitos tem reiteradamente afirmado, do art. 80.º do DL 59/99 de 2 de Março”. [fls. 60]
a competência dos tribunais é aferida em função dos termos em que a 3. Por oficio de 18 de Dezembro de 2000, O Centro Regional de
acção é proposta, quer quanto aos seus elementos objectivos, quer quanto Segurança Social do Centro informou o réu que fora autorizada, “pelo
aos seus elementos subjectivos. A competência do tribunal não depende despacho superior de 2000/12/13, a adjudicação da empreitada de cons-
assim, da legitimidade das partes ou da procedência da acção. trução do «Centro de Dia ATL» à firma «Construtora da Bairrada, Ld.a»,
No caso em análise, a Requerente, sob a forma de processo de in- por Esc. 135.001.304$00, valor da proposta apresentada a concurso
junção, pretende obter o pagamento do Requerido, de determinada público e ao qual acresce o IVA à taxa legal em vigor” e nesse mesmo
quantia, acrescida dos juros de mora, relativa ao fornecimento de bens
oficio determinou-se que “à medida que a obra for sendo executada
e serviços, obrigação esta emergente de transacção comercial a que se
refere o D.L. n.° 32/2003, de 17/02. devem ser elaborados autos de vistoria e medição de trabalhos, conforme
Como tal, é nos termos da pretensão assim formulada que deve ser minutas anexas e enviados a este serviço acompanhados das facturas
analisada a competência do tribunal para dela conhecer, não obstando ou documentos equivalentes...” [fls. 62]
à fixação dessa competência o facto do Requerido sustentar que as 4. Por ofício de 10.12.2001, o Centro Regional de Segurança Social
facturas de que a Requerente se alega credora, como sendo parte de um participa ao réu: “tendo em atenção as capacidades definidas para cada
preço, reportam-se a um contrato administrativo de empreitada de obras uma das valências inscritas e sendo o custo/máximo por utente de 1.300
públicas e que, por isso, o litígio se refere à execução desse contrato, contos — 100 contos e 900 contos, respectivamente — a comparticipação
sendo consequentemente materialmente competentes para dele conhecer, da Segurança Social foi definida com base nos 80 %, calculados ao abrigo
os tribunais administrativos. dos arts 3º, 4º e 5º da Portaria 138/88 de 01 de Março com o limite de
Na verdade, para decidir da competência material dos tribunais, im- 43.000 contos para as valências de idosos e 29.000 contos para o ATL.
porta caracterizar a relação estabelecida entre Requerente e Requerido, Conforme consta do ponto 1 do art. 5° o financiamento inclui, além do
mas tal como o litígio é apresentado pela primeira. custo da construção propriamente dito, os encargos com a aquisição do
Questão diferente é a de saber se a situação assim descrita está ou não equipamento fixo e móvel necessário ao seu normal funcionamento. A
sujeita ao regime jurídico invocado pela Requerente, a qual se prende comparticipação da Segurança Social é efectuada mediante a apresen-
com o mérito da acção. E, se não for esse regime o aplicável, mas sim tação de Autos de Vistoria e Medição de Trabalhos, acompanhados de
o invocado pelo Requerido, o que sucederá é improceder a acção. facturas ou documentos equivalentes...” [fls. 67]”
Pelo exposto, arrogando-se a Requerente a qualidade de credora 2.2. O Direito
da quantia cujo pagamento pretende, crédito esse que qualifica como 2.2.1. Como resulta do antecedente relato, constitui objecto do pre-
emergente de transacção comercial, nos termos do DL n.° 32/2003, de sente processo decidir a questão da competência, em razão da matéria,
17/02, é materialmente competente para conhecer do pedido o Tribunal sobre que se pronunciou o Tribunal da Relação de Coimbra – o qual
Judicial de Oliveira do Bairro. confirmou a decisão do Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro, que se
Com efeito, a jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente julgou incompetente para conhecer da presente acção, por considerar
definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribu- competente, para o efeito, o Tribunal Administrativo de Círculo – e fixar
ídas a outras ordens judiciais (arts. 211° da CRP e 66° do CPC). qual o tribunal a quem compete apreciar e decidir a acção em causa,
Por outro lado, não podem considerar-se competentes os tribunais
dirimindo este conflito “impróprio” de jurisdição.
administrativos, nos termos dos arts. 212°, n° 3, da CRP e 4° do ETAF,
só porque o Requerido se opôs à injunção, alegando que o litígio dizia Vejamos, pois:
respeito à execução de contrato de empreitada de obra pública. Isto O Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro, onde foi proposta a acção
porque, decidir esta questão seria entrar no conhecimento do mérito. em análise, declarou-se incompetente para o conhecimento da mesma,
Sou, pois, de parecer que o recurso merece provimento, devendo ser por considerar, em síntese, que sendo o Réu financiado na maior parte
revogado o acórdão recorrido e declarado competente o Tribunal Judicial do empreendimento pelo Estado, e estando sujeito ao controlo deste,
de Oliveira do Bairro para conhecer do pedido.” conforme resultaria dos artos 32.º, 33.º e 34.º do DL 119/83, a relação
2. Obtidos os vistos dos Exmos Conselheiros intervenientes no pro- que estabeleceu com a Autora, como dono de obra pública, deve situar-
cesso, cumpre decidir. -se no âmbito de uma contrato de empreitada de obra pública; face ao
2.1. O acórdão recorrido considerou assentes, com relevo para a disposto nos artos 1.º, 2.º, n.º 1, 3.º, 9.º, n.º 2 e 51.º, g), do Estatuto dos
decisão, os seguintes factos: Tribunais Administrativos e Fiscais então em vigor, o DL 129/84, de
“1. O réu, Centro Social Paroquial de Angeja, é uma instituição de 27.4, a competência para o conhecimento da acção em causa cabe aos
solidariedade social, reconhecida como pessoa colectiva de utilidade tribunais administrativos, o que é corroborado pelo artº 253.º, nos 1 e 2,
pública, mediante o registo definitivo dos seus estatutos em livro das do aludido DL 59/99.
238 239

O Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso afere-se em função da relação material controvertida, atendendo aos
interposto desta decisão do Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro, termos em que é formulada a pretensão do Autor, incluindo os seus
aduzindo, embora, diferente fundamentação jurídica. fundamentos.
Com efeito, tendo como assente que a empreitada dos autos “– Foi A Autora, ora recorrente, embora tenha invocada no seu requerimento
financiada em 72.000 contos (43.000 + 29.000 contos), num preço glo- inicial, como causa de pedir “o fornecimento de bens ou serviços”,
bal de 135.001.304$00; logo, em mais de metade (135.001.304$00: 2= reconheceu, na réplica, tal como o Réu excepcionou na respectiva Opo-
67.500.652$00), sendo irrelevante que o financiamento pudesse abranger sição ao pedido, que as facturas cujo pagamento reclamou no processo
também 80 % do valor dos equipamentos, porque estes não são objecto de injunção dizem respeito ao contrato de empreitada de construção
da empreitada e se esta esgotar o «tecto» da comparticipação, esses bens do Centro Social e Paroquial de Angeja, celebrado com o Réu, após
apenas e já não poderão ser candidatados ao financiamento; concurso público publicitado no DR III Série de 19.10.2000.
– O financiamento é directo, incidindo sobre a própria obra, por O ponto de discordância, a este propósito, passou, pois, a situar-se tão
entrega de fundos, mediante vistorias e medições pontuais (fls. 67) e só na natureza pública (posição do Réu) ou privada (tese da Autora) do
não através de financiamento da actividade geral do réu, sem afectação contrato de empreitada em causa, e nos consequentes reflexos quanto
específica e predeterminada; e ao tribunal competente para dirimir o litígio, como, de resto, é também
– O financiador – Instituto de Solidariedade e Segurança Social – é, evidenciado pelas alegações da Autora nos recursos que interpôs para o
enquanto instituto público, uma das entidades referidas no art. 3° do Tribunal da Relação e para o Supremo Tribunal de Justiça.
DL 55/99 [n° 1, alínea b].”, considerou que o contrato em causa estava Não tem, assim, razão o M.º Público quando sustenta, no parecer
subordinado ao regime do “contrato de empreitada de obras públicas”, emitido sobre a decisão a proferir no presente recurso, que, para a de-
estabelecido no DL 55/99, apenas por força da equiparação legal sem terminação da competência do Tribunal, se deverá atender, apenas, ao
reserva a que se reporta o art.º 2.º, n.º 5 do DL 59/99 “e não porque: pedido formulado pela Autora no requerimento inicial do processo de
«– Estejamos em presença do próprio e paradigmático contrato admi- injunção, arrogando-se a qualidade de credora de determinada quantia a
nistrativo (ou no interior de uma relação jurídica administrativa; título de “fornecimento de bens ou serviços”, com origem em transacção
– A obra objecto da empreitada seja uma “obra pública” ou comercial a que se refere o DL 32/2003, de 17.2, e que, nessa perspectiva,
– O réu, dono da obra, seja, ele próprio “dono de coisa pública” por competentes para o julgamento da causa seriam os tribunais comuns.
ser uma das entidades “criadas para satisfazer de um modo específico Prosseguindo:
necessidades de carácter geral”, compreendidas nas alíneas do art.º 3º Não se conhecem decisões do Tribunal de Conflitos que tenham
do DL 55/99»
incidido sobre situações idênticas à dos autos. Porém, questão seme-
E, nesta linha de entendimento, concluiu que competentes para dirimir
as questões postas pela Requerente na acção são os tribunais administra- lhante à colocada no presente Conflito foi objecto de análise em alguns
tivos, nos termos do art.º 253.º, n.º 2 do DL 55/99, a cujo regime integral processos que correram termos na secção do contencioso administrativo
está submetida, por equiparação, a empreitada em causa. do Supremo Tribunal Administrativo, tendo o tribunal concluído, em
A Recorrente põe em causa este julgamento do Tribunal da Relação sentido uniforme e com identidade de fundamentos, pela qualificação
de Coimbra, defendendo que a obra não foi financiada em mais de 50 % como contratos de empreitada de obras públicas, geradores de rela-
pelo ISSS, ao invés do considerado no acórdão recorrido, pelo que não ções jurídicas administrativas, dos contratos em causa (acos de 8.10.02,
estamos no âmbito de previsão do n.º 5 , do art.º 2.º, do DL 55/99, de 2 de p.º 1308/02; de 14.3.06, p.º 483/03; de 14.3.06, p.º 976/05).
Março, não podendo a empreitada em causa ser equiparada a empreitada A fundamentação que subsequentemente se aduzirá, segue de perto a
de obra pública, sujeita ao regime do “contrato administrativo de emprei- linha argumentativa dos citados arestos, com a qual se concorda.
tada de obras públicas” estabelecido no DL 55/99 de 2 de Março. Assim:
Por tal razão, não se aplicaria o preceituado no art.º 253.º, n.º 2 Antes de mais, há que partir do facto de que o Réu “Centro Paroquial
do DL 55/99, que expressamente atribui competência aos tribunais de Angeja”, adjudicante no contrato a que se reportam os autos, é uma
administrativos para dirimir as questões sobre interpretação, validade Instituição Particular de Solidariedade Social, tendo sido reconhecido
ou execução do contrato de empreitada de obras públicas, cabendo a como pessoa colectiva de utilidade pública administrativa, conforme
competência para apreciar a acção aos tribunais comuns, nos termos Declaração publicada no DR III Série de 18/7/90.
do art.º 66.º do C.P.C. Estas instituições, reguladas pelo Decreto-Lei nº. 119/93, de 25 de
Entende-se, todavia, que não lhe assiste razão. Fevereiro, são pessoas de direito privado, com autonomia, não admi-
Na verdade, a decisão que considerou competentes os tribunais admi- nistradas pelo Estado, que prosseguem os objectivos enunciados nas
nistrativos para dirimir as questões relativas ao contencioso do contrato diversas alíneas do n.º 1 do seu artigo 1.º (artigos 1.º e 3.º), que detêm
em causa, e concretamente aquela a que se reporta a acção intentada o estatuto de utilidade pública (artigo 8.º), cujo contributo o Estado
no T. Judicial de Oliveira do Bairro, merece ser confirmada, embora aceita, apoia e valoriza, e que são por ele apoiadas mediante acordos a
por fundamentos jurídicos diferentes dos enunciados no acórdão sob estabelecer (art.º 4.º, nos 1 e 2).
recurso, a que acima se aludiu. Estão sujeitas à tutela do Estado, sendo necessária a respectiva
Vejamos: autorização através dos serviços competentes, para a prática de de-
2.2.2.De acordo com a jurisprudência pacífica dos nossos tribunais terminados actos, nomeadamente a aquisição de bens imóveis a título
superiores, a competência em razão em razão da matéria (ou jurisdição) oneroso ou a alienação de imóveis a qualquer título (art.º 32.º, n.º1).
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Os seus orçamentos e contas são aprovados pelos corpos gerentes O estatuto do Recorrido de instituição privada de solidariedade social,
nos termos estatutários, mas carecem do visto dos serviços competen- reconhecida como pessoa colectiva de utilidade pública, permite, desde
tes (art.º 33.º n.º 1), que poderão ordenar a realização de inquéritos, logo, garantir a verificação do requisito da satisfação das necessidades
sindicâncias e inspecções a estas instituições (art.º 34.º). de ordem geral, a que se refere o corpo do n.º 2 do preceito transcrito (v.
As empreitadas de obras de construção ou grande reparação deverão art.º 1.º, n.º 1 do DL 119/83, sobre a definição de instituição particular
ser feitas em concurso ou hasta pública, conforme for mais conveniente. de solidariedade social; cf. ainda artos 1.º a 4.º, inc, dos Estatutos do
(art.º 23º) recorrido, juntos a fls. 51 e segs).
Cabe agora analisar as disposições, com pertinência para o caso E, se é certo que não resulta dos Estatutos do Réu Centro Social Pa-
em apreço, relativas ao regime jurídico do contrato administrativo de roquial de Angeja a verificação das circunstâncias a que se referem as
empreitada de obras públicas. alíneas a) e c) do n.º 2 do transcrito artigo 3.º, afigura-se inquestionável
De harmonia com as disposições conjugadas dos artos 2º, n.º 3 e 1.º, o preenchimento do requisito previsto na alínea b) do aludido número.
n.º 1 do DL 59/99, de 2 de Março (diploma que estabelece o regime Na verdade, a enunciação supra efectuada dos vários aspectos do re-
jurídico das empreitadas de obras públicas e, cuja regulamentação foi gime legal a que estão imperativamente sujeitas as instituições de solida-
adoptada no procedimento de celebração do contrato dos autos, conforme
riedade social, por força do DL 119/83, de 25.2, designadamente, a tutela
consta de Anúncio publicado no DR II Série de 19.10.00), entende-se
por empreitada de obras públicas o contrato administrativo, celebrado sobre elas exercida pelo Estado (artos 32.º e 34.º), a imposição de que
mediante o pagamento de um preço, entre um dono de obra pública e um as empreitadas de obras de construção ou grande restauro seja feita em
empreiteiro de obras públicas, que tenha por objecto, designadamente, concurso público (art.º 23.º), a necessidade do visto dos serviços compe-
obras de construção, reconstrução, ampliação, alteração, reparação, tentes em relação aos orçamentos e contas destas instituições (art.º 33.º)
adaptação, beneficiação e demolição de bens imóveis, destinadas a e a fiscalização a que estão sujeitas, podendo os serviços competentes or-
preencher, por si mesmas, uma função económica ou técnica, executadas denar a realização de inquéritos, sindicâncias e inspecções às instituições
por conta de um dono de obra pública. e seus estabelecimentos (art.º 34.º), permite concluir que, para o efeito
Por seu turno, o art.º 3.º do diploma legal em referência, estatui: do disposto no nº 2 do art.º 3.º do DL 59/99, a gestão das instituições
“1— Para efeitos do disposto no presente diploma são considerados privadas da solidariedade social está sujeita ao controlo do Estado.
donos de obras públicas: Assim sendo, estas instituições, entre as quais se insere o Réu recor-
a) O Estado; rido, são de considerar donas de obras públicas, o que significa que os
b) Os institutos públicos; contratos por elas celebrados para a execução, ou concepção/execução
c) As associações públicas; das obras a que se refere o art.º 1.º, n.º 1 do citado DL 59/99, de 2
d) As autarquias locais e outras entidades sujeitas a tutela adminis- de Março – como é o caso da obra de construção do Centro Social e
trativa; Paroquial de Angeja – são contratos de empreitada de obras públicas,
e) As Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira; regulados pelo Decreto-Lei 59/99.
f) As associações de que façam parte autarquias locais ou outras “São contratos praticados a coberto de uma ambiência de direito
pessoas colectivas de direito público; público, resultando do predomínio de preocupações de interesse público,
g) As empresas públicas e as sociedades anónimas de capitais maio- que prosseguem, que as leva a não poder adoptar procedimentos dife-
ritária ou exclusivamente públicos, sem prejuízo do disposto no n.° 3 rentes dos nele tipificados e a actuar numa posição de supra ordenação
do artigo 4.°; que lhes possibilita o estabelecimento de cláusulas exorbitantes, ou seja,
h) As concessionárias de serviço público, sempre que o valor da obra são contratos administrativos” (ac. do STA de 8.10/02, p.º 1308/02,
seja igual ou superior ao estabelecido para efeitos de aplicação das acima citado).
directivas da União Europeia relativas à coordenação dos processos de Em face do exposto, é de concluir que o contrato, em cuja execução
adjudicação de empreitadas de obras públicas;
radicam as questões suscitadas no processo intentado no T. Judicial
i) As entidades definidas no número seguinte, assim como as asso-
ciações dessas entidades. de Oliveira de Bairro, dizem respeito a empreitada de obras públicas,
2-Para efeitos do disposto na alínea i) do número anterior são consi- geradora de relações jurídicas administrativas.
deradas donos de obras públicas as entidades dotadas de personalidade Os tribunais competentes para o seu conhecimento são, pois, os tri-
jurídica, criadas para satisfazer de um modo específico necessidades bunais administrativos, como concretamente é estatuído pelo art.º 253.º,
de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial em relação às n.º 2 do DL 59/99 e, sempre resultaria do preceituado no art.º 212.º,
quais se verifique uma das seguintes circunstâncias: n.º 3 da CRP e 3.º do ETAF.
a) Cuja actividade seja financiada maioritariamente por alguma das Dentro destes, a competência cabe ao tribunal administrativo de
entidades referidas no número anterior ou no presente número; círculo (art.º 51.º, alínea j) do ETAF).
b) Cuja gestão esteja sujeita a um controlo por parte de alguma das Assim, embora por fundamentos jurídicos diferentes – o que nos
entidades referidas no número anterior ou no presente número; dispensa de tomar posição sobre as criticas dirigidas pela Recorrente à
c) Cujos órgãos de administração, de direcção ou de fiscalização sejam fundamentação usada no acórdão recorrido –, impõe-se concluir que a
compostos, em mais de metade, por membros designados por alguma das decisão recorrida, considerando competentes para o conhecimento da
entidades referidas no número anterior ou no presente número.” acção em debate os tribunais administrativos, merece ser confirmada.
242 243

3. Nos termos e pelas razões expostas, acordam em negar provimento Lisboa a respectiva Protecção Jurídica, nas modalidades de dispensa
ao recurso, declarando competentes, em razão de matéria, os tribunais total do pagamento de taxa de justiça e nomeação e pagamento de
administrativos para conhecer da acção em causa. honorários de patrono.
Sem custas. Perante a decisão de indeferimento do seu pedido, de 18.03.2005,
Lisboa, 19 de Dezembro de 2006. — Maria Angelina Domingues fundada em alegada impossibilidade de apreciação por falta de junção
(relatora) — Salvador Pereira Nunes da Costa — José Vaz dos Santos de documentos de prova da sua insuficiência económica, o requerente
Carvalho — Rosendo Dias José — João Manuel Belchior. impugnou judicialmente esta decisão em petição dirigida ao TAF de
Lisboa, em processo a que foi atribuído o nº 1287/05.8BELSB – 2º
Juízo, peticionando a anulação daquele despacho de indeferimento e a
consequente concessão do apoio judiciário requerido.
Enviado o processo ao TAFL, por a decisão de indeferimento ter
Acórdão de 20 de Dezembro de 2006. sido mantida, nos termos do nº 3, in fine, do art. 27º da Lei nº 34/2004,
de 29 de Julho, foi, por despacho judicial de 19.05.2005, declarada a
incompetência absoluta daquele Tribunal, por violação de regra de com-
Assunto: petência em razão da matéria, e considerado competente para conhecer
da impugnação o Tribunal Judicial de 1ª Instância de Lisboa.
Conflito de jurisdição. Apoio judiciário. Competência dos
tribunais administrativos. Tendo o processo sido remetido aos Tribunais Cíveis de Lisboa, e
distribuído ao 3º Juízo Cível – 3ª Secção, com o nº 3847/05.8TJLSB,
ali veio a ser proferido, a 18.07.2005, despacho judicial em que foi
Sumário: excepcionada a incompetência absoluta dos tribunais cíveis para co-
I — O n.º 1 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, nhecer daquela impugnação, considerando-se para tal competente o
não deve ser entendido em sentido estritamente literal, TAF de Lisboa.
como reportando-se apenas aos tribunais judiciais, ou Tendo ambas as decisões transitado em julgado (cfr. certidões de
seja, da jurisdição comum, sendo mais coerente com o fls. 45 e 54), veio o requerente, ao abrigo do disposto nos arts. 116º, nº 1
princípio da unidade do sistema jurídico e com a teleo- e 117º do CPCivil, pedir a resolução do conflito negativo de jurisdição,
logia da norma entender a referência ao «tribunal da requerendo que seja declarado qual o tribunal competente em razão da
comarca» como reportada ao tribunal de 1.ª instância matéria para apreciar a impugnação em causa.
da jurisdição a que se reporta a acção principal, com A Exma magistrada do Ministério Público neste Tribunal dos Confli-
vista a cuja instauração ou prosseguimento o apoio tos, sustentando que o texto da norma do art. 28º, nº 1 da Lei nº 34/2004,
judiciário foi solicitado. de 29 de Julho (ao aludir ao “tribunal da comarca”) não pode ser tomado
II — Visando o apoio judiciário solicitado a instauração de no seu sentido literal, pronunciou-se pela atribuição da competência aos
uma acção administrativa impugnatória de uma deli- tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, atendendo a que, no caso
beração do Conselho Superior da Ordem dos Advoga- em análise, o apoio judiciário visa a impugnação de decisão proferida
dos, que é sem dúvida da competência dos tribunais pelo Conselho Superior da Ordem dos Advogados, para cuja apreciação
administrativos e fiscais, é aos tribunais desta ordem é competente o TAF de Lisboa.
jurisdicional que cabe conhecer da impugnação judicial Colhidos nos vistos, cumpre decidir.
da decisão administrativa sobre o pedido de protecção (Fundamentação)
jurídica, nos termos dos artigos 27.º e 28.º, n.º 1, da Está em causa, no presente conflito negativo, a determinação de qual
citada lei. a jurisdição (comum ou administrativa e fiscal) a que cabe conhecer
da impugnação judicial de decisão final sobre pedido de protecção
Conflito n.º 4/06-70. jurídica, prevista nos arts. 27º e 28º da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho,
Requerente: José Manuel Pereira Rodrigues, no conflito negativo de solicitada com vista à instauração de uma acção administrativa (no caso,
jurisdição entre o 3.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa e os Tribunais impugnatória de uma deliberação do Conselho Superior da Ordem dos
Administrativos e Fiscais. Advogados), uma vez que os dois tribunais em conflito (TAF de Lisboa
Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Pais Borges. e 3º Juízo Cível de Lisboa) declinaram, atribuindo-a reciprocamente, a
competência para o conhecimento dessa impugnação.
Acordam no Tribunal dos Conflitos: Este Tribunal dos Conflitos teve já oportunidade de se pronunciar
(Relatório) sobre a questão em apreço, em situações idênticas, em que estava em
JOSÉ MANUEL PEREIRA RODRIGUES, identificado nos autos, causa igualmente uma decisão administrativa de indeferimento de apoio
pretendendo intentar uma acção administrativa impugnatória de deli- judiciário solicitado com vista à instauração de uma pretensão nos
beração do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, requereu, em tribunais administrativos e fiscais, considerando serem estes os tribu-
02.02.2005, ao Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de nais competentes para o seu conhecimento – cfr. os recentes Acs. de
244 245

06.07.2006 – Proc. 7/06, de 22.06.2006 – Proc. 10/06, cuja orientação, Como se pondera no Ac. do STJ atrás citado:
que ora se reitera, seguiremos de perto. “Tal é o regime para a jurisdição comum, e não é aceitável que o
No mesmo sentido se pronunciou igualmente o STJ, no Ac. de legislador tivesse querido uma solução oposta para as outras ordens
22.09.2005 – Proc. 5B1248, sufragando uma interpretação extensiva jurisdicionais. Ou seja, num caso a proximidade dos autos e noutro o seu
do art. 29º, nº 1 da anterior lei do apoio judiciário (Lei nº 30-E/2000, desfasamento completo, que não é só de tribunais mas de jurisdições.
de 20 de Dezembro), correspondente ao art. 28º da actual lei. Aliás, e salvo o devido respeito, é contraditório invocar a separação
Dispõem os referidos normativos da Lei nº 34/2004, de 29 de Ju- das jurisdições para consagrar uma solução em que uma delas fica a
lho: decidir o que, em termos substanciais, é um incidente de uma outra”.
Artigo 27º Nesta conformidade, afigura-se que o texto do citado nº 1 do art. 28º
da Lei nº 34/2004 não deve ser entendido em sentido estritamente literal,
Impugnação judicial como reportando-se apenas aos tribunais judiciais, ou seja, da jurisdição
1 – A impugnação judicial pode ser intentada directamente pelo comum, sendo mais coerente com o princípio da unidade do sistema
interessado, não carecendo de constituição de advogado, e deve ser jurídico e com a teleologia da norma entender a referência ao “tribunal
entregue no serviço de segurança social que apreciou o pedido de pro- da comarca”como reportada ao tribunal de 1ª instância da jurisdição a
tecção jurídica ou no Conselho Distrital da Ordem dos Advogados que que se reporta a acção principal, com vista a cuja instauração ou pros-
negou nomeação de patrono, no prazo de 15 dias após o conhecimento seguimento o apoio judiciário foi solicitado.
da decisão. Na situação sub judice, e tendo em conta que o apoio judiciário pre-
(…) tendido visa a instauração de uma acção administrativa impugnatória de
3 – Recebida a impugnação, o serviço de segurança social ou o uma deliberação do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, que é
Conselho Distrital da Ordem dos Advogados dispõe de 10 dias para sem dúvida da competência dos tribunais administrativos e fiscais, é aos
revogar a decisão sobre o pedido de protecção jurídica ou, mantendo-a, tribunais desta ordem jurisdicional que cabe conhecer da impugnação
enviar aquela e cópia autenticada do processo administrativo ao tribunal judicial da decisão administrativa sobre o pedido de protecção jurídica,
competente. nos termos dos arts. 27º e 28º, nº 1 da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho.
Artigo 28º (Decisão)
Com os fundamentos expostos, acordam em resolver o presente
Tribunal competente conflito de jurisdição, atribuindo a competência para o conhecimento
1 – É competente para conhecer e decidir a impugnação o tribunal da da questão – impugnação judicial da decisão final sobre pedido de pro-
comarca em que está sedeado o serviço de segurança social que apreciou tecção jurídica, prevista nos arts. 27º e 28º da Lei nº 34/2004, de 29 de
o pedido de protecção jurídica ou, caso o pedido tenha sido formulado Julho – à jurisdição administrativa, no caso, ao Tribunal Administrativo
na pendência da acção, o tribunal em que esta se encontra pendente. e Fiscal de Lisboa – 2º Juizo.
2 – Nas comarcas onde existem tribunais judiciais de competência Sem custas.
especializada ou de competência específica, a impugnação deve respeitar Lisboa, 20 de Dezembro de 2006. — Luís Pais Borges (relator) — Ma-
as respectivas regras de competência. nuel Maria Duarte Soares — Rosendo Dias José — António da Silva
(…) Henriques Gaspar — Maria Angelina Domingues.
Importa, desde já, sublinhar que a tarefa interpretativa a encetar
deverá necessariamente ter em conta que a Lei nº 34/2004 (pese em-
bora uma manifesta falta de rigor técnico), concretizando a imposição
constitucional de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (art.
20º da CRP), assegura que “o regime de apoio judiciário aplica-se em Acórdão de 20 de Dezembro de 2006.
todos os tribunais e nos julgados de paz, qualquer que seja a forma do
processo” (art. 17º, nº 1), o que traduz uma garantia de acesso ao direito Assunto:
e aos tribunais necessariamente extensiva a todos os tribunais da nossa
organização judiciária, previstos no art. 209º da Constituição. Conflito de jurisdição. Apoio judiciário. Competência dos
Por outro lado, o apoio judiciário constituía, tradicionalmente, uma Tribunais Administrativos.
questão incidental do processo principal, ou seja, daquele (instaurado
ou a instaurar) para o qual a pretensão de apoio era solicitada. Sumário:
E, tendo o mesmo sido desjudicializado, passando a ter natureza ad-
ministrativa, por razões de ordem prática e de eficácia processual, não I — O n.º 1 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho,
desapareceram contudo os motivos que aconselhavam um tratamento não deve ser entendido em sentido estritamente literal,
dessa questão incidental juntamente com a causa principal a que se como reportando-se apenas aos tribunais judiciais, ou
reporta, assim se justificando, em caso de judicialização impugnatória, seja, da jurisdição comum, sendo mais coerente com o
uma aproximação do processo a cuja instauração ou prosseguimento se princípio da unidade do sistema jurídico e com a teleo-
reporta a protecção jurídica solicitada. logia da norma entender a referência ao «tribunal da
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comarca» como reportada ao tribunal de 1.ª instância Recebida a impugnação no TAF de Lisboa, ali veio a ser proferido,
da jurisdição a que se reporta a acção principal, com no processo nº 1612/06.4, BELSB, o despacho judicial de 20.06.2006,
vista a cuja instauração ou prosseguimento o apoio no qual se declarou igualmente este Tribunal incompetente em razão
judiciário foi solicitado. da matéria, agora sob o entendimento de que as referidas regras de
II — Visando o apoio judiciário solicitado a instauração competência constantes do citado art. 28º se reportam exclusivamente
de uma providência cautelar já intentada no tribunal à jurisdição comum.
administrativo, com vista a evitar uma situação de Ambas as decisões transitaram em julgado, respectivamente a
clandestinidade da requerente, perante a denegação, 25.05.2006 e a 06.07.2006 (cfr. certidão de fls. 6 a 15).
pelas autoridades administrativas, da «prorrogação Colhidos nos vistos, cumpre decidir.
de permanência» consignada no artigo 71.º, n.º 7, do (Fundamentação)
Decreto Regulamentar n.º 6/2004, é aos tribunais desta Está em causa, no presente conflito negativo, a determinação de qual
ordem jurisdicional que cabe conhecer da impugnação a jurisdição (comum ou administrativa e fiscal) a que cabe conhecer da
judicial da decisão administrativa sobre o pedido de impugnação judicial de decisão final sobre pedido de protecção jurídica
protecção jurídica, nos termos dos artigos 27.º e 28.º, (prevista nos arts. 27º e 28º da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho) solici-
n.º 1, da citada lei. tada para efeitos de uma providência cautelar intentada nos tribunais
administrativos com vista a evitar uma situação de clandestinidade da
Conflito nº 20/06-70. requerente, perante a denegação, pelas autoridades administrativas, da
Requerente: Magistrado do Ministério Público, no conflito negativo “prorrogação de permanência” consignada no art. 71º, nº 7 do Decreto
de jurisdição entre o 4.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa (2.ª Secção) Regulamentar nº 6/2004.
e os Tribunais Administrativos e Fiscais. Este Tribunal dos Conflitos teve já oportunidade de se pronunciar
Relator: Ex.mo Sr. Cons. Dr. Pais Borges. sobre a questão em apreço, em situações idênticas, em que estava em
causa igualmente uma decisão administrativa de indeferimento de apoio
Acordam no Tribunal dos Conflitos: judiciário solicitado com vista à instauração de uma pretensão nos tribu-
nais administrativos e fiscais, considerando serem estes os tribunais com-
(Relatório) petentes para o seu conhecimento – cfr. os recentes Acs. de 06.07.2006
A MAGISTRADA DO MINISTÉRIO PÚBLICO neste Supremo – Proc. 7/06, de 22.06.2006 – Proc. 10/06, e de 20.06.2006 – Proc. 13/06,
Tribunal Administrativo vem, ao abrigo do disposto nos arts. 115º nº 1, cuja orientação, que ora se reitera, seguiremos de perto.
116º e 117º, todos do CPCivil, requerer a resolução do conflito de juris- No mesmo sentido se pronunciou igualmente o STJ, no Ac. de
dição entre o 4º Juízo Cível da comarca de Lisboa /2ª Secção e o TAF 22.09.2005 – Proc. 5B1248, sufragando uma interpretação extensiva
de Lisboa /2ª Secção, com os seguintes fundamentos: do art. 29º, nº 1 da anterior lei do apoio judiciário (Lei nº 30-E/2000,
SVITLANA BETYAN, cidadã ucraniana, a residir em Portugal in- de 20 de Dezembro), correspondente ao art. 28º da actual lei.
documentada (id. a fls. 6), ao pretender prevalecer-se do disposto no Dispõem os referidos normativos da Lei nº 34/2004, de 29 de Ju-
art. 71º, nº 7 do Decreto Regulamentar nº 6/2004, relativo à “prorrogação lho:
de permanência”, foi notificada de que os procedimentos ao abrigo do Artigo 27º
citado diploma legal estavam suspensos.
Por tal motivo, intentou no TAF de Lisboa uma providência cautelar Impugnação judicial
com vista a evitar a situação de clandestinidade, a qual foi distribuída ao 1 – A impugnação judicial pode ser intentada directamente pelo
2º Juízo daquele Tribunal, sob o nº 3137/B4.3 BELSB, tendo solicitado interessado, não carecendo de constituição de advogado, e deve ser
no Instituto de Segurança Social de Lisboa protecção jurídica para efeitos entregue no serviço de segurança social que apreciou o pedido de
da referida providência cautelar. protecção jurídica ou no Conselho Distrital da Ordem dos Advogados
Perante a decisão de indeferimento do seu pedido de protecção jurí- que negou nomeação de patrono, no prazo de 15 dias após o conheci-
dica, a requerente impugnou judicialmente esta decisão, peticionando a mento da decisão.
anulação daquele despacho de indeferimento e a consequente concessão (…)
do apoio judiciário requerido, tendo a impugnação sido remetida aos 3 – Recebida a impugnação, o serviço de segurança social ou o
Juízos Cíveis, e dado origem aos Autos de Recurso de Impugnação de Conselho Distrital da Ordem dos Advogados dispõe de 10 dias para
Apoio Judiciário nº 2438/05.8, do 4º Juízo. revogar a decisão sobre o pedido de protecção jurídica ou, mantendo-a,
Por decisão de 08.05.2006, o Sr. Juiz do 4º Juízo Cível julgou aquele enviar aquela e cópia autenticada do processo administrativo ao tribunal
tribunal incompetente em razão da matéria para o conhecimento da competente.
impugnação, por considerar que as regras de competência do art. 28º da Artigo 28º
Lei nº 34/2004 se reportam às duas jurisdições, determinando a remessa
dos autos, após trânsito do seu despacho, ao 2º Juízo do TAF de Lisboa Tribunal competente
(3ª Unidade Orgânica), que considerou o competente, para efeitos de 1 – É competente para conhecer e decidir a impugnação o tribunal
apensação aos autos de procedimento cautelar ali pendentes. da comarca em que está sedeado o serviço de segurança social que
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apreciou o pedido de protecção jurídica ou, caso o pedido tenha sido (Decisão)
formulado na pendência da acção, o tribunal em que esta se encontra Com os fundamentos expostos, acordam em resolver o presente
pendente. conflito de jurisdição, atribuindo a competência para o conhecimento
2 – Nas comarcas onde existem tribunais judiciais de competência da questão – impugnação judicial da decisão final sobre pedido de pro-
especializada ou de competência específica, a impugnação deve res- tecção jurídica, prevista nos arts. 27º e 28º da Lei nº 34/2004, de 29 de
peitar as respectivas regras de competência. Julho – à jurisdição administrativa, no caso, ao Tribunal Administrativo
(…) e Fiscal de Lisboa – 2º Juizo.
Sem custas.
Importa, desde já, sublinhar que a tarefa interpretativa a encetar deverá
necessariamente ter em conta que a Lei nº 34/2004 (pese embora uma Lisboa, 20 de Dezembro de 2006. — Luís Pais Borges (relator)
manifesta falta de rigor técnico), concretizando a imposição constitu- — Manuel Maria Duarte Soares — Rosendo Dias José — António da
cional de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (art. 20º da Silva Henriques Gaspar — Maria Angelina Domingues.
CRP), assegura que “o regime de apoio judiciário aplica-se em todos
os tribunais e nos julgados de paz, qualquer que seja a forma do pro-
cesso” (art. 17º, nº 1), o que traduz uma garantia de acesso ao direito e
aos tribunais necessariamente extensiva a todos os tribunais da nossa
organização judiciária, previstos no art. 209º da Constituição.
Por outro lado, o apoio judiciário constituía, tradicionalmente, uma
questão incidental do processo principal, ou seja, daquele (instaurado
ou a instaurar) para o qual a pretensão de apoio era solicitada.
E, tendo o mesmo sido desjudicializado, passando a ter natureza ad-
ministrativa, por razões de ordem prática e de eficácia processual, não
desapareceram contudo os motivos que aconselhavam um tratamento
dessa questão incidental juntamente com a causa principal a que se
reporta, assim se justificando, em caso de judicialização impugnatória,
uma aproximação do processo a cuja instauração ou prosseguimento se
reporta a protecção jurídica solicitada.
Como se pondera no Ac. do STJ atrás citado:
“Tal é o regime para a jurisdição comum, e não é aceitável que o
legislador tivesse querido uma solução oposta para as outras ordens
jurisdicionais. Ou seja, num caso a proximidade dos autos e noutro o
seu desfasamento completo, que não é só de tribunais mas de juris-
dições.
Aliás, e salvo o devido respeito, é contraditório invocar a separa-
ção das jurisdições para consagrar uma solução em que uma delas
fica a decidir o que, em termos substanciais, é um incidente de uma
outra”.
Nesta conformidade, afigura-se que o texto do citado nº 1 do art. 8º
da Lei nº 34/2004 não deve ser entendido em sentido estritamente
literal, como reportando-se apenas aos tribunais judiciais, ou seja, da
jurisdição comum, sendo mais coerente com o princípio da unidade do
sistema jurídico e com a teleologia da norma entender a referência ao
“tribunal da comarca” como reportada ao tribunal de 1ª instância da
jurisdição a que se reporta a acção principal, com vista a cuja instauração
ou prosseguimento o apoio judiciário foi solicitado.
Na situação sub judice, e tendo em conta que o apoio judiciário pre-
tendido se reporta a uma providência cautelar já intentada no tribunal
administrativo, com vista a evitar uma situação de clandestinidade da
requerente, perante a denegação, pelas autoridades administrativas, da
“prorrogação de permanência” consignada no art. 71º, nº 7 do Decreto
Regulamentar nº 6/2004, é aos tribunais desta ordem jurisdicional que
cabe conhecer da impugnação judicial da decisão administrativa sobre
o pedido de protecção jurídica, nos termos dos arts. 27º e 28º, nº 1 da
Lei nº 34/2004, de 29 de Julho.
DIÁRIO
DA REPÚBLICA
Depósito legal n.º 25 495/89

APÊNDICE
SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Publicação periódica ordenada pelo Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho,
e pelo artigo 30.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos,
aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro.

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