A Revolta da Vacina: Mentes insanas em corpos rebeldes
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Book preview
A Revolta da Vacina - Nicolau Sevcenko
A Revolta da Vacina
FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP
Presidente do Conselho Curador
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Diretor-Presidente
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Superintendente Administrativo e Financeiro
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Conselho Editorial Acadêmico
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Luiz Fernando Ayerbe
Marcelo Takeshi Yamashita
Maria Cristina Pereira Lima
Milton Terumitsu Sogabe
Newton La Scala Júnior
Pedro Angelo Pagni
Renata Junqueira de Souza
Rosa Maria Feiteiro Cavalari
Editores-Adjuntos
Anderson Nobara
Leandro Rodrigues
Nicolau Sevcenko
A Revolta da Vacina
Mentes insanas em corpos rebeldes
Aqueles que, de olhos fixos,
Atravessaram para o reino da morte
Se lembram de nós – se acaso lembrarem
Não como almas violentas, perdidas
Mas apenas como os homens ocos
Os homens empalhados.
T.S. ELIOT, Os homens ocos
© 2018 Editora UNESP
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410
Editora Afiliada:
Sumário
Introdução
1 O motim popular: ímpeto
2 Conjunturas sombrias: angústia
3 O processo de segregação: agonia
4 A repressão administrativa: terror
Conclusão
A Revolta da Vacina na cronologia política, social e econômica
Referências bibliograficas
Posfácio à edição de 2010
Sobre o autor
Créditos das imagens
Índice onomástico
16 de novembro de 1906. Dois anos depois, a Revolta da Vacina ainda ecoava. Ao pretender prestar uma homenagem ao prefeito Pereira Passos no dia em que este deixava o cargo, o proprietário do quiosque no 24 do largo de São Francisco de Paula afixou ali um retrato do ex-prefeito. Alguém, furtivamente, escreveu sobre ele dizeres ofensivos ao retratado. Esse foi o estopim da guerra que se armou, por toda a cidade, contra os quiosques.
Introdução
Dizem que o amor faz grandes obras. O ódio também poderá fazê-las; mas, para isso, como no caso do amor, é preciso conter-se.
LIMA BARRETO, Diário íntimo
Nunca se contaram os mortos da Revolta da Vacina. Nem seria possível, pois muitos, como veremos, foram morrer bem longe do palco dos acontecimentos. Seriam inúmeros, centenas, milhares, mas é impossível avaliar quantos. A autoridade policial, como seria de se esperar, apresentou números sóbrios e precisos, na tentativa de reduzir uma autêntica rebelião social à caricatura de uma baderna urbana: fútil, atabalhoada, inconsequente. Os massacres, porém, não manifestam rigor com a precisão. Sabe-se quantos morreram em Canudos, no Contestado ou na Revolução Federalista – para só ficarmos nas grandes chacinas da Primeira República? A matança coletiva dirige-se, via de regra, contra um objeto unificado por algum padrão abstrato que retira a humanidade das vítimas: uma seita, uma comunidade peculiar, uma facção política, uma cultura, uma etnia. Personificando nesse grupo assim circunscrito todo o mal e toda a ameaça à ordem das coisas, os executores se representam a si mesmos como heróis redentores, cuja energia implacável esconjura a ameaça que pesa sobre o mundo. O preço a ser pago pela sua bravura é o peso do seu predomínio. A cor das bandeiras dos heróis é a mais variada, só o tom do sangue de suas vítimas permanece o mesmo ao longo da história.
A Revolta da Vacina, ocorrida num momento decisivo de transformação da sociedade brasileira, nos fornece uma visão particularmente esclarecedora de alguns elementos estruturais que preponderaram em nosso passado recente – repercutindo até mesmo nos dias atuais. A constituição de uma sociedade predominantemente urbanizada e de forte teor burguês no início da fase republicana, resultado do enquadramento do Brasil nos termos da nova ordem econômica mundial instaurada pela Revolução Científico-Tecnológica (por volta de 1870), foi acompanhada de movimentos convulsivos e crises traumáticas, cuja solução convergiu insistentemente para um sacrifício cruciante dos grupos populares. Envolvidos que estamos com as condições postas por essas transformações, pouco temos refletido sobre o seu custo social e humano. Minhas ponderações, por isso, voltam-se com alguma persistência para essa questão delicada e, reconheço, um tanto incômoda, porém imprescindível.
A insurreição de que trata este texto ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, no ano de 1904. Seu pretexto imediato foi a campanha de vacinação em massa contra a varíola, desencadeada por decisão da própria presidência da República. Os setores da oposição política, que desde longo tempo vinham articulando um golpe contra o governo, aproveitaram-se das reações indignadas da população, a fim de abrir caminho para o seu intento furtivo. Essas oposições eram constituídas basicamente de dois agrupamentos. O primeiro, muito difuso, se compunha genericamente do núcleo de forças que ascenderam e se impuseram ao país durante a primeira fase do regime republicano, os governos militares de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto – sobretudo este último. Tratava-se primeiramente de jovens oficiais, formados nas escolas técnicas de preparação de cadetes, onde pontificavam as novas teorias científicas que propunham uma reorganização geral da sociedade. Essa reorganização se inspirava na teoria de Augusto Comte, o positivismo, o qual preconizava uma nova civilização industrial que, administrada por gerentes de empresas, se baseava numa legislação de proteção e assistência aos trabalhadores e era governada por uma ditadura militar.
Acompanhava esses jovens oficiais, base do movimento que culminou na proclamação da República, toda uma enorme gama de setores sociais urbanos, representada por trabalhadores do serviço público, funcionários do Estado, profissionais autônomos, pequenos empresários, bacharéis desempregados e pela vasta multidão de locatários de imóveis, arruinados e desesperados, que viam o discurso estatizante, nacionalista, trabalhista e xenófobo dos cadetes como sua tábua de salvação. Esse grupo era genericamente denominado de jacobinos (indicando sobretudo grupos de civis) ou florianistas (referindo-se principalmente aos setores militares), ou ainda de republicanos vermelhos ou radicais. O outro agrupamento dos conspiradores era formado por monarquistas depostos pelo novo regime.
Como veremos, essas oposições se revelariam incapazes de compreender as dimensões mais abrangentes e de caráter mais radicalmente contestador encontradas nos movimentos da massa popular que iriam desencadear a Revolta da Vacina e se constituiriam numa das mais pungentes demonstrações de resistência dos grupos subalternos do país contra a exploração, a discriminação e o tratamento espúrio a que eram submetidos pela administração pública nessa fase da nossa história.
Optei por iniciar esta reflexão diretamente com uma descrição pormenorizada do cotidiano da revolta, a agitação dos participantes e o fragor dos confrontos entre as partes envolvidas. É a vibração mais epidérmica do movimento, o estudo de sua amplitude, seu fluxo e refluxo que dominam, portanto, as páginas iniciais deste texto. Tento expor em seguida, nos capítulos Conjunturas sombrias: angústia
e O processo de segregação: agonia
, as causas mais profundas da insurreição e o seu significado particular no contexto de mudanças