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O ADVENTO DOS DIREITOS LINGÜÍSTICOS: UMA CRÍTICA

À PRETENSÃO DE CONTROLE DA LÍNGUA

THE COMING OF LINGUISTIC RIGHTS: A CRITIC AGAINST


THE LANGUAGE CONTROL PRETENSION
Adilson Silva Ferraz1
Hudson Marques da Silva2

RESUMO

O presente trabalho tem como principal objetivo tecer considerações acerca do advento dos
direitos lingüísticos, partindo da análise da Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos, dos
projetos de lei 1676-D/99 (de promoção, proteção e defesa da língua portuguesa), 4610/01 e
438/08 (sobre a implementação da linguagem inclusiva em documentos oficiais) e, por fim, da
nova reforma ortográfica da língua portuguesa. A declaração universal dos direitos lingüísticos
representa um marco para a proteção das comunidades lingüísticas, reconhecendo que a praxis da
língua deve ser pautada no respeito à diversidade, na convivência e nos benefícios recíprocos.
Contudo, concluímos que a pretensão de estabelecer os modos de uso da língua de forma prévia é
ineficaz, pois esta é dinâmica e mutável, não sujeita à administração por parte de uma
comunidade lingüística, da academia ou de políticas públicas estatais que forçam uma adaptação
da sociedade através de um controle legal.

Palavras-chave: Direitos Lingüísticos, Linguagem, Reforma Ortográfica.

ABSTRACT

This paper aims to discuss about the coming of Linguistic Rights, by analyzing the Universal
Declaration of Linguistic Rights, the bills 1676-D/99 (about promotion, protection and defense of
Portuguese language), 4610/01 and 438/08 (about the implementation of inclusive language in
official documents) and, finally, the new Portuguese language orthographic reform. The
Universal Declaration of Linguistic Rights represents an important step for the protection of
linguistic communities, by recognizing that the use of the language must be ruled in respect to
diversity, coexistence and reciprocal benefits. However, it was concluded that the pretension of
establishing manners of use to the language in a previous way is ineffective, because it is
dynamic and changeable, not passive to the administration of a linguistic community, academy or
state public politics that requires an adaptation of the society through a legal control.

Keywords: Linguistic Rights, Language, Orthographic Reform.

1
Doutorando em Direito pela Universidade de Buenos Aires – UBA, mestre em Filosofia, professor da Associação
Caruaruense de Ensino Superior – ASCES, Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e ESMAPE. Universidade
Federal de Pernambuco. Av. Professor Moraes Rego, 1235, Campus Universitário, 50670-901 Recife PE, Brasil. E-
mail: Adilson_ferraz@hotmail.com
2
Especialista em Lingüística Aplicada ao Ensino da Língua Inglesa – FAFIRE e Professor do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco – IFPE. E-mail: marqueshudson@hotmail.com
1. Considerações Iniciais

A língua, ou idioma, insere-se diretamente na vida cotidiana na/através da linguagem


como expressão direta da cultura e valores de um povo. Embora língua e linguagem sejam
distintas, manifestam-se na consciência e identidade dos humanos, permitindo a sua própria
existência enquanto seres sociais. O problema que gostaríamos de suscitar neste trabalho é
resumidamente este: as manifestações da linguagem são plenamente espontâneas ou, remetendo-
nos aos termos de Wittgenstein do Tractatus Logicus-philosophicus (Cf. WITTGENSTEIN,
2005), poder-se-ia “tratar” seus males e vícios através de uma “terapêutica da linguagem”? A
questão aproxima-se do mundo jurídico justamente quando alguns setores da sociedade
reivindicam do Estado a tutela por uma integridade da língua no que tange aos estrangeirismos –
palavras emprestadas de outras línguas que supostamente agrediriam a identidade de nossa língua
materna segundo o Projeto de Lei do Deputado Aldo Rebelo – ou a termos masculinos para se
referir concomitantemente ao gênero feminino (linguagem sexista), com a criação de normas
jurídicas que têm como objetivo intervir no seu devir cotidiano e histórico. Como referencial para
essa questão, discutiremos o projeto de lei n. 1676-D/99, a defesa feminista por uma linguagem
inclusiva e a recente reforma ortográfica do português. Desse modo, indagamo-nos ainda se seria
possível um processo de regulação lingüística efetiva por meio de um standard legal, como uma
forma de administração ou, ainda, poderíamos nos questionar se para isso não seria necessário
colocar-se fora do âmbito da própria língua, o que revelaria o caráter problemático desta
tentativa. Por isso, neste momento, não é nosso objetivo tratar das condições de possibilidade de
uso da língua, da possibilidade de uma meta-língua ou teoria das formas lingüísticas que vão
além da mera gramática.
Nesse contexto, entendemos que os direitos lingüísticos, já previstos em algumas
declarações internacionais e entendidos como direitos humanos, constituem um mecanismo
jurídico legítimo de garantir o multiculturalismo lingüístico na contemporaneidade, que escapa da
idéia ilusória de uma “terapia lingüística” que visa sanar o que não pode estar enfermo – a língua.
2. Lei de Promoção, Proteção e Defesa da Língua Portuguesa

“Última flor do Lácio, inculta e bela


És, a um tempo, esplendor e sepultura.”
(Olavo Bilac)

Citando os versos acima, do poema “Língua Portuguesa” (1924), que a deputada Iara
Bernardi inicia o relatório do Projeto de Lei N° 1676-D/99, de autoria do então Deputado Aldo
Rebelo, que tem como objetivo a proibição da introdução de estrangeirismos – “[...] emprego de
palavras, expressões e construções alheias ao idioma que a ele chegam por empréstimos tomados
de outra língua.” (BECHARA, 2004, p.599) – na língua portuguesa. O português estaria sofrendo
um processo de “desnacionalização” em face do deslumbramento ante o que é estrangeiro,
atingindo o patrimônio cultural representado pela língua. O fundamento jurídico do projeto
estaria no art. 13 e no art. 216 da Constituição Federal, que dispõe em seu caput: “Constituem
patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente
ou em seu conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – As formas de expressão
[...].” O uso de palavras ou expressões estrangeiras, salvo as excludentes previstas no §1º da lei
(dentre elas, o uso nas atividades de ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras, os vocábulos
estrangeiros consagrados pelo uso e as comunidades indígenas nacionais) seria considerado
lesivo ao patrimônio cultural brasileiro, sendo punível por sanção administrativa. Essa sanção
seria constitucional em virtude do §4º da Constituição, que prevê que danos e ameaças ao
patrimônio cultural serão punidos na forma da lei. Em 2002, o vereador Ricardo Maranhão, do
Rio de Janeiro, propôs uma lei de proteção e defesa da língua portuguesa muito parecida com
aquela de 1999, contudo, válida apenas em âmbito municipal. 3 A idéia de criar uma “política de
Estado” que restrinja o uso de termos estrangeiros tem gerado muita polêmica, embora já exista
em países como a França, que em 1994 criou uma lei para proteger seu idioma oficial.

3
Gostaríamos de destacar o art. 3: “É obrigatório o uso da língua portuguesa, nos seguintes domínios sócio-culturais:
I – no ensino e na aprendizagem; II – no trabalho; III – nas relações jurídicas; IV – na expressão oral, escrita ou por
qualquer outro meio que se faça uso de forma oficial ou em eventos públicos; V – nos meios de comunicação de
massa, e; VI – na publicidade de bens e serviços.” O projeto de lei foi consultado no seguinte site:
http://docs.google.com/gview?a=v&q=cache%3AaWXSJzoohNsJ%3Aspl.camara.rj.gov.br%2Fspldocs%2Fpl%2F20
02%2Fpl0949_2002_003026.pdf+lei+de+prote%C3%A7%C3%A3o+l%C3%ADngua+portuguesa&hl=pt-
BR&pli=1 Acesso em: 07/09/2009.
Com efeito, essa lei careceria de aplicabilidade, uma vez que não há como controlar o
processo natural de transformação – incluindo a introdução de estrangeirismos – que tem
ocorrido em todas as línguas ao longo da história. Se tal processo não ocorresse, a própria língua
portuguesa não existiria, e sim o latim. O autor do projeto, inclusive, utilizando da autoridade dos
imortais, creditou à Academia Brasileira de Letras o papel de mantenedora da originalidade do
português, escrevendo que “[...] à Academia Brasileira de Letras continuará cabendo o seu
tradicional papel de centro maior de cultivo da língua portuguesa no Brasil”. 4 Por outro lado,
Bagno (2004, p. 162-163) indaga: “[...] por que atribuir essa qualidade a um reduzido grupo de 40
indivíduos [...] quando o português do Brasil é falado [...] por mais de 170 milhões de pessoas?”
O projeto de lei pressupõe que a introdução de palavras de origem estrangeira no
português representaria uma espécie de agressão contra o idioma, recorrendo a um
conservadorismo extremo e infundado lingüisticamente, transferindo a responsabilidade do
suposto cultivo da língua a um grupo reduzido de indivíduos. De fato, os verdadeiros
representantes (cultivadores) de uma língua são as pessoas que a falam, não necessitando de
“guardiões” para tal tarefa. O idioma não consiste em algo estagnado, morto, controlável, mas
volátil, vivo, e em constante transformação, assim como as pessoas que o falam. 5

3. Lei de Implementação da Linguagem Inclusiva

A luta contra as mais diversificadas formas de preconceito é característica da


contemporaneidade. Todavia, o preconceito contra as mulheres, apesar de mudanças
consideráveis, ainda tem se perpetuado. Em oposição a esse cenário, surge o grupo das
feministas, que através de atitudes de conscientização e protesto buscam o reconhecimento e
inclusão do sexo feminino em todas as esferas da sociedade. Sendo a linguagem um meio de
representação e reprodução da cultura de cada povo, as feministas defendem que existe a
influência de uma cultura patriarcalista (machista) no discurso, através da utilização de termos
masculinos – tais como “o homem”, “o presidente”, “o aluno” – como unificadores dos sexos

4
Projeto de Lei consultado no site: http://www.ipol.org.br/ler.php?cod=123. Acesso: 28/08/2009.
5
O projeto de lei do deputado Aldo Rebelo fez surgir um manifesto coletivo por parte dos lingüistas que deu origem
a um livro intitulado “Estrangeirismos: guerras em torno da língua” (São Paulo, Parábola Editorial, 2001),
organizado por Carlos Alberto Faraco.
masculino e feminino.6 Surge assim a perspectiva da linguagem inclusiva, que, de acordo com
Cabral (2006 apud ILIOVITZ; MIRANDA NETO, 2007):

[...] é um dos campos de estudos que vem sendo desenvolvido dentro da concepção de
gênero, diz respeito à inclusão do feminino na elaboração lingüística. Propõe a
utilização dos termos masculino e feminino na construção da linguagem como, por
exemplo: "Sala dos professores e das professoras"; "Casa da cidadania", em vez de
"Casa do cidadão"; "O ser humano", em vez de "O homem"; "Os alunos e as alunas"
etc.

A proposta da linguagem inclusiva, que virou projeto de lei (PL 4610/2001),


apresentado pela deputada Iara Bernardi (PT-SP) e PL 438/2008, pela deputada Sandra Rosado
(PSB-RN), propõe basicamente a inclusão de palavras de gênero feminino no discurso. A idéia é
que a linguagem inclusiva possa diminuir o machismo arraigado na sociedade. Se isso é
verdadeiro, remete-nos a dois questionamentos: 1. Será que a inclusão de palavras femininas no
discurso garantirá a extinção do preconceito contra a mulher na sociedade? 2. Sexo masculino e
sexo feminino são o mesmo que gênero gramatical masculino e gênero gramatical feminino?
Corroboramos com a idéia de Iliovitz e Miranda Neto (2007) quando afirmam que:

Defendemos que não é através da mera substituição de algumas expressões nem


através do uso da linguagem inclusiva que a sociedade vai mudar. Esta idéia seria
extremamente ingênua e superficial, senão ilusória. A mudança social vem através da
educação, da conscientização e do respeito às diferenças. Esse respeito certamente pode
estar presente na linguagem, mas não basta. É preciso ir além. Trata-se, então, de todo
um processo social – como tal, entretanto, não se processa instantaneamente; requer
uma “paciência coletiva”, algo como tolerância em massa, a menos que a própria massa
o desconheça, uma vez que se trata de um aspecto de caráter intelectual, e é exatamente
isto que, infelizmente, percebe-se na sociedade. As “ilhas” de conhecimento (por
exemplo, as universidades) não dão conta, nesse sentido, de tal tarefa, ao menos em
curto prazo. (grifos dos autores)

Nessa ótica, percebemos a linguagem inclusiva como uma espécie de eufemismo – “[...]
palavra ou expressão empregada no lugar de outra palavra ou expressão considerada
desagradável ou chocante.” (CEREJA; MAGALHÃES, 1999, p. 399) – que apenas suaviza ou
disfarça um termo em detrimento de outro. A substituição de termos como “negro” por “afro-
descendente” não fez diminuir o racismo presente na sociedade. O segundo questionamento é

6
Sobre a defesa feminista pela linguagem inclusiva, confira: CABRAL, Assunta Maria Fiel. Linguagem Inclusiva
de Gênero: algumas reflexões. Disponível em: http://www.ptceara.org.br/artigos/texto.asp?id=326. Acesso em:
02/08/2009; VIEIRA, Vera; et al. Linguagem inclusiva: coletânea de textos. Disponível em:
<http://www.scribd.com/doc/7276276/Linguagem-inclusiva. Acesso em: 02/08/2009.
ainda mais grave, tendo em vista que gênero sexual não corresponde a gênero gramatical. O pai
da lingüística brasileira, Mattoso Câmara Jr., já chamaria a atenção para esse equívoco conceitual
há muito tempo. Os termos sexo masculino e sexo feminino representam categorias físicas
(homem e mulher) e os termos gênero masculino e gênero feminino estão relacionados a
categorias sociais – as funções e papéis desenvolvidos por homens e mulheres na sociedade.
Contudo, os gêneros gramaticais masculino e feminino consistem em categorias simbólicas, não
estando intimamente ligadas aos aspectos físicas ou sociais de seus respectivos significantes.
Mattoso Câmara Jr. (2004 apud ILIOVITZ; MIRANDA NETO, 2007) explica essa confusão:

[a flexão de gênero] costuma ser associada intimamente ao sexo dos seres. Ora, contra
essa interpretação falam duas considerações fundamentais. Uma é que o gênero abrange
todos os nomes substantivos portugueses, quer se refiram a seres animais, providos de
sexo, quer designem apenas ‘coisas’, como casa, ponte, andaiá, femininos, ou palácio,
pente, sofá, masculinos. (...) Depois, mesmo em substantivos referentes a animais ou
pessoas há discrepância entre gênero e sexo, não poucas vezes. Assim, testemunha é
sempre feminino, quer se trate de homem ou mulher, e cônjuge, sempre masculino,
aplica-se ao esposo e à esposa. Para os animais, temos os chamados substantivos
epicenos, como cobra, sempre feminino, e tigre, sempre masculino.

O que de fato ocorre na língua portuguesa é que, por inexistência do gênero neutro,
presente em outras línguas, todas as palavras são ou do gênero masculino ou do gênero feminino,
mesmo que remetam a significantes desprovidos de sexo. Nessa perspectiva, por questões de bom
senso, em algumas situações, utilizam-se palavras de gênero masculino como representantes de
ambos os sexos.
Isso não significa dizer que exista uma reprodução da ideologia machista, uma vez
que quando se diz “Olá a todos!”, tanto homens quanto mulheres sentem-se contemplados pelo
tratamento, não havendo necessidade da expressão “Olá a todos e a todas!”, o que se enquadraria
no equívoco apresentado por Ross (2009, tradução nossa)7: “[...] a teoria da ‘linguagem sexista’
parece defender que as palavras não podem ter mais de um significado: se ‘homem’ e ‘ele’ em
algumas situações remetem ao masculino, então não podem se referir a masculino e feminino em
outras situações.” Na verdade, a substituição de termos como “o homem” por “humanidade” ou
“o menino” por “a criança” representa a mera troca de um substantivo de gênero masculino por
outro de gênero feminino, implicando o mesmo tipo do suposto problema apresentado pelos
________________________
7
Original: [...] the theory of “sexist language” seems to say that words cannot have more than one meaning: if “man”
and “he” in some usage mean males, then they cannot mean both males and females in other usage [...].
defensores da linguagem inclusiva. Se isso é verdadeiro, a implementação da linguagem inclusiva
apresenta-se como algo inapropriado e sem fundamentos sociais ou lingüísticos significativos.

4. Nova Reforma Ortográfica do Português

As reformas ortográficas vêm ocorrendo ao longo da história, frutos de leis impostas por
governos que os interpretam (com parecer de alguns filólogos) como mais adequadas para aquele
momento. Desse modo, no final do século XIX, escrevia-se ELLE, sendo substituído por ÊLE no
início do século XX e por ELE nos dias atuais. Portanto, quando a grafia não é obedecida, não
podemos caracterizar como “erro de português”. A grafia consiste numa representação fonêmica
(no caso do nosso sistema fonético) que, muitas vezes, não segue uma coerência histórica ou
etimológica. Bagno (2004) exemplifica que embora as palavras extenso e extensão sejam escritas
com ‘x’, o verbo estender é escrito com ‘s’ e também a palavra maciço é escrita com ‘c’, embora
derivada de massa, com ‘ss’. É ainda comum, por parte da mídia, a divulgação da “reforma da
língua portuguesa”, após o Brasil ter aderido ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de
1990, seguindo Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e Timor-Leste. De
fato, a reforma foi meramente ortográfica e não da língua portuguesa (embora esta esteja em
constante transformação), de modo que não é a reforma ortográfica que modifica a gramática (o
funcionamento) da língua.
A nova reforma da ortografia brasileira tem como objetivo uniformizar documentos
escritos pelos países de língua portuguesa, a fim de facilitar suas interações socioeconômicas,
políticas, comerciais, culturais etc., tendo em vista que o português era uma das poucas línguas
que apresentavam divergências ortográficas entre os países que a têm como língua oficial. Se a
unificação da ortografia facilitará as interações entre os países de língua portuguesa, ainda não se
sabe, contudo, trata-se de uma proposta fundamentada.

5. Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos

Com base na Declaração Universal dos Direitos Humanos durante o pós-guerra, o


lingüista brasileiro Francisco Gomes de Matos publicou, em abril de 1984, no boletim FIPLV
World News (UNESCO), um apelo em favor de uma Declaração Universal de Direitos
Lingüísticos. Apenas três anos depois, em 1987, em um seminário internacional sobre Direitos
Humanos e Direitos Culturais, que foi realizado na Faculdade de Direito da UFPE, em Recife,
proclamou-se a Declaração do Recife (sobre Direitos Lingüísticos), que serviu como pontapé
inicial para a Declaração dos Direitos Lingüísticos de Barcelona, de 6 de junho de 1996.7
(GOMES DE MATOS, 2006).
Com o advento deste novo instrumento normativo, as comunidades lingüísticas8
passaram a ter um mecanismo internacional de proteção que reconhece que a ausência de um
autogoverno, uma população reduzida ou parcialmente dispersa, ou um modelo de língua não
codificado ou oposto à cultura predominante pode fazer uma língua não sobreviver. Como a
declaração concebe uma organização lingüística pautada na diversidade, no respeito, na
convivência e no benefício recíproco, coloca-se contrária a qualquer forma de management por
parte do Estado – como no caso da Lei de Promoção, Proteção e Defesa da Língua Portuguesa –
ou comunidade lingüística que queira fazer-se prevalecer, partindo do princípio de que os direitos
de todas as comunidades lingüísticas são iguais e independentes do seu estatuto jurídico ou
político como línguas oficiais, regionais ou minoritárias (art. 5 º).
O Estado, na prerrogativa de publicar leis e documentos oficiais, deve fazê-lo na língua
do território das comunidades lingüísticas, independente de os seus falantes compreenderem
outras línguas (art. 18). E inclusive, a declaração protege as comunidades lingüísticas no âmbito
dos procedimentos judiciais, ao prever que todos têm direito a utilizar oralmente e por escrito,
nos Tribunais de Justiça, a língua historicamente falada no território onde estão situados. Os
Tribunais devem utilizar a língua própria do território nas suas ações internas e se, por força da
organização judicial do Estado, o procedimento prosseguir fora do lugar de origem, dever-se-á
manter a utilização da língua de origem (art. 20, 1). Dessa forma, os direitos lingüísticos se
apresentam como direitos humanos na medida em que independem de reconhecimento estatal,
pertencem a todos os humanos e são válidos universalmente.

7
A Declaração dos Direitos Lingüísticos encontra-se disponível no site: www.linguistic-declaration.org. Acesso em:
04/09/2005.
8
O art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos apresenta o conceito de comunidade lingüística: “Esta
declaração entende por comunidade lingüística toda sociedade humana que, radicada historicamente num
determinado espaço territorial, reconhecido ou não, se identifica com o povo e desenvolveu uma língua comum
como meio de comunicação natural e de coesão cultural entre seus membros. A denominação língua própria de um
território refere-se ao idioma da comunidade historicamente estabelecida neste espaço.”
Os direitos lingüísticos podem não parecer muito relevantes em um país como o Brasil,
que não possui dialetos, mas se pararmos um pouco para pensar sobre algumas práticas e
circunstâncias cotidianas, podemos encontrar uma série de desrespeitos à diversidade lingüística.
O art. 23 nº 3, por exemplo, dispõe que: “O ensino deve estar sempre ao serviço da diversidade
lingüística e cultural, e das relações harmoniosas entre as diferentes comunidades lingüísticas do
mundo inteiro”. Questionamos se isso é de fato levado em consideração, tendo em vista que as
escolas brasileiras enfatizam o domínio da variedade padrão da língua apresentada pelos manuais
de gramática normativa? Estar a serviço da diversidade lingüística e cultural, como proclama o
referido artigo dos direitos lingüísticos, significa efetivamente incluir e reconhecer as variedades
lingüísticas (geográficas, sociais, etárias etc.) como manifestações lingüísticas legítimas.
Já o art. 38 declara que “Todas as línguas e todas as culturas das comunidades
lingüísticas devem receber um tratamento eqüitativo e não discriminatório nos conteúdos dos
meios de comunicação do mundo inteiro”. Se verificarmos o tratamento que se dá a certas
variedades lingüísticas na mídia, constatamos imediatamente que em muitas circunstâncias ocorre
a não observância desse direito, quando atos discriminatórios ocorrem ao se zombar de sotaques
ou expressões específicas de determinadas comunidades lingüísticas. Desse modo, essa postura
discriminatória que, muitas vezes, se reveste de normalidade, volta-se contra essas classes como
um instrumento encoberto de perpetuação de preconceito social. É correta a afirmação de Bagno
(2003, p. 16), segundo a qual: “O que existe, de fato, é um profundo e entranhado preconceito
social [...] por ser negro, índio, pobre, nordestino, mulher, deficiente físico, homossexual etc.
[...]”. Esse mesmo autor observa que quando um falante sudestino, carioca, mineiro ou capixaba
pronuncia a palavra “titia”, em que a letra [t] tem o som de [tš], como em tcheco, ninguém acha
engraçado. Entretanto, quando um falante do sudeste ouve um nordestino da zona rural
pronunciar a palavra “oito” com o som de [oytšu], ele acha muito engraçado, ridículo ou errado
(BAGNO, 2004, p. 44). Os dois fenômenos fonológicos descritos acima são o mesmo:
palatização. Então, por que um é melhor aceito que o outro? Provavelmente devido a uma
associação que se faz com a classe social e os termos e expressões que geralmente utiliza.
O art. 40 dos Direitos Lingüísticos proclama que

Todas as comunidades lingüísticas têm direito a dispor, no campo da informática, de


equipamentos adaptados ao seu sistema lingüístico e de utensílios e produtos na sua
língua, a fim de aproveitarem ao máximo as potencialidades oferecidas por estas
tecnologias no que respeita à auto-expressão, à educação, à comunicação, à edição, à
tradução e, em geral, ao tratamento da informação e à difusão cultural.

Ao se falar em informática, será que as potencialidades por ela oferecida são


aproveitadas ao máximo pela grande maioria? Pois grande parte dos softwares e páginas da
internet parece ainda não apresentar versões em várias línguas (geralmente são em inglês),
limitando sua plena utilização pela grande maioria da população. É notável a predominância da
língua inglesa no mundo da informática e até dos trabalhos científicos. Isso se dá devido ao papel
de lingua franca – “[...] uma língua para a comunicação rotineira entre (grupos de) pessoas que
possuem línguas maternas diferentes.” (CARTER; NUNAN, 2005, p. 223, tradução nossa)9 – que
o inglês exerce no contexto atual. Todavia, esse papel não deve transgredir as identidades
culturais de cada povo, que podem ser representadas através da língua, como já dizia Saussure
(2006, p. 221): “O termo idioma designa com muita precisão a língua como algo que reflete os
traços próprios de uma comunidade (o grego idiõma já tinha o sentido de ‘costume especial’).”

6. Considerações Finais

Devemos compreender que as pretensões de administração da língua não estão fora do


seu processo de mutação, na medida em que revelam demandas sociais que de alguma forma já
estão se manifestando. A reforma ortográfica do português é exemplar nesse sentido, pois decorre
das pressões advindas da globalização. Poderíamos nos perguntar: seria a tão falada reforma
ortográfica do português uma forma velada de controle da língua? Defendemos que não, pois
toda comunidade lingüística necessita de um modelo, que, neste caso, é meramente ortográfico,
para que haja uma padronização nos documentos escritos. No entanto, a ortografia não interfere
no funcionamento estrutural (gramática) da língua. Portanto, o acordo não vai de encontro à
Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos. Nesse contexto, os Direitos Lingüísticos não são
um mecanismo jurídico de “controle” da língua, mas tem a função de garantir que outros direitos
e princípios – tais como o direito de ser reconhecido como integrante de uma comunidade
lingüística, autodeterminação dos povos, dignidade da pessoa humana, liberdade de expressão
________________________
9
Original: “[…] a language for routine communication between (groups of) people who have different L1s.”
etc. – sejam respeitados no percurso da praxis lingüística. Tentativas de limitar de algum modo o
uso da língua são inócuas do ponto de vista do seu próprio processo e qualquer intervenção
programada neste sentido só pode se dar a posteriori e de modo circunstancial – como no caso de
uma ordem judicial que proíbe o uso de certas expressões que violam a imagem e a moral de um
indivíduo ou de uma sanção administrativa aplicada. A língua é dinâmica e não passível de
controle. Não é um conjunto de acadêmicos iluminados, uma reforma, mudanças na gramática ou
uma lei que dirá o que é a língua, mas é a própria língua enquanto expressão do homem enquanto
ser mutável que se manifesta em seu modo fundamental de ser.

8. Referências

BAGNO, Marcos. A norma oculta: língua e poder na sociedade brasileira. 3. ed. São Paulo:
Parábola, 2003.

______. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. 33. ed. São Paulo: Loyola, 2004.

BECHARA , Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.

CARTER, Ronald; NUNAN, David. (Eds.) The Cambridge guide to teaching English to
speakers of other languages. Cambridge: CUP, 2005.

CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Gramática reflexiva: texto,


semântica e interação. São Paulo: Atual, 1999.

GOMES DE MATOS, Francisco. Comunicar para o bem: rumo à paz comunicativa. 2. ed. São
Paulo: Ave-Maria, 2006.

ILIOVITZ, Erica Reviglio; MIRANDA NETO, Cleto B. Há lógica na linguagem inclusiva?


Interfaces de Saberes, v. 7, p. 4, 2007. Disponível em:
<http://www.interfacesdesaberes.fafica.com/viewissue.php?id=4> Acesso em: 02/09/2009.

ROSS, Kelly L. Against the theory of “sexist language”. Disponível em: <
http://faculty.ed.umuc.edu/~jmatthew/articles/against.html> Acesso em 08/09/2009.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. 27 ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Lógico-Philosophicus. São Paulo: USP, 2005.

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