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RESUMO
O presente trabalho tem como principal objetivo tecer considerações acerca do advento dos
direitos lingüísticos, partindo da análise da Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos, dos
projetos de lei 1676-D/99 (de promoção, proteção e defesa da língua portuguesa), 4610/01 e
438/08 (sobre a implementação da linguagem inclusiva em documentos oficiais) e, por fim, da
nova reforma ortográfica da língua portuguesa. A declaração universal dos direitos lingüísticos
representa um marco para a proteção das comunidades lingüísticas, reconhecendo que a praxis da
língua deve ser pautada no respeito à diversidade, na convivência e nos benefícios recíprocos.
Contudo, concluímos que a pretensão de estabelecer os modos de uso da língua de forma prévia é
ineficaz, pois esta é dinâmica e mutável, não sujeita à administração por parte de uma
comunidade lingüística, da academia ou de políticas públicas estatais que forçam uma adaptação
da sociedade através de um controle legal.
ABSTRACT
This paper aims to discuss about the coming of Linguistic Rights, by analyzing the Universal
Declaration of Linguistic Rights, the bills 1676-D/99 (about promotion, protection and defense of
Portuguese language), 4610/01 and 438/08 (about the implementation of inclusive language in
official documents) and, finally, the new Portuguese language orthographic reform. The
Universal Declaration of Linguistic Rights represents an important step for the protection of
linguistic communities, by recognizing that the use of the language must be ruled in respect to
diversity, coexistence and reciprocal benefits. However, it was concluded that the pretension of
establishing manners of use to the language in a previous way is ineffective, because it is
dynamic and changeable, not passive to the administration of a linguistic community, academy or
state public politics that requires an adaptation of the society through a legal control.
1
Doutorando em Direito pela Universidade de Buenos Aires – UBA, mestre em Filosofia, professor da Associação
Caruaruense de Ensino Superior – ASCES, Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e ESMAPE. Universidade
Federal de Pernambuco. Av. Professor Moraes Rego, 1235, Campus Universitário, 50670-901 Recife PE, Brasil. E-
mail: Adilson_ferraz@hotmail.com
2
Especialista em Lingüística Aplicada ao Ensino da Língua Inglesa – FAFIRE e Professor do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco – IFPE. E-mail: marqueshudson@hotmail.com
1. Considerações Iniciais
Citando os versos acima, do poema “Língua Portuguesa” (1924), que a deputada Iara
Bernardi inicia o relatório do Projeto de Lei N° 1676-D/99, de autoria do então Deputado Aldo
Rebelo, que tem como objetivo a proibição da introdução de estrangeirismos – “[...] emprego de
palavras, expressões e construções alheias ao idioma que a ele chegam por empréstimos tomados
de outra língua.” (BECHARA, 2004, p.599) – na língua portuguesa. O português estaria sofrendo
um processo de “desnacionalização” em face do deslumbramento ante o que é estrangeiro,
atingindo o patrimônio cultural representado pela língua. O fundamento jurídico do projeto
estaria no art. 13 e no art. 216 da Constituição Federal, que dispõe em seu caput: “Constituem
patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente
ou em seu conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – As formas de expressão
[...].” O uso de palavras ou expressões estrangeiras, salvo as excludentes previstas no §1º da lei
(dentre elas, o uso nas atividades de ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras, os vocábulos
estrangeiros consagrados pelo uso e as comunidades indígenas nacionais) seria considerado
lesivo ao patrimônio cultural brasileiro, sendo punível por sanção administrativa. Essa sanção
seria constitucional em virtude do §4º da Constituição, que prevê que danos e ameaças ao
patrimônio cultural serão punidos na forma da lei. Em 2002, o vereador Ricardo Maranhão, do
Rio de Janeiro, propôs uma lei de proteção e defesa da língua portuguesa muito parecida com
aquela de 1999, contudo, válida apenas em âmbito municipal. 3 A idéia de criar uma “política de
Estado” que restrinja o uso de termos estrangeiros tem gerado muita polêmica, embora já exista
em países como a França, que em 1994 criou uma lei para proteger seu idioma oficial.
3
Gostaríamos de destacar o art. 3: “É obrigatório o uso da língua portuguesa, nos seguintes domínios sócio-culturais:
I – no ensino e na aprendizagem; II – no trabalho; III – nas relações jurídicas; IV – na expressão oral, escrita ou por
qualquer outro meio que se faça uso de forma oficial ou em eventos públicos; V – nos meios de comunicação de
massa, e; VI – na publicidade de bens e serviços.” O projeto de lei foi consultado no seguinte site:
http://docs.google.com/gview?a=v&q=cache%3AaWXSJzoohNsJ%3Aspl.camara.rj.gov.br%2Fspldocs%2Fpl%2F20
02%2Fpl0949_2002_003026.pdf+lei+de+prote%C3%A7%C3%A3o+l%C3%ADngua+portuguesa&hl=pt-
BR&pli=1 Acesso em: 07/09/2009.
Com efeito, essa lei careceria de aplicabilidade, uma vez que não há como controlar o
processo natural de transformação – incluindo a introdução de estrangeirismos – que tem
ocorrido em todas as línguas ao longo da história. Se tal processo não ocorresse, a própria língua
portuguesa não existiria, e sim o latim. O autor do projeto, inclusive, utilizando da autoridade dos
imortais, creditou à Academia Brasileira de Letras o papel de mantenedora da originalidade do
português, escrevendo que “[...] à Academia Brasileira de Letras continuará cabendo o seu
tradicional papel de centro maior de cultivo da língua portuguesa no Brasil”. 4 Por outro lado,
Bagno (2004, p. 162-163) indaga: “[...] por que atribuir essa qualidade a um reduzido grupo de 40
indivíduos [...] quando o português do Brasil é falado [...] por mais de 170 milhões de pessoas?”
O projeto de lei pressupõe que a introdução de palavras de origem estrangeira no
português representaria uma espécie de agressão contra o idioma, recorrendo a um
conservadorismo extremo e infundado lingüisticamente, transferindo a responsabilidade do
suposto cultivo da língua a um grupo reduzido de indivíduos. De fato, os verdadeiros
representantes (cultivadores) de uma língua são as pessoas que a falam, não necessitando de
“guardiões” para tal tarefa. O idioma não consiste em algo estagnado, morto, controlável, mas
volátil, vivo, e em constante transformação, assim como as pessoas que o falam. 5
4
Projeto de Lei consultado no site: http://www.ipol.org.br/ler.php?cod=123. Acesso: 28/08/2009.
5
O projeto de lei do deputado Aldo Rebelo fez surgir um manifesto coletivo por parte dos lingüistas que deu origem
a um livro intitulado “Estrangeirismos: guerras em torno da língua” (São Paulo, Parábola Editorial, 2001),
organizado por Carlos Alberto Faraco.
masculino e feminino.6 Surge assim a perspectiva da linguagem inclusiva, que, de acordo com
Cabral (2006 apud ILIOVITZ; MIRANDA NETO, 2007):
[...] é um dos campos de estudos que vem sendo desenvolvido dentro da concepção de
gênero, diz respeito à inclusão do feminino na elaboração lingüística. Propõe a
utilização dos termos masculino e feminino na construção da linguagem como, por
exemplo: "Sala dos professores e das professoras"; "Casa da cidadania", em vez de
"Casa do cidadão"; "O ser humano", em vez de "O homem"; "Os alunos e as alunas"
etc.
Nessa ótica, percebemos a linguagem inclusiva como uma espécie de eufemismo – “[...]
palavra ou expressão empregada no lugar de outra palavra ou expressão considerada
desagradável ou chocante.” (CEREJA; MAGALHÃES, 1999, p. 399) – que apenas suaviza ou
disfarça um termo em detrimento de outro. A substituição de termos como “negro” por “afro-
descendente” não fez diminuir o racismo presente na sociedade. O segundo questionamento é
6
Sobre a defesa feminista pela linguagem inclusiva, confira: CABRAL, Assunta Maria Fiel. Linguagem Inclusiva
de Gênero: algumas reflexões. Disponível em: http://www.ptceara.org.br/artigos/texto.asp?id=326. Acesso em:
02/08/2009; VIEIRA, Vera; et al. Linguagem inclusiva: coletânea de textos. Disponível em:
<http://www.scribd.com/doc/7276276/Linguagem-inclusiva. Acesso em: 02/08/2009.
ainda mais grave, tendo em vista que gênero sexual não corresponde a gênero gramatical. O pai
da lingüística brasileira, Mattoso Câmara Jr., já chamaria a atenção para esse equívoco conceitual
há muito tempo. Os termos sexo masculino e sexo feminino representam categorias físicas
(homem e mulher) e os termos gênero masculino e gênero feminino estão relacionados a
categorias sociais – as funções e papéis desenvolvidos por homens e mulheres na sociedade.
Contudo, os gêneros gramaticais masculino e feminino consistem em categorias simbólicas, não
estando intimamente ligadas aos aspectos físicas ou sociais de seus respectivos significantes.
Mattoso Câmara Jr. (2004 apud ILIOVITZ; MIRANDA NETO, 2007) explica essa confusão:
[a flexão de gênero] costuma ser associada intimamente ao sexo dos seres. Ora, contra
essa interpretação falam duas considerações fundamentais. Uma é que o gênero abrange
todos os nomes substantivos portugueses, quer se refiram a seres animais, providos de
sexo, quer designem apenas ‘coisas’, como casa, ponte, andaiá, femininos, ou palácio,
pente, sofá, masculinos. (...) Depois, mesmo em substantivos referentes a animais ou
pessoas há discrepância entre gênero e sexo, não poucas vezes. Assim, testemunha é
sempre feminino, quer se trate de homem ou mulher, e cônjuge, sempre masculino,
aplica-se ao esposo e à esposa. Para os animais, temos os chamados substantivos
epicenos, como cobra, sempre feminino, e tigre, sempre masculino.
O que de fato ocorre na língua portuguesa é que, por inexistência do gênero neutro,
presente em outras línguas, todas as palavras são ou do gênero masculino ou do gênero feminino,
mesmo que remetam a significantes desprovidos de sexo. Nessa perspectiva, por questões de bom
senso, em algumas situações, utilizam-se palavras de gênero masculino como representantes de
ambos os sexos.
Isso não significa dizer que exista uma reprodução da ideologia machista, uma vez
que quando se diz “Olá a todos!”, tanto homens quanto mulheres sentem-se contemplados pelo
tratamento, não havendo necessidade da expressão “Olá a todos e a todas!”, o que se enquadraria
no equívoco apresentado por Ross (2009, tradução nossa)7: “[...] a teoria da ‘linguagem sexista’
parece defender que as palavras não podem ter mais de um significado: se ‘homem’ e ‘ele’ em
algumas situações remetem ao masculino, então não podem se referir a masculino e feminino em
outras situações.” Na verdade, a substituição de termos como “o homem” por “humanidade” ou
“o menino” por “a criança” representa a mera troca de um substantivo de gênero masculino por
outro de gênero feminino, implicando o mesmo tipo do suposto problema apresentado pelos
________________________
7
Original: [...] the theory of “sexist language” seems to say that words cannot have more than one meaning: if “man”
and “he” in some usage mean males, then they cannot mean both males and females in other usage [...].
defensores da linguagem inclusiva. Se isso é verdadeiro, a implementação da linguagem inclusiva
apresenta-se como algo inapropriado e sem fundamentos sociais ou lingüísticos significativos.
As reformas ortográficas vêm ocorrendo ao longo da história, frutos de leis impostas por
governos que os interpretam (com parecer de alguns filólogos) como mais adequadas para aquele
momento. Desse modo, no final do século XIX, escrevia-se ELLE, sendo substituído por ÊLE no
início do século XX e por ELE nos dias atuais. Portanto, quando a grafia não é obedecida, não
podemos caracterizar como “erro de português”. A grafia consiste numa representação fonêmica
(no caso do nosso sistema fonético) que, muitas vezes, não segue uma coerência histórica ou
etimológica. Bagno (2004) exemplifica que embora as palavras extenso e extensão sejam escritas
com ‘x’, o verbo estender é escrito com ‘s’ e também a palavra maciço é escrita com ‘c’, embora
derivada de massa, com ‘ss’. É ainda comum, por parte da mídia, a divulgação da “reforma da
língua portuguesa”, após o Brasil ter aderido ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de
1990, seguindo Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e Timor-Leste. De
fato, a reforma foi meramente ortográfica e não da língua portuguesa (embora esta esteja em
constante transformação), de modo que não é a reforma ortográfica que modifica a gramática (o
funcionamento) da língua.
A nova reforma da ortografia brasileira tem como objetivo uniformizar documentos
escritos pelos países de língua portuguesa, a fim de facilitar suas interações socioeconômicas,
políticas, comerciais, culturais etc., tendo em vista que o português era uma das poucas línguas
que apresentavam divergências ortográficas entre os países que a têm como língua oficial. Se a
unificação da ortografia facilitará as interações entre os países de língua portuguesa, ainda não se
sabe, contudo, trata-se de uma proposta fundamentada.
7
A Declaração dos Direitos Lingüísticos encontra-se disponível no site: www.linguistic-declaration.org. Acesso em:
04/09/2005.
8
O art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos apresenta o conceito de comunidade lingüística: “Esta
declaração entende por comunidade lingüística toda sociedade humana que, radicada historicamente num
determinado espaço territorial, reconhecido ou não, se identifica com o povo e desenvolveu uma língua comum
como meio de comunicação natural e de coesão cultural entre seus membros. A denominação língua própria de um
território refere-se ao idioma da comunidade historicamente estabelecida neste espaço.”
Os direitos lingüísticos podem não parecer muito relevantes em um país como o Brasil,
que não possui dialetos, mas se pararmos um pouco para pensar sobre algumas práticas e
circunstâncias cotidianas, podemos encontrar uma série de desrespeitos à diversidade lingüística.
O art. 23 nº 3, por exemplo, dispõe que: “O ensino deve estar sempre ao serviço da diversidade
lingüística e cultural, e das relações harmoniosas entre as diferentes comunidades lingüísticas do
mundo inteiro”. Questionamos se isso é de fato levado em consideração, tendo em vista que as
escolas brasileiras enfatizam o domínio da variedade padrão da língua apresentada pelos manuais
de gramática normativa? Estar a serviço da diversidade lingüística e cultural, como proclama o
referido artigo dos direitos lingüísticos, significa efetivamente incluir e reconhecer as variedades
lingüísticas (geográficas, sociais, etárias etc.) como manifestações lingüísticas legítimas.
Já o art. 38 declara que “Todas as línguas e todas as culturas das comunidades
lingüísticas devem receber um tratamento eqüitativo e não discriminatório nos conteúdos dos
meios de comunicação do mundo inteiro”. Se verificarmos o tratamento que se dá a certas
variedades lingüísticas na mídia, constatamos imediatamente que em muitas circunstâncias ocorre
a não observância desse direito, quando atos discriminatórios ocorrem ao se zombar de sotaques
ou expressões específicas de determinadas comunidades lingüísticas. Desse modo, essa postura
discriminatória que, muitas vezes, se reveste de normalidade, volta-se contra essas classes como
um instrumento encoberto de perpetuação de preconceito social. É correta a afirmação de Bagno
(2003, p. 16), segundo a qual: “O que existe, de fato, é um profundo e entranhado preconceito
social [...] por ser negro, índio, pobre, nordestino, mulher, deficiente físico, homossexual etc.
[...]”. Esse mesmo autor observa que quando um falante sudestino, carioca, mineiro ou capixaba
pronuncia a palavra “titia”, em que a letra [t] tem o som de [tš], como em tcheco, ninguém acha
engraçado. Entretanto, quando um falante do sudeste ouve um nordestino da zona rural
pronunciar a palavra “oito” com o som de [oytšu], ele acha muito engraçado, ridículo ou errado
(BAGNO, 2004, p. 44). Os dois fenômenos fonológicos descritos acima são o mesmo:
palatização. Então, por que um é melhor aceito que o outro? Provavelmente devido a uma
associação que se faz com a classe social e os termos e expressões que geralmente utiliza.
O art. 40 dos Direitos Lingüísticos proclama que
6. Considerações Finais
8. Referências
BAGNO, Marcos. A norma oculta: língua e poder na sociedade brasileira. 3. ed. São Paulo:
Parábola, 2003.
______. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. 33. ed. São Paulo: Loyola, 2004.
BECHARA , Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.
CARTER, Ronald; NUNAN, David. (Eds.) The Cambridge guide to teaching English to
speakers of other languages. Cambridge: CUP, 2005.
GOMES DE MATOS, Francisco. Comunicar para o bem: rumo à paz comunicativa. 2. ed. São
Paulo: Ave-Maria, 2006.
ROSS, Kelly L. Against the theory of “sexist language”. Disponível em: <
http://faculty.ed.umuc.edu/~jmatthew/articles/against.html> Acesso em 08/09/2009.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. 27 ed. São Paulo: Cultrix, 2006.