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ISSN: 0873-2019

ESTUDO
DO
i%ò%V^%ÍTui\%

INSTITUTO SUPERIOR DE CONTABILIDADE


E ADMINISTRAÇÃO

1999
Estatuto Editorial
1. Carácter da Revista
1.1. A Revista Estudos do I.S.C.A.A. será publicada anualmente, preven-
do-se a sua distribuição para o mês de Outubro.

1.2. Objectivos

1.2.1. Reforçar a identidade do I.S.C.A.A. no espaço técnico,


científico e cultural das Escolas de Ensino Superior.

1.2.2. Criar um espaço de reflexão interdisciplinar de acordo com


as exigências de uma abordagem científica da complexa
realidade empresarial e seus enquadramentos.

1.2.3. Dinamizar a análise crítica de experiências concretas no


interior das empresas com base na observação, em estudos
empíricos e em dados estatísticos.

1.2.4. Acompanhar, na medida do possível, os resultados da


pesquisa e da reflexão científica no interior da Escola - e,
quanto possível, no país e no estrangeiro - nos domínios
relevantes para a actualização dos profissionais diplomados
e formados no I.S.C.A.A..

1.2.5. Promover a criação de um Centro do Património


Contabilístico Português que permita enraizar as soluções
criativas para os desafios actuais na tradição técnico-
científica e cultural dos estudiosos portugueses da
Contabilidade e conexas Ciências empresariais.

2. Colaboradores
2.1. A Revista Estudos está aberta a todos os estudiosos e profissionais
dispostos a reflectir sobre quaisquer questões e experiências que
reforcem os valores humanos, aprofundem conhecimentos e
promovam a eficácia no desempenho das múltiplas tarefas exigidas
ao profissional saído do I.S.C.A.A., sem discriminação de
paradigmas teóricos ou de correntes de pensamento.
Revista Estudos do I.S.C.A.A II Série • N°5 • 1999
Revista de Publicação Anual

Direcção: Joaquim José da Cunha

Coordenação: José Fernandes de Sousa


Virgínia Maria Granate Costa e Sousa

Conselho Consultivo: Professores Coordenadores das Áreas


Científicas do I.S.C.A.A.

Edição e Propriedade: Instituto Superior de Contabilidade e


Administração de Aveiro

Apoio Administrativo e Assinaturas: Biblioteca do I.S.C.A.A.


R. Associação Humanitária dos Bombeiros Velhos de Aveiro
Apartado 58 - 3811-953 AVEIRO
Tel: 234 380110 Fax: 234 380311

Preço: 1.500$00*, acrescido de IVA e portes de correio


*Desconto para professores, estudantes e reformados do ISCAA

ISSN: 0873-2019

Depósito legal n°: 922 54/99


Capa: Design/execução: Francisco Espindola/Minerva
Trat. de texto: apoio técnico de Maria Lisete Marques
Impressão: Tipografia Minerva Central, Lda./1999
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 7
JOSÉ FERNANDES DE SOUSA

A NOVA VISÃO DA CONTABILIDADE li


ANTÓNIO LOPES DE SÁ

INFLUÊNCIA INTELECTUAL E A DOUTRINA


NEOPATRIMONIALISTA DA CONTABILIDADE 25
ANTÓNIO LOPES DE SÁ

NORMALIZAÇÃO CONTABILÍSTICA 37
AVELINO AZEVEDO ANTÁO

A ÉTICA COMO FACTOR DE DIFERENCIAÇÃO NO


EXERCÍCIO DA ACTIVIDADE PROFISSIONAL DO
CONTABILISTA 61
DOMINGOS JOSÉ DA SILVA CRAVO

O ENSINO DA CONTABILIDADE NO ENSINO


SUPERIOR -TENDÊNCIAS. ALGUMAS
QUESTÕES / REFLEXÕES 101
DOMINGOS JOSÉ DA SILVA CRAVO

PROJECTO EM SIMULAÇÃO EMPRESARIAL


UMA PERSPECTIVA EM DESENVOLVIMENTO 113
E. MACHADO, H. INÁCIO, J. FORTES EJ. SOUSA
RELATING ORGANIZATIONAL LEARNING
AND INFORMATION SYSTEMS:
A PRELIMINARY STUDY 129
JOÃO BATISTA
A.DIAS DE FIGUEIREDO

VISITA GUIADA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES


SOBRE o LIBERALISMO E A ESCOLA CLÁSSICA
INGLESA 139
JOSÉ FERNANDES DE SOUSA

DIÁRIOS/WRITING JOURNAL: CONTRIBUTO


PARA o DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA
EM CURSOS TÉCNICOS 175
Luís GOUVEIA

POLINÓMIOS E FUNÇÕES POLIMONIAIS


FACTORIZAÇÃO DO ANEL DOS POLINÓMIOS 189
MARGARIDA MARIA SOLTEIRO MARTINS PINHEIRO
APRESENTAÇÃO

Com atraso significativo, que nos esforçamos por ultrapassar em


cada nova edição, podemos agora publicar o n° 5, de 1999, de Estudos
do ISCAA.
O conteúdo da Revista desenvolve-se dentro do formato
habitual: os artigos aparecem por ordem alfabética de autores, dada a
ausência de rubricas específicas.
Apesar da relativa uniformização da estrutura dos textos, da
bibliografia, etc. deixamos uma certa margem de diferença que os
autores gerem a contento. Assim, a presente edição integra textos
cujo, formato se prende visivelmente ao caracter da sua finalidade
original.
O ilustríssimo académico brasileiro, Prof. Doutor António Lopes
de Sá, oferece-nos dois textos convidativos.
A NOVA VISÃO DA CONTABILIDADE considera que a Conta-
bilidade, fiel à tradição, face às diversificadas transformações
económicas e sociais, vai progredir - sem abandonar a metodologia
contábil - em busca de novas bases e novas abordagens; o rumo certo
passa por uma decidida orientação para as ciências conexas, por uma
redobrada atenção às sinergias epistemológicas da interdisciplinarida-
de e pela compreensão do impulso inovador que, ao nível do
pensamento e da acção, emana de uma sólida cultura geral; a nova
Contabilidade terá seu lugar assegurado no consílio das ciências para,
sem ressentimentos, partilhar a ingente tarefa de prospectivar e
construir o futuro, cuja fisionomia flui da confiança no Homem e na
Ciência.
A INFLUÊNCIA INTELECTUAL E A DOUTRINA NEO PATRIMO-
NIALISTA DA CONTABILIDADE retoma o atávico esforço do cientista em
busca de uma teoria que sirva para iluminar os complexos refegos da
realidade. O teórico da Contabilidade pretende vencer a opacidade da
realidade económica e social e traduzir, através do método que adopta,
a dupla face do património - a "material", de fácil quantificação e
menor resistência metodológica, e a "imaterial" que, apesar da sua
crescente importância, aparece mais fluida e esquiva aos avanços da
ciência.
Parece que o autor, apesar da sua conceptualização peculiar,
espera da abordagem sistémica - sem esquecer os seus contactos
metafóricos com a Biologia - novas aquisições para a ciência contábil.

A NORMALIZAÇÃO CONTABILÍSTICA foca algumas candentes


questões relativas às normas contabilísticas e ao processo de
normalização, nomeadamente às organizações normalizadoras -
- localização, composição, poder e influência, suas relações, etc. - , às
organizações profissionais e aos diferentes modelos de normalização,
deixando, para concluir, a ideia de que se torna indispensável criar um
modelo europeu que viabilize a comparação da informação. Enfim,
um conjunto de questões passíveis de um projecto monográfico.

A ÉTICA COMO FACTOR DE DIFERENCIAÇÃO NO EXERCÍCIO DA


ACTIVIDADE PROFISSIONAL DO CONTABILISTA assume uma feição
eminentemente pedagógica, não apenas pelo tema e sua actualidade
profissional - o Código Deontológico dos Técnicos Oficiais de Contas
é uma recente conquista - , mas por se tratar de uma "Lição",
integrada num concurso de provas públicas para Professor
Coordenador da Área Científica da Contabilidade do ISCAA, que, da
concepção ao desenvolvimento, adopta propositadamente uma
metodologia distanciada dos contornos da "lição magistral".
Aliás, as preocupações pedagogico-didácticas têm uma presença
significativa nesta edição.

1
A sensibilidade dos docentes do ISCAA para as questões pedagógicas,
nomeadamente as relacionadas com a metodologia da Escola activa, centrada nos
alunos e alicerçada na vida, remonta, pelo menos, a meados da década de 80:
Reformismo Social e Projecto Educativo: António Sérgio, Defensor do Ensino
Técnico Profissional, in Actas das 2aS Jornadas de Contabilidade, realizadas em
Aveiro de 5 a 12 de Maio de 1984, Aveiro, ISCAA, 1985, pp. 543-582, e "A
Empresa e a Escola na Formação do Contabilista, in Actas das III Jornadas de
Contabilidade, realizadas no Porto, de 6 a 9 de Novembro de 1985, Porto, ISCAP,
1986, pp. 341-379 constituem dois momentos do dever de pensar a profissão
docente, que não perderam, penso, sentido e actualidade.
O ENSINO DA CONTABILIDADE NO ENSINO SUPERIOR -
- TENDÊNCIAS. ALGUMAS QUESTÕES/RFLEXÕES centra-se no processo
de ensino aprendizagem - agentes, conteúdos, métodos, etc. O autor
alinha pela ideia de que uma vívida formação escolar passa pelo
desenvolvimento de capacidades, nomeadamente a capacidade de
aprender, que, sendo uma das exigências da escola da vida, não pode
deixar de assumir uma prioridade estratégica na vida da escola.

O PROJECTO EM SIMULAÇÃO EMPRESARIAL - uma actividade


disciplinar integrada no currículo da Licenciatura bi-etápica do
ISCAA - dá-nos conta de UMA EXPERIÊNCIA EM DESENVOLVIMENTO
que, apesar de se integrar num movimento mais do que secular de
renovação da Escola, vulgarmente denominada tradicional, não deixa
de ser inovador ao nível do Ensino Superior da Contabilidade, em
Portugal.
Parece claro que a teoria/doutrina não é roupagem académica de
mera exibição talar, tem, de facto, uma utilidade prática eminente e
insuprível, nomeadamente no acompanhamento de tarefas que exigem
definição de objectivos, planeamento de actividades e sua lúcida
execução, avaliação crítica dos resultados e síntese/comunicação da
experiência desenvolvida.

RELATING ORGANIZATIONAL LEARNING AND INFORMATION


SYSTEMS: A PRELIMINARY STUDY aduz um contributo para lançar uma
ponte sobre o fosso que separa - ou pode separar - a "aprendizagem
organizacional" e os "sistemas de informação", sendo a melhor forma
de ultrapassar esse "gap" a estruturação de uma linguagem comum,
facilmente partilhada, assente em conceitos claramente definidos.

A VISITA GUIADA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O


LIBERALISMO E A ESCOLA CLÁSSICA INGLESA, d'onde não está ausente
o sentido pedagógico que lhe deu origem, convida a revisitar o
pensamento fundador da nossa civilização, cujos desenvolvimentos
moldam o mundo em que vivemos.
Em DIÁRIOS/WRITING JOURNAL: CONTRIBUTO PARA O
DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA EM CURSOS TÉCNICOS acontece uma
experiência centrada na aplicação do método dos projectos ao ensino
da língua inglesa, cujas virtualidades se afiguram incontestáveis.

Finalmente, em POLINÓMIOS E FUNÇÕES POLINOMIAIS


FACTORIZAÇÃO NO A N E L DOS POLINÓMIOS, ficamos diante de um
trabalho relacionado com as provas públicas para Professor Adjunto
da Área de Matemática do ISCA de Aveiro.
Somos assim.
Da nossa parte forcejamos por cumprir. Perseveramos na
disposição de melhorar, não apenas o figurino da revista - pensamos
na criação de secções permanentes, incluindo recensões - mas
igualmente o seu conteúdo, procurando a sua diversificação,
valorização e credibilização - sem esquecer as acções que viabilizem
o acesso da publicação ao seu público alvo.

P e l ' A COORDENAÇÃO DA REVISTA

J.F.S.
Revista Estudos do ISCAA, IIa Série, 5 (1999) 11-24

A NOVA VISÃO DA CONTABILIDADE

PROF. DOUTOR ANTÓNIO LOPES DE SÁ


PRESIDENTE DA ACADEMIA BRASILEIRA DE
CIÊNCIAS CONTÁBEIS
Revista Estudos do ISCAA

SUMÁRIO:

• TRADIÇÃO DE PROGRESSOS EM CONTABILIDADE


• As MUDANÇAS DE ÓTICAS NA CONTABILIDADE CONTEMPORÂNEA
• As RELAÇÕES LÓGICAS E O CORRELATIVO NO COMPORTAMENTO DA RIQUEZA
• ESPECIFICIDADE DO CONHECIMENTO DA CONTABILIDADE
• A VOCAÇÃO NEOPATRIMONIALISTA COMO O GRANDE PROGRESSO
• A DIFERENÇA ENTRE AS VOCAÇÕES DE ESTUDIOSOS
• O SOCIAL E A CONTABILIDADE - PERSPECTIVAS DE UMA NOVA CIÊNCIA

12
A Nova Visão da Contabilidade

"A Contabilidade sempre seguiu seu destino de progresso, ao longo do


tempo, mas, na atualidade, talvez esteja a sofrer as mais profundas mudanças . A
teoria das Funções Sistemáticas que elaboramos ofereceu uma visão geral de nossa
disciplina e abriu portas para um agregado da mesma com outros ramos do saber .
Admitimos, pois, que uma nova ciência possa surgir com base nas conquistas
contábeis e que seria a de uma ciência para uma nova sociedade, a partir de uma
nova célula social, beneficiada pela prosperidade . "

TRADIÇÃO DE PROGRESSOS EM CONTABILIDADE


Um dos grandes pensadores de nosso século, Georges Gusdorf,
escreveu, em sua monumental obra, "Da História das Ciências à
História do Pensamento", algo que muito é motivo de orgulho para
três classes, de duas grandes pátrias : "A longa noite da Idade Média
permite render uma justa homenagem aos mercadores e aos
contabilistas italianos, bem como aos navegadores portugueses".
Sem dúvida, a sistematização das partidas dobradas, ocorrida no
campo dos registros e demonstrações contábeis, constituiu-se na base
para que fosse processado um grande progresso, não só no campo
empírico, mas, também, no da construção dos alicerces para uma
ciência da riqueza.
O que ocorreu nos séculos seguintes, fluiu como consequência
dos esforços intelectuais, de valorosos estudiosos, em um ramo de
conhecimento que já era considerado como um fator fundamental na
sustentação do progresso.
As modificações foram-se sucedendo naturalmente, por
acréscimos, mas, só no mundo atual, a partir do século XX, os
avanços se tornariam mais que proporcionais aos que antes
sucederam.
O progresso teórico das correntes de pensamento europeias,
especialmente as italianas e alemãs, e, aqueles do campo tecnológico,
culminaram, ambos, por contribuir para que surgissem novas bases e
diretrizes no estudo da riqueza das células sociais.
A Contabilidade, pois, chegou aos nossos dias, modificada, em
relação aos seus rumos tradicionais, seguindo uma direção

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Revista Estudos do ISCAA

conveniente, adequada, ampliando, consideravelmente, a sua utilidade


e com perspectivas alvissareiras.

AS MUDANÇAS DE ÓTICAS NA CONTABILIDADE


CONTEMPORÂNEA

A visão enclausurada da riqueza, sob uma ótica isolada, sem


conexão com tudo o mais ao qual ela se liga, foi, contabilmente,
conservada por milénios.
Tanto na prática quanto nos estudos e obras escritas ou editadas,
a constante foi sempre a de objetivar a empresa ou a instituição
fechada em si mesma.
Só, há pouco mais de um século, começou a modificar-se o
aspecto de observação, ao entender-se que os fatos que ocorrem em
uma riqueza individualizada não podem ser desconhecidos no estudo
dos efeitos causados pelos entornos.
A travessia desse Rubicão cultural, iniciou-se nas primeiras
décadas do século XX e segue, aceleradamente, para um sentido cada
vez mais holístico.
Tal tendência se opera não só apenas em razão do aparecimento
de novas especialidades como as relativas à Contabilidade Social,
Ambiental, da Qualidade, das análises espaciais de custos, das
derivadas das influências da informática, da telemática e da
velocidade de giro dos capitais, mas, sim, especialmente, como
decorrência de haver-se estabelecido um novo enfoque, envolvendo
todas as relações que existem entre a riqueza de uma célula social
(seja empresa, seja instituição) e as de seus entornos em sentido
universal.
Tais foram as transformações ambientais relativas aos mercados,
ciências, tecnologias, políticas, comportamentos sociais, éticos etc.
que passaram a atingir o patrimônio, que não seria mais possível
confinar os estudos a simples informações e a doutrinas empíricas
ainda a estas extremamente arraigadas.
A ciência contábil seguiu, pois, por força de todas essas
metamorfoses de comportamentos, às vocações de entrelaçamento,

14
A Nova Visão da Contabilidade

conglomerado e cooperação recíproca entre as ciências, hoje, uma


constante em todos os ramos do conhecimento humano.
Sem cultura geral, sem visão holística, já não é mais possível
sobreviver no campo das metodologias científicas e isto foi
reconhecido, felizmente, pelos estudiosos da área contabilística.
Evocando novamente Gusdorf observamos que estamos
seguindo, em nosso campo, o que o grande mestre lecionou, ou seja,
de que: "O sentido da verdade humana não pode ser procurado numa
série isolada e independente dos fatos culturais. As diversas
perspectivas do saber encontram-se ligadas por um contraponto;
cada uma desemboca em todas as outras " , escreveu Georges Gusdorf
(obra já referida, edição Pensamento, Lisboa, 1988, página 243).
Esta, a razão pela qual, as análises das peças contábeis,
elaboradas segundo o processo tradicional, não suprem mais as
exigências para fins administrativos , de políticas de investimentos e
sociais, pois são informações insuficientes (tal como se encontram
elaboradas segundo as normas ditas como aceitas ou consagradas por
grupos de normatização) para as conclusões científicas.
Isto não significa que os procedimentos tradicionais devam ser
todos abandonados ou que sejam imprestáveis, mas, sim, que é preciso
dar-lhes um novo enfoque, utilizando-se de outros recursos,
reconhecendo-se as atuais realidades.

AS RELAÇÕES LÓGICAS E O CORRELATIVO NO


COMPORTAMENTO DA RIQUEZA

É imprescindível que se formem ideias e observações a partir do


comportamento da riqueza em si, mas, associadas às de todos os
demais comportamentos que tiveram capacidade para influir nas
transformações patrimoniais.
Tais referidas indagações exigem que fenómenos analisados por
outras disciplinas sejam evocados para análises comparativas de
efeitos.
Não é útil estudar-se, por exemplo, de forma isolada, as quedas
nas vendas, sem que se observem os efeitos externos que as causaram

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Revista Estudos do ISCAA

e que tanto podem estar no ambiente interno da empresa, em razão de


fenómenos administrativos, como em razão de acontecimentos no
ambiente externo como os relativos as fenómenos económicos do
mercado, de convulsões de massas, defluentes de fenómenos sociais
ou de fenómenos ecológicos como secas prolongadas.
O apelo a outros conhecimentos, para conseguir explicação
ampla das ocorrências na riqueza aziendal, não significa um abandono
do objeto da Contabilidade e nem, muito menos, a invasão de
fronteiras convencionais de territórios científicos.
Trata-se de tomar em consideração que a ocorrência de um fato
pode depender das circunstâncias de um outro e que embora cada um
se estude em seu ramos específicos, muitos, entretanto, se entrelaçam.
Existem, a considerar, sim, três grupos muito definidos de
relações lógicas que determinam os acontecimentos nas riquezas
aziendais e que, segundo a minha Teoria das Funções Sistemáticas,
são eles os de naturezas: essenciais, dimensionais e ambientais (cada
um com o seu campo de ação efetivo a considerar, mas, todos, como
integrantes de um só universo de acontecimentos).
A Contabilidade, assim disciplinada logicamente, busca uma
pluridimensionalidade de exames, em uma holística consideração de
todas as influências sobre os acontecimentos que tem por
responsabilidade estudar, conseguindo, desta forma conquistar uma
outra visão que lhe enseja conhecer com maior precisão a verdade
sobre os fenómenos.
A matéria continua sendo o mesma, ou seja, a dos fenómenos do
patrimônio da célula social, mas, apenas, sob a ótica aberta de análises
de correlações com os entornos, tudo em regime de interação de forma
sistemática, considerando as influências provenientes dos ambientes e
que determinaram as alterações ou transformações da riqueza.
A exemplo das "forças", na Física, existem influências que
fazem mover a riqueza das células sociais, que rompem a inércia da
massa patrimonial e que são perfeitamente determináveis nas suas
causas e efeitos, em suas qualidades e quantidades, em seus tempos e
espaços.

16
A Nova Visão da Contabilidade

Sobre esta questão, estou acompanhando importantes trabalhos


ainda inéditos, mas, desenvolvidos na Universidade do Minho, em
Portugal, sob a direção e com a participação do Prof. Doutor
Armandino Rocha e da Professora Doutora Lúcia Maria Portela de
Lima Rodrigues, nos quais se adotam, inclusive, a expressão "força",
para determinar a ação dos agentes que influem sobre o patrimônio.

ESPECIFICIDADE DO CONHECIMENTO DA
CONTABILIDADE

O fato de se analisar a influência da inflação sobre o


comportamento do imobilizado de uma empresa, por exemplo, não
significa que se está fazendo um estudo económico, mas, apenas,
valendo-se dos subsídios da Economia.
O fato de, judicialmente, por exemplo, considerar-se os
fenómenos biológicos, revelados em um laudo médico, para efeitos
penais, não autoriza a dizer-se que o Direito seja uma ciência
biológica.
Um mesmo fenómeno pode ser observado por várias ciências, e
quase sempre o é, sem todavia comprometer o objeto de estudos de
cada uma, mas, também, sem se poder negar a relação de
interdependência à qual Gusdorf se refere.
Esta a razão de, há milénios, Aristóteles afirmar que havia uma
ciência da riqueza particularizada e que esta não era a Economia; ou
seja, afirmou que o estudo objetivo do patrimônio, nas células sociais,
não se confunde com aquele que de forma abstraía considera uma
riqueza social, como se faz na Economia (em sua obra A Política).
A riqueza pode ser examinada por diversas ciências, como, por
exemplo, a do Direito ; grande parte do Direito Civil é Direito
Patrimonial, como boa parte do Direito Comercial, também é Direito
Patrimonial.
Porque os estudos da Economia, do Direito, da Administração,
devam ser considerados pelos contabilistas, não significa que a
Contabilidade seja uma Ciência Jurídica, Económica ou
Administrativa.

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Revista Estudos do ISCAA

O fato das novas correntes de estudos estarem buscando maiores


correlações com outros ramos de conhecimento, mas, sem abandonar
a metodologia contábil, no sentido de uma visão holística, não
significa, de modo algum, abdicação ao que por base possuímos como
objeto científico.
Os progressos doutrinários e práticos na Contabilidade não
implicaram em uma renúncia ao estudo da riqueza das células sociais,
mas, ao contrário, no maior apego, ainda, a tal matéria, apenas
buscando conhecer como a mesma se comporta diante das influências
externas que recebe.

A VOCAÇÃO NEOPATRIMONIALISTA COMO O GRANDE


PROGRESSO

O Neopatrimonialismo não é uma outra Contabilidade, mas uma


nova corrente que observa o assunto contábil, sob perspectivas de
amplitude, de correlações, mais condizentes com a evolução das
tecnologias e necessidades dos mercados e administrações
contemporâneas.
As ideias básicas de um Neopatrimonialismo, todavia,
intuitivamente, como uma nova corrente de estudos, já se ensaiava na
Itália, com os trabalhos de Ceccherelli (II Linguaggio dei Bilanci) , e
os de Masi (La Scienza dei Património), nos anos 50 e 60 do século
XX.
A vocação para análises correlativas não significa o abandono
ou a transformação de um objeto científico, nem a renúncia ao estudo
aprofundado do que essencialmente ocorre com a riqueza
individualizada, mas, apenas, uma ampliação da ótica de observação.
Analisar, por exemplo, a influência de uma nova política
cambial nos custos de produção de uma indústria, não significa que se
está fazendo um estudo económico, mas, sim, valendo-se dos
conhecimentos da Economia para observar, raciocinar e concluir sobre
os verdadeiros efeitos de tais fenómenos sobre o capital da empresa.
Todos os caminhos são úteis para a compreensão da realidade e
os limites entre as ciências são, apenas, convenções para auxílio

18
A Nova Visão da Contabilidade

metodológico e é fundamentado em tal concepção que se vem


processando a abertura dos estudos em Contabilidade.
O valor da cultura geral, o conhecimento de filosofia e história,
é imenso, perante o desenvolvimento de qualquer ramo do saber que
esteja comprometido com a verdade e esta é uma responsabilidade que
o Neopatrimonialismo tomou como base.

A DIFERENÇA ENTRE AS VOCAÇÕES DE ESTUDIOSOS

A simples alegação de que um estudo é apenas teórico, prolixo,


aplicada para depreciar quem desenvolve com racionalidade os
assuntos contabilísticos, é, quase sempre, própria dos que não
conseguiram, ainda, medir a extensão do que ocorre em matéria
cultural.
Os ataques que por vezes se fazem, para defender posições
pragmáticas ou apenas subjetivas, são próprios dos que se preocupam
mais em impor as suas ideias do que em reconhecer que a verdade é
uma conquista a ser perseguida constantemente.
O pragmatismo tem a sua utilidade, assim como a posição
científica, também, embora uma e outra sejam falíveis, dependendo da
qualidade lógica do desenvolvimento das razões que foram tomadas
como sustentações.
A divisão de rumos entre as escolas europeias, anglo-saxônicas
e a atual latino-americana, tem-se operado exatamente em face da
visão de cada uma, a respeito do conhecimento contábil.
A razão da supremacia de diversos autores europeus e dos
latino-americanos, em face de muitos dos cultores da Contabilidade
anglo-saxônica, está, exatamente, na qualidade educacional, ou seja,
na capacidade em correlacionar entendimentos; a excelência dos
doutrinadores advém, entretanto, do maior poder de conhecimento dos
mesmos sobre a realidade internacional da cultura.
Basta comparar as bibliografias de muitos dos trabalhos
produzidos nos Estados Unidos, com relação aos produzidos na
comunidade europeia e naquela latino-americana, para que se tenha a
noção da extensão dessa diferença de culturas.

19
Revista Estudos do ISCAA

O que está hoje a ocorrer, não só no campo da disciplina


contábil, mas, também, de outras ciências, como as da Administração,
da Economia, é que existem os que se prendem apenas aos estudos de
casos, de acontecimentos ocorridos em seus países ou em áreas de
suas atuações (são exemplos os estadunidenses) e outros que buscam a
generalidade, ou seja, a construção de teoremas e teorias de valor
universal (caso do Neopatrimonialismo latino e o de várias correntes
europeias).
Todos os estudos são úteis, mas, não se pode negar que maior
seja a qualidade do estudo científico, em relação ao pragmático, não
só em nossa disciplina, mas, em todas as demais.
Entender, todavia, que a Contabilidade só serve para informar
ou para produzir modelos de maximização de resultados é estar fora
da realidade cultural já conquistada e daquela que se enceta rumo ao
futuro.
Ter em mente que a Contabilidade só serve como uma
especialização a serviço da especulação monetária, da exacerbada
busca de lucros , da concorrência em moldes imperialistas sob a capa
de globalização, sendo uma técnica apenas de informação de
acontecimentos decorrentes dessa corrida, é menosprezar a
inteligência humana, tão como abandonar um prodigioso acervo de
conquistas que em séculos já foram realizadas no campo das
doutrinas, por cientistas de rara inteligência .
Não foi sem forte razão que Albert Einstein lecionou que : "Os
excessos do sistema de competição e de especialização prematura,
sob o falacioso pretexto de eficácia, assassinam o espírito,
impossibilitam qualquer vida cultural e chegam a suprimir os
progressos nas ciências do futuro" (página 29 da obra Como vejo o
mundo, editora Nova Fronteira, 12.a edição, Rio de Janeiro, 1981).
O desenvolvimento de nossa disciplina, portanto, se negasse o
holístico, o racional, a uma eficácia que respeite o social, negaria a sua
vocação.
A diferença entre os estudiosos, no processo evolutivo do
conhecimento, está, pois, na qualidade do caminho que escolhem, ou
seja, 1) aquele apenas das aparências, da apressada observação, só no

20
A Nova Visão da Contabilidade

campo dos registros, demonstrações e aspectos lucrativos e o outro 2)


das essências e análises sob a ótica da metodologia científica da
Contabilidade e dos interesses sociais (opção do Neopatrimonialismo).
No momento, assistimos essa divisão, ou seja, dos que se situam
no afã de um utilitarismo sem freios, ainda insistindo no radicalismo
da informação apenas (tal como o que Einstein critica) e os que
constróem, de fato, arcabouços científicos visando a uma sociedade
justa.

O SOCIAL E A CONTABILIDADE - PERSPECTIVAS DE UMA


NOVA CIÊNCIA

Tendência das ciências tem sido a da agregação dos


conhecimentos, e a de agasalhar reflexões que superam à própria
materialidade da observação comum, em busca de novas soluções
para padrões melhores de existência e para uma mais arrojada busca
da verdade.
Ou ainda, a razão deve superar a observação, embora ambas
devam procurar um ponto de encontro, em face da verdade que se
almeja conquistar.
Confinar a Contabilidade a expressão numérica, à simples
constatação de acontecimentos evidentes e passados, é tolher o
progresso que tal ramo de conhecimento merece e pode comporta.
Com justiça, pois, é que Bachelard, um dos mais significativos
filósofos de nossa época, leciona que existe, na atualidade, "uma
primazia da reflexão sobre a percepção, da preparação numeral dos
fenómenos tecnicamente constituídos" e ainda acrescenta: "Teremos
de demonstrar que aquilo que o homem faz na técnica científica nem
sempre é o que existe na natureza e não é sequer uma continuação
natural dos fenómenos naturais" (Gaston Bachelard - A
Epistemologia, edições 70, Lisboa, 1981, página 19).
Foi acreditando na força da razão e reconhecendo a necessidade
de uma visão de uma nova sociedade, a partir das bases da ciência da
riqueza celular que encetei caminhos lógicos para visões de maior
amplitude.

21
Revista Estudos do ISCAA

Ao construir a minha Teoria das Funções Sistemáticas do


Patrimônio das Células Sociais, seguindo a vocação referida, enunciei
como axioma final, o da eficácia social.
Ou seja, parti do princípio de que quando todas as células
sociais forem eficazes a sociedade também o será.
Considerando que a eficácia da célula, é a que se obtém pela
satisfação da necessidade objetiva da mesma, dentro de seus limites, e,
reconhecendo que o estudo de tal fenómeno é do domínio da
Contabilidade, foi fácil concluir sobre a possibilidade de associar os
estudos contábeis aos sociais e a outros, para uma visão de uma
"célula modelo", ou seja, de uma onde a eficácia seja coerente com os
interesses individuais e aqueles coletivos.
Assim, concebi, por um princípio de lógica, compatível com o
que Bachelard lecionou, a possibilidade da existência de uma nova
ciência, inspirada em bases contábeis e que poderia, a exemplo da
biogenética, unir conhecimentos de interesse comum e que pudessem
fazer evidenciar a estrutura e o desenvolvimento de uma nova célula
social.
Se o objetivo da biogenética foi e ainda é o de encontrar uma
nova célula biológica para uma maior eficácia do organismo
biológico, a da nova ciência que passei a imaginar, para a sociedade,
seria o de encontrar uma nova célula social para a maior eficácia do
organismo social.
A concebida ciência, aquela que imaginei possa ser a dedicada a
construção de uma nova sociedade dos homens, denominei
Sociopatrimoniologia.
Pouco adianta, para fins humanos, que estejamos a apenas
demonstrar que se investiu tanto ou quanto na solução de problemas
ecológicos ou em interesses sociais, se não conhecemos, pela reflexão,
as bases lógicas de uma interação entre a célula e os seus entornos,
entre a empresa e o meio em que vive, entre a instituição e a
sociedade.
Se raciocinarmos que a Biogenética, ao unir a Física, a Química
e a Biologia, na busca de novas células, constituiu-se em novo ramo
de estudos, sem, todavia anular as ciências que uniu, poderemos,

22
A Nova Visão da Contabilidade

também, imaginar que a união das doutrinas da Contabilidade,


Administração, Economia, Sociologia, Direito, Antropologia e demais
ciências do homem, não perturbará o progresso de cada uma,
isoladamente, mas, sim, somará esforços para um novo e grande
objetivo.
Não se trata de atrofiar conhecimentos, mas, de dar-lhes
direcionamentos mais ousados no campo da indagação e da reflexão,
justificáveis diante de tão relevante finalidade.
O progresso isolado das ciências agregadas, não estará
impedido, mas, ao contrário, beneficiado por uma nova metodologia
que obrigará, sob ótica avançada, a uma visão holística, como aliás, já
vem parcialmente ocorrendo.
Sobre este assunto já tenho um ensaio preparado e que
brevemente editarei.
Determinar o verdadeiro objeto de estudos, a finalidade, o
método, os axiomas, os teoremas básicos, uma teoria geral e as visões
das teorias derivadas, será o passo a seguir.
Tudo isto nos mostra que a responsabilidade da Contabilidade,
perante o porvir, não se limitará mais aos seus grandes objetivos, mas,
também, aos de comparecer perante um aglomerado de ciências,
competentes para estruturarem um modelo de célula social, para uma
futura sociedade, a partir dos princípios de eficácia ditados pela
ciência do patrimônio.

BIBLIOGRAFIA

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BACHELARD, Gaston, A Epistemologia, Edições 70, Lisboa, 1981
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EINSTEIN, Alberto, Como Vejo o Mundo, Editora Nova Fronteira, 12. Edição, Rio
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Pensamento, Lisboa, 1988
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Continuada na Busca da Experiência e do Exercício Profissional Pleno, em Revista

23
Revista Estudos do ISCAA

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Edição CEPPEV, Fundação Visconde Caim e Academia Brasileira de Ciências
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RODRIGUEZ, José Maria Requena, Epistemologia de la Contabilidad como Teoria
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Blackwell Nova York

24
Revista Estudos do ISCAA, IIa Série, 5 (1999) 25-36

INFLUÊNCIA INTELECTUAL E A DOUTRINA


NEOPATRIMONIALISTA DA CONTABILIDADE

PROF. DOUTOR ANTÓNIO LOPES DE S Á


PRESIDENTE DA ACADEMIA BRASILEIRA
DE CIÊNCIAS CONTÁBEIS
Revista Estudos do ISCAA

SUMÁRIO:

As empresas, as instituições não lucrativas, ambas, possuem


particularidades especiais na correlação entre os seus patrimónios e os
agentes dos entornos, quer aqueles internos, quer aqueles externos .
Existem, em decorrência, sutis delimitações, para fins de estudos
científicos, com relação às pertinentes metodologias de indagação .
Nessas áreas, é que hoje se situam as indagações sobre o que
existe de imaterial, atuando sobre a riqueza, como causa agente
propulsora e que na quase totalidade dos casos não se informa e nem
se quantifica.
O poder interno de transformar a riqueza é um fator agente de
rara importância na movimentação da riqueza das células sociais e
deve ser matéria de estudos em Contabilidade no que representa de
assimilação na função patrimonial.

26
Influência Intelectual e a Doutrina Neopatrimonialista da Contabilidade

O MATERIAL E O IMATERIAL EM FACE AO PATRIMÓNIO

É comum, na prática, observarmos, por exemplo, uma empresa


que tem um capital social de $4.000.000,00, vender o seu
empreendimento a terceiros, por $12.000.000,00, ou seja no caso
exemplificado, por três vezes mais.
É usual, pois, existir um balanço contábil para fins de natureza
legal e um balanço negocial para fins de transação ou alienação.
A maior valia que muitas empresas conseguem em seus
trespasses, em relação ao que espelham em suas demonstrações
contábeis, é real e pode ter várias causas.
É verdade que a qualidade do lucro tem sido um fator de
medida, mas, até que ponto essa condição está comprometida com
fatores que não são exclusiva e essencialmente os da riqueza, deve ser
objeto de observação.
Os métodos contábeis tradicionais, de demonstração do
patrimônio, limitam-se à evidenciação deste, como se tal substância
não sofresse outra influência que não fosse a da combinação material
de seus próprios elementos.
Não se pode negar, entretanto, que existe uma forte e
determinante ligação entre a riqueza (como algo material apenas) e os
agentes imateriais que atuam sobre a mesma.
Alguns elementos imateriais incorporam-se ao patrimônio e
outros, a maioria deles, mesmo não incorporados, possuem tal ligação
que passam a formar, em cada momento de vida da célula social, um
estado especial onde o agente e o atuado se amalgamam.
A função é, em sentido relativo, a soma de uma influência
agente ambiental sobre um meio patrimonial onde este absorve
características daquele , nessa mescla originando-se o fenómeno
contábil.
Nisto reside toda uma forma de entendimento que transcende
àquela que só enfocava a massa transformável, expandindo-se até o
estudo da própria transformação como objeto, ou seja, das relações
lógicas amplas que envolvem os aspectos essenciais, dimensionais e
ambientais do fenómeno patrimonial.

27
Revista Estudos do ISCAA

Tal forma de entender leva a uma ampliação no estudo da


Contabilidade, envolvendo a causa agente do movimento da riqueza,
no que esta é absorvida pela função, determinando efeitos
dimensionais.
O Neopatrimonialismo, partindo das bases da Teoria Geral do
Conhecimento Contábil, vem objetivando, dentro da visão holística
que possui, penetrar nessa interligação de fatores agentes e a
efetivação das funções sistemáticas patrimoniais.
Essa nova ótica da doutrina contábil evidencia que não basta
reconhecer que existe algo de imaterial que atinge o desenvolvimento
dos fenómenos, mas, que o importante é conhecer sob que condições a
assimilação do agente se opera e quais os limites de natureza lógica
que existem nas interações entre a matéria e a "não matéria".
Embora, no mundo dos negócios, os valores das transações de
trespasse sejam derivados de acordos entre partes, quase sempre de
ordem apenas pragmática, realiza-se, também, uma avaliação, visando
à determinação de um quantitativo, o mais próximo possível de uma
realidade.
Fatores diversos contribuem para a fixação de agentes imateriais
tais como o ponto comercial, a marca de um produto, o nome
comercial, a qualidade do atendimento, a força de publicidade etc.,
mas o que cada vez mais, vem preocupando aos estudiosos é o poder
da influência intelectual que dentro da empresa atua e que resulta em
reflexos sobre o mercado.
O intangível, em face da riqueza, portanto, quer anexando-se,
quer não, à mesma, tem expressão quantitativa de valor de negócio e
altera o poder de troca da riqueza.

AXIOMA DA CONSTITUIÇÃO DAS CÉLULAS SOCIAIS

Todo estudo deriva da observação, da percepção dos fatos e é


preciso partir de algumas premissas para que se encontrem as
verdades.

28
Influência Intelectual e a Doutrina Neopatrimonialista da Contabilidade

O caminho do entendimento passa por realidades que se


consideram incontestáveis e das quais outras, naturalmente, se
derivam.
Assim, na ciência contábil, o Neopatrimonialismo aceita como
verdade muito do que a tradição doutrinária já consagrou, mas
reconhece que nem a tudo se deu a forma científica, e por isto aceita,
como razões, que:

1) - O ser humano, sem o patrimônio, não pode, por si só,


satisfazer as necessidades das células sociais;
2) - A riqueza, sem o homem, não se move e tende a não resultar
em utilidade.
3) - Quer a riqueza, quer o ser humano, isolados, deixam de ter
expressão como células, se não se integrarem e se não participarem,
de forma contínua, de um universo social.
4) - Os fenómenos patrimoniais decorrem da ação humana
interna e também, daquelas dos universos que constituem o entorno
externo à célula social (natureza, sociedade, mercados, ciência,
política etc.).
5) A ação humana pode, no ambiente interno, ser de caráter
intelectual, manual ou mescla de ambos, em diversos níveis de
qualidades, quer de naturezas volitivas, diretivas ou executivas.

Estas realidades, singelas, evidentes, são bases para um


importante axioma, do qual podem-se derivar algumas proposições
lógicas ou teoremas e que mais adiante enunciarei.

AXIOMA DA ASSIMILAÇÃO FUNCIONAL

Sendo inequívoco que a massa patrimonial se movimenta e se


transforma, por ação de agentes, também a qualidade dos agentes
transformadores, em seus efeitos, entendo deva merecer observação
contábil pertinente.

29
Revista Estudos do ISCAA

O entorno interno aziendal e o externo a este, ambos provocam


influências ambientais, mas, estas podem, como causas, derivarem-se
de elementos tangíveis ou intangíveis.
Fato incontestável é que a função patrimonial absorve a
qualidade do agente que a promove, ou seja, tende a seguir a natureza
da causa promotora.
Um estoque de mercadorias, por exemplo, da mesma qualidade,
na mesma quantidade, do mesmo valor, em duas empresas do mesmo
ramo, em uma mesma localidade, em uma mesma época, pode ter
giros diferentes, dependendo da qualidade de um gerente de vendas e
do pessoal que cada uma possui.
Não é o bem de venda, por si só, que enseja a qualidade da
função patrimonial perante a eficácia.
Por princípio, sabemos que necessita a mercadoria ser
movimentada (compras, vendas, provisões), mas, a forma de fazê-lo, a
qualidade de tal movimento, é a que estabelece diferentes resultados e
isto depende da qualidade da causa agente promotora da função
patrimonia.
Não basta, entendo, medir um resultado sobre o patrimônio,
sendo imprescindível que se procure conhecer que influências as
causas agentes tiveram e quais as naturezas qualitativas que
determinaram as transformaçõe; a Contabilidade não pode
desconhecer essa assimilação, embora, tradicionalmente, não tenha
reconhecido tal fato como objeto científico de estudos.
Não se trata, no caso, de extrapolar-se o objeto de estudos de
nossa ciência, mas, sim, aprofundar-se nas razões da correlação entre
o agente promotor e a função que tangeu a riqueza.
Esta a razão de haver eu incluído, em minha teoria, entre as
relações lógicas do fenómeno, aquelas de natureza ambiental.
A ciência contábil não tem por objetivo invadir outros ramos do
conhecimento e nem estudar o agente em si, mas, sim a natureza de
influência que ele possui em relação à função, ou seja, qual a
dimensão do que foi absorvido.
Trata-se de uma observação, mensuração, análise e estudo dos
valores de influências do entorno.

30
Influência Intelectual e a Doutrina Neopatrimonialista da Contabilidade

O mesmo se passa na Física, por exemplo, quando esta ciência


estuda a força que um material exerce sobre uma superfície, ou seja,
preocupa-se ela com o fenómeno resultante da ação do peso e não com
o estudo do operário ou do engenheiro que determinou que o material
fosse aplicado.
Cada fato, com as mesmas características, pode, pois, variar, de
acordo com o alterar-se das dimensões das causas externas que atuam
sobre ele e isto é matéria para estudo quando a preocupação é explicar
as transformações patrimoniais.
Tal ligação passou, na Contabilidade moderna, a possuir mais
relevo, embora já tivesse sido denunciada, na segunda metade do
século XIX, por eminentes estudiosos, como Giovanni Rossi, em sua
famosa obra "L'ente economico-amministrativo" (especialmente,
embora não exclusivamente, no volume I, livro V).
Segundo entendo, portanto, é admissível, que se possa aceitar
um axioma que tenha como enunciado, o seguinte:
"As funções patrimoniais tendem a assimilar dimensionalmente
os efeitos imateriais e os materiais dos entornos da riqueza quando
estes ocorrem como causas agentes das mesmas funções".
Uma compra pode suportar custos diferentes, embora relativa às
mesmas matérias primas, em uma mesma empresa e na mesma época,
por exemplo, sob o efeito de competências diferentes de pessoal, de
qualificação também diferentes.
O fenómeno que o patrimônio gera, pois, não depende somente
dele como se exclusivo fosse, mas, também, do que foi absorvido em
seu funcionamento, ou seja, daquilo que a função do meio patrimonial
assimilou por ação de agentes materiais e imateriais.
É absolutamente lógico, no campo das ciências, a coleta de
subsídios e de conexão com matérias estudadas por outros ramos de
conhecimento sendo às vezes difícil a segmentação, como ocorre com
a Física e a Química nuclear, por exemplo.

31
Revista Estudos do ISCAA

TEOREMAS DERIVADOS DOS AXIOMAS SOBRE NATUREZA


DAS CÉLULAS SOCIAIS

Os axiomas até aqui desenvolvidos, ensejam reflexões para a


produção de outros enunciados, no sentido de uma construção
doutrinária.
A função patrimonial é um movimento, ou ainda, algo que
tangendo a riqueza, quer essencial, quer dimensional, quer
ambientalmente, enseja a ocorrência de um fato ou fenómeno.
A ocorrência funcional é, pois, da natureza do meio patrimonial
que compõe a massa ou substância utilizáve, visando-se normalmente
e por objetivo básico o suprimento das necessidades das células
sociais.
O que interessa à Contabilidade, como objeto de estudos, é o
movimento que, por essência, provoca a transformação patrimonial.
A função se identifica, pois, como uma correspondência de
relações entre meios, como utilidades, e a consecução de fins, como
objetivos perseguidos pela célula social.
Os meios podem ter funções derivadas de qualidades corpóreas,
mas, também, de natureza intangível, ou seja, é viável conseguir-se a
finalidade da célula social sem que ocorra uma correspondência
essencial ou principal do uso de elementos materiais, concretos.
Um livro escrito por um autor famoso pode gastar o mesmo
material e ter o mesmo custo que um outro de um autor desconhecido,
mas, a tendência é de que o primeiro seja lucrativo e que o segundo
não consiga êxito e traga prejuízo à editora.
A eficácia pode não depender da substância material, ou,
apenas, depender parcialmente.
Duas empresas, do mesmo ramo, da mesma dimensão, na
mesma localidade, podem ter lucros diferentes, em razão da primeira
possuir pessoal de alta qualidade e a segunda não o possuir.
A segunda pode até ter menores gastos, porque emprega mão de
obra não qualificada; possuindo menos poder intelectual tenderá a não
conseguir o mesmo lucro que a primeira.

32
Influência Intelectual e a Doutrina Neopatrimonialista da Contabilidade

A primeira, mesmo comportando maiores custos, mas


possuindo, pela qualidade de seu pessoal, maior poder intelectual,
tenderá a ter maior eficácia.
Fatores, pois, "não materiais" podem fazer com que o
comportamento das riquezas sejam distintos, mesmo em empresas que
possuam equivalência de capital.
Logo, é óbvio que os entornos da riqueza (nos exemplos: o autor
famoso e o pessoal) são fatores determinantes no desempenho
funcional, merecendo, pois, a atenção dos estudos contábeis sob o
aspecto das transformações que motivam.
Reunindo tais raciocínios é possível, portanto, estabelecer
algumas proposições lógicas, todas derivadas do axioma e das razões
expostas , tais como:

1. A função patrimonial da qual resulta a transformação, é efeito


de influências dos entornos da riqueza (relações ambientais);
2. O comportamento das influências dos entornos sobre a
eficácia patrimonial é variável de acordo com as relações
dimensionais de causa, efeito, qualidade, quantidade, tempo e espaço;
3. Quando a influência endógena é competente para reduzir ou
anular quaisquer exógenas que possam perturbar a eficácia, constitui-
se em uma relação ambiental especial;
4. Se a causa é a da qualidade do intelecto humano na célula
social, se ela é a predominante na ação endógena ambiental, de modo
a reduzir ou anular quaisquer influências exógenas que possam
perturbar a eficácia, constitui-se em uma causa motora de função
ambiental especial intelectual;
5. Quando o patrimônio enseja a captação de forças intelectuais
e quando estas se traduzem em aumento da eficácia absoluta da célula
social, a estas se pode atribuir parte do benefício.
6. A quantificação dos efeitos dos benefícios da função
patrimonial ambiental especial intelectual, sobre a eficácia da célula
social, depende da quantificação de uma correlação entre a
prosperidade e a qualificação participativa do elemento humano na
célula social, através dos efeitos efetivos de sua ação.

33
Revista Estudos do ISCAA

No caso, o que se tem por escopo enunciar é a ação intelectual,


ou seja, aquela da qualidade humana da mente do agente interno e que
atua sobre a riqueza patrimonial.

SOBRE O CONCEITO DE CAPITAL INTELECTUAL

A partir desses teoremas pode-se desenvolver um estudo


científico que tenha condições de alimentar teorias, através de outras
proposições lógicas que as estruturem, no campo especifico
delimitado pelos enunciados apresentados.
O conceito de "Capital Intelectual" que se tem difundido parece-
me pecar pela inadequação de expressão, uma vez que me parece
paradoxal ligar-se o que por natureza é inerte e objeto de sofrer ação
(o Capital) com o que por natureza é imaterial e agente de movimento
(o Intelectual), mesclando-se fatores que de fato convivem nas células
sociais mas que possuem naturezas diferentes.
O valor intelectual pode produzir patrimônio, assim como o
patrimônio pode produzir a captação de valor intelectual, nesse
sistema de interação onde reside uma importante área de estudos, mas,
são coisas distintas.
Quando o patrimônio enseja a captação de forças intelectuais e
quando estas se traduzem em aumento da eficácia absoluta da célula
social, a estas pode-se atribuir parte do benefício.
O que na realidade existe, é uma influência intelectual sobre o
capital, não me parecendo adequado, pois, o uso da expressão "capital
intelectual" como um conceito científico ou mesmo até empírico.
A questão não se situa no capital em si, mas, na assimilação que
faz dos entornos imateriais do domínio do intelecto e que embora não
modificando a natureza do fenómeno, todavia, modifica-lhe as
relações dimensionais por efeito da causa (qualidade, quantidade,
tempo e espaço).

34
Influência Intelectual e a Doutrina Neopatrimonialista da Contabilidade

CONCLUSÕES:

A concepção neopatrimonialista é competente para estabelecer


teorias sobre a influência dos entornos da riqueza, de natureza
imaterial e que são assimiladas pelas funções patrimoniais, deformas
diferentes.
O estudo das correlações entre os agentes motores do
patrimônio e os seus efeitos sobre as causas das funções, constitui um
novo campo de estudos, identificado este com a visão holística que
atualmente assume a Contabilidade.
Os meios patrimoniais têm a sua génese nas percepções da
mente humana que originam as relações essenciais, tal como a teoria
das funções as caracteriza, mas, também, as têm, por efeitos da ação
imaterial do intelecto.
Pode concluir-se, portanto, que da qualidade da assimilação
intelectual muito depende a qualidade do fato patrimonial, em face da
eficácia e que esta matéria deve ser incluída como objeto integrante
de estudos no campo da Contabilidade Científica.

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36
Revista Estudos do ISCAA, IIa Série, 5 (1999) 37-60

NORMALIZAÇÃO CONTABILÍSTICA

AVELINO AZEVEDO ANTÃO


EQUIPARADO A PROFESSOR ADJUNTO E MEMBRO DO
CONSELHO CIENTÍFICO DO ISCAA
MEMBRO EFECTIVO DA COMISSÃO DE
NORMALIZAÇÃO CONTABILÍSTICA
Revista Estudos do ISCAA

ÍNDICE

1 - INTRODUÇÃO

2 - NORMALIZAÇÃO A NÍVEL MUNDIAL

3 - NORMALIZAÇÃO NA UE

4 - A INFLUÊNCIA AMERICANA NA UE

5 - CONCLUSÃO,

6 - ANEXO
Normalização Contabilística

1 -INTRODUÇÃO

Quando nos propusemos escrever sobre Normalização


Contabilística entendemos dever separar áreas que consideramos
devem ser tratadas na contabilidade de forma distinta: a instrumental a
pedagógica e a da investigação. No campo da investigação a
normalização contabilística poderá servir apenas como ponto de
partida. Para demonstrar a correcção das suas teorias, (a contabilidade)
em determinadas ocasiões poderá recorrer à corroboração histórica,
sendo necessário noutras a demonstração estatística1. No âmbito do
ensino da contabilidade a normalização contabilística veio trazer
consequências prejudiciais, não por culpa própria mas por culpa
daqueles que pensam que a norma uma vez estabelecida é obra
acabada. A normalização para os que assim pensam torna-se a maior
inimiga da actividade científica2. Assim, o autor considera existirem
duas formas distintas de ensinar contabilidade. A primeira consiste em
transmitir aos alunos um procedimento ou norma contabilística,
pormenorizando, analisando a sua mecânica e ilustrando a questão
com exemplos práticos. A segunda maneira ensinar Contabilidade
requer um esforço muito maior bem como uma adequada preparação e
formação dos docentes. Nesta, a Contabilidade é um conjunto de
fundamentos epistemológicos, de regras de conhecimento, que se
aplicam a um caso concreto para obter uma norma. É mais importante
compreender as razões por que se faz do que como se faz3.
As linhas que se seguem devem ser entendidas no âmbito meramente
instrumental, onde entendemos ter enorme relevância o processo de
normalização contabilística.
Em Portugal as Directrizes emanadas da Comissão de
Normalização Contabilística (CNC) têm seguido de muito perto as

ROCHA, Armandino Cordeiro dos Santos; O ensino superior e as disciplinas de


contabilidade, IX Encontro Nacional de Professores de Contabilidade do Ensino
Superior, p. 7
2
in Ob cit. p. 12
3
in Ob cit. p. 14

39
Revista Estudos do ISCAA

Normas Internacionais de Contabilidade (NIC) do International


Accountig Standard Committee (IASC). O DL 367/99 de 18 de
Setembro, que publicou o regulamento da CNC, veio dar força jurídica
plena ás directrizes contabilísticas; i.é veio confirmar que as DC têm
efeito obrigatório (§ 2o c)), de imediato as já publicadas, e sujeitas a
homologação do Ministro das Finanças as futuras. Tenho notado
algum regozijo em alguns estudiosos da contabilidade, por esta
medida. Pessoalmente vemos-lhe apenas uma virtude: acabar com a
discussão de se as Directrizes Contabilísticas têm, ou não carácter
vinculativo. Ademais, pesamos que tal disposição é mais uma
ingerência do Sr. Ministro das Finanças em matérias que são
exclusivamente técnicas.
A Directriz contabilística n° 18 (aprovada em 18 de Dezembro
de 1996) hierarquizou formalmente os Princípios Contabilísticos
Geralmente Aceites (PCGA) em Portugal
"A expressão "geralmente aceites" significa que um organismo
contabilístico normalizador, com autoridade e de larga
representatividade, estabeleceu um princípio contabilístico numa dada
área ou aceitou como apropriado determinado procedimento ou
prática, atendendo à sua aplicação universalmente generalizada e ao
seu enquadramento na estrutura conceptual.
Os princípios contabilísticos têm vindo a ser reconhecidos em
Portugal pela CNC e encontram-se vertidos no POC, nas Directrizes
contabilísticas e, no caso de questões ainda não abrangidas, nas
normas estabelecidas a nível internacional, como sejam as emitidas
pelo International Accounting Standards Committee (IASC).
Por conseguinte, a adopção dos princípios contabilísticos não
carece, necessariamente, que estes estejam definidos de forma
expressa em diploma legal.
A CNC, ao privilegiar uma perspectiva conceptual de substância
económica para o relato financeiro, considera que o uso de Princípios
Contabilísticos Geralmente Aceites se deve subordinar à seguinte
hierarquia:
I) os constantes do Plano Oficial de Contabilidade;

40
Normalização Contabilística

II) os constantes das Directrizes Contabilísticas;


IH) os divulgados nas normas internacionais de contabilidade
emitidas pelo IASC."
A contabilidade tem passado por um processo longo de
normalização que se poderá entender a três níveis: Nacional; Regional
(União Europeia) e Internacional (Mundial).
Ao nível nacional tem tido grande relevância o papel
desenvolvido pela Comissão de Normalização Contabilística (CNC).
O nosso POC é um documento que deve ser entendido como um
todo, enquadrado por um vasto conjunto de directivas contabilísticas,
tendo subjacente uma determinada estrutura conceptual, o que implica
que o seu estudo tem necessariamente de ser articulado. Nele
encontramos, por exemplo, referências à qualidade da Informação
Financeira. A qualidade essencial da informação proporcionada pelas
demonstrações financeiras é a de que seja compreensível aos utentes,
sendo a sua utilidade determinada pelas seguintes características:
Relevância;
Fiabilidade;
Comparabilidade.
Estas características, juntamente com conceitos, princípios e
normas contabilísticas adequados, fazem que surjam demonstrações
financeiras geralmente descritas como apresentando uma imagem
verdadeira e apropriada da posição financeira e do resultado das
operações da empresa".
A característica que nos detém a atenção, para a mensagem que
pretendemos transmitir, é a da comparabilidade que deve ser entendida
em dois sentidos:
Comparabilidade vertical, ou temporal, que permite comparar
demonstrações financeiras de diversos períodos, e
Comparabilidade horizontal, ou territorial, que permite comparar
demonstrações financeiras de diversas entidades. Esta última pode
ainda variar quanto ao seu alcance: Nacional, Regional ou Europeu e
Mundial.

4
Capítulo 3.2

41
Revista Estudos do ISCAA

A nível Nacional o problema está razoavelmente solucionado


com o actual quadro contabilístico vigente.
Na U.E. o problema da comparabilidade da informação
financeira das empresas está tratado em dois documentos:
A IV Directiva - 78/660/CEE, de 25 de Julho de 1978, que
contempla as contas anuais das sociedades; e
A VH Directiva - 83/149/CEE, de 13 de Junho de 1983,
referente ás contas consolidadas.
Os Estados-membro (EM) com a transposição das referidas
Directivas para o direito nacional, como foi o caso de Portugal, teriam
a questão da comparabilidade, resolvida, o que em nosso entender não
aconteceu. E não aconteceu porque estes documentos que deveriam
ser de caracter estritamente técnicos, são mais políticos do que
técnicos. Apontamos como principais limitações à comparabilidade na
U.E. dois factores:
As directivas permitirem um elevado número de opções, bem
como o uso frequente das expressões: "Os EM podem..." e "a não ser
que a legislação nacional preveja...".
Ilustremos com um exemplo referente à valorimetria das
existências:
Art°39
-custo de aquisição ou produção (não distingue entre custos
fixos e variáveis) deixa ao critério dos EM a possibilidade de incluir
juros durante a fabricação.
Art°33
Os EM podem reservar a possibilidade de utilizar o custo de
substituição (custo corrente ou custo de reposição).
O segundo factor limitativo da comparabilidade da informação
financeira é a desactualização técnica das directivas comunitárias,
como iremos constatar, perante o actual panorama internacional do
desenvolvimento do pensamento contabilístico.
O reconhecimento mútuo está a ser feito na Europa, a nível
continental (Nas Bolsas de Valores através do IOSCO - International

42
Normalização Contabilística

Organization of Securities Comission) utilizando medidas avulso,


consubstanciadas em pequenos passos de aproximações sucessivas.

2 - NORMALIZAÇÃO A NÍVEL MUNDIAL

Antes de continuarmos numa breve referência ao estado da


informação financeira na Europa, devemos verificar o que se passa
com os principais organismos normalizadores da contabilidade a nível
mundial .
No panorama internacional, surge em grande relevo o
International Accountig Standard Committee (IASC), que iniciou a
sua actividade em 29 de Junho de 1973, em Londres, e resultou de um
acordo entre associações profissionais (da Alemanha, Áustria ,
Canadá, EUA, França, Holanda, Japão, México, Reino Unido e
Irlanda).
Os membros do IASC concordaram em envidar todos os seus
esforços no sentido da promoção e publicação das demonstrações
financeiras, compiladas com base nas suas normas, assegurando que
os auditores, governos, bolsas e outros interessados as aplicassem.
A relação entre o IASC e EFAC (Federação Internacional dos
Contabilistas, que promove as Normas Internacionais de Auditoria) é
ratificada pelo compromisso mútuo a que se obrigaram.
O IASC tem plena autonomia para emitir Normas Internacionais
de Contabilidade. Os membros prosseguem o objectivo do IASC,
fazendo publicar nos seus países as Normas de Contabilidade
(esforçando-se para assegurar que as demonstrações financeiras sejam
publicadas em conformidade com elas) e persuadindo os governos a
fixar normas para que as demonstrações financeiras estejam de acordo
com as Normas Internacionais de Contabilidade (NICs).
As NICs aplicam-se às demonstrações financeiras de quaisquer
empresas comerciais ou industriais.
5
Esta parte do texto foi baseada nos apontamentos das aulas de Contabilidade Internacional
do mestrado em Contabilidade e Finanças Empresariais, e no capitulo 5, de ALEXANDER,
David; NOBES, Christopher; A European Introdution to Financial Accounting, Prentice Hall
International (UK).

43
Revista Estudos do ISCAA

Assim o IASC esforça-se por não fazer NIC s complexas que


levariam à sua inaplicabilidade numa base mundial. Quaisquer
limitações à sua aplicabilidade é clarificada na declaração de
princípios daquelas normas.
As normas são aprovadas, depois de ter sido preparado o
projecto sobre o qual recaíram assuntos seleccionados e para os quais
receberam comentários e sugestões, por partes das associações
profissionais de contabilidade, governos, bolsas e outros organismos.
As actividades do IASC são dirigidas por um Conselho
composto pelos representantes de organismos contabilísticos de 13
países e de um máximo de quatro organizações interessadas no relato
financeiro.
O IASC aprovou 39 normas contabilísticas internacionais,
algumas das quais já foram revogadas, como veremos. As regras
contabilísticas nacionais apresentam-se definidas de duas formas:
certos países incorporam-nas nas obrigações detalhadas dentro da sua
legislação, por ex. a Alemanha. Outros, delegam às instituições
nacionais o poder de elaborar os seus regulamentos, por ex. França e
Japão. Para outros países são os organismos privados que elaboram as
normas contabilísticas. Alguns destes organismos são controlados pela
Profissão Contabilística (por exemplo o Canadá), e outros são
independentes (por exemplo os EUA).
O IASC trabalha em colaboração com os seus departamentos
nacionais e regionais, responsáveis pela elaboração de normas
contabilísticas. Certos organismos nacionais de normalização
contabilística são, directamente, representados no conselho do IASC.
Os outros, participam no grupo consultivo do IASC. Alguns países
aplicam, directamente, as NIC s dentro do seu país (são exemplo disso
a Malásia, Singapura e Zimbabwe). Outros, utilizam-nas para a
elaboração das suas próprias normas (por exemplo o Egipto índia,
Quénia).
Determinados países industrializados recorrem às NICs para
combater as lacunas da sua regulamentação nacional. São já
numerosos os países que elaboram as suas normas de forma a estarem

44
Normalização Contabilística

em conformidade com as NIC's. É um bom exemplo o caso português


onde a estrutura conceptual das NICs está presente quer no POC quer
em várias directivas contabilísticas.
A própria Comunidade Europeia (CE) utilizou a norma relativa
à consolidação dos Estados Financeiros do IASC, na elaboração da T.
Directiva.
A França recorreu às normas do IASC para elaborar o plano
contabilístico, aplicável às demonstrações financeiras consolidadas. A
Austrália, o Canadá, o Reino Unido e os Estados Unidos adoptam,
geralmente, normas mais detalhadas que as NICs. Mais recentemente,
o Japão encarregou uma comissão de estudar a forma de aperfeiçoar a
conformidade das normas japonesas às normas internacionais.
As normas do IASC permitem, normalmente, um conjunto de
práticas sendo, portanto, mais flexíveis que as normas de muitos
países. A intenção inicial do IASC foi a de evitar detalhes complexos,
concentrando-se em normas básicas. Contudo, se analisarmos as
normas emitidas, verificamos que integram assuntos que não se podem
considerar propriamente básicos, mas que alguns consideram
excepções.
O IASC não tem autoridade própria. A sua autoridade advém da
força dos seus membros.
Por exemplo, na França e na Alemanha a autoridade é
inadequada para influenciar a prática contabilística, devido à força das
leis societárias e do plano de contas. No outro extremo temos o Reino
Unido, Irlanda, Nova Zelândia e Canadá, cujos organismos
profissionais pertencendo ao IASC, tornaram mais fácil a introdução
das normas.
A nível da Europa, é na Itália onde é mais evidente a influência
do IASC. O exemplo mais notório é o de um pequeno grupo de
importantes empresas que seguem as NICs.
Entre os dois extremos, temos os EUA, onde os organismos
mais directamente ligados a estas matérias são o Finantial Accounting
Standard Board (FASB), que é apenas membro consultivo, e a
Security and Exchange Comission (SEC) que não é membro do IASC.

45
Revista Estudos do ISCAA

Contudo o representante americano, o American Institute Public


Chartered Accountant (AICPA), é bastante influente.
A International Organization of Securities Comission (IOSCO),
entidade que superintende as bolsas de valores de todo o mundo,
encorajou o IASC a adaptar as suas normas para uso de investidores
estrangeiros, que pretendessem ser aceites nas Bolsas Americanas,
devendo para isso tornar as suas normas mais precisas (menos
opções).
A partir do momento em que as várias opções são transcritas
para as normas com aceitação internacional, qualquer processo, com
vista à sua limitação torna-se doloroso. Graças ao esforço de
reformulação das normas, verifica-se, de todo o modo que o IASC se
tem tornado cada vez mais importante, aos olhos tanto do IOSCO
como da própria CCE - Comissão da Comunidade Europeia.
Pelos anos 80 ficou claro que um número substancial de opções
nas NICs era um obstáculo, à maior projecção do trabalho do IASC.
Posteriormente, o IOSCO punha de parte a possibilidade da sua
aceitação para o relato financeiro das empresas estrangeiras cotadas na
Bolsa americana tornando, contudo claro que uma redução das opções
seria essencial para a sua aceitabilidade.
Depois de vários anos de argumentação, sobre a remoção das
opções, estão revistas hoje praticamente todas as NICs com o acordo
do IOSCO. Tal organismo apontava no sentido da eliminação de
barreiras ao mercado de capitais internacional, alargando a sua ligação
ao IFAC, de forma a poder obter um nível de qualidade uniforme e
promover uma comunicação internacional sobre os relatórios de
auditoria.
Os objectivos do IASC abrangem aspectos como:
- formular e publicar normas contabilísticas, de interesse público, a
serem observadas na elaboração e na apresentação das demonstrações
financeiras, e a promover a sua aceitação e observância, nos países das
organizações filiadas; e - trabalhar, de uma forma geral, para a
melhoria e harmonização dos regulamentos, normas e procedimentos

46
Normalização Contabilística

contabilísticos, relacionados com a apresentação de Demonstrações


Financeiras.
A relação entre o IASC e o IFAC é ratificada pelo compromisso
mútuo a que se obrigaram. No que respeita ao IFAC- International
Federation of Accountants - organização, com sede em Nova York,
iniciou a sua actividade em 1977, após o 7o Congresso Internacional
de Contabilidade. É constituída pelas mesmas organizações
profissionais que fazem parte do IASC. O seu objectivo é o de
desenvolver a coordenação internacional da profissão e a sua
actividade relaciona-se com a emissão de normas internacionais de
auditoria, de ética e deontologia , de formação profissional e de
contabilidade financeira e de gestão.
Com este objectivo, o Conselho do IFAC encarregou a
Comissão Internacional de Práticas de Auditoria (IAPC) de emitir
projectos, directrizes e normas sobre práticas de auditoria, geralmente
aceites e sobre serviços relacionados, de modo a melhorar o grau de
uniformidade da prática de auditoria e destes serviços em todo o
mundo.
As práticas a seguir, na auditoria financeira, podem ser de
natureza legal ou podem ser emanadas por organismos nacionais.
Assim, apareceram normas diferentes em muitos países, quer na sua
forma, quer no seu conteúdo.
A IAPC toma conhecimento destas normas e das suas
diferenças. Face a este conhecimento, emite Directrizes Internacionais
de Auditoria (DIA, ISA na terminologia anglo-saxónica) que se
destinam a ser aceites internacionalmente.
É da responsabilidade da IAPC, através de subcomissões,
preparar projectos de directrizes e normas de auditoria. Estas
subcomissões estudam as normas emitidas por alguns países membros,
preparando um projecto para a IAPC. Se for aprovado por maioria, o
projecto é distribuído às organizações-membro e outras agências
internacionais para que seja comentado. Os comentários e sugestões
recebidos são tomados em consideração e o projecto é reformulado. Se

47
Revista Estudos do ISCAA

depois de reformulado for aprovado por maioria, será emitida uma


DIA definitiva, que entrará em vigor na data nela indicada.
A SEC (Security and Exchange Comission) é uma agência
governamental norte-americana, criada em 1934, depois do "crash"
bolsista de 1929, constituindo autoridade regulamentadora do mercado
de capitais que deverá assegurar a obtenção, por parte dos
investidores, de informação financeira adequada, com vista à tomada
de esclarecidas decisões de investimento.

3 - NORMALIZAÇÃO NA UE

O Parlamento Europeu criou um organismo, denominado


"Forum Europeu Consultivo de Contabilidade", que é formado por
representantes dos organismos nacionais normalizadores. Este
organismo está integrado dentro da estrutura da Comissão Europeia.
Era consensual que fosse criada uma organização consultiva e
coordenadora. No entanto, houve desacordo quanto à utilidade da sua
incorporação na estrutura da União Europeia. Algumas organizações
preferiam que o Forum fosse independente da UE. Deste modo,
deveria ter tivesse sido a FEE - Fédération des Experts Comptables
Européens (que agrega a contabilidade e a auditoria) a organização
sede. Tal ligação ao sector de auditoria não foi aceite por muitos
outros EM, e desta forma o Forum acabou por ficar dentro da estrutura
da Comissão Europeia.
O Forum não é um organismo normalizador sendo as suas
decisões técnicas. A sua principal função é aconselhar a Comissão, em
matérias contabilísticas e indicar possíveis caminhos para facilitar a
futura harmonização.
Os membros do Forum foram convidados numa base pessoal. As
suas opiniões, expressas nos documentos, não vinculam as
organizações a que pertencem. O objectivo destas publicações é
estimular a discussão sobre normas em matérias contabilísticas.
Ainda a nível europeu e no campo dos organismos profissionais,
deveremos realçar o papel da Fédération des Experts Comptables

48
Normalização Contabilística

Européens (FEE), fundada em 1987, com sede em Bruxelas, a partir


de duas organizações europeias: o Groupe d'Etudes (fundado em
1966) e a Union Européenne des Experts Comptables (UEC, fundada
em 1951). Dela fazem parte diversos organismos espalhados por toda
a Europa, com interesse nos campos da auditoria, contabilidade e
fiscalidade. Estuda as diferenças internacionais e tenta contribuir para
a sua remoção, trabalhando em conjunto com a Comissão da U.E..
Se a FEE chegar a um consenso, no seio da profissão na Europa,
aquela terá uma força acrescida junto de Bruxelas e, particularmente,
junto dos Governos dos Estados membros. Uma primeira vitória foi
conseguida pelo Groupe d'Etudes, com aceitação do conceito de "true
and fair" (verdadeiro e apropriado, conforme tradução correntemente
usada) e da necessidade das demonstrações financeiras consolidadas.
No que respeita aos organismos não contabilísticos, estes têm,
normalmente, maior capacidade de influência do que poder real, (a
excepção é a Comissão da UE.), como é o caso, por exemplo da
OCDE.
A OCDE desenvolveu e adoptou recomendações relativas a
práticas contabilísticas, denominadas "Guidelines for Multinational
Enterprises" (GMN), que se relacionam, principalmente, com os
requisitos de divulgação da informação financeira.
Embora as GMN não sejam de aplicação obrigatória,
influenciam o comportamento de um conjunto de organismos
profissionais politicamente sensíveis.
A Organização das Nações Unidas constituiu um Grupo
Intergovernamental de Técnicos em Normas Contabilísticas e de
Relato (IWGE/ISAR), com o objectivo de publicar normas de
contabilidade e de relato para as empresas multinacionais. Contudo, o
progresso foi muito lento, talvez em parte devido às diferenças de
interesses entre os países investidores e os países que acolhem o
investimento.
Este corpo (IWGE) é dominado pelos países desenvolvidos e
preocupou-se, principalmente, com a contabilidade e relato financeiro

49
Revista Estudos do ISCAA

e não com a auditoria. O seu papel é, essencialmente, o de exercer


influência na elaboração de normas e não a sua aceitação.
EM RESUMO: Organismos Internacionais

1) Regionais

a) de carácter governamental:

União Europeia (org. económica internacional)

b) de carácter profissional:

FEE

2) Mundiais

a) de carácter governamental:

ONU (org. política),

OCDE,

IOSCO (org. bolsista) e

b) de carácter profissional:

IASC e IFAC

Uma das questões que se coloca é a de saber se as normas do


IASC (fortemente baseadas no modelo anglo-saxónico), são de
interesse para os países da Europa Continental, ou para os países em
desenvolvimento.

50
Normalização Contabilística

As NICs foram desenvolvidas num contexto de mercados


financeiros eficientes e com organizações de auditoria eficientes.
O modelo anglo-saxónico será mais apropriado para a
harmonização, dado que se orienta, fundamentalmente, para o
mercado de capitais e, nomeadamente :
-para os detentores do capital (accionistas),
-para a auditoria independente,
-para os princípios da imagem verdadeira e apropriada ; e
-para o princípio da "substância sobre a forma legal".
Assim, existem pressões internacionais para a existência de dois
tipos de normalização contabilística:
- uma, mais apropriada para utilizadores do próprio país (uso
doméstico), e
-outra, para ser utilizada em todos os países, quando for
necessário preparar segundas contas, para uso internacional.
Segundo alguns autores, o modelo dualista de normalização é
susceptível de ser criado na Europa, tendo em vista os seguintes
destinatários:
•empresas cotadas em bolsa, de acordo com as normas do IASC;
c
•empresas não cotadas.
O dualismo de normalização já hoje existe, formalmente, na
Itália, mas também é prática na Escandinávia, no âmbito das grandes
empresas multinacionais.
No entanto, deve-se referir que na Europa, malgrado o esforço
de harmonização, ainda não há reconhecimento mútuo^

A conclusão que se pode tirar é:


as contas não são reconhecidas mutuamente, embora
estejam de acordo com a 4.a Directiva da CEE, porque

6
O que os ingleses designam por "The true and fair view"
7
Directiva n° 78/660/CEE de 25 de Julho de 1978, "Contas anuais de certas formas
de sociedades"

51
Revista Estudos do ISCAA

nenhuma bolsa europeia aceita contas produzidas de acordo


com as regras contabilísticas de outros países.

No entanto, os EUA e o Canadá chegaram a um acordo para


reconhecimento mútuo, que foi bastante facilitado pela existência de
regras contabilísticas semelhantes.
O objectivo do Tratado de Roma (1957) incluía o
estabelecimento da livre movimentação de pessoas, de mercadorias e
de serviços e de capital. Isto envolvia a eliminação das fronteiras
fiscais, a imposição de uma Pauta Aduaneira Comum, aplicável a
países terceiros, e o estabelecimento de procedimentos que permitiam
a coordenação das políticas económicas.
Mais especificamente, a Política Industrial Comum (em 1970)
visava a criação de um ambiente de negócios unificado, incluindo a
harmonização das leis comerciais e da fiscalidade e a criação de um
mercado comum de capitais.
Tendo em vista o desenvolvimento dos movimentos de capital, é
necessário criar um fluxo de informação financeira homogénea entre
as empresas da Comunidade.
Os obstáculos, à harmonização do relato financeiro e das leis das
sociedades, resultam de diferenças fundamentais entre os vários
sistemas contabilísticos nacionais da Comunidade Europeia, a saber:
• orientação para os credores (secretismo), no sistema franco-
germânico, e orientação para os investidores, no sistema
anglo-holandês
• regras baseadas em impostos e regras baseadas em normas
profissionais.
Estas últimas contribuíram para a diferença de força dos
organismos profissionais.
A harmonização, na Europa Comunitária, conseguiu-se um
pouco através da via legislativa, ou seja, através:
-de Directivas (que devem ser acolhidas no direito interno dos
diferentes Estados-membros); e

52
Normalização Contabilística

-de Regulamentos (que têm como destinatários as empresas e os


particulares).
O primeiro draft da quarta directiva conhecido, foi fortemente
influenciado pela Lei das Sociedades Alemã, consequentemente, as
regras de valorimetria eram conservadoras. No draft de 1974x denota-
se a influência anglo-saxónica introduzindo alguma flexibilidade na
apresentação das Demonstrações Financeiras.
A versão final estabeleceu, como princípio predominante na
preparação das Demonstrações Financeiras, o conceito de "true and
fair view" e admitiu a contabilidade dos efeitos da inflação.
A UE que produziu a 4.a Directiva que é um documento político-
técnico (mais político do que técnico), possui um mecanismo
designado por Comité de Contacto.
Este Comité, constituído por representantes dos governos, até
hoje (em quase 30 anos), fez uma única recomendação técnica.

4 - A INFLUÊNCIA AMERICANA NA UE

As Directivas comunitárias vinculam exclusivamente os EM,


mas as empresas europeias não podem ignorar os organismos
internacionais que emitem normas contabilísticas com aceitação
generalizada como são os casos do IASC que emite as IAS (NICs) e o
FASB que emite "Statements" (U.S. GAAP - princípios
contabilísticos geralmente aceites).
O FASB foi criado em 1972 pelo AICPA para substituir o
Accounting Principles Board (APB) cuja extinção, conforme refere
Kieso8, foi recomendada por um grupo de trabalho conhecido por
"Wheat Committe" encarregado de examinar o trabalho do APB e
determinar as alterações necessárias para a obtenção de melhores
resultados. Deste trabalho resultou a criação de uma estrutura
composta por três organizações: o Financial Accounting Foundation, o
Financial Accounting Standards Board e o Financial Accounting

8
KIESO, Donald E., and Jerry J. Weygandt, Intermediate Accounting, 1992, 7th ed, John
Wiley & Sons, New York, p. 9.

53
Revista Estudos do ISCAA

Standards Advisory Council. Desta estrutura a organização mais


operacional é o FASB que tem como missão9 "estabelecer e
implementar normas de contabilidade e relato financeiros para
orientação e educação do público, que inclui os preparadores,
auditores e utentes da informação financeira". Para que o FASB
ultrapassasse alguns dos bloqueios de que sofria o APB foi-lhe
reduzido o número de membros, que passaram a ser remunerados e a
trabalhar em dedicação exclusiva, com maior autonomia e
independência.
Estes organismos FASB e IASC influenciam as contas de
empresas sediadas na UE quando estas solicitam a admissão à cotação
em bolsas fora do espaço comunitário, o que lhes acarreta um trabalho
adicional de conciliação de contas com as normas consoante a
exigência da bolsa a que pretendem aceder, e que se traduz depois na
disparidade de resultados - como é exemplo a EDP que suscitou no
ano de 1997 o interesse da comunicação social pelo facto, considerado
insólito, de apresentar lucros de cerca de 66 milhões de contos, de
acordo com as normas de contabilidade nacionais e as mesmas contas
apresentarem, nos USA, segundo as normas americanas, um lucro de
110 milhões de contos. Neste âmbito a Comissão Europeia emitiu uma
comunicação intitulada "Harmonização contabilística: uma nova
estratégia relativamente à harmonização internacional" onde incentiva
a UE a participar no processo de harmonização contabilística
desenvolvido pelo IASC e IOSCO, como também reconhece que a
França e a Alemanha permitem que as empresas multinacionais
sediadas nos seus territórios possam usar as NICs na preparação das
contas consolidadas, quer para fins domésticos quer internacionais.
Voltemos ao nosso POC que logo na introdução refere:
"Por outro lado, deve-se dizê-lo, estão a ser desenvolvidos, no
âmbito das organizações europeias dos profissionais de contabilidade
e em ligação com as estruturas da CEE, vários trabalhos com vista a
conseguir a harmonizarão contabilística mundial, objectivo máximo
da Internacional Federation of Accountants (IFAC). Para a sua

9
Ibidem

54
Normalização Contabilística

consecução estão a fazer-se esforços no sentido de eliminar as


divergências, não muito significativas, entre as normas contabilísticas
contidas na 4a Directiva e as normas internacionais de contabilidade
emitidas pelo International Accounting Standards Committee (IASC),
órgão dependente da EFAC. Neste sentido, o próprio IASC se propõe
limitar as opções de políticas contabilísticas contidas nas suas normas,
de forma a facilitar a harmonização."
Em Portugal as Directrizes emanadas da Comissão de
Normalização Contabilística têm seguido de muito perto as NIC do
IASC.
A Directriz contabilística n° 18 (aprovada em 18 de Dezembro
de 1996) hierarquizou formalmente os Princípios Contabilísticos
Geralmente Aceites (PCGA) em Portugal.
A expressão "geralmente aceites" significa que um organismo
contabilístico normalizador, com autoridade e de larga
representatividade, estabeleceu um princípio contabilístico numa dada
área ou aceitou como apropriado determinado procedimento ou
prática, atendendo à sua aplicação universalmente generalizada e ao
seu enquadramento na estrutura conceptual.
Os princípios contabilísticos têm vindo a ser reconhecidos em
Portugal pela CNC e encontram-se vertidos no POC, nas Directrizes
contabilísticas e, no caso de questões ainda não abrangidas, nas
normas estabelecidas a nível internacional, como sejam as emitidas
pelo International Accounting Standards Committee (IASC).
Por conseguinte, a adopção dos princípios contabilísticos não
carece, necessariamente, que estes estejam definidos de forma
expressa em diploma legal.
A CNC, ao privilegiar uma perspectiva conceptual de substância
económica para o relato financeiro, considera que o uso de Princípios
Contabilísticos Geralmente Aceites se deve subordinar à seguinte
hierarquia:
I) os constantes do Plano Oficial de Contabilidade;
H) os constantes das Directrizes Contabilísticas;

DC 18 capítulo 4

55
Revista Estudos do ISCAA

IH) os divulgados nas normas internacionais de contabilidade


emitidas pelo IASC."

5 - CONCLUSÃO

A Europa terá de saber encontrar o "seu" modelo de Informação


Financeira!
Suficientemente bom para o impor, ou, claramente, adoptar, sem
complexos, outros modelos. A situação actual é, em nosso entender, a
pior situação. Temos um modelo pela via legislativa, remendado com
soluções muitas vezes inconsistentes, podendo dizer-se que na Europa
não é possível falar-se de comparabilidade da informação. O processo
de normalização tem sofrido do mesmo efeito de um remendo novo
em pano velho...

6 - ANEXO

Vejamos o panorama actual das Normas emitidas pelo IASC:

Norma Data da entrada


em vigor
N° Designação Observações

0 Prefácio às Normas Internacionais de Janeiro de 1983


Contabilidade

Estrutura Conceptual para a


01 Julho de 1989
Preparação e Apresentação das
Demonstrações Financeiras
Glossário de Termos Contabilísticos
02 Janeiro de 1996

Apresentação de Demonstrações
1 Janeiro de 1975 revista em 1997, em vigor após
Financeiras
Julho de 1998

2 Inventários Janeiro de 1976 revisão de 1993, em vigor após

56
Normalização Contabilística

Janeiro de 1995

Demonstrações Financeiras Consolidadas Revogada pelas NICs 27 e 28


3 Janeiro de 1977

4 Contabilização da Depreciação Janeiro de 1977 Reformatada em 1994

5 Informação a ser Divulgada nas Janeiro de 1977 Revogada pela NIC 1


Demonstrações Financeiras

6 Respostas Contabilísticas às Variações de Janeiro de 1978 Revogada pela NIC 15


Preços

7 Demonstrações de Fluxos de Caixa Janeiro de 1979 revisão de 1992, em vigor após


Janeiro de 1994

8 Resultados Líquidos do Período, Erros Janeiro de 1979 revisão de 1992, em vigor após
Fundamentais e Alterações nas Políticas Janeiro de 1995
Contabilísticas

9 Custos de Pesquisa e Desenvolvimento Janeiro de 1980 Revogada pela NIC 38

10 Contingências e Acontecimentos Janeiro de 1980 revisão de 1999, em vigor após


Ocorrendo após a Data do Balanço Janeiro de 2000

11 Contratos de Construção Janeiro de 1980 revisão de 1993, em vigor após


Janeiro de 1995

12 Impostos sobre os Lucros Janeiro de 1981 revisão de 1996, em vigor após


Janeiro de 1998

13 Apresentação de Activos Correntes e de Janeiro de 1981 Revogada pela NIC 1


Passivos Correntes

14 0 Relato da Informação Financeira por Janeiro de 1983 revisão de 1997, em vigor após
Segmentos Julho de 1998

57
Revista Estudos do ISCAA

15 Informação Reflectindo os Efeitos das Janeiro de 1983 revisão de 1994, facultativa


Variações de Preços

16 Activos Fixos Tangíveis Janeiro de 1983 revisão de 1993, em vigor após


Janeiro de 1995

17 Contabilização das Locações Janeiro de 1984 revisão de 1997, em vigor após


Janeiro de 1999

18 Rédito Janeiro de 1984 revisão de 1993, em vigor após


Janeiro de 1995

19 Custos de Benefícios de Reforma Janeiro de 1985 revisão de 1993, em vigor após


Janeiro de 1995

20 Contabilização dos Subsídios do Janeiro de 1984 Reformatada em 1994

Governo e Divulgação do Auxílio do


Governo

21 Os Efeitos de Alterações em Taxas de Janeiro de 1985 revisão de 1993, em vigor após

Câmbio Janeiro de 1995

22 Concentrações de Actividades Janeiro de 1985 revisão de 1993, em vigor após

Empresariais Janeiro de 1995

23 Custos de Empréstimos Obtidos Janeiro de 1986 revisão de 1993, em vigor após


Janeiro de 1995

24 Divulgações de Partes em Relação de Janeiro de 1985 Reformatada em 1994

Dependência

25 Contabilização de Investimentos Janeiro de 1987 Reformatada em 1994

Financeiros

26 Contabilização e Relato dos Planos de Janeiro de 1988 Reformatada em 1994

58
Normalização Contabilística

Benefícios de Reforma

27 Demonstrações Financeiras Consolidadas Janeiro de 1990 Reformatada em 1994, emendada


e Contabilização de Investimentos em pela NIC 39
Subsidiárias

28 Contabilização de Investimentos em Janeiro de 1990 Reformatada em 1994, emendada


Associadas pela NIC 39

29 Relato Financeiro em Economias Janeiro de 1990 Reformatada em 1994


Hiperinflacionárias

30 Divulgações nas Demonstrações Janeiro de 1991 Reformatada em 1994, emendada


Financeiras de Bancos e de Instituições pela NIC 39
Financeiras Similares

31 Relato Finaceiro de Interesses em Janeiro de 1992 Reformatada em 1994, emendada


Empreendimentos Conjuntos pela NIC 36 e 39

32 Instrumentos Financeiros: Divulgação e Janeiro de 1995 Revista pela NIC 39


Apresentação

33 Resultados por acção Janeiro de 1998

34 Relato Financeiro Intercalar Janeiro de 1999

35 Operações descontinuadas Janeiro de 1999

36 Impairment (Imparidade) de activos Julho de 1999

37 Provisões, Activos e Passivos Julho de 1999 Suprimiu as partes da NIC 10 que


contingentes tratavam de contingências

38 Activos intangíveis Julho de 1999

59
Revista Estudos do ISCAA

39 Instrumentos Financeiros: Janeiro de 2001 Suprimiu partes da NIC 25, e


Reconhecimento e Mensuração alterou as NICs 18,27,28,30,31 e
3256

BIBLIOGRAFIA

Comissão Europeia (1997): "Accounting Harmonisation: A New Strategy vis-à-vis


International Harmonisation". Documento 508, Novembro.
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60
Revista Estudos do ISCAA, IIa Série, 5 (1999) 61-99

A ÉTICA
COMO FACTOR DE DIFERENCIAÇÃO NO EXERCÍCIO DA
ACTIVIDADE PROFISSIONAL DO CONTABILISTA 1

DOMINGOS JOSÉ DA SILVA CRAVO


PROFESSOR COORDENADOR DA ÁREA CIENTÍFICA
DE CONTABILIDADE DO ISCAA

' O presente trabalho refere-se, na sua essência a um dos trabalhos efectuados (lição)
no âmbito do concurso de provas públicas para professor-coordenador da área
científica de Contabilidade do ISCA de Aveiro, que tiveram lugar em Dezembro de
1998.
Revista Estudos do ISCAA

ÍNDICE

I. INTRODUÇÃO

II. DESTINATÁRIOS, ÂMBITO E OBJECTIVOS DA LIÇÃO

1. DESTINATÁRIOS DA LIÇÃO
2. ÂMBITO DA LIÇÃO
3. OBJECTIVOS GERAIS
4. TÉCNICAS DIDÁCTICAS

III. LIÇÃO

1. SUMÁRIO
2. TEXTO DE APOIO À LIÇÃO

I. INTRODUÇÃO
1. Conceito de ética
2. A deontologia
3. A ética nos negócios (ética económica e ética
empresarial)

H. A ÉTICA EM CONTABILIDADE,
1. Particularidades
2. Alguns dos problemas do contabilista
3. Dilemas éticos
4. Princípios éticos
5. Os códigos de conduta
6. Elementos necessários para a construção de um código
de ética
7. Alguns códigos de ética
8. Algumas aplicações práticas

m. CONCLUSÕES

rv. BIBLIOGRAFIA

62
A Ética como Factor de Diferenciação...

I. INTRODUÇÃO

Nos termos da alínea a) do n°l do art° 26° do Decreto-Lei n°


185/81, de 1 de Julho, o oponente ao concurso de provas públicas para
professor coordenador tem de apresentar uma lição no âmbito da área
científica para que concorre, no caso vertente, na área científica de
Contabilidade.
O presente trabalho visa pois, tão somente, dar cumprimento a
tal disposição.
Cada vez mais assistimos à assunção, por parte de alguns
agentes económicos, de comportamentos que não sendo ilegais, em
muito se afastam daquilo que se pode considerar como ético, na
sociedade em que vivemos. Disso nos dão notícia — com mais
frequência do que a que seria desejável - os órgãos da comunicação
social.
A Sociedade, como um todo, atravessa um período de crise de
valores (para não dizer que nalguns casos existe mesmo uma
subversão daqueles). Urge inverter o sentido da marcha, sob pena de
estarmos a alimentar um colectivo que elege a desonestidade, a
infidelidade, a irresponsabilidade, o egoísmo e a injustiça como
valores de vida.
Entendemos que nos conturbados tempos que atravessamos o
comportamento ético dos agentes económicos constitui o
indispensável cimento necessário ao harmonioso desenvolvimento da
actividade social e traduz, seguramente, um factor de elevada
importância no combate a que todos estamos obrigados contra males
que afectam a nossa sociedade, onde se destacam necessariamente a
corrupção, a desonestidade, o egoísmo e a falta de respeito pelo
semelhante. Contudo, acreditamos que os males "da moda" - e, em
especial, a corrupção — só se podem combater através da indução de
comportamentos éticos.
Consideramos que é desejável que, na parcela que à nossa
comunidade de especialistas mais diz respeito, possamos contribuir
para a Sociedade com uma disciplina contabilística e de auditoria
fiáveis e confiáveis, ou seja, onde, para além dos pressupostos

63
Revista Estudos do ISCAA

associados à busca da excelência científica, possamos demonstrar que


a honestidade, a justiça e imparcialidade assumem a categoria de
valores de primeira ordem.
Entendemos que para a existência da apregoada "transparência"
das Demonstrações Financeiras se torna necessária a contribuição
clara do sistema de ensino o qual, — baseado no velho ditado "água
mole em pedra dura, tanto bate até que fura " — contribuirá para
incutir nos estudantes a motivação necessária para a adopção de
posturas éticas.
É convicção do candidato - e a isso tem dedicado algum do seu
labor como professor — que a adopção de princípios éticos no
exercício da actividade profissional resulta, em boa medida, da cultura
induzida nos estudantes a qual seguramente se reproduzirá no
exercício da sua futura actividade profissional. Daí que consideremos
de vital importância que o tema seja abordado nos curricula e, se
possível, de uma forma interdisciplinar. Seguindo de perto Briloff2
somos especialmente competentes no ensino das técnicas e perícias,
mas somos bastante deficientes na transmissão da compreensão crítica
da ligação entre negócios e sociedade e entre gestores e profissionais,
ou seja, das relações de poder. Não parece bastar o ensino dos valores
éticos e morais, é necessário pré-profissionalizar os estudantes,
designadamente através do estudo de casos, no sentido de os dotar de
meios de sobrevivência.
É neste quadro que escolhemos o tema "A ética como factor de
diferenciação no exercício da actividade profissional do
contabilista".
A perspectiva da nossa abordagem centrar-se-á essencialmente
na óptica do profissional da Contabilidade (preparador ou auditor), já
que é basicamente para o exercício desta actividade que preparamos os
nossos alunos.
Ao longo do trabalho tentaremos manter presentes preocupações
de carácter didáctico e pedagógico, sem que contudo tal facto leve a

Briloff (1986) Accountancy in the public interest; MacMaster University, Canada,


cit. Por Mathews e Perera (1996).

64
A Ética como Factor de Diferenciação...

que transformemos esta lição, numa lição de didáctica específica da


Contabilidade3. Este tipo de preocupações - que melhor serão
expostas e desenvolvidas em todo o segundo grupo que adiante se
referirá — implicarão, necessariamente, uma apresentação que
desejamos clara e interessante, na perspectiva do aluno, sem que isso
gere qualquer redução do rigor e profundidade da temática abordada.
O trabalho está estruturado em dois grandes blocos: um primeiro
que corresponde à apresentação das técnicas didácticas utilizadas — as
quais, naturalmente, não seriam objecto de discussão em classe - mas
cuja exposição no âmbito destas provas implicará uma ocupação de
cerca de um quarto de hora e, um segundo bloco, que corresponde a
uma lição cuja preparação foi desenvolvida para uma apresentação que
se estima em, aproximadamente, uma hora. De facto, julgamos que
neste período de tempo será possível apresentar o tema que nos
propomos de modo adequado, seguindo as técnicas didácticas que
adiante se referirão, e maximizar o binómio ensino-aprendizagem -
objectivo inquestionavelmente importante da função docente.
Consequentemente, o presente trabalho está repartido em dois
grandes grupos: um primeiro que se refere aos destinatários, âmbito e
objectivos, bem assim como às técnicas didácticas utilizadas, e um
outro grupo que respeita ao núcleo central da lição.
Quanto a esta propriamente dita, a respectiva apresentação
comporta, igualmente, dois grupos: um introdutório, no qual são
apresentados os conceitos de ética e deontologia em termos gerais e é
efectuada uma primeira abordagem à ética nos negócios e, um
segundo grupo, onde se procurará particularizar a problemática da
ética na disciplina contabilística, dando-se especial ênfase — para
além do que, em termos teóricos, mais não será do que um reavivar de
conceitos básicos — ao levanta de um conjunto de questões do dia-a-

3
Embora apresentemos vários dos passos que deverão estar presentes na didáctica
da Contabilidade, o modelo apresentado não pode - e não deve, porque a isso não se
destina - ser considerado um esquema de organização didáctica. Conscientemente,
omitimos alguns passos e não desenvolvemos vários dos problemas apresentados,
nem com o rigor, nem com a profundidade que seria exigida se fosse aquele o
objectivo.

65
Revista Estudos do ISCAA

dia e que implicam decisões de conteúdo essencialmente ético.


Naturalmente que terminaremos a apresentação com o apontamento
das respectivas conclusões.
Como é normal, a lição terminará com a exposição da
bibliografia sobre o tema a qual permitirá alicerçar e criticar as ideias
apresentadas.

II. DESTINATÁRIOS, ÂMBITO E OBJECTIVOS DA LIÇÃO

1. DESTINATÁRIOS DA LIÇÃO

Como refere Matos Carvalho4 "a lição, enquanto prova pública


do concurso para professor-coordenador, tem como finalidade pôr à
prova a capacidade expositiva e pedagógica do candidato, devendo
corresponder tanto quanto possível, a uma aula que o docente tem de
dar.
Assim, é conveniente que o candidato ao lugar de professor
coordenador explicite a situação que escolheu ".
Com esta finalidade, se dirá que a lição que agora se apresenta
corresponde a uma sessão preparada para os alunos inscritos num dos
Seminários existentes no 3 o semestre do curso de estudos superiores
especializados (CESE) em Auditoria Contabilística, ministrado no
Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Aveiro e
versará sobre o já aludido tema "A ética como factor de diferenciação
no exercício da actividade profissional do contabilista".
Pareceu-nos que um seminário sobre o tema aqui proposto teria
todo o cabimento.
Com efeito, é razoável esperar que o aluno que frequenta os
Seminários do CESE esteja já de posse de um apreciável grau de
"savoir" e de "savoir-faire". Deve pois - e, eventualmente, esta será
uma das deficiências do nosso sistema de ensino - ser sensibilizado
para a problemática do "savoir-être", i.e. do modo como a

4
Matos Carvalho, José Manuel de (1994).

66
A Ética como Factor de Diferenciação...

Comunidade espera que ele se venha a comportar e agir enquanto


profissional5.
E aqui cabe, uma vez mais, a Ética.
De facto, é verdade que ao longo do bacharelato, em várias
disciplinas da área da Contabilidade Geral, e no CESE, especialmente
nas disciplinas de Contabilidade Financeira e Auditoria, a
problemática do comportamento ético do contabilista está sempre
presente. Contudo, e aproveitando a circunstância de neste momento
dos seus estudos os alunos possuírem uma maior envergadura teórica e
uma maior maturidade ao nível técnico, parece oportuno que tal
temática volte a ser colocada, agora claramente como corolário de
tudo o que fora dito ao longo do curso, incentivando-os para a análise
crítica de alguns aspectos práticos do tema proposto.
Um dado importante consiste em o terceiro semestre do CESE
ter uma baixa carga horária com o objectivo de permitir aos estudantes
o desenvolvimento de mecanismos de pesquisa, que culminarão no
trabalho de fim de curso. Aquela pouca ocupação em termos de
leccionação formal, associada a este objectivo de pesquisa, permitem
que seja proposto como mecanismo de verificação da aprendizagem a
elaboração de um pequeno trabalho, nos termos que adiante se
referirão.

2. ÂMBITO DA LIÇÃO

Vamos, como temos vindo a referir, discutir "a ética como


factor diferenciador no exercício da actividade profissional do
contabilista".
Já anotámos a importância que atribuímos ao tema. Fizemos
igualmente referências a propósito da ausência de uma disciplina
específica de Ética nos curricula formais e à forma como no ISCAA se
tem procurado colmatar tal insuficiência, designadamente através da
incorporação do tema nos programas de diversas disciplinas do grupo

5
E, embora isso não seja objecto deste trabalho, deverá ser igualmente sensibilizado
para a problemática do "savoir-continue"

67
Revista Estudos do ISCAA

de Contabilidade. Anotámos ainda a necessidade de pré-


profissionalização dos estudantes através da análise de situações
concretas.
Perante estes factos, e com o objectivo de maximizar o binómio
ensino-aprendizagem, entendemos abordar o tema de uma forma
predominantemente casuística, i.e. através do estudo e apreciação de
um conjunto de situações concretas, nas quais se procuram evidenciar
algumas questões éticas pertinentes.
Evidentemente que a abordagem teórica assumirá uma função de
mero enquadramento e terá características recapitulativas, dado, por
um lado, o nível dos conhecimentos prévios que os alunos possuem
acerca desta matéria e, por outro lado, a extensão da mesma, facto que,
por si só, seria impeditivo de, no tempo previsto para esta lição,
permitir uma adequada explanação da mesma.
Recolhemos ensinamentos ministrados, em particular, pelo Prof.
Rogério Ferreira que nos seus inúmeros escritos tem enfatizado a
problemática do comportamento ético na prestação de contas, sendo a
partir dessas suas notas que levantamos algumas das questões que aqui
apresentamos.
Evidentemente que alguns dos aspectos que são apresentados
são recolhidos dos autores a que fazemos referência na bibliografia e
que, meramente por razões de operacionalidade e de clareza
expositiva, não serão citados nos termos em que o seriam se
estivéssemos a elaborar um trabalho científico.

3. OBJECTIVOS GERAIS

Como foi referido anteriormente, ao longo quer do Bacharelato,


quer do CESE, os alunos foram sendo sensibilizados para a
importância da assunção de um comportamento ético como bandeira
de vida.
Daí que esperemos que o presente Seminário sedimente esta
intenção educativa através da apreciação de um conjunto de situações
retiradas do quotidiano das Empresas.
Isto implica que com este Seminário visemos:

68
A Ética como Factor de Diferenciação...

i) desenvolver no aluno as motivações para o estudo das


questões éticas;
ii) inserir o aluno na pesquisa de situações concretas do dia-a-dia
da actividade profissional do contabilista e incutir-lhe o hábito pela
inclusão dos componentes éticos na análise interdisciplinar;
iii) incitar o aluno a privilegiar um comportamento ético como
factor de sucesso a longo prazo.
Os termos em que a explanação está estruturada permite-nos
esperar que no final da sessão, o aluno esteja em condições de:
i) Conhecer as bases gerais do comportamento ético e
deontológico;
ii) Compreender a importância do comportamento ético no
exercício da sua futura actividade profissional;
iii) Identificar os princípios e dilemas éticos;
iv) Compreender a importância da existência de códigos de ética
e identificar os principais elementos necessários à sua construção;
v) Analisar as principais diferenças existentes num conjunto de
vários códigos de ética;
vi) Aplicar os conhecimentos teóricos perante um conjunto de
situações concretas;
vii) Avaliar a importância da adopção de comportamento ético
no exercício da sua actividade profissional futura, seja qual for a
vertente ligada às empresas que a mesma assuma.

4. TÉCNICAS DIDÁCTICAS

4.1. METODOLOGIA

Uma apresentação do género daquela que nos propomos


desenvolver não pode assentar apenas numa forma de trabalho
didáctico.
Indubitavelmente que no Seminário proposto se pretende um
grau de interactividade elevado, pelo que o mesmo não poderá

69
Revista Estudos do ISCAA

assentar predominantemente no método expositivo . Assim, a par


deste utilizaremos quer o método intuitivo, quer o método indutivo-
dedutivo, e, como metodologia preferencial neste tipo de sessões,
lançaremos mão quer do diálogo livre, quer do diálogo dirigido, quer
ainda do trabalho de grupo.
Relacionando especificamente o plano da sessão com as formas
de trabalho didáctico enunciado, diria que, basicamente, utilizaria:
• O método expositivo na apresentação de conceitos (grupo
introdutório),
• O método intuitivo para o estabelecimento das particularidades
da ética em Contabilidade e no levantamento dos problemas do
profissional de contabilidade,
• O método indutivo para o estudo dos dilemas éticos,
• O método expositivo para a caracterização dos princípios
éticos,
• O método indutivo para o estabelecimento e construção dos
códigos de conduta,
• O trabalho de grupo para a apreciação dos vários códigos de
ética e deontologia, e
• O diálogo (livre e dirigido) na apreciação das questões
práticas.

Pese a descrição formulada há também aqui que ter presente que


a manutenção do ritmo da sessão constituiria factor relevante na
selecção do método a utilizar.

Contudo, sempre se dirá que se é verdade que o ensino magistral comporta um


conjunto de riscos no processo de ensino-aprendizagem, não é menos verdade que
para a introdução de novos temas ou para a discussão de assuntos cujo grau de
abstracção é mais elevado continua a ter elevados méritos.

70
A Ética como Factor de Diferenciação...

4.2. MATERIAL DIDÁCTICO

Um seminário da natureza daquele que propomos desenvolver


necessita do material didáctico clássico, ou seja:
• Quadro;
• Retroprojector;
• Computador equipado com software de apresentações (vg.
Powerpoint);
• Data-show;
• Recortes de jornais; e
• Códigos de ética e deontologia profissional dos vários
organismos profissionais estudados.

Poder-se-ia ainda admitir o recurso às novas tecnologias da


informação, designadamente, através do encorajamento da utilização
da Internet, quer como componente de pesquisa, quer ainda como
factor de intercâmbio de experiências com outras organizações e
agentes.

4.3. ACTIVIDADES PREVISTAS PARA OS ALUNOS

A natureza da sessão proposta não permite que na mesma se


considerem outras actividades para além do incentivo à participação
activa no diálogo.
O tipo da formação dos alunos assistentes aos Seminários, que
combinam uma já apreciável componente teórica, com uma
experiência prática crescente, permite que se anteveja uma sessão
com um diálogo rico de situações concretas.
No entanto, estamos conscientes que as contribuições poderiam
ainda ser melhoradas se fosse possível propor, previamente, aos
alunos a pesquisa de casos publicados na imprensa e/ou de os motivar
para o desenvolvimento de investigação comparada.

71
Revista Estudos do ISCAA

4.4. VERIFICAÇÃO DA APRENDIZAGEM

Tal como referimos anteriormente, os alunos são motivados ao


longo do 3 o Semestre do CESE para procurarem desenvolver as suas
técnicas de pesquisa.
A área do tema que nos propomos tratar permite, claramente,
dois tipos de pesquisa: um com características mais teóricas
(estabelecimento de uma compilação de noções; busca de relações
teóricas, etc.) e, um segundo, de características mais práticas (pesquisa
de situações concretas e análise, numa perspectiva ética, do
comportamento dos agentes; análise da posição das associações
profissionais perante os casos públicos de suspeita de violação de
normas éticas e deontológicas; análise comparativa da actividade
desenvolvida neste domínio pelas associações profissionais, podendo a
comparação ser estabelecida quer numa perspectiva geográfica (em
Portugal e noutros países), quer numa perspectiva interprofissional
(contabilistas vs. outras actividades), etc.)
Os objectivos a perseguir no momento lectivo em causa,
conjugados com a riqueza do campo de actuação e aliados à natureza e
potencialidades do tema que iremos expor, leva a que proponhamos
como elemento de verificação da aprendizagem a elaboração de um
trabalho de grupo escrito, a ser desenvolvido por dois / três alunos.
Pensamos que esta metodologia permitirá - para além de, como
é evidente, potenciar o trabalho em equipa - a busca de relações
interdisciplinares, factor que se revela progressivamente mais
importante no exercício da actividade profissional.

72
A Ética como Factor de Diferenciação...

II. LIÇÃO

1. SUMÁRIO

A apresentação do sumário justifica-se, como refere Matos


Carvalho "por duas razões. Em primeiro lugar, para uma melhor
compreensão e acompanhamento da lição e, em segundo, porque o
Estatuto da Carreira Docente do Ensino Superior Politécnico
estabelece, no seu art° 33°, que o docente deverá elaborar um sumário
desenvolvido da matéria leccionada".

1.1. SUMÁRIO RESUMIDO

I. Introdução

H. A ética em Contabilidade

m. Conclusões

1.2. SUMÁRIO DESENVOLVIDO

Tema: A ética como factor de diferenciação no exercício da


actividade profissional do contabilista.

I. Introdução
1. Conceito de ética
2. A deontologia (ou ética profissional)
3. A ética nos negócios (ética económica e ética
empresarial)

H. A ética em Contabilidade
1. Particularidades
2. Alguns dos problemas do contabilista

Matos Carvalho, José Manuel de (1994)

73
Revista Estudos do ISCAA

2.1. como preparador de informação financeira


2.2. como consultor
2.3. como auditor (financeiro e fiscal)
1. Dilemas éticos
2. Princípios éticos
3. Os códigos de conduta
4. Elementos necessários para a construção de um código de
ética
5. Alguns códigos de ética
7.1.IFAC
7.2. AICPA
7.3. CROC
7.4. ATOC (projecto)
8. Algumas aplicações práticas
8.1. O julgamento em contabilidade
8.2. A imagem fidedigna -> utilidade e ética
8.3. A neutralidade da informação financeira
8.4. A continuidade
8.5. A politização da contabilidade
8.6. A contabilidade das intenções
8.7. Conflitos administrações / accionistas
8.8. Conflitos contabilidade / fiscalidade
8.9. Limites éticos na consultadoria fiscal
8.10. As despesas confidenciais e as facturas falsas / fictícias
8.11. A ética e a propriedade intelectual (o caso do software)

III. Conclusões

IV. Bibliografia

74
A Ética como Factor de Diferenciação...

2. TEXTO DE APOIO À LIÇÃO

Apresentamos seguidamente um pequeno texto de apoio à lição.


Este texto mais não visa do que ser um sumário macro-desenvolvido
uma vez que o autor entende ser preferível que, designadamente ao
nível a que se lecciona a presente lição, o docente faculte bibliografia
que permita interpretações múltiplas dos problemas em confronto à
colocação à disposição de um texto único que rigidamente será
estudado.
Nesse sentido, a própria bibliografia apresentada - para além do
normal objectivo associado à descrição das fontes utilizadas na
preparação da lição - visa, em grande medida, quer facultar ao aluno
fontes para o arranque de uma eventual investigação acerca do tema,
quer desenvolver a sua capacidade crítica mediante o confronto de
teses não coincidentes.
O grande desafio dos docentes não consiste na transmissão dos
conhecimentos, mas sim no desenvolvimento de um espírito crítico
acerca dos problemas e essa capacidade crítica é claramente
potenciada pelo confronto das ideias de vários autores.

75
Revista Estudos do ISCAA

A ÉTICA
COMO FACTOR DE DIFERENCIAÇÃO NO EXERCÍCIO DA
ACTIVIDADE PROFISSIONAL DO CONTABILISTA

"Infelizmente, a ética é um desses temas que, como a


comida ou a casa, se vai revelando progressivamente
importante à medida que se faz sentir a sua falta"
(José António Gonzalo)

I. INTRODUÇÃO

1. CONCEITO DE ÉTICA

Ao efectuar uma recolha bibliográfica acerca deste tema, é fácil


encontrar um variado número de definições de "ética".
Lexicologicamente9;
Ética, s.f. (do lat. Ethica ou ethice, do gr. Ethiké). Parte da
filosofia que trata da moral; ciência da moral.
Com o mesmo fito, Rodriguez Molinuevo (1993) pesquisou
noutro conjunto de obras e obteve os resultados seguintes:
i) parte da filosofia que trata da avaliação da moral dos actos
humanos; conjunto de princípios e normas morais que regulam as
actividades humanas (Larousse);
ii) parte da filosofia que trata do bem e do mal nos actos
humanos; conjunto de regras morais que regulam o comportamento e
as relações humanas (Maria Molíner);
iii) parte da filosofia que trata da moral e das obrigações do
homem (Real Academia Espanhola).

A Ética e a Moral andam pois aliadas, o que nem será de


estranhar pois que ambas têm, na origem, análoga significação -
derivam de mores e ethos, termos que designam costumes. Ora, se se

9
in Machado, José Pedro (coord.); Grande Dicionário da Língua Portuguesa; Ed.
Sociedade de Língua Portuguesa e Amigos do Livro

76
A Ética como Factor de Diferenciação...

entender por costumes o conjunto das práticas sociais correntes


(habituais) numa dada época e numa determinada colectividade '
podemos facilmente associar a noção de ética a uma ciência da moral,
i.e. ao conjunto de normas de conduta consideradas absolutas e
universalmente aceites, ou o conjunto de princípios, normas e valores
mediantes os quais um indivíduo decide a sua conduta ou
comportamento, ou, alargando a noção, o domínio da filosofia que
procura determinar a finalidade da vida humana e os meios de a
alcançar.
Neste sentido, é claro e indiscutível que a ética contribui de
modo manifesto para o bom e ordenado funcionamento da sociedade.
De resto, a experiência demonstra que a necessidade de ética na
sociedade é de tal modo importante que os valores éticos mais comuns
são (acabam por ser) frequentemente incorporados na legislação.
Pese tal necessidade, há contudo que reconhecer que por vezes
as pessoas agem de modo não ético. Este facto pode dever-se,
designadamente, a pelo menos um dos dois motivos seguintes:
i) os princípios éticos das pessoas serem diferentes dos da
sociedade em geral;
ii) as pessoas preferirem agir egoisticamente.
Com efeito, "o berço" de cada pessoa condiciona o conjunto de
valores ligados à "justiça social" entre os homens e, ao longo da vida,
cada pessoa terá a "sua" própria visão e atribuirá diferente significação
a cada facto. E isso pode implicar que, face a um determinado padrão
social, um tipo de comportamento que para o indivíduo estaria "certo"
dentro do contexto da sua educação, poderá não estar na óptica dos
valores médios da comunidade. Daí que, como refere Lázaro Lisboa,
"uma vez que cada pessoa apresenta o seu próprio conjunto de crenças
e valores, com comportamentos e objectivos diferenciados, surgem
conflitos nos relacionamentos existentes no seio da sociedade".
Seguindo ainda a Lázaro Lisboa, se dirá que "o problema central
para a ética tem sido o duplo trabalho de: (1) analisar o significado e a
natureza do elemento normativo moral do comportamento humano, do

Saraiva, Augusto; (1972)

77
Revista Estudos do ISCAA

pensamento e da linguagem; e (2) avaliar o significado e a natureza do


comportamento humano, apresentando os critérios para a justificação
das regras e dos julgamentos do que é moralmente correcto ou errado,
bom ou mau (ética normativa)".
Neste sentido da ética normativa, podem reconhecer-se, pois,
alguns Princípios Filosóficos, estabelecidos em função das correntes
filosóficas que lhe estão subjacentes. Anotamos:
i) O princípio do imperativo, (associado aos deontologistas - do
grego deóntos "de obrigatório") o qual direcciona a tomada de decisão
para o acordo com as disposições de uma norma ética;
ii) O Princípio do utilitarismo (ligado aos teleologistas - do
grego telíos "no fim", "final" (das causas)) que enfatiza as
consequências de uma acção, mais do que o seguimento das normas, e
iii) A argumentação da generalização, que corresponde a uma
combinação judiciosa das anteriores.

2. A DEONTOLOGIA

Vivemos um período de crise de confiança no nosso sistema


social.
Muitas profissões e actividades sofrem em maior ou menor grau
a desacreditação da Sociedade. Os políticos, o sistema financeiro, os
arquitectos e engenheiros, os advogados, os professores, os
desportistas e até os sacerdotes e os agentes da justiça por várias vezes
que têm sido objecto de notícias desacreditatórias das suas actividades.
Evidentemente que se pode - e deve - olhar para tais notícias de
forma crítica, pois que as mesmas ao serem elaboradas por outros
profissionais - os jornalistas, agora assumidos como guardiães da
ética, da moral e até de outros valores - podem elas próprias estar
eivadas de violações éticas por parte dos seus autores que as
desvirtuam11 No entanto, é sintomático que profissionais como sejam

Aliás, um bom tema de debate (que não cabe no âmbito do presente trabalho),
poderia ser a discussão do grau de desfocagem da realidade provocado pela acção do
transmissor dos factos

78
A Ética como Factor de Diferenciação.,.

os magistrados (onde à boca pequena se comentam algumas


sentenças12), ou os médicos (cuja classe atravessa actualmente uma
grave crise de confiança face às ofertas que alguns dos seus membros
recebiam dos laboratórios fabricantes de medicamentos e
equipamentos clínicos), que ancestralmente eram conotados com
comportamentos definidos a partir de elevados valores éticos, sejam
postos em causa.
Evidentemente que não basta que no domínio pessoal13 as
pessoas ajam de modo ético. Torna-se necessário que esse
comportamento seja alargado a todas as vertentes da sua vida, onde
naturalmente se integra o exercício da sua actividade profissional. Isto
leva a que existam necessidades especiais para uma conduta ética nas
profissões, entendendo-se, nomeadamente para este efeito, que o
termo "profissional" significa responsabilidade por uma conduta que
se estende além da satisfação das responsabilidade pessoais para
consigo mesmo, ou para além das exigências das leis e regulamentos
impostos pela Sociedade.
Dir-se-á então que a ética profissional (deontologia) pode ser
considerada como a parte da ética na qual um indivíduo, como
profissional, recebe pautas de conduta específicas em assuntos que
reflectem a sua responsabilidade para com a sociedade, para com os
clientes, para com os outros membros da profissão e, até, para consigo
mesmo. Deve, pois, ser vista como um caso especial da ética geral e
pode ser definida como o conjunto de "regras impostas por um corpo
profissional no comportamento dos seus membros".

12
A propósito veja-se a seguinte notícia publicada no "Expresso de 1 de Novembro
passado "O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) confirmou a existência de
corrupção no caso José Guímaro, mas suspendeu a pena de prisão efectiva de cinco
anos a que o ex-árbitro tinha sido condenado. O STJ justificou a decisão,
considerando que Guímaro mostrou ter "elevada postura ética e moral
irrepreensível" ... (sublinhados de nossa autoria)
13
Questão igualmente interessante poderia ser a aferição do domínio desta esfera
pessoal.

79
Revista Estudos do ISCAA

Esta noção significa que assumimos que o nosso sistema de


disciplina, no exercício de uma actividade profissional, se caracteriza
pelo estabelecimento de vários níveis de responsabilidade:
i) as responsabilidades legais, que correspondem às exigências
impostas pela sociedade;
ii) as responsabilidades morais, que se traduzem pelo conjunto
de exigências auto-impostas (pessoais ou de um grupo), e
iii) as responsabilidades éticas, que, nesta perspectiva,
correspondem às exigências impostas pela profissão.
Como temos vindo a referir, a questão do comportamento ético
tem vindo a assumir crescente importância, a tal ponto que o Instituto
Josephson para o avanço da ética estabeleceu o seguinte conjunto de
princípios para encorajar a conduta ética de profissionais
Governamentais; do Direito; da Medicina; dos Negócios; da
Contabilidade e do Jornalismo:
♦ Honestidade
♦ Integridade
♦ Lealdade (fidelidade)
♦ Justiça / imparcialidade
♦ Cuidado para com os outros
♦ Respeito pelos outros
♦ Cidadão responsável
♦ Busca da excelência
♦ Responsabilidade

Evidentemente que nem todas as pessoas concordam com os


mesmos princípios éticos e, mesmo os que estão de acordo nos
princípios que determinam o comportamento ético, dificilmente estão
de acordo quanto à importância relativa de cada princípio.
Trata-se, pois, de uma questão cuja solução muito dificilmente
poderá ser unitária. No entanto, o que é iniludível é que o conjunto de
responsabilidades que estão associadas ao exercício das actividades
profissionais é crescente, e é reconhecido pela sociedade que uma

80
A Ética como Factor de Diferenciação...

actividade é tão mais importante, quanto maior for o nível das suas
responsabilidades.

3. A ÉTICA NOS NEGÓCIOS (ÉTICA ECONÓMICA E ÉTICA


EMPRESARIAL)

Como refere Laura Nash14, "o termo ética assume diferentes


significados, conforme o contexto em que os agentes estão envolvidos.
Uma definição particular diz que "a ética nos negócios é o estudo da
forma pela qual normas morais pessoais se aplicam às actividades e
aos objectivos da empresa comercial. Não se trata de um padrão móvel
separado, mas do estudo de como o contexto dos negócios cria os seus
problemas próprios e exclusivos à pessoa moral que actua como um
gerente desse sistema".
No fundo, trata-se de um caso particular - da ética geral, onde
apenas é alterado o contexto onde são aplicados os valores morais do
bom, certo, justo e honesto.
Uma questão que assume particular importância tem a ver com a
determinação do comportamento ético nos negócios, ou seja quando é
que as empresas estão a agir de forma ética. A resposta pode assentar
no chamado "teste dos 4 caminhos", i.e. perante um dado facto
determinar se:
i) Será isso verdade ?
ii) Será justo para toda a sociedade ?
iii) Trará benefícios e melhores amizades ?
iv) Será benéfico para toda a sociedade ?
Considerando-se ético o comportamento que corresponda às
quatro respostas afirmativas.

Citada por Lisboa, Lázaro (1996:p.25)

81
Revista Estudos do ISCAA

I I . A ÉTICA E M CONTABILIDADE

1. PARTICULARIDADES

A Contabilidade pode ser entendida como uma disciplina que


visa avaliar o desempenho social das entidades15.
Atenta a circunstância de as normas de contabilidade terem
sempre efeitos económicos (implícitos ou explícitos) relevantes para
os destinatários da informação, impõe-se que à Contabilidade
enquanto disciplina sejam exigidos elevados padrões de neutralidade,
por forma a minimizar o leque de desequilíbrios que a aplicação da
norma sempre trará.
Este aspecto, aliado aos desequilíbrios existentes na quantidade
e qualidade da informação disponível para os utentes internos e para
os utentes externos, bem como os constantes conflitos de interesses, a
que se junta a permanente necessidade de emissão de juízos de valores
sobre as opções contabilísticas constituem algumas das peculiaridades
da problemática ética em Contabilidade.

2. ALGUNS DOS PROBLEMAS DO CONTABILISTA

2.1. COMO PREPARADOR DE INFORMAÇÃO FINANCEIRA

Enquanto preparador da informação o contabilista tem algumas


obrigações e, pese a circunstância de a responsabilidade final pelas
contas não ser sua, mas sim da Administração, a sua contribuição para
as decisões desta são, dum modo geral, muito relevantes. Ora, a
proposta de "Código deontológico dos técnicos oficiais de contas"
estabelece, no seu art°. 2o relativo aos deveres gerais que "no exercício
das suas funções, os técnicos oficiais de contas devem respeitar as

Neste sentido de contabilidade social, ela pode ser entendida como o processo de
seleccionar as variáveis de desempenho social do nível da entidade, estabelecer os
procedimentos de medida e medir, bem assim como desenvolver sistematicamente
informação útil para avaliar o desempenho social da entidade e comunicar esta
informação aos grupos sociais internos e externos.

82
A Ética como Factor de Diferenciação...

normas legais e os princípios contabilísticos geralmente aceites,


procurando a sua correcta aplicação à situação concreta das entidades
a quem prestam serviços, por forma a salvaguardar o interesse destas,
sem prejuízo da verdade contabilística e fiscal"16
Sendo a informação financeira um bem público e estabelecendo,
designadamente o POC que tal informação deverá ser útil a
investidores, credores e outros utentes, parece ser complicada a
definição do interesse da entidade. Claro, se a isto se acrescer a
complexidade da compatibilização entre a verdade contabilística e a
verdade fiscal17 entender-se-á a tarefa hercúlea que está consignada a
estes profissionais.

2.2. COMO CONSULTOR

O contabilista, enquanto consultor, vê-se muitas vezes


confrontado com questões para cuja solução tem de fazer apelo aos
seus princípios éticos dado ser ele próprio a estabelecer os limites da
sua actuação.
No exercício da sua actividade profissional, e em especial
quando trata de questões do domínio fiscal, ou laboral, a fronteira
entre o legalmente permitido e o eticamente aceitável é muito ténue e
a opção entre uma das soluções constitui exercício de grande
dificuldade e, será, muito provavelmente, a solução escolhida
(sugerida) que permitirá diferenciar os profissionais, distinguindo
aqueles que têm uma postura ética, daqueles outros que têm uma
postura militarista, no sentido que aqui demos ao conceito.
E cabe então agora a reflexão/provocação efectuada pelo Prof.
Rogério Ferreira18 " o desafio que queremos pôr aos especialistas é
que a razão utilitária não deve prevalecer, ainda que se saiba que na
vida real uma coisa é o dever ser e outra o convir ser".

16
Itálico nosso.
17
Evidentemente que apenas por razão dos diferentes critérios que estão subjacentes
à determinação do resultado contabilístico e do resultado fiscal.
18
Fernandes Ferreira, Rogério; RCC, n° 212, p.450

83
Revista Estudos do ISCAA

2.3. COMO AUDITOR

A auditoria visa dotar confiança pública às demonstrações


financeiras, aumentando a respectiva credibilidade, e é esta confiança
pública que os utentes pretendem não ver atraiçoada. Por outras
palavras, os utentes confiam no relatório do auditor, como "interface"
entre as demonstrações financeiras apresentadas pelas administrações
e aquilo que deve ser entendido como a posição das empresas.
As funções que são atribuídas aos auditores demonstram
contudo que existem algumas diferenças entre eles e os outros
profissionais. Com efeito, dum modo geral, os diversos tipos de
profissionais são contratados e pagos pelo cliente e têm como
principal responsabilidade prestar serviços para esse cliente. Todavia,
os auditores são contratados e pagos pelas empresas que produzem a
informação financeira, mas os primeiros beneficiários da auditoria são
os utentes das Demonstrações Financeiras.
Esta peculiaridade coloca desde logo algumas questões éticas
cuja solução é bastante complexa, como adiante assinalaremos.

3. DILEMAS ÉTICOS

A actividade profissional do contabilista apresenta pois variados


exemplos de dilemas éticos. E ntendamos por dilema ético a situação
que ocorre quando a solução de um problema passa por violar uma
norma legal, ou ética, p. ex. quem assalta para salvar uma vida, ou
quem não denuncia uma situação para evitar um drama pessoal.
Para muitos, a resolução dos dilemas éticos pode ser efectuada
através da racionalização de comportamentos não éticos, mediante
argumentações do tipo:
♦ toda a gente faz isso;
♦ se é legal, é ético;
ou da avaliação da probabilidade de descoberta e das respectivas
consequências.

84
A Ética como Factor de Diferenciação...

No entanto, a resolução do problema pode ser efectuada


mediante o estabelecimento de uma hierarquia de valores, ou, de um
modo mais racional, através de um esquema do tipo:
♦ Obter os factos relevantes
♦ Identificar as questões éticas a partir dos factos
♦ Determinar quem é afectado pelo resultado do dilema
♦ Identificar alternativas possíveis para quem tem de resolver o
dilema
♦ Identificar as melhores consequências de cada alternativa
♦ Decidir a acção apropriada

4. PRINCÍPIOS ÉTICOS

O problema ético em Contabilidade tem, necessariamente, de ser


visto à luz de um conjunto de "Princípios éticos" que são balizados
quer pela envolvente que está associada à actividade profissional, quer
pelo âmbito e natureza do serviço prestado. Deste modo, o exercício
da actividade contabilística não pode ser desligado da sua
característica de "interesse público", à qual está aliada uma
determinada "responsabilidade", que tem, naturalmente de ser vista
numa tripla perspectiva: (1) para com os clientes; (2) para com os
funcionários, e (3) para com o público em geral.
A característica de interesse público da actividade - mais óbvia
quando o contabilista desenvolve a actividade de auditor - implica que
os utentes da informação financeira esperem uma postura da parte do
contabilista, que corresponda a elevados padrões de "integridade" e
"objectividade e independência" que sejam o garante das opiniões que
emite e que o coloquem como o adequado "interface" entre o produtor
da informação e os respectivos utentes.
A todas estas características o contabilista deve acrescer o
"Cuidado apropriado" no exercício da sua actividade, como valor
último da sua actuação.
Os princípios éticos que podem ser considerados no exercício da
actividade contabilística, são os que seguidamente se apresentam:
i) Independência

85
Revista Estudos do 1SCAA

ii) Integridade e objectividade


iii) Normas técnicas
iv) Confidencialidade
v) Honorários / honorários contingentes
vi) Actos desacreditatórios
vii) Publicidade
viii) Comissões
ix) Forma de organização e nome
x) Sanções

Comentemos brevemente alguns deles:

i) INDEPENDÊNCIA

A independência constitui a génese do comportamento ético. Em


contabilidade, sem independência, muito dificilmente se pode exercer
a actividade de uma forma ética e, mesmo quando é possível atingir
esse estádio, é problemático fazer passar tal circunstância para os
utentes pois que, atenta a já referida característica de "interface" da
mesma, como diz o povo "à mulher de César não basta ser séria, é
preciso também parecê-lo".
Entende-se por independência a ausência de interesses ou
influências que possam minorar a objectividade do auditor19' ou, o que
é o mesmo, a atitude mental que permite ao contabilista (auditor)
actuar com liberdade relativamente ao seu juízo profissional, pelo que
deve estar liberto de qualquer predisposição que limite a sua
imparcialidade na consideração objectiva dos factos, assim como na
formulação das suas conclusões.
A independência passa por não desacreditar a profissão e, bem
assim, pela não violação da relação de confiança entre o profissional e
o seu cliente.

9
Reglamento de la Ley de Auditoria de Cuentas

86
A Ética como Factor de Diferenciação...

A problemática da independência tem constituído ao longo dos


tempos um dos assuntos mais discutidos no seio da profissão e muitas
têm sido as formas de a tentar atingir.
Centrando a nossa apreciação na perspectiva dos auditores,
podemos lembrar que alguns dos mecanismos utilizados para o
estabelecimento da presunção de independência passam pela busca da
exclusividade na realização de trabalhos de auditoria, o que implicava
que fosse escolhida uma das três vias seguintes: (i ) a mais rígida, que
levava à proibição de o auditor realizar outras actividades laborais
diferentes da auditoria; (ii) a intermédia, que apenas proibia o
exercício das demais actividades nas entidades auditadas, e (iii) a mais
flexível, que permite a compatibilidade do trabalho de auditoria com
outros. Outra das alternativas possíveis, passa pela introdução de
limitações temporais na duração dos contratos entre auditores e
entidades auditadas, estabelecendo uma "blindagem" temporal dos
mesmos e, finalmente, a definição de um sistema de
incompatibilidades.
Evidentemente que não é possível afirmar que qualquer dos
sistemas é preferível aos demais como prova o acolhimento que todos
eles tiveram (ou têm) nos distintos sistemas legislativos.

ii) INTEGRIDADE E OBJECTIVIDADE

Podemos definir "integridade" como a característica que se


traduz na rectidão no exercício da profissão: ser honesto e sincero na
realização do seu trabalho e do seu relatório. E podemos dizer que a
"objectividade" implica a manutenção de uma atitude imparcial em
todas as funções exercidas.
Isto implica que o profissional goze de independência nas suas
relações com a entidade e seja justo, não permitindo nenhum tipo de
influência ou juízo prévio.

iv) CONFIDENCIALIDADE

O contabilista deve manter a confidencialidade da informação


obtida no decurso das suas actuações, o mesmo se aplicando, no caso

87
Revista Estudos do ISCAA

do exercício da actividade em termos liberais, aos seus colaboradores.


Isso significa que a informação obtida não pode ser utilizada em seu
proveito, nem no de terceiras pessoas.
Naturalmente que se excepcionam as situações descritas no art°
62° do Decreto-Lei n° 422-A/93, de 30 de Dezembro.

v) HONORÁRIOS/ HONORÁRIOS CONTINGENTES

Os honorários devem corresponder ao preço justo do trabalho


realizado para o cliente e, em nenhuma circunstância, deve ser
relacionado o resultado do trabalho com os honorários a auferir.

vii) PUBLICIDADE

Outra das grandes questões da actividade profissional, em


especial dos auditores, é a discussão da possibilidade/impossibilidade
de efectuar publicidade. Trata-se de questão com solução muito
complexa. Os defensores da impossibilidade da publicitação dos
serviços argumentam que existe o risco da baixa da qualidade média
do trabalho. O argumento assenta na ideia que, agindo os profissionais
num mercado competitivo e sendo, por consequência, o mercado a
estabelecer os preços dos serviços, os profissionais, com o objectivo
de procurarem maximizar os seus lucros, ao não poderem agir sobre os
proveitos, tentarão reduzir os seus custos, o que acarretará
inevitavelmente uma redução do esforço laboral, com a consequente
perda de qualidade. Contudo, esta postura implica, numa perspectiva
de economia de mercado, que se caia num ciclo vicioso. De facto, ao
baixarem a qualidade dos seus trabalhos, os profissionais vão perder
clientes, o que leva a uma redução ainda maior dos seus resultados e,
portanto, à necessidade de maior investimento publicitário.
A solução adoptada em Espanha passa, no que respeita aos
auditores, pela impossibilidade que este profissional tem de efectuar
publicidade que tenha por objecto, ou possa produzir, a captação de
clientes.

88
A Ética como Factor de Diferenciação...

Evidentemente que é necessário dar a conhecer que um


determinado profissional está no mercado e, as leituras demasiado
restritivas da impossibilidade de publicitar, que chegam ao ponto de
impossibilitar aquela informação de existência, levam a que
ardilosamente as normas sejam contornadas através, designadamente,
(1) dos exageros dos anúncios de admissão de pessoal, ou (2) do
aluguer de escritórios em locais de especial privilégio, p. ex. junto às
instalações da Bolsa uma vez que as discussões com investidores
bolsistas necessariamente envolvem a contabilidade e aspectos
tributários e tais discussões podem levar à "angariação" de trabalhos
contabilísticos. Deste modo a publicidade e as solicitações dos
investidores de Bolsa serviria indirectamente para promover uma
prática contabilística

ix) FORMA DE ORGANIZAÇÃO E NOME

Não existem limitações diversas das existentes para as demais


actividades económicas, quanto ao nome sob o qual os contabilistas
actuam no mercado.
A única excepção refere-se às sociedades de auditores as quais
se revestem sempre da forma de sociedade de pessoas, para assegurar
que os auditores são responsáveis pelos seus trabalhos.
Apesar desta regra geral, temos vindo a assistir que a nível
mundial, as grandes empresas de auditoria se têm vindo a transformar
em sociedades anónimas, como forma de protegerem os seus
patrimónios face à progressiva exigência de indemnizações.

x) SANÇÕES

Evidentemente que o grau de responsabilização atribuído à


profissão passa pela existência de um regime sancionatório, cujas
penas têm, normalmente, as seguintes molduras:

89
Revista Estudos do ISCAA

♦ Advertência
♦ privada
♦ pública
♦ Multa
♦ Suspensão
♦ E xclusão

5. OS CÓDIGOS DE CONDUTA

"Conhecemos muitos códigos éticos de conduta aplicáveis a


indivíduos e todas as religiões e ideologias os têm e podemos verificar
que - no papel - são bastante parecidos. Apesar disso, os códigos de
conduta das organizações são todavia protótipos sem
20
experimentar" .
A grande diferença, no caso dos contabilistas, está na cultura de
auto-condução profissional que os mesmos têm.
Esta cultura que referimos constitui, a nosso ver, um verdadeiro
mecanismo de auto-defesa da profissão, em especial dos auditores. De
facto, quando os utentes das demonstrações financeiras (DF's) se
apoiam no relatório do auditor para tomarem decisões, eles expressam
a sua confiança não só no auditor individual que o subscreveu, mas
também na profissão de auditoria. Isso implica que, pelo seu lado, os
profissionais de auditoria tenham de desenvolver o seu trabalho de
modo que justifiquem essa confiança.
A acção de um auditor individual, seja ou não característica dos
demais auditores, talvez seja a única experiência que tenham alguns
clientes, alguns elementos do público, ou alguns membros de certas
comunidades (tendência à generalização). Isso muitas vezes significa
que eles julgarão TODA a profissão pela actuação daquele auditor,
pelo que se torna absolutamente necessário que este grupo profissional
tenha um conjunto de regras de conduta e que tenha mecanismos que
coajam ao seu cumprimento.

i) Gonzalo, José António

90
A Ética como Factor de Diferenciação...

Esta tendência à generalização obriga à existência, para os


membros da profissão, de um guia de conduta apropriada. Esta é, na
essência a fundamentação, numa óptica de mercado, da existência do
Código de ética profissional dos contabilistas.
O Código exprime tanto aos clientes, como ao público, que os
contabilistas estão dispostos a aceitar a condição de profissionais e a
conduzir as suas actividades como tal.
No que respeita à actividade de auditoria, de entre as normas
pessoais devem destacar-se as seguintes121
O trabalho de auditoria deve ser realizado por pessoa, ou
pessoas que tendo formação técnica adequada, possam demonstrar
experiência e capacidade profissional como auditores, e tenham a
autorização exigida legalmente.
Aqui coloca-se a questão da formação técnica adequada vs. a
capacidade profissional. Trata-se de um tema interessante, já que com
a velocidade da evolução do conhecimento a manutenção da
capacidade profissional requer uma formação permanente. Isso
significa que a existência de uma formação inicial adequada, se não
for permanentemente acompanhada e incrementada, torna-se a cada
vez mais curto prazo impotente para a satisfação das exigências do
mercado.
O auditor, ou auditores, estão obrigados a manter uma posição
de independência no seu trabalho profissional a fim de alcançar
imparcialidade e objectividade dos seus juízos.
Mais uma vez se coloca o problema da independência como
característica transcendente. Podemos dizer que existe independência
quando os juízos que o profissional formula se fundamentam em
elementos objectivos.
Na realização do seu exame e preparação do seu relatório o
auditor deve exercer uma adequada responsabilidade profissional.

21
Canibano, citando o AICPA

91
Revista Estudos do ISCAA

6. E LE ME NTOS NECESSÁRIOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM


CÓDIGO DE ÉTICA

No essencial um código de ética deve agrupar, pelo menos, duas


grandes áreas22:
♦ Relações para proteger o público, e
♦ Relações intra-profissionais.
Dentro das primeiras há ainda a considerar as relações com os
clientes e com o público em geral, as normas técnicas e as práticas de
promoção e publicidade, enquanto que as segundas deverão incluir,
pelo menos, as práticas de operação e as relações para com os sócios.

7. ALGUNS CÓDIGOS DE ÉTICA

Não está nos objectivos do presente trabalho analisar com


pormenor os códigos de ética. Apresentamos, exclusivamente como
elemento informativo a estrutura de alguns deles.

7.1. IFAC

O código de ética para os contabilistas profissionais tem a


seguinte estrutura:
i) Previamente ao código propriamente dito, são incluídos
capítulos que integram:
♦ Definições
♦ Introdução
♦ Interesse público
♦ Objectivos
♦ Princípios fundamentais

ii) O Código divide-se em duas partes A e B, sendo a primeira


aplicável a todos os contabilistas profissionais e a segunda apenas aos
que exercem a actividade em regime livre.

2
Fonte: Código de Ética do AICPA citado por Grinaker (anterior a 1982)

92
A Ética como Factor de Diferenciação...

A parte A, contempla:

• Objectividade
• Resolução de conflitos éticos
• Competência profissional
• Confidencialidade
• Prática fiscal
• Actividades além fronteiras
• Publicidade

E a parte B, inclui o tratamento de questões como

• Independência
• Honorários e comissões
• Actividades incompatíveis com a prática da contabilidade em
regime livre
• Valores dos clientes
• Relações com outros contabilistas profissionais em regime
livre
• Anúncios e solicitações.

7.2. AICPA

Actualmente, o Código de conduta profissional do AICPA tem a


seguinte estrutura:

93
Revista Estudos do 1SCAA

r Princípios
Standards ideais de conduta ética, apresentado
em termos filosóficos
Não são imperativos

Standards minimos de conduta ética apresenta­


dos como regras específicas
São imperativos

Interpretações de regras de conduta, pela divi­


Interpretações são de Ética Profissional da AICPA.
Não são imperativas, mas o não cumprimento
deve ser justificado

Explicações públicas e respostas a questões


Decisões acerca de regras de conduta submetidas
Éticas à divisão de Ética Profissional.
Não são imperativas, mas o não cumprimento
deve ser justificado

\ -

7.3. CROC

O Código de ética e de deontologia profissional da CROC, está


estruturado nos seguintes termos:
♦ Aplicabilidade
♦ Conduta pessoal e exercício da profissão
♦ Independência Competência

94
A Ética como Factor de Diferenciação...

♦ Sigilo Profissional
♦ Publicidade
♦ Deveres dos Revisores Oficiais de Contas para com os
colegas
♦ Deveres dos Revisores Oficiais de Contas para com a CROC
e outras entidades
♦ Honorários
♦ Sanções

7.4. ATOC (PROJE CTO)

O projecto de Código deontológico dos Técnicos Oficiais de


Contas (TOC) encontra-se dividido nos seguintes sete capítulos e 21
artigos:
♦ Âmbito de aplicação, funções e princípios deontológicos
♦ Direitos e deveres de conduta dos TOC (independência e
conflitos de interesses e deveres, responsabilidade, competência
profissional, respeito pelos princípios e normas contabilísticas e
relações com a Associação)
♦ Direitos e deveres para com as entidades a quem prestam
serviços (contrato escrito, confidencialidade, dever de informação,
direitos e conflitos de interesses com as entidades a quem prestam
serviços, honorários e devolução de documentos)
♦ Direitos e deveres interprofissionais (lealdade
interprofissional)
♦ Procedimento disciplinar (infracção deontológica e sanções e
competência disciplinar)
♦ Disposições especiais
♦ Disposições finais

95
Revista Estudos do ISCAA

8. ALGUMAS APLICAÇÕES PRÁTICAS

Seguidamente apresentam-se um conjunto de situações que


frequentemente incluem matéria de grande conflituosidade ética23

8.1. O julgamento em contabilidade


8.2. A imagem fidedigna -> utilidade e ética
8.3. A neutralidade da informação financeira
8.4. A continuidade
8.5. A politização da contabilidade
8.6. A contabilidade das intenções
8.7. Conflitos administrações / accionistas
8.8. Conflitos contabilidade /fiscalidade
8.9. Limites éticos na consultadoria fiscal
8.10. As despesas confidenciais e as facturas falsas /fictícias
8.11. A ética e a propriedade intelectual (o caso do software)

III. CONCLUSÕES

Muitos dos exemplos que acima se apresentaram - e outros que


poderiam ter sido apresentados - constituem um apreciável espelho da
chamada contabilidade criativa. Com efeito, frequentemente, as
soluções de "engenharia contabilística", "engenharia financeira" e
"engenharia fiscal", mais não são que aproveitamentos pouco éticos de
normas contabilísticas que, pela própria natureza da actividade
económica, têm de ser flexíveis.
Entende-se o desejo que os gestores têm de que a sua actividade
mostre resultados elevados. Contudo, tais resultados têm de derivar da
própria actividade desenvolvida e não de claras operações de
maquilhagem. Tentativas de crescimento empresarial assentes em
demonstrações financeiras "compostas" estão condenadas a curto
prazo.

Estas temáticas deveriam ser objecto de debate aberto com os alunos.

96
A Ética como Factor de Diferenciação...

Pode-se pois terminar esta sessão dizendo que "a ética é um bom
negócio" e que como todos os bons negócios têm o seu período
normal de maturação, a que se seguirá um processo de
desenvolvimento natural. Queremos com isto dizer que é nossa
convicção que, mais do que o nível do conhecimento científico-
técnico, o grande factor de diferenciação da actividade profissional do
contabilista está no nível do seu comportamento ético, e asseveramos
que este contribui de forma decisiva para o estabelecimento de carreira
de longo prazo e aqui, como em tudo na vida, muitos preferem esta
forma de estar, a uma carreira ascensional muito rápida, mas
desenvolvida à custa de comportamentos não éticos.
É que, a falta dos alicerces que são dados pelos valores,
designadamente, da honestidade, justiça, lealdade, integridade
implicam que - como acertadamente diz o povo - "quanto mais alto se
sobe maior seja o trambolhão"

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98
A Ética como Factor de Diferenciação...

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99
Revista Estudos do ISCAA, IIa Série, 5 (1999) 101-112

O ENSINO DA CONTABILIDADE NO ENSINO SUPERIOR -


- TENDÊNCIAS. ALGUMAS QUESTÕES / REFLEXÕES 1

DOMINGOS JOSÉ DA SILVA CRAVO


PROFESSOR COORDENADOR DA ÁREA CIENTÍFICA
DE CONTABILIDADE DO ISCAA

1
Versões anteriores deste trabalho foram apresentadas no I o Simpósio Internacional
"A Contabilidade na viragem do século" levado a efeito conjuntamente pela
Associação Portuguesa de Contabilistas e pela Universidade Fernando Pessoa, nos
dias 21 e 22 de Novembro de 1997, no 3a Congresso do Ensino Superior Politécnico
realizado em 18, 19 e 20 de Fevereiro de 1998 em Lisboa e no IX Encontro
Nacional de Professores de Contabilidade do Ensino Superior, que se realizou nos
dias 14 e 15 de Maio de 1999 em Faro
Revista Estudos do ISCAA

A contabilidade é como um cavalo selvagem !


Cheia de força, mas ainda não a sabemos controlar ! ! !

1. INTRODUÇÃO

A questão do ensino da contabilidade no Ensino Superior


constitui, a nosso ver, um tema merecedor de algumas reflexões, seja
pela quantidade de alunos que procura este tipo de estudos, seja pela
pressão do mercado, seja ainda pelo grau de (des)ajustamento
existente entre as expectativas dos alunos e do mercado face aquilo
que é razoável poder esperar do sistema de ensino.
Uma questão prévia a toda a discussão tem, naturalmente, que
ver com os objectivos que são consignados às disciplinas
contabilísticas no quadro dos respectivos planos de estudos de cada
um dos cursos. Aqui, e sem grandes preocupações metodológicas,
poderíamos dividir o universo dos cursos onde a disciplina é
leccionada em dois subconjuntos: um primeiro, onde a Contabilidade
assume um carácter meramente informativo relativamente ao plano
curricular e, um segundo, onde o estudo da disciplina contabilística
corresponde ao núcleo mais importante do plano de curso. No
primeiro dos casos apresentados, é legítimo esperar que os estudantes
de contabilidade quando inseridos na sua vida activa, não venham a
utilizar os conhecimentos da disciplina como elemento fulcral da sua
actividade profissional, enquanto que no segundo caso, estaremos em
presença de estudantes que, de um modo geral, virão a exercer uma
actividade profissional intimamente relacionada com a contabilidade.
Ora, esta dicotomia, recentra o problema nos termos que acima
formulávamos, ou seja que objectivos devem ser consignados às
disciplinas contabilísticas em cada curso, sendo a questão a de saber se
o estudante de direito, de engenharia, de gestão, etc.2, deverá estudar

Isto é, daqueles cursos onde a contabilidade constitui disciplina acessória da


formação geral

102
O Ensino da Contabilidade no Ensino Superior

Contabilidade da mesma forma que esta disciplina deve ser estudada


pelo aluno de um curso de contabilidade?
Inclinamo-nos claramente para a corrente daqueles que
entendem que não.
De facto, não parece fazer sentido que muitas das temáticas que
são (ou devam ser!) objecto de estudo num curso que se destina ao
exercício profissional da actividade contabilística sejam abordadas
quer com a mesma óptica, quer com idêntica profundidade daquela
que é utilizada em cursos onde o estudo da disciplina em causa tem
carácter meramente informativo. Exemplificando com outra área do
Saber se dirá que parece razoável admitir que ninguém espere que um
estudante de Contabilidade, Economia, Direito, ou qualquer outra área
onde a Informática assuma característica meramente instrumental,
tivesse de estudar, pex, as características do hardware,.dado que a sua
expectativa vai no sentido de recorrer a esta disciplina numa óptica de
mero utilizador instrumental.
Isto significa então que, em primeira linha, haverá que
estabelecer programas diferenciados que serão função dos cursos onde
o estudo da Contabilidade está inserido e, consequentemente, dos
objectivos que à disciplina estão consignados e não como penso que
actualmente acontece em muitos dos nossos estabelecimentos de
ensino3 onde os programas estabelecidos não tomam em linha de
contas tais especificidades.
Desembaraçado deste primeiro problema, passo pois a delimitar
a presente comunicação balizando-a com um conjunto de
questões/reflexões que respeitam, tão somente ao estudo da
Contabilidade no Ensino Superior quando tal estudo estiver inserido
num curso cujos formandos venham a exercer uma actividade
profissional onde aquela disciplina tenha grande relevância.
A abordagem que farei, parte de um pequeno levantamento da
situação actual do ensino da contabilidade nos cursos superiores sendo

Não efectuei nenhum estudo sistematizado acerca deste assunto. Contudo, dados os
contactos que tenho mantido com colegas de diversos estabelecimentos de Ensino
Superior (nomeadamente nas reuniões da ADCES) fui formando esta opinião.

103
Revista Estudos do 1SCAA

seguidamente apreciadas as razões que, a meu ver, justificarão a


necessidade de mudança do actual "status quo". Na sequência,
procurarei enunciar as tendências em que previsivelmente assentará tal
mudança, para, em seguida, apresentar aquilo que considero poder vir
a ser a resposta possível do sistema de ensino. Concluirei com a
apresentação de um conjunto de notas que julgo poderem contribuir
para a discussão da problemática de que nos ocupamos.

2. S I T U A Ç Ã O ACTUAL

Comecemos a nossa abordagem com o estabelecimento da


finalidade máxima do ensino da contabilidade através da resposta à
questão - ensinamos para quê?
Evidentemente que a resposta a esta pergunta parece óbvia -
ensinamos para que os formandos possam vir a exercer uma profissão.
Contudo, uma resposta deste tipo induz novas questões, como sejam,
p.ex., as seguintes:
i) sendo, de um modo geral, o exercício de uma profissão uma
aplicação pragmática dos conhecimentos de uma disciplina, será que o
ensino para o exercício daquela deverá ele mesmo ser
fundamentalmente prático, ou, pelo contrário, essencialmente teórico?;
ii) se a opção fôr pela primeira alternativa, como é que se
alicerçará a capacidade crítica dos formandos a qual não só contribuirá
para a mudança, como permitirá uma mais fácil adaptação a novos
contextos?
Em última análise julgo poder afirmar que todo o problema se
centrará na análise do 'gap' que existe entre a formação teórica
"fornecida" pelas Escolas e o nível de conhecimentos práticos que a
profissão espera poder encontrar dos seus "novos" membros, sendo
certo que o sistema de instrução formal (educação) nunca poderá
integrar uma componente de experiência prática (treino) que satisfaça
integralmente o nível exigência para o exercício profissional.
Mas, qual é o estado do ensino da Contabilidade no ensino
superior?.

104
O Ensino da Contabilidade no Ensino Superior

Daquilo que pudemos observar é possível encontrar, com bom


grau de definição, três modelos puros:
i) o equivalente ao sistema francês, cujo estudo das disciplinas
contabilísticas assenta basicamente no estudo do plano (oficial) de
contabilidade;
ii) o estabelecimento de um sistema de ensino baseado no
estudo de um conjunto de normas, v.g. as NIC's, e
iii) um sistema de ensino que dá prevalência ao estudo teórico
da disciplina,
podendo encontrar-se aqui e ali sistemas híbridos.
Pensamos4 que em boa medida o número de Cursos que adopta
o primeiro dos modelos enunciados é largamente superior a qualquer
dos demais. Um excesso de opções pragmáticas na estruturação dos
programas, associado à estrutura do nosso tecido empresarial, que
assenta, como sabemos, num elevado número de pequenas e médias
empresas que, contrariamente às empresas de maior dimensão, não
recorrem ao mercado de valores e, por isso mesmo, não sentem grande
necessidade das NIC's, não procurando que os seus quadros as
apliquem, a que se junta um conjunto de opções eventualmente mais
cómodas de alguns docentes, explica - embora não justifique - a
actual situação.
Ora, referia o Presidente do IFAC no VIU Congresso da IAAER
(International Association for Accounting Education and Reasearch)
que "o ensino da Contabilidade tem de assentar no estudo aprofundado
das NIC's, bem assim como o estudo da auditoria terá de repousar nas
Normas de Auditoria Geralmente Aceites. A isso obrigam as
exigências do mercado global". Ora, se isto parece ser absolutamente
correcto para os designados "global players" cujas operações se
encontram polvilhadas por uma grande área geográfica e cujo capital
se encontra disperso e os respectivos títulos colocados no mercado de
capitais, não estou tão certo que este venha a ser o caminho para a
generalidade das empresas de dimensão média.

4
E nisso estamos acompanhados, designadamente, por Mendes Ferreira, Manuel, [in
]

105
Revista Estudos do ISCAA

De resto, fica ainda a questão de saber se é através do


conhecimento predominante da normalização contabilística (via
NICs, ou via POC) que o interesse informativo das empresas é
maximizado. Por mim, partilho mais a ideia que uma boa formação
teórica cimenta o conhecimento e permite encarar com maior
preparação os desafios da mudança. Um estudante médio possuidor de
uma razoável formação ao nível conceptual reunirá excelentes
condições para se adaptar a qualquer alteração normativa.
Evidentemente que com isto não queremos significar que a formação
deverá ser exclusivamente teórica. Entendemos que uma solução
mitigada arrasta maiores vantagens para o processo de formação.
Do ponto de vista do tipo de ensino, julgamos que a "praxis"
assenta em esmagadora medida no estilo de "ensino magistral -
tutorial", complementado com exercícios retirados de manuais ou
produzidos pelos respectivos professores e, no caso particular do
ISCA de Aveiro, estamos a começar a ensaiar um modelo interactivo
de simulação empresarial, embora ainda seja cedo para retirarmos
conclusões do esquema estabelecido.

3. A EXIGÊNCIA DE MUDANÇA

3.1. RAZÕES

A globalização da economia, o aumento da concorrência, as


alianças estratégicas, económicas e comerciais, as novas estruturas
organizacionais e suas exigências, as mudanças do comportamento
dos utilizadores da informação financeira, a explosão da tecnologia,
em especial da que se encontra ligada informação empresarial, o
aparecimento e desenvolvimento exponencial da Internet e a
regulamentação são factores que caracterizam o contexto de
MUDANÇA em que estamos a desenvolver a nossa actividade.
Este novo contexto obriga - como elementar instrumento de
sobrevivência - que estejamos atentos às alterações que se vão
operando, sejam elas a nível ambiental, sejam induzidas pelos novos

106
O Ensino da Contabilidade no Ensino Superior

padrões trazidos pelos estudantes que com as suas novas motivações,


padrões culturais, referenciais sociais e outros geram necessidade de
adaptação permanente. Este processo adaptativo é, contudo, facilitado
quando existe maior disponibilidade para a elevação dos níveis de
"savoir-faire" e maior propensão para o desenvolvimento das
capacidades técnica e não técnica.
A ideia mestra consiste na saída de um estádio de "aquisição e
acumulação de conhecimentos" para um novo nível do "aprender a
aprender".
Isto obriga a uma interacção importante entre todos os actores do
processo:
♦ E ducadores e estudantes, e
♦ E ducadores e profissionais
Através de uma estrutura VIP, onde se procurará maximizar a
zona de intersecção de interesses dados pela versatilidade dos
professores (V), pela integração de habilidades e conhecimentos dos
estudantes (I), e pela participação no processo dos profissionais(P.)

3.2. TENDÊNCIAS

A apreciação das tendências em que previsivelmente se irá


desenvolver o sistema de ensino de contabilidade, corresponderá
basicamente ao estabelecimento de uma ponte que permitirá passar o
"Gap" entre expectativas dos estudantes e profissionais relativamente
ao sistema de ensino.

A grande temática do futuro assentará na ideia que Aprender é


um processo para toda a vida. É bom que desde os bancos da Escola

107
Revista Estudos do ISCAA

os estudantes interiorizem esta ideia. O processo de desenvolvimento


é, não só, irreversível como imparável e isso obrigará a que todos
tenhamos disponibilidade mental para mantermos um processo de
aprendizagem constante.
A análise das tendências do ensino implica que se apreciem duas
temáticas:
i) o que é actualmente ensinado e como deverá passar a ser, e
ii) como é que deve ser ensinado.

Relativamente à primeira das questões pode dizer-se que:5

De Para
Identificar os problemas e Resolver os problemas
medição
Relato histórico Previsões
Trabalho individual Trabalho em equipa
Realização de tarefas Ajudar a decisão
Competências técnicas Competência relacional
Tratamento de dados Conselho
Mudança progressiva Mudança radical
Gerir a mudança Criar a mudança
Conhecimentos contabilístico Conhecimentos de gestão

Quanto à forma como deve ser ensinado há que distinguir:


♦ A educação inicial
♦ A formação contínua

No processo de formação inicial, cuja característica dominante


será ensinar os estudantes a aprender por si mesmos, haverá que
incluir, designadamente:
♦ Conhecimentos técnicos sólidos, aí se agrupando o estudo da

Kulesza, Bud; The accounting in the 21th century - changes in educational trends;
Comunicação ao XV World Congress of Accountants; Paris; 1997.

108
O Ensino da Contabilidade no Ensino Superior

harmonização internacional
♦ A abordagem pelo método de casos;
♦ Trabalhos de grupo em projectos;
♦ Integração em programas de formação (técnicos, interpessoais
e informáticos),
♦ E stágios, e
♦ Incentivos à investigação.
sendo todavia certo que a definição do plano de estudos privilegiará
como factor determinante, a competência dos estudantes e deverá
desenvolver a aptidão para a interrogação, o espírito lógico e a crítica,
bem assim como a capacidade de escrever, falar e ouvir.
O treino na identificação e resolução de problemas não
estruturados, a aprendizagem pela prática, o trabalho de grupo e a
utilização criativa da tecnologia constituirão elementos que levam a
crer que, pelo menos teoricamente, um modelo como o acima exposto
induzirá os alunos ao exercício de novas funções dotando-os do
competente "savoir-faire".
Pelo seu lado, a formação contínua pode ser desenvolvida nas
Escolas, nas Associações profissionais ou nas entidades empregadoras,
ou no seu conjunto.
Evidentemente que um sistema desta natureza implica
ajustamentos importantes no sistema de ensino que adiante
procuraremos desenvolver com maior pormenor.

4. RE SPOSTA POSSÍVEL DO SISTEMA DE ENSINO

A oferta do sistema de ensino formal será sempre uma oferta


limitada, já que, como se disse anteriormente, em grande medida o
sistema nunca poderá dotar o estudante da "praxis" necessária. Isto
significa que o sistema de ensino poderá, sem dúvida, contribuir com
uma proposta ajustada de formação teórica através de um processo de
modernização curricular. Poderá desenvolver, igualmente, o método
de casos, com a restrição que o estudo daqueles só faz sentido se o
mesmo for efectuado após a formação geral.

109
Revista Estudos do ISCAA

Também caiem nas competências do sistema de ensino o estudo


dos princípios éticos aplicáveis nos vários momentos do exercício da
actividade profissional, bem assim como o desenvolvimento dos
mecanismos tendentes à formação dos critérios orientadores do
julgamento profissional, do processo de auto aprendizagem e de
investigação.
O sistema formal de ensino ainda pode prestar um importante
contributo no desenvolvimento das técnicas de comunicação oral e
escrita.
Pesem essas potencialidades, o sistema de ensino está no entanto
sujeito a um elevado conjunto de restrições oriundas quer do próprio
sistema, quer dos estudantes.
Nas primeiras, anotam-se, designadamente, as seguintes:
♦ A existência de recursos financeiros, materiais e humanos)
reduzidos;
♦ A limitação dos materiais para leccionação;
♦ As limitações pedagógicas;
♦ As limitações do esforço de docência,
♦ E tc.
De entre as limitações dos estudantes, apontam-se, em especial:
♦ treino limitado;
♦ As limitações cognitivas;
♦ As limitações do esforço de aprendizagem,
♦ E tc
Desta correlação de variáveis sairá a formação possível
oferecida pelo sistema de ensino.

5. CONCLUSÃO

Nos dias de hoje, a contabilidade é uma imagem vaga de factos


que ocorreram num passado cada vez mais remoto. Aponta-se como
grave insuficiência a pouca capacidade preditiva da informação
contabilística.

110
O Ensino da Contabilidade no Ensino Superior

Um dos desafios futuros consistirá seguramente na análise de


propostas do tipo
♦ "Poderemos com a Internet aspirar a relato em tempo real
quanto mais não seja para alguns elementos - ou as contas diárias
serão ainda utópicas?"
♦ "Como é que a auditoria se virá a desenvolver? poderá vir a
ser dispensada face ao tempo (e ao timing da) que implica a sua
execução? Se sim como controlar a fiabilidade da informação??"
E aqui, a questão que se coloca é a seguinte: estarão os alunos
das nossas Escolas aptos a aceitar o desafio?
Julgo que ainda não, e por isso, o ensino da contabilidade
tenderá a evoluir no sentido da modificação dos padrões até aqui
reconhecidos como aceitáveis.
Estou em crer que - a menos que inultrapassáveis questões
orçamentais se coloquem - e o ensino magistral - tutorial deixará de
predominar na docência da disciplina para, numa primeira fase, vir a
ser complementado pelo estudo de casos, saltando em estádio mais
evoluído para um sistema de ensino interactivo. A dinâmica da
sociedade a isso obrigará, e é bom que assim seja.
A tendência irá, necessariamente no sentido do reforço da
relação professor/aluno e será cada vez mais enriquecida com a
panóplia de meios técnicos colocados à disposição do sistema. As
novas tecnologias constituirão simultaneamente meio de comunicação
e factor de interactividade e de pesquisa.
O novo sistema não será um sistema de ruptura com o actual,
mas sim de aproveitamento das potencialidades daquilo que existe
actualmente e dos novos meios que são colocados à disposição dos
actores.
Uma complexa questão adicional consiste na motivação dos
alunos. Os padrões dos estudantes são diversos dos padrões dos
formadores. Como conseguir a motivação para aulas que se desejam
interactivas? A leitura prévia à aula para potenciar a discussão dos
temas e dos casos constituirá medida suficiente? Será, nesta
perspectiva, o método de casos útil?

111
Revista Estudos do ISCAA

Também é importante a questão do timing do inicio dos estudos


de especialização e aqui, a questão que se coloca é a seguinte: Dever-
se-ão iniciar os estudos de especialização antes do estudante aceder à
profissão ou, pelo menos, ter alguma formação prática?
Com as alterações que se adivinham no sistema de ensino da
contabilidade, uma nova questão se irá colocar a qual tem a ver com o
o tema da avaliação nesta disciplina e cuja discussão ficará para outro
momento.
Seguramente que o ensino da Contabilidade também
contemplará novas modalidades arrastadas pelas novas tecnologias da
teleconferência, das redes informáticas, da internet, etc. E nessas
novas modalidades estarão por certo as acções conjuntas entre Escolas
que através de uma adequado processo de permuta de experiências se
poderão enriquecer mutuamente.
Para além dos aspectos técnicos da disciplina estão também
abertos campos de investigação em "educação em contabilidade".
Esperemos que surjam bons projectos e que os mesmos tenham
adequados incentivos à investigação, institucionais e financeiros.
Um outro desafio tem a ver com a liberdade de ensinar e o
desejo de "controlo" do ensino por parte das profissões. Como se sairá
deste futuro (?) problema: prevalecerá a liberdade académica, ou esta
será restringida no sentido de acolher os programas específicos
estipulados pelas associações profissionais para acesso à profissão ???
Uma coisa parece ser certa, os desafios colocados à actividade
profissional no dealbar do ano 2.000 caracterizar-se-ão por uma
grande diversidade na profissão, pela necessidade de grande
especialização e pela potenciação de actividades pluridisciplinares. O
grande repto que é colocado ao sistema de ensino é pois o de preparar
jovens no seio da tormenta para que estejam em condições de se
tornarem vencedores num ambiente cuja hostilidade advém da
dinamicidade, da volatilidade e da competitividade.
Esperemos, com uma nova postura no ensino da Contabilidade
vencer as dificuldades do futuro.

112
Revista Estudos do ISCAA, IIa Série, 5 (1999) 113-127

P R O J E C T O E M SIMULAÇÃO EMPRESARIAL
U M A EXPERIÊNCIA E M DESENVOLVIMENTO

ELEUTÉRIO MACHADO, HELENA INÁCIO,


JOÃO FORTES E JOÃO SOUSA
DOCENTES DOI.S.C.AA. E CONSTITUINDO A COMISSÃO DE
COORDENAÇÃO DO PROJECTO PROFISSIONAL
Revista Estudos do ISCAA

RESUMO

Pretende-se com este artigo dar a conhecer a experiência que há


mais de dois anos vai sendo desenvolvida no âmbito de uma
disciplina curricular do 6o semestre da Licenciatura Bi-etápica do
Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Aveiro.
É uma disciplina que, pela sua inovação e capacidade de
despertar o interesse dos alunos, justifica neste momento uma análise
crítica.
O artigo está dividido nos seguintes pontos:
Referência às razões que levaram à introdução da disciplina no
curso, indicando os objectivos pretendidos;
Análise do primeiro ano lectivo de funcionamento, com
descrição das opções tomadas em termos de mercado e de serviços de
apoio; meios envolvidos e forma de funcionamento; e análise crítica
dos resultados obtidos;
Análise do segundo ano lectivo de funcionamento da disciplina,
com descrição das opções tomadas, meios envolvidos e forma de
funcionamento; e análise crítica dos resultados obtidos. Comparação
com a análise do ano lectivo anterior;
Opções de funcionamento para o ano lectivo de 1999/2000.
Inovações previstas relativamente aos anos anteriores e deficiências
que se esperam colmatar;
Perspectivas futuras da disciplina e possibilidade de alargamento
do campo de acção da simulação.

114
Projecto em Simulação E mpresarial: Uma Experiência em Desenvolvimento

ORIGEM DA IDEIA
Podemos dizer que a ideia nasceu da constatação de uma
necessidade que resulta em grande medida:
■ da massificação do ensino superior, daí resultando um
conjunto de problemas, nomeadamente a dificuldade de manter aulas
práticas com um elevado número de alunos, de forma a que não se
tornem obrigatoriamente mais teóricas que práticas;
■ da grande instabilidade dos postos de trabalho, resultado do
aumento drástico do número de diplomados com habilitações para o
exercício das funções de contabilista.
Estes factos, entre outros, contribuíram para que a E scola
equacionasse a problemática da aproximação do ensino à realidade
empresarial. A ideia principal era permitir aos nossos diplomados
integrar o mercado de trabalho com uma preparação não só teórica
mas também prática, que satisfizesse minimamente os empregadores.
Uma das primeiras soluções que normalmente ocorre, neste
contexto, é a realização de um estágio no último semestre do
Bacharelato. No entanto, colocar em estágio anualmente cerca de
cento e sessenta alunos é uma tarefa árdua, principalmente quando se
pretende estágios efectivamente úteis para a consolidação dos
conhecimentos adquiridos.
Assim, quando a Escola avançou com a reestruturação do curso,
e dado ser impossível, com a qualidade mínima exigida integrar o
estágio no plano curricular, germinou a ideia de simular dentro da
Escola a realidade empresarial. Daí resultou a inclusão no curso de
uma disciplina denominada Projecto Profissional, que contempla no
seu Regulamento Geral de funcionamento aprovado pelo Conselho
Científico da Escola, três vertentes de estudo, sendo a unanimemente
escolhida pelos alunos a de Simulação Empresarial.
Esta, sinteticamente, incorpora os objectivos seguintes:
■ Proporcionar, em ambiente interactivo, consolidação e
integração de conhecimentos adquiridos nos primeiros anos
curriculares dos cursos de Bacharelato, nas áreas de Contabilidade,
Fiscalidade, Direito, Gestão e Informática;

115
Revista Estudos do ISCAA

■ Promover uma primeira aproximação com o mundo do


trabalho e a realidade empresarial, aos alunos que normalmente obtém
o grau de Bacharel no final do ano lectivo em que frequentam a
disciplina de Projecto Profissional e que assim, terão um choque
muito menor quando integrados no local de trabalho;
■ Facultar uma vivência ética da profissão de Contabilista e dos
negócios em geral, promovendo a efectiva intuição dos normativos
deontológicos e da necessidade crescente de comportamentos éticos
em todos os domínios profissionais;
■ Promover o trabalho em grupo, num processo em que os
alunos são obrigados a repartir tarefas e a trabalhar em conjunto, sob
pena de não atingirem os objectivos preestabelecidos.
■ Proporcionar experiência de trabalho sob pressão do tempo e
do cumprimento de prazos, tal como acontece na vida de qualquer
contabilista;
A ideia geral de funcionamento do Projecto em Simulação
Empresarial é a de criar um mercado simulado, em que é atribuída a
cada grupo de alunos uma empresa "virtual". Até ao momento os
grupos têm sido constituídos por dois elementos dadas as limitações
físicas das salas disponíveis. As empresas atribuídas podem ser
empresas a constituir ou a transformar, nomeadamente, aumento de
capital, diminuição de capital, alteração do tipo de sociedade, fusão de
sociedades, entre outras que poderiam ser consideradas.
Os diversos grupos, constituídos em empresas "virtuais", devem
previamente apresentar um Pré-Projecto com todos os elementos
necessários ao desenvolvimento do processo de criação/transformação
a que uma sociedade é sujeita. Posteriormente, e inseridas as empresas
"virtuais" num mercado previamente definido, transaccionam durante
um período que pode ir de um semestre a um ano e entregam, durante
esse período, todas as declarações fiscais ou parafiscais a que uma
empresa verdadeira está obrigada (declaração periódica do IVA,
pagamento do 1RS retido, pagamento à Segurança, Social, etc),
apresentando um Relatório Intermédio correspondente à prestação de
contas sociais e fiscais. Seguidamente, laboram mais um trimestre ou
semestre e apresentam contas intercalares num Relatório Final, onde

116
Projecto em Simulação Empresarial: Uma Experiência em Desenvolvimento

anexam um relatório do trabalho desenvolvido desde o início do


Projecto em Simulação Empresarial.
Em resumo, o que se pretende é aproximar o simulado o mais
possível do real, permitindo aos alunos serem os gestores,
contabilistas, directores financeiros ou técnicos comerciais das suas
"empresas".

1. PRIMEIRO ANO LECTIVO: 1997/1998

Neste ano de arranque as ideias eram muitas, no entanto a falta


de experiência neste tipo de disciplina acabou por ocasionar algumas
ineficiências no decorrer do processo. Não obstante, o grande
interesse que, apesar das falhas iniciais, o projecto despertou nos
alunos e professores envolvidos foi fundamental para que se
desenvolvessem fortemente as suas vastas potencialidades.
O ano de arranque obrigou a avultados investimentos em
Hardware, equipando duas salas com vinte e cinco computadores e
duas impressoras para utilização exclusiva dos alunos do Projecto
Profissional. Paralelamente, equipou-se o Gabinete de Logística com
dois computadores e uma impressora. O software de contabilidade
necessário ao desenvolvimento das actividades simuladas foi cedido,
gratuitamente, por software-houses da região. Em termos de
docência, foram envolvidos no processo doze professores da área de
Contabilidade, assumindo três destes a Coordenação de todo o
Projecto Profissional.
Neste primeiro ano de funcionamento :
• O mercado foi criado a partir das empresas escolhidas pelos
diversos grupos, nomeadamente quanto ao tipo de sociedade, tipo de
actividade e valor do capital social, com algumas excepções que a
Comissão de Coordenação não aceitou, por difícil enquadramento no
mercado virtual1;

Vidé o caso de um grupo, que pretendia constituir uma sociedade por quotas, cujo
objecto social consistia na exploração da actividade de Agente Funerário.

117
Revista Estudos do ISCAA

• Os professores afectos ao projecto estavam em sala em


horários pré-defenidos, segundo turmas, mas sem grupos directamente
afectos;
• As salas de computadores estavam abertas vinte e quatro
horas por dia, com utilização completamente livre;
• Todo o processo burocrático necessário à constituição e
gestão das empresas, foi pesquisado pelos alunos, que se deslocaram
às repartições públicas e mesmo a empresas do ramo de actividade
escolhido;
• E xistiam Serviços Centrais de apoio aos alunos, sejam:
Notário, Repartição de Finanças, Banco, Central de Aquisições e
Central de Vendas;
• O período virtual decorreu de Março de 1997 a Junho de
1998;
A implementação de uma disciplina com este tipo de
características, levou à obtenção de resultados extremamente positivos
mas, também teve alguns aspectos menos conseguidos, que nos
facultaram a experiência necessária à efectivação de algumas
correcções no ano seguinte.

PONTOS FORTES

■ O facto de os alunos terem considerado, que no decorrer de


todo o processo tinham "quase" que estado por sua conta, é não um
ponto fraco do processo, mas sim um ponto forte, pois tudo o que
fizeram resultou da sua pesquisa e do seu trabalho, e facultou-lhes a
experiência de que, quando inseridos na vida activa, os obstáculos
podem ser ultrapassados sozinhos sem a ajuda do professor;
■ Não há dúvidas de que o projecto proporcionou consolidação
e integração de conhecimentos adquiridos. Como era o ano piloto, os
alunos não tinham termo de comparação e a tendência foi ir além do
que se esperava;
■ O objectivo de confrontar os alunos com uma realidade muito
próxima da que vão encontrar, no mundo real, no que respeita às

118
Projecto em Simulação Empresarial: Uma Experiência em Desenvolvimento

formalidades legais que têm de cumprir e às entidades a quem têm de


se dirigir, foi plenamente atingido;
■ O objectivo de colocar os alunos sob a pressão de tempo, do
cumprimento de prazos, foi igualmente atingido. Os próprios alunos
sentiram o peso da responsabilidade e o lema a aplicar pela sua vida
fora de que "se querem ir de férias, o trabalho deve ficar adiantado",
eles aplicaram nesta disciplina;

PONTOS FRACOS

• A interactividade, um dos objectivos que se pretendia atingir,


tornou-se de difícil concretização, como resultado da livre escolha das
empresas pelos grupos, da qual resultou um mercado pouco
interactivo. Podemos observar no quadro 1 as empresas que formaram
o mercado nesse primeiro ano e facilmente concluímos que, com
excepção de um caso ou outro, a maioria dificilmente consegue fazer
uma ou duas transacções entre si. No entanto, é curioso verificar que
os alunos, sem serem obrigados, escolheram actividades de difícil
implementação;
• Como resultado do ponto anterior, resultou a necessidade
dessas empresas, por não terem mercado, recorrerem intensivamente
à compra e venda aos serviços de apoio, isto é, à Central de Compras e
à Central de Vendas, o que acarretou para estes serviços um volume
de trabalho além das capacidades previstas, sem o consequente ganho
pedagógico;
• Um dos objectivos que também não se conseguiu alcançar foi
o da vivência ética. Criou-se um enorme espírito de competitividade,
em alguns momentos pouco "saudável".
• Em termos pedagógicos sentiram-se algumas deficiências.
Tornou-se impossível avaliar com exactidão quem efectivamente
trabalhava, para além de, sendo os erros detectados e avaliados à
posteriori, a correcção pedagógica não foi directa e atempadamente
indicada aos alunos;

119
Revista Estudos do 1SCAA

Tipo de Ramo de Actividade Actividade N.°


Actividade
Supermercado 2
Grossistas 2
Alimentar, higiene e Talho 1
limpeza Lacticínios 1
Bebidas alcoólicas 1
Equipamento desportivo 2
Vestuário e calçado Vestuário 5
Calçado 1
Material informático 5
Fotocopiadores 1
Comercial Equipamento, Máquinas e ferramentas 1
Materiais e maquinaria Material eléctrico 1
Material de construção 1
Material de protecção 1
Máq. Industriais e agrícolas 1
Móveis e eq. de escritórios 4
Mobiliário Móveis de cozinha 1
Móveis de W.C. e acessórios 1
Combustíveis Gás 2
Combustíveis e lubrificantes 1
Importação/exportação Mercadorias diversas 3
Automóvel Automóveis 2
Pneus e acessórios 2
Madeiras 2
Transformação Mármores 1
Cortiça 3
Cerâmica Azulejo 2
Indústria Tijolos e telhas 3
Alimentar Padaria, pastelaria 1
Construção Civil 4
Vestuário e calçado Confecção 5
Calçado 3
Transportadores 3
Imobiliárias 2
Serviços Publicidade 4
Limpeza 1
Segurança 1

Quadro 1 - Empresas que formaram o mercado do ano lectivo


de 1997/1998.

120
Projecto em Simulação E mpresarial: Uma Experiência em Desenvolvimento

• Os meios informáticos mostraram-se insuficientes, quer em


número de impressoras, quer na capacidade do hardware.
Neste primeiro ano, registaram-se várias situações de insucesso,
sejam reprovação ou desistência. Dos oitenta grupos inscritos
inicialmente, apenas setenta grupos terminaram sem quaisquer
incidentes, tendo aos restantes dez acontecido as seguintes situações:
■ Separação de um grupo em dois por conflito entre os
membros;
■ Desistência de dois grupos antes de entregar qualquer
relatório e de dois grupos após a entrega do Pré-Projecto; reprovação
de um elemento de um dos grupos por falta à apresentação oral; de
três grupos que entregaram fora de prazo um só relatório em vez dos
dois pedidos, e de um grupo que concluiu todo o processo de
avaliação mas, com qualidade muito fraca. E stas situações são
reveladoras de que alguns alunos subestimaram as regras da
disciplina, tendo por isso sido penalizados.
O objectivo foi sempre de implementar uma disciplina com um
elevado nível de qualidade e exigência, que só seria atingida se os
alunos colaborassem nesse propósito. A decisão inicial da Comissão
de Coordenação de não deixar de penalizar quem não trabalhou,
contribuiu fortemente para a afirmação da disciplina no meio
estudantil.

2. SEGUNDO ANO LECTIVO: 1998/1999

Uma das preocupações básicas para este ano lectivo foi a


elaboração de um Regulamento E specífico que regulamentasse o
funcionamento da disciplina, pretendendo-se com ele:
■ a implementação de regras suficientemente rígidas que
permitissem em termos gerais:
■uma orientação aos alunos;
■ a não instalação da anarquia;
■a implementação de regras que permitissem, em termos
mais específicos, a definição de:
■ regras de comportamento entre grupos;

121
Revista Estudos do ISCAA

■ regras de comportamento no mercado;


■ regras de avaliação;
■ elementos a entregar em cada momento da avaliação;
■ prazos a cumprir pelos alunos;
■ bonificações e penalizações.
Deste conjunto de regras salientamos, pela sua importância e
pela sua novidade relativamente ao ano anterior, as seguintes:
■ a cada grupo foi atribuído um docente orientador, isto é, os
alunos passaram a ter especificamente um docente a quem recorrer no
caso de dúvidas;
■ existiam docentes consultores, nas áreas de Direito,
Informática, Fiscalidade e Gestão, e que se destinavam a esclarecer
dúvidas específicas a qualquer grupo;
■ todas as empresas simuladas foram sujeitas a uma auditoria;
■ passaram a existir regras de ocupação das salas;
■ a avaliação passou a ter um componente importante de
avaliação continua.
Em simultâneo com a elaboração do Regulamento E specífico,
fizeram-se esforços no sentido de adquirir equipamento e software
que melhorasse a capacidade e qualidade dos meios informáticos à
disposição dos alunos, por forma a incrementar o desenvolvimento
qualitativo do Projecto Profissional.
Asseguradas as regras e o software e hardware que satisfizesse
as necessidades, a preocupação centrou-se na obtenção de autorização
para serem afectos à estrutura de Coordenação do Projecto
Profissional monitores (habilitados com o I o ciclo de estudos do
ISCAA - Bacharelato) e que permitiriam ter sempre um responsável
pelas salas de informática e pela logística evitando assim grande parte
dos problemas que ocorreram no ano anterior, o que acabou por
acontecer.
A preocupação seguinte foi a criação do mercado, que face à má
experiência do ano anterior, não foi deixado ao critério dos alunos.
Dada a dificuldade de, face ao número de empresas envolvidas, criar
um mercado muito diversificado mantendo-se a interactividade, a
opção foi criar um mercado sectorial.

122
Projecto em Simulação Empresarial: Uma Experiência em Desenvolvimento

Dos sectores possíveis, considerou-se o sector da construção


civil e obras públicas, uma opção aliciante por ser um sector
impulsionador de todos os outros e também por ter características que
enriqueceriam as matérias que se pretendiam focalizar nesta
disciplina, como sejam, a contabilidade e a fiscalidade. Assim, o
mercado à disposição dos grupos envolvidos no projecto de
1998/1999, foi o que podemos observar no quadro n.° 2.

Tipo de Actividade N°de


actividade empresas
Industria Construção civil e obras públicas 47
Venda por grosso de materiais de construção 8
Comércio Betões, massas e inertes 3
Material de escritório 2
Aluguer de equipamento de construção e de demolição 5
Serviços Transportadoras 2
Acabamento de obras 5
Electricidade e canalização 5

Quadro 2 - Mercado "virtual" no ano lectivo de 1998/1999.

De um modo geral o semestre decorreu sem sobressaltos, tendo


havido grande entusiasmo e receptividade por parte dos alunos. Em
termos de resultados finais temos a registar uma reprovação e uma
desistência, podendo dizer que a origem destes bons resultados
passaram pela consciencialização dos alunos de que só com esforço,
trabalho e dedicação, era possível concluir a disciplina com êxito.
Foi realizado um inquérito, individual e anónimo, aos alunos do
Projecto Profissional, no final do semestre, em que era pedida a
atribuição de uma nota ao desenvolvimento de todo o Projecto, de 0 a
20 valores, e foi com satisfação que a média obtida em cento e
cinquenta respostas, fosse de 15,85 valores.

123
Revista Estudos do ISCAA

PONTOS FORTES

Podemos apontar os seguintes aspectos como os mais positivos:


■ a interactividade entre os participantes foi bastante elevada, o
que aproximou muito mais o simulado do real;
■ a realização de uma auditoria permitiu verificar com exactidão
o que cada grupo estava a fazer e corrigir de imediato o que não estava
correcto;
■ as regras rígidas de penalizações e bonificações para
comportamentos pouco éticos no mercado melhorou e fomentou a
camaradagem entre os alunos, levando à não existência de ocorrências
desagradáveis;
■ o apoio do docente orientador diminuiu a instabilidade dos
alunos;

PONTOS FRACOS

Notou-se que alguns aspectos ficaram muito aquém do


pretendido e que algumas iniciativas tomadas não tivessem dado os
frutos esperados. Assim, podemos apontar os seguintes pontos
negativos:
■ a existência de um docente orientador não permitiu a
eliminação de um leque bastante vasto de dúvidas pontuais, que
surgiam à medida que os alunos iam trabalhando, obrigando-os a
recorrerem aos docentes que se encontravam no Gabinete de Logística
para dissipar as dúvidas pontuais;
■ a existência de um orientador e a realização de uma auditoria
não foram ainda suficientes, para corrigir pedagógica e
atempadamente todos os erros detectados, ressentindo-se os objectivos
prosseguidos de apoio pedagógico e avaliação contínua.

3. TERCEIRO ANO LECTIVO: 1999/2000

O mercado a funcionar neste ano lectivo continua a centrar-se


no sector da construção civil e obras públicas, tendo-se procurado

124
Projecto em Simulação Empresarial: Uma Experiência em Desenvolvimento

diversificar mais os serviços e os comércios a jusante e a montante, tal


como podemos observar pelo quadro n° 3. As novidades para este ano
lectivo, serão as seguintes:
■ Aos docentes serão atribuídos grupos a que especificamente
dão apoio e horários de atendimento na sala de logística, por forma a
elucidarem as dúvidas pontuais dos alunos;
■ Vão ser envolvidos um número menor de docentes para que se
possa mais facilmente criar uma uniformidade de critérios;
■ A avaliação contínua vai ser intensificada, seja através da
realização de mais auditorias, seja através de fiscalizações
programadas ou de surpresa em sala. Cada uma destas situações é
sujeita a relatório do docente responsável, considerado posteriormente
na avaliação;
■ As seis melhores empresas do ano lectivo anterior vão
continuar a operar, permitindo a seis grupos realizar no primeiro
relatório, operações distintas dos seus colegas, nomeadamente
alteração de denominação social, aumento de capital e operações de
transformação;
■ E stão em desenvolvimento dois programas informáticos
específicos (Telebanking e Televendas); que vão facilitar as operações
entre os grupos e principalmente entre estes e as centrais.
Podemos afirmar que a grande aposta, este ano lectivo, será de
conseguir atingir o pleno dos objectivos pedagógicos definidos, por
forma a encontrar um modelo de ensino profissionalizante que seja
efectivamente útil aos alunos, à escola e à profissão.

125
Revista Estudos do ISCAA

Tipo de Ramo de Actividade Actividade específica N.°de


actividade Actividade Empresa
s
Industria Construção Civil e obras públicas 38
Betões 2
Betuminosos 2
Inertes 2
Armazenistas Eléctricos e iluminação 2
Comércio Materiais De construção e W.C. 3
Ferragens e ferramentas 2
Material de escritório 2
Electricista 3
Acabamento Estucagem 4
Serviços de obras Pintura 3
Canalizações 3
Transportadores 2
Transportes Aluguer de Equip. 3
Carpintarias 2
Oficinas Aluminios 2
Serralharia civil 2

Quadro 3 - Mercado a funcionar no ano lectivo de 1999/2000.

4. PERSPECTIVAS FUTURAS

Como podemos observar de forma resumida no quadro 4,


durante os anos lectivos que a implantação do Projecto Profissional já
leva, fizeram-se avanços consideráveis o que demonstra que esta
disciplina tem efectivamente um conjunto muito amplo de
potencialidades, que cabe à Escola e aos Docentes responsáveis saber
aproveitar.
Um dos aspectos que a mais breve prazo pode enriquecer o
Projecto Profissional, é o da diversificação do mercado. Mantendo-se
um núcleo de empresas afectas ao sector da construção civil e obras
públicas já existentes, e integrando em paralelo empresas de outro
sector de actividade.

126
Projecto em Simulação Empresarial: Uma Experiência em Desenvolvimento

1997/1998 1998/1999 1999/2000

Mercado Diversificado Sectorial Sectorial, com mais empresas


a montante

Apoio/ Por turmas Por grupo Por grupo e atendimento geral


Docentes

Base em relatórios Base em relatórios, Base em relatórios,


Avaliação informação do informação do docente
docente orientador e orientador, auditorias e
de uma auditoria fiscalizações programadas e
de surpresa em sala

Quadro 4 - Evolução do Projecto Profissional

Outro aspecto a contemplar é o da integração no mercado


simulado, de empresas de auditoria constituídas por grupos de alunos,
a quem competirão as tarefas de auditar as restantes empresas
simuladas, com a supervisão plena dos docentes orientadores.
Estas são algumas ideias, entre muitas que existem, que
pensamos sejam exequíveis num futuro próximo.
Ao concluirmos este "relatório" das actividades desenvolvidas
ao longo destes últimos dois anos, uma constatação se nos afigura
inquestionável. O Projecto em Simulação Empresarial é uma "pedrada
no charco" no processo de formação profissionalizante dos futuros
Contabilistas.

127
Revista Estudos do ISCAA, IIa Série, 5 (1999) 129-138

RELATING ORGANIZATIONAL LEARNING AND


INFORMATION SYSTEMS: A PRELIMINARY STUDY

JOÃO BATISTA
PROFESSOR ADJUNTO DO I.S. C.A.A.

jbatista @ isca-aveiro.pt

A. DIAS DE FIGUEIREDO
PROFESSOR CATEDRÁTICO DA F. C. T. U. C.

adf@dei.uc.pt
Revista Estudos do ISCAA

ABSTRACT

This paper is a contribution for closing the much undesirable


gap between organizational learning and information systems. To do
this, it takes a number of key concepts from a well established
information systems framework and shows that, if the ambiguity of
those concepts is restricted, they can be used to describe
organizational learning in terms that, though originating from
information systems, fit perfectly an existing reference framework for
organizational learning. We suggest that further research, emphasizing
shared terminology and concepts, may strongly contribute to
strengthen the relevance of information systems for organizational
learning and of organizational learning for information systems.

130
Relating Organizational Learning and Information Systems: a Preliminary Study

INTRODUCTION

Organizational learning is, today, a crucial element for any


organization wishing to adapt to change continuously and quickly
(Prokesch, 1997). Many studies on organizational learning, originating
from a variety of areas, have been produced over the years. However,
and in spite of this variety, the relationship between organizational
learning and information systems still remains unclear. With this in
mind, Argyris recommended, twenty years ago, "an alliance among
line executives, MIS (Management Information Systems)
professionals, and behavior scientists to conduct research on how to
develop MIS that are more effectively implementable" (Argyris,
1977b, p. 128). We notice, however, that more recent literature
recognizes that this alliance has not been achieved. For instance,
Balasubramanian (1996) states that "there has been very little research
on the influence of technology, especially information systems, on
organizational learning" and that "there is a general agreement among
researchers that organization theorists and information systems
researchers need to come together to explore this topic further". Along
the same lines, Dejnaronk (1998) observes that "Although business IT
[Information Technology] value and its impact on firm's knowledge
are recognized, little effort has been made to study the relationship
between the two".
In a broader sense, and as far as information systems are
concerned, this is an old problem. It has always been difficult to
establish links between organizations and their needs, on one end, and
information systems and information technologies, on the other. We
believe that a basic reason for this difficulty has been the lack of
communication and of an appropriate common language. Just to give
an example, we see the term "knowledge" being used with completely
different meanings to satisfy quite varied conveniences. How could a
term suffering from such semantic vagueness be fully understood and
shared?
The main objective of this paper is to contribute to an
approximation between organizational learning and information

131
Revista Estudos do 1SCAA

systems based on shared terminology and concepts that serve the


needs and aims of both parts. Our main concern could, thus, be
phrased in a single question: how can we relate organizational
learning and information systems? The studies that get closer to this
concern have tried, essentially, to identify the ways in which
information systems can support or stimulate organizational learning.
For instance, Balasubramanian (1996) makes "an attempt to identify
aspects of organizational learning that can benefit from the use of
information systems", by concentrating on the direct influences of
information systems upon organizational learning; Croasdell (1997)
analyses "the role of information technology in supporting these
[memory, learning] cognitive structures in organizations"; Sohn
(1998) "explains how information systems provide competitive
advantage in terms of organizational learning"; and Vance (1998)
studies the relationship between knowledge transfer and information
systems.
We notice that those studies do not address the information
systems perspective of the problem. In practice, they concentrate on
information technologies rather than on information systems. We
think that we need to work on the key concepts of organizational
learning in such terms that they can be brought together with those
from the field of information systems. Conversely, we think that the
information systems concepts must be brought together with those
relating to organizational learning. This paper attempts to close the
gap while serving both sides. To do this, it starts by addressing the
question of "organizational learning" versus "learning organizations",
and then attempts to relate organizational learning and information
systems using a definition of organizational learning that is expressed
in terms of information systems.

ORGANIZATIONAL LEARNING VERSUS LEARNING


ORGANIZATION

A multitude of visions and concepts regarding organizational


learning can be found in the literature, led by the influential work of

132
Relating Organizational Learning and Information Systems: a Preliminary Study

Argyris & Schõn (Argyris, 1977a; Argyris, 1978; Argyris, 1996) and
Senge (Senge, 1990; Senge, 1994). Excellent reviews of the literature
can also be found (Fiol, 1985; Huber, 1991; Dodgson, 1993; Garvin,
1993; Cohen, 1996). One of the most recent ones has been produced
by Argyris and Schõn (1996, pp. 180-199) in a context that places
their theory of productive learning within this multitude of visions.
They claim that two branches exist in organizational learning. The
more scholar branch is usually referred to as Organizational Learning.
It is usually cultivated by academics, it is generally skeptical,
"intentionally distant from practice, nonprescriptive, and value-
neutral" (Argyris, 1996, p. 188). The other branch, that of Learning
Organizations, where Senge became widely known, is practice-
oriented, value-committed and prescriptive. We support Argyris &
Schõn in their opinion that the two branches are complementary and
non contending.
In this paper, we adopt the expression "organizational learning"
with the meaning that has been proposed by Huber (1991). Huber
established a four process framework for organizational learning:
knowledge acquisition; information distribution; information
interpretation; and organizational memory. This framework seems to
be particularly appropriate as a basis for relating organizational
learning with information systems, as some authors have already
suggested (Balasubramanian, 1996; Sohn, 1998).

ORGANIZATIONAL LEARNING AND INFORMATION


SYSTEMS

To serve the aims of this paper - and in agreement with the


FRISCO conceptual framework that we will be referring to below -
we say that an organization learns when, through its members,
distributed data are interpreted and become information. Information
is the knowledge increment afforded by data interpretation. Thus,
when an agent sends a set of data, in a message, to some receiver(s), it
is providing the acquisition of knowledge, that is, it is making learning
possible. Thus, we cannot say that an agent sends information, but

133
Revista Estudos do ISCAA

rather that it sends data containing an information potential that may


become real through interpretation.
This approach lets us establish the concept of organizational
learning from the concept of information and some related concepts
that lay at the very heart of the concept of information system. The
definition of the concepts that we have just used has been borrowed
from the information system community, namely from The FRISCO
Report - A Framework of Information System Concepts (Falkenberg,
1998), and it is particularly relevant in our context because
information is a key concept in relating organizational learning with
information systems.
Information is formally defined in that report as "the knowledge
increment brought about by a receiving action in a message transfer,
i.e. it is the difference between the conceptions interpreted from a
received message and the knowledge before the receiving action".
Thus, data can only become information: a) when a message
containing the data is actually received by the intended receiver or
receivers; b) when the receiver or receivers interpret the data; and c)
when, for each receiver, the interpretation results in a knowledge
increment. Thus:
• sending a message with data does not necessarily mean that it
will be received;
• the fact that the message is received does not necessarily mean
that it will be interpreted;
• the fact that the message is interpreted does not necessarily
mean that, for each receiver, there is a knowledge increment;
• in case the interpretation leads to new knowledge for more
than one receiver, this does not mean that the resulting knowledge will
be the same for the different receivers.
When the knowledge acquired is "identical (or at least similar)
to that of the others, as resulting from the negotiation process implicit
in some communication" (Falkenberg, 1998), then we are in the
presence of shared knowledge, which is thus a subset of the individual
knowledge for each one of the receivers.

134
Relating Organizational Learning and Information Systems: a Preliminary Study

So far, we saw that it is possible to establish a connection


between organizational learning and information systems using
concepts from the domain of information systems. In particular, we
have used the concept of information and other related concepts, such
as data, message, communication, knowledge, and shared knowledge,
borrowed from The FRISCO Report.
The definition of organizational learning that we have presented
above, though supported by information systems concepts, agrees with
the organizational learning framework proposed by Huber (1991) in
the sense that it takes into account three of the four key processes of
organizational knowledge: knowledge acquisition, information
distribution and information interpretation.
These three key processes cover, essentially, the components of
processing (knowledge acquisition and information interpretation) and
communication (information distribution) of an information system.
Interestingly enough, the key process of Huber's framework that
remains to be considered - organizational memory - coincides with
the component of an information system that we still need to take into
account: the memory. Indeed, for an organization to be able to learn,
in the sense that we have been considering, a memory systems is
needed, to let us store and retrieve:
• the data associated to individual knowledge. If the knowledge
embedded in those data is to become knowledge for some other
individual, it must be sent as data in a message, using a
communications mechanism, and it must be interpreted by the
receiver, that will thus acquire knowledge (though there is no
guarantee that the acquired knowledge is the same that was embedded
in the data);
• the data associated to shared knowledge. For this knowledge to
be shared, its encoding must have a low level of equivocal potential,
i.e., there must be a high probability that the acquired knowledge be
identical, at least as far as the interest of the organization is concerned;
• the data associated to organizational knowledge. These data
are linked to the whole organization, and consist of meanings and
shared values, policies, beliefs, norms, etc.

135
Revista Estudos do ISCAA

For organizational learning, the use and value of the data stored
in the memory system is richer: the higher the meaning is; the bigger
the identification of the associated context is; and the deeper the social
aspects embedded in the data are.
For example, let us consider an individual charged to write and
store in organizational memory the report of a team meeting. He can
do it in several different ways. He can make a written report of just the
key points of the discussion and of the decisions taken. If he adds
some notes and comments on the most important points of the
meeting, namely notes and comments that allow a deeper
understanding of the meaning of the discussion and of the decisions
taken, the report is potentially more useful. If he adds even more data
on the context in which the discussion takes place and the decisions
are made, then the value of that report increases even more. Its value
may reach the top if it includes a sociological view of the context, that
is, if the whole report contains values, norms and other social aspects
of the organization.

CONCLUSION

On this preliminary study we have shown that it is possible to


describe in information systems terms how an organization learns. We
have based our description on a leading concept, the concept of
information, and on other related concepts, such as data, message,
communication, knowledge, and shared knowledge. We have
borrowed the definitions of those concepts from an information
systems framework - The FRISCO Report (Falkenberg, 1998) - and
we have shown that this description, though made in terms of
information systems concepts, was easily related to Huber's four-
process framework for organizational learning (Huber, 1991). We
strongly believe that further research promoting a deeper sharing of
terminology and concepts between the two areas will significantly
influence the relevance of information systems for organizational
learning and strengthen the implications of organizational learning for
information systems.

136
Relating Organizational Learning and Information Systems: a Preliminary Study

ACKNOWLEDGEMENTS

This work has been partially supported by the Portuguese


Foundation for Science and Technology (FCT) under research
contract 326/94. The authors are grateful to ISCAA and CISUC for
the facilities granted.

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138
Revista Estudos do ISCAA, IIa Série, 5 (1999) 139-174

VISITA GUIADA*:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O LIBERALISMO E
A ESCOLA CLÁSSICA INGLESA

JOSÉ FERNANDES DE SOUSA


PROFESSOR ADJUNTO DO ISCAA.

* VISITA GUIADA assinala um trabalho que, não recorrendo às fontes, se apoia


essencialmente em publicações científicas sobre o tema abordado.
Revista Estudos do ISCAA

INTRODUÇÃO
1. INDIVIDUALISMO
2 . A UTILIDADE, FILOSOFIA DA ACÇÃO HUMANA
3. NATURALISMO
4. RACIONALISMO
4.1. O SUBJECTIVISMO EPISTEMOLÓGICO
4.2. A DOUTRINA DA CLASSE MÉDIA
4.3. O RACIONALISMO UTILITÁRIO OCIDENTAL
5. A CONSTRUÇÃO TEORICO-DOUTRINAL DA ESCOLA CLÁSSICA
INGLESA
5.1. A "MÃO INVISÍVEL"
5.2. A CONSCIÊNCIA DOS LIMITES: A DOUTRINA DA POPULAÇÃO
5.3. A RENDA E O SALÁRIO
5.4. O LIVRE CÂMBIO
5.5. O ESTADO ESTACIONÁRIO
CONCLUSÃO

140
Algumas Considerações Sobre o Liberalismo e a Escola Clássica Inglesa

INTRODUÇÃO

O liberalismo, saído de um longo tactear do processo histórico,


triunfa na Europa e, durante mais de um século, impõe-se como um
sistema de pensamento dominante, que acolhe toda a problemática do
homem e da sociedade e responde às questões fulcrais da existência
colectiva.
O paradigma2 liberal ergue-se na confluência de quatro
tendências culturais distintas, mas convergentes - o individualismo, o
utilitarismo, o naturalismo e o racionalismo - , cuja articulação
modela um autêntico sistema de civilização, configurado no esforço
de realizar, com base no equilíbrio económico e na harmonia social,
sob os auspícios da liberdade e da da justiça, a transformação global
da sociedade.
Esta tarefa generosa esbarra com problemas estruturais que
derivam dos fundamentos teóricos do liberalismo, das distorsões que
acompanham a sua implantação social e da inadequação das suas
formulações teórico doutrinais às aspirações colectivas.

1
René Rémond, Introduction à l'histoire de nôtre temps, Vol. II, Le XIXe siècle,
1815-1914, Paris, Éd. Seuil, 1974, pp. 23 e ss. Esta mesma editora publica: Vol. I,
L'Ancien Régime et la Révolution, 1750-1815; Vol. III, Le XXe de 1914 à nos jours.
O interesse deste manual permanece intocável, como, aliás, demonstra a sua recente
tradução para português num único volume.
2
Este conceito, após o esforço metodológico de Thomas Khun, estabilizou o seu
significado, passando a referir-se a "um conjunto de hipóteses fundamentais", à
"matriz teórica" dominante em cada época e ciência , a "um programa de
investigação" ou, como prefere Edgar Morin, a um "princípio de
distinções/ligações/oposições fundamentais entre algumas noções mestras que
comandam e controlam o pensamento, isto é, a constituição das teorias e a produção
de discursos". ( Edgar Morin, As Grandes Questões do Nosso Tempo, Lisboa, Ed.
Notícias, 3a Ed., 1992, p. 55).

141
Revista Estudos do ISCAA

1. O INDIVIDUALISMO

O individualismo de todos os tempos desloca a verdade para o


escaninho da subjectividade individual: "a cada um sua verdade",
afirmava Pirandelo (1867-1936), na viragem do Século.
De facto, a asserção do sofista Protágoras de que "o Homem é a
medida de todas as coisas" cristaliza, desde a antiguidade, a tendência
individualista do pensamento ocidental.
O antropocentrismo do Renascimento, que sucede ao
teocentrismo medieval, voltado para a valorização do Homem e de
tudo o que é humano, transforma o individualismo numa das
tendências culturais do mundo moderno.
O Séc. das Luzes, gerado na confluência da vaga do
Renascimento, da revolução científica do Sec. XVII e das mutações
estruturais de setecentos, acolhe o fino racionalismo de Voltaire, o
optimismo naturalista de Rousseau, patente na concepção romântica
da bondade da natureza, o "repto" kantiano de uma "essential
antropologia" desvinculada de referências transcendentes, e o
individualismo, uma espécie de "anarquia ordenada para o dinheiro"4,
que Diderot exalça e defende.
A glorificação do indivíduo e da sua autosuficiência prolonga-
t e nas continuadas reflexões do liberalismo: o indivíduo é um ser
bom, dotado de uma lúcida sentinela dos seus interesses, a razão; o
indivíduo é considerado acima dos interesses de grupo e da Razão de
Estado; e, no seio da natureza, ocupa lugar privilegiado, passando a
disputar ao arquitecto do Universo a capacidade de construir um
modelo de ordem social em consonância com a "mecânica celeste"
ordenadora do cosmos Newtoniano.
O liberalismo assenta numa antropologia centrada na bondade
do indivíduo, cujas acções, inspiradas no racionalismo utilitarista e

3
José Esteves Pereira, As Ideias do Século, apud António Reis (Dir.de), Portugal
Contemporâneo, Vol. I, Lisboa, Publ. Alfa/Selecções do Readers Digest, 1996,
p.275.
4
A.Piettre, Les Trois Âges d' Économie, Fayard, 1968, p. 243.

142
Algumas Considerações Sobre o Liberalismo e a Escola Clássica Inglesa

conduzidas em liberdade, sem constrições da sociedade ou do Estado,


só poderão conduzir ao melhor dos mundos, o reino do equilíbrio
económico e da harmonia social.

2. A UTILIDADE, FILOSOFIA DA ACÇÃO HUMANA

Jeremy Bentham (1748-1832), um dos promotores do


utilitarismo, define utilidade como "a propriedade de qualquer objecto
pela qual ele tende a produzir o prazer, o bem ou a felicidade, ou a
impedir o sofrimento, a dor ou a infelicidade daquele cujo interesse
temos em consideração".5
A compreensão da acção humana e da convivialidade entre os
indivíduos, cuja eficiente racionalidade os orienta, sem ilusões, para
os seus interesses, assenta no pressuposto de que o homem se move
por dois sentimentos: o prazer e a dor.
A escala de valores que se perfila para avaliar as acções
humanas deriva da ideia que Bentham deixou expressa neste princípio
hedonístico: "a maior felicidade do maior número é sempre preferível
à menor felicidade do menor número".
A finalidade ética de todos os actos humanos e de todo o
ordenamento social é realizar "a maior felicidade possível para o
maior número"6, felicidade que se pretende medida em unidades de
prazer e dor, cuja estalão é o dinheiro.7
A filosofia social utilitarista define-se de acordo com os ideais
do individualismo burguês da classe média: a sociedade não passa de
um "corpo fictício" ; apenas o indivíduo tem existência legal; a
propriedade é a base da riqueza e da felicidade; e o Estado deve

5
Grande Eciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. IV, Lisboa/Rio de Janeiro, Ed.
Enciclopédia, pp. 538, col. 2 e 539, col. 1
6
Walter Theimer, História das Ideias Políticas, Lisboa, Círculo de Leitores, 1977,
p.166. Será interessante a leitura de todo o capítulo XII - Os Liberais, pags. 161-
179.
7
Henri Denis, História do Pensamento Económico, Lisboa, Livros Horizonte, 1973,
p.230.
8
Walter Theimer, História das Ideias Políticas, Lisboa, Círculo de Leitores, 1977,
p.168.

143
Revista Estudos do ISCAA

abster-se de intervir nos mecanismos da utilidade, pois a sociedade


com capacidades autoreguladoras, embora não seja perfeita, é a que
produz menos males.
A filosofia utilitarista, através do "Tratado de Comércio e do
Governo", 1776, de L'Abbée de Condillac, conduz a reflexão
económica para o interior do homem, que considera "um complexo de
desejos", de cuja condição deriva a doutrina do valor: "o valor das
coisas, é / .../ fundado na utilidade/.../, na necessidade que delas temos
/.../, no uso que delas podemos fazer".9
A doutrina subjectiva do valor, que entroniza o valor desejo ou o
valor utilidade, ergue-se como a formulação teórica nuclear do
individualismo económico, aparece como a mais lídima expressão do
subjectivismo liberal e impõe-se como o eixo doutrinal de uma nova
mentalidade económica. A ciência económica, que se pretende
independente da moral e da política, conquista a sua autonomia a
partir do momento em que possui um critério de apreciação dos bens e
serviços independente da moral.
A autonomia da ciência económica manifesta-se na nova
conceituação escolhida: o valor de um bem mede-se - não só, mas
essencialmente - pela sua utilidade para o indivíduo e o vocábulo útil
- desejado - , desprende-se de conexões éticas e morais para se
transformar num conceito da ciência económica.
A nova ética da utilidade, que passa a orientar a acção dos
agentes económicos, reveste-se de mero pragmatismo e tende a
eximir-se a quaisquer considerações alheias ao económico. A droga
tem valor económico porque é útil, desejada; o empresário sem
escrúpulos inunda o mercado de pão ou droga, ajuizando apenas das
condições de mercado favoráveis ao lucro; se o trabalho infantil é
mais barato que o adulto ou o desemprego tecnológico favorece a
rendibilidade da empresa, as repercussões sociais não têm de ser
consideradas, pois a "utilidade" se confunde com o desejo de lucro.
Nesta perspectiva tudo é útil e, mesmo os outros Homens, são
apenas "coisas úteis", nomeadamente para aqueles que confundem,

9
A. Piettre, Histoire de la Pensée Économique et Analyse des Théories Contempo-
aines, 8a édition, Paris, Dalloz, 1986, p.86

144
Algumas Considerações Sobre o Liberalismo e a Escola Clássica Inglesa

alerta Montesquieu, liberdade - "poder fazer o que se deve querer" -


com independência - "fazer o que se quer".

3. NATURALISMO

O naturalismo setecentista, que exalça as forças da natureza e do


instinto, deslumbra-se perante a ordem do universo e aprofunda a
ideia renascentista da excelência do homem para desembocar no
reconhecimento da bondade do homem e da natureza.
Esta concepção de natureza - o homem faz parte da natureza - é
o resultado de um complexo processo historico-cultural que germina
na Idade Média, amparado nas tímidas ideias de progresso e de
valorização da natureza acolhidas pela sensibilidade Franciscana,
explode com as tendências antropocêntricas e imanentistas do
Renascimento, "movimento da história"11, que "restabelece uma
sociologia e uma psicologia da alegria" , acompanha a génese dos
conceitos de ordem lógica, racional e natural, apanágio do pensamento
das Luzes, que, desde os Fisiocratas, se assume como a ideia fulcral
da visão liberal da economia - uma física económica regulada por leis
naturais e racionais, que apenas pode tender para o perfeito equilíbrio.
O conceito de natureza, que se insinua através das lucubrações
mentais, é cada vez menos a "definição da essência das coisas" para se
transformar na "caracterização das manifestações de um real
observável, experimental, quantificável, desde o domínio da física às
necessidades sociais da natureza humana."
Rousseau cristalizou, em fórmula famosa o seu naturalismo
imbuído de um optimismo sem precedentes : "o Homem é bom, é a

10
A. Piettre, Les Trois Âges d'Économie, Fayard, 1968, p. 230.
11
José Sebastião da Silva Dias, A Política Cultural da Época de D.João III,
Coimbra, 1969
12
Fernand Braudel, Las Civilizationes Actuales, Tecnos, 1978, p. 302.
13
José Esteves Pereira, As Ideias do Século, apud António Reis (Dir.de), Portugal
Contemporâneo, Vol. I, Lisboa, Publ. Alfa/Selecções do Reader's Digest, 1996.pp.
(273-302), p. 275.

145
Revista Estudos do ISCAA

sociedade que o corrompe" - verdade surgida certamente da


observação da sociedade setecentista.
O autor do "Emílio", a obra que o tornou precursor da pedagogia
moderna, não recusa a existência do mal, mas a sua fé inabalável na
bondade do homem e da natureza imprime uma orientação
revolucionária ao pensamento ocidental, que, apoiado na visão
antropológica do cristianismo, aceita a imperfeição congénita do
homem e a sua tendência para o mal.
O pensamento Rousseauniano consagra a liberdade de fazer e de
agir do educando, cuja consciência, "instinto supremo e guia
infalível"1 , está potenciada para o educar, através do contacto directo
com a realidade, pela via da experiência.
A pedagogia de Rousseau, centrada no aluno, assenta na
bondade do homem - corolário da perfeição da natureza - e na sua
capacidade para se aperfeiçoar. Esta matriz teórica, ao promover o
"laissez faire" pedagógico como a via mais adequada para a educação,
não pode deixar de ecoar na definição de análogos enquadramentos
para a actividade económica, cujo desenvolvimento passa pelo
"laissez faire" dos agentes económicos. Da mesma forma que o
educando verifica, pela sua própria experiência, os erros cometidos e
tenta superá-los, assim os operadores económicos testam no mercado
a validade das suas opções, colhendo aí ensinamentos para futuros
procedimentos, que pode mesmo ser a desistência face à reconhecida
incapacidade de se adaptarem, com sucesso, ao mecanismo
autoregulador da vida económica - o mercado.
A célebre fábula das abelhas de Bernard de Mandeville procura
retirar ilações sufragantes do optimismo naturalista: assim como o
instinto dos insectos conduz ao fabrico de um produto requintado, o
mel, da mesma forma, a melhor das sociedades humanas deve resultar
do confronto de todos os egoísmos, já que "os vícios privados se
tornam virtudes públicas".16

1
A. Piettre., Histoire de la Pensée Économique et Analyse des Théories Con-
temporaines, 8a édition, Paris, Dalloz, 1986, p. 53.
15
A. Piettre, Les Trois Âges d'Économie, Fayard, 1968, p.240.
16
A. Piettre, Histoire Économique, Paris, Cujas, 1986, p. 62.

146
Algumas Considerações Sobre o Liberalismo e a Escola Clássica Inglesa

Só a virtude, reza a fábula, não pode fazer viver / As nações com


magnificência. Quem quer / Fazer regressar a idade de ouro deve
acolher / Igualmente o vício e a virtude."
As ideias naturalistas, centradas no reconhecimento de uma
ordem natural, para onde tende o ordenamento social, conduzem à
implantação da concorrência, motor do progresso, que se torna um dos
pilares do liberalismo.

4. RACIONALISMO

O Racionalismo caracteriza-se por uma exaltante confiança na


razão humana para desvelar os segredos da natureza, organizar a vida
social e realizar o progresso material e cultural dos indivíduos, que é a
empolgante finalidade do liberalismo.
O racionalismo desenvolve-se a vários níveis, de acordo com os
objectivos prosseguidos e as respostas elaboradas, podendo
classificar-se de filosófico, enquanto se preocupa com o problema da
verdade(valor); doutrinal, na medida em que solta aspirações mal
contidas e as orienta para a satisfacção dos interesses de um grupo
social; e teorico-doutrinal,18 pela forma como constrói as formulações
teóricas do liberalismo as quais, ao mesmo tempo que moldam
comportamentos sociais se deixam contaminar pelo contexto histórico
onde emergem.

4 . 1 . O SUBJECTIVISMO EPISTEMOLÓGICO

O liberalismo filosófico impõe uma nova concepção de verdade,


um novo método de pesquisa e um novo critério para a distinguir.

17
Michel Sallon, Histoire Économique Contemporaine, Paris, Masson, 1972, p. 268.
18
"A teoria tem um fim científico: tenta interpretar um conjunto de factos
correctamente observados"; a doutrina "É uma concepção do Homem e do mundo, a
projecção de um desejo. /.../ exprime uma opinião da qual deduz prescrições".
(Maurice Flamant, Le Libéralisme, Paris, P.U.F., Col. Que sais-je ?, 1979, pp. 3,8 e
9.)

147
Revista Estudos do ISCAA

A verdade deixa de ser considerada uma dádiva do céu,


estabelecida de forma autoritária pelos poderes constituídos, para fluir
do esforço da razão individual. Esta deve procurar a verdade sem
constrições, facto que a torna eminentemente subjectiva - resultado de
uma pesquisa individual e livre.
O método tradicional de busca da verdade - o da autoridade-
dá lugar ao método da investigação racional do indivíduo forro de
qualquer constrangimento.
O critério dogmático - autoritário -, que faz depender a
verdade do valor da autoridade, dá lugar ao critério da evidência: a
razão reconhece a verdade quando ela se apresenta ao espírito como
"clara e distinta". 19
A nova filosofia retira os dogmas da arquitectura de todos os
ordenamentos sociais, deixa transparecer o relativismo da verdade - e
do valor -, ergue a tolerância à dignidade de princípio básico de
sociabilidade e consolida uma ambiência cultural que favorece formas
de pensamento, cujas formulações doutrinais se afastam da moral e
dos laços teológicos tradicionais para deixarem prevalecer os valores
que fazem a felicidade do homem concreto e vivo.
Esta concepção subjectiva de verdade - eminentemente
individual - , levada às últimas consequências, contém um fermento
do caos e da desorganização. Contudo, o liberalismo considera
possível o estabelecimento de uma verdade comum, maioritária,
através do diálogo, do livre confronto de opiniões e da troca de pontos
de vista.
A dimensão subjectiva da verdade desliza para o núcleo duro do
sistema de pensamento económico liberal - a doutrina do valor -, cujo
critério de apreciação de bens e serviços deriva menos das suas
qualidades intrínsecas do que da sua finalidade humana,
subjectivamente avaliada pelo indivíduo.
A doutrina do valor deixa de estar subordinada a qualquer
norma moral ou de validade para depender apenas do desejo
individual.

René Rémond, Introduction à l'Histoire de Nôtre Temps, Vol. II, Le XIXe siècle,
1815-1914, Paris, Éd. Seuil, 1974, p. 24.

148
Algumas Considerações Sobre o Liberalismo e a Escola Clássica Inglesa

O relevo que a doutrina subjectiva do valor assume no


liberalismo inspira a força que o pensamento económico liberal atribui
ao ordenamento espontâneo da vida económica, isto é, ao livre jogo
dos interesses individuais, sem intervenção do Estado.

4.2 A DOUTRINA20 DA CLASSE MÉDIA

A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, saída da


Assembleia Constituinte em 26 de Agosto de 1789, fixa a base
ideológica das transformações políticas e institucionais da revolução
em curso. A Declaração considera que "Os homens nascem e
permanecem livres e iguais em direitos", e as desigualdades apenas
podem depender da "utilidade comum"(Art.l). Toda a associação
política visa a "conservação dos direitos naturais e imprescritíveis",
que são anteriores a toda sociedade, tais como "a liberdade, a
propriedade, a segurança e a resistência à opressão".(Art.2)
A liberdade ergue-se como fundamento e justificação de todo o
ordenamento social e a propriedade torna-se a base sólida em que se
firma para construir, dentro dos limites do interesse colectivo, a
igualdade possível, prevenir a segurança e resistir à violência.
A implantação dos princípios liberais recorre a duas instituições-
- o parlamento e o mercado -, que, embora funcionem em campos
distintos, aparecem enlaçados, na sua concepção e evolução, como
expressão do ordenamento liberal.
O parlamento, espaço de realização do cidadão/eleitor, torna-se
a liça ideal para superar conflitos e, através do confronto de opiniões,
fixar a verdade maioritária, resultante da força dos grupos em

20
Este conceito aproxima-se do uso que certos autores fazem de ideologia, definida
por Guy Rocher como "um sistema de ideias e de juízos, explícito e geralmente
organizado, que serve para descrever, interpretar ou justificar a situação dum grupo
social ou duma colectividade e que, inspirando-se largamente em valores, propõe
uma orientação precisa à acção histórica desse grupo ou dessa colectividade".( Guy
Rocher, Sociologia Geral, Vol. 1, trad, de Ana Ravara, Lisboa, Ed. Presença, 1971,
p. 228.
21
Albert Soboul, 1789 Ano Um Da Liberdade, trad, da 2aed. francesa por Rogério
da Fonseca, Ed.Delfos, Lisboa, s/d.,p. 237 e ss..

149
Revista Estudos do ISCAA

presença. Contudo, a sua constituição opera-se sob o signo de uma


concepção de cidadania que aparece limitada pelo direito de
propriedade. A igualdade de direitos apenas se concretiza por via da
propriedade, que condiciona o exercício da cidadania.
O liberalismo distingue dois tipos de cidadãos que o sufrágio
censitário consagra: os cidadãos activos, cujo direito de cidadania se
hierarquiza de acordo com os níveis de riqueza - o censo que pagam -
e os cidadãos passivos que, por falta de propriedade ou níveis de
riqueza adequados, não podem sequer votar. Esta hierarquização da
cidadania, com base na riqueza, traça a fronteira entre o liberalimo e a
democracia e reflecte-se no parlamento. Apenas uma minoria - os
ricos - sobe as escadas do parlamento liberal: a França revolucionária
do sufrágio censitário, com os seus 25 milhões de cidadãos, deixa
votar 4 milhões - os que pagam 200 francos de censo - e apenas os
elementos de um reduzido grupo - os mais ricos - se podem tornar
deputados.
O mercado, embora institucionalizado na confluência da oferta e
da procura, é visto como o território do consumidor: todos são
consumidores potenciais, mas a procura efectiva, aquela que tem
importância económica, é a procura solvente, constituída pelos
consumidores com poder aquisitivo.
O paralelismo entre estas duas instituições é claro: o acesso ao
parlamento surge atrofiado pelo sufrágio censitário, que submete o
direito de voto à riqueza, enquanto o mercado aparece acanhado pelo
poder de compra, que assenta nas disponibilidades económicas. O
parlamento e o mercado, enquanto instituições liberais, tornam-se a
expressão da democracia limitada - política e económica.
A ideia de igualdade, que o liberalismo tansporta, impulsiona no
sentido da cidadania plena, desde cedo reclamada, mas só lentamente
realizada por via do sufrágio universal, que institucionaliza a
democracia política.
No domínio económico as mudanças avançam em sentido
contrário. O mercado consolida a desigualdade de "opiniões":
mostra-se mais atento aos demandantes ricos; a oferta organizada -
os oligopólios - torna-o menos transparente; e, mesmo a procura

150
Algumas Considerações Sobre o Liberalismo e a Escola Clássica Inglesa

solvente, apesar do bracejo do movimento operário e associativo -


mútuas, cooperativas e sindicatos -, não escapa às malhas dos
oligopsónios.
Se o liberalismo, no domínio político, tende para a democracia,
com base na igualdade de opiniões e na aliança da burguesia e do
operariado, no domínio económico reforça o poder dos ricos, através
da acumulação de riqueza em grandes grupos - concentrações
horizontais, com objectivo de controlar a concorrência e reduzir os
riscos, e as concentrações verticais, que minimizam os riscos
operacionais, sem esquecer todas as situações monopolísticas
capazes de ferir a concorrência perfeita.
O liberalismo, inspirado numa filosofia universalista que aceita
a excelência e igualdade de todos os indivíduos, carrega uma matriz
democrática, a da democracia integral, mas, na prática, não consegue
ser-lhe fiel. A democracia política, com base no sufrágio universal,
tende a consolidar-se, mas as resistências à democracia económica
inviabilizam a democracia plena. Democracia política e liberalismo
económico parecem condenados a conviver numa desarticulação
histórica: o parlamento vai-se abrindo à representação soberana dos
cidadãos, mas o mercado apenas reconhece o soberano poder dos
cidadãos dotados de "liberdade cunhada", uma lógica que acaba por
contaminar toda a sociedade.
Estas disfunções revelam o rosto do liberalismo possível: a
doutrina concebida para implantar a liberdade gera a dominação - dos
pobres pelos abastados, dos débeis pelos poderosos, dos países
atrasados pelos países desenvolvidos - , instalada não pela força dos
princípios, mas pelas resistências sociais e pela dinâmica económica.
O doutrinarismo liberal, ao nível dos princípios, fixa um ideal:
pretende transformar o súbdito em cidadão, substituir o absolutismo
11
pela soberania nacional e o direito majestático pelo direito natural.
O sentido subversivo dos seus princípios aponta para uma
sociedade aberta, onde a riqueza se sobrepõe ao prestígio social, a
Joaquim de Carvalho, Formação da Ideologia Republicana, (1820-1880), apud
Luís de Montalvor, História do Regímen Republicano em Portugal, Vol. I, Lisboa,
1930-31, p. 164.

151
Revista Estudos do ISCAA

agilidade financeira à desenvoltura no manejo da espada, a perspicácia


intelectual à postura física, a vida activa à contemplativa e o mérito à
linhagem, mas a dinâmica social transforma-o numa verdadeira
ideologia de classe, que esquece o povo e entroniza o "terceiro
estado".
H. Lasky não hesita: o liberalismo, enquanto doutrina, não
passa de "um subproduto do esforço da classe média para ganhar o seu
lugar ao sol. Ao realizar a sua emancipação, esqueceu não menos
completamente do que os seus antecessores que as reivindicações de
justiça social não estavam esgotadas com sua vitória ",23
Alguns dos seus princípios e procedimentos denunciam uma
inequívoca institucionalização dos interesses da classe média.
Vejamos:
• O sufrágio censitário entrega o poder político à burguesia,
que o vai utilizar em seu proveito;
• O princípio da liberdade/propriedade, que consagra a
indissolubilidade destes dois direitos, não promove a igualdade, antes
acentua a desigualdade, pois joga a favor dos ricos e dos mais cultos;
• O princípio da autoregulação ou do mercado livre, que
poderia funcionar numa sociedade de indivíduos completamente
iguais, torna-se incapaz de realizar a justiça social numa sociedade de
classes, com riqueza e poderes diferentes.
• As cercas ou tapadas denunciam um processo de
individualização da propriedade realizado sob a égide da racionalidade
e da eficácia económica. Contudo, esta legislação saída dos
parlamentos liberais, que permite cercar os campos abertos, não se
limita a alterar a paisagem rural tradicional - feita de campos abertos,
de propriedade colectiva, e de campos fechados, de propriedade
individual - , pois sanciona a apropriação pelos poderosos locais de
terras atavicamente ligadas ao uso dos povos, tais como o pastoreio
dos pequenos criadores de gado, a recolha de mato para os currais, a
lenha de uso doméstico, etc.

23
Harold J. Lasky, O Liberalimo Europeu, trad, de Álvaro Cabral, The Rise of
European Liberalism, Ed.Mestre Jou, 1973, p. 185.

152
Algumas Considerações Sobre o Liberalismo e a Escola Clássica Inglesa

• A formação de associações, que o liberalismo proibe, após


dissolução das corporações, em nome do individualismo, afecta
essencialmente os trabalhadores, pois os patrões conseguem contornar
as normas estabelecidas;
• Os conflitos patrões/operários merecem uma atenção
enviesada: o Código Penal consagra que, em caso de litígio entre
patrões e operários, o ónus da prova pertence a estes, enquanto
àqueles basta a sua palavra.

Estes factos, que não esgotam as atitudes contraditórias do


liberalismo, revelam a sua face conservadora: a burguesia liberal,
revolucionária, conquista o poder contra o passado, mas, chegada ao
pedestal do mando, torna-se conservadora, consolida os seus
interesses e o seu sistema de valores, ao mesmo tempo que susta a
"rebelião das massas".
O liberalismo, enquanto força de progresso, abate a monarquia
absoluta, promove uma sociedade de classes, instala a meritocracia,
subverte os princípios da economia da penúria e cria condições para
gerar riqueza e abundância, mas torna-se força de resistência à lógica
de uma democracia plena. O seu empenho na consolidação dos
interesses burgueses recusa uma distribuição equitativa da riqueza - a
abundância não é para todos - e do consequente poder aquisitivo.
O liberalismo escolhe o "justo meio" para se fixar no processo
histórico. A sua caminhada diacrónica transfigura-se de acordo com a
posição do observador: a sua energia revolucionária face à sociedade
tradicional torna-se pujança reaccionário contra o avanço das novas
forças sociais.
O liberalismo não é aristocracia, mas também não é
democracia - nem mesmo política, pois a desigualdade económica
descaracteriza-a; fez-se oligarquia burguesa, onde cabem os
terratenentes, os grandes comerciantes e industriais, os quadros da
administração pública, as profissões liberais, os intelectuais, tudo
forças vivas que exibem a riqueza, que lhes dá existência legal através
do direito de votar.

153
Revista Estudos do ISCAA

A burguesia triunfante, indiferente às críticas que considera


"ataques ignorantes dos homens que haviam fracassado"24, ergue
contra si no limiar do futuro novas forças sociais - o proletariado -
dispostas a baterem-se por novos ideais, que acentuam o valor da
igualdade e da fraternidade - o "socialismo".

4.2. O RACIONALISMO CIENTÍFICO UTILITÁRIO OCIDENTAL

A "rebelião da Razão" patenteia-se na forma como o


pensamento se liberta dos dogmas e substitui o método da autoridade,
princípio tradicional de reconhecimento da verdade, pelo método
racional de pesquisa, que se afirma com base na evidência.
O homem assume o desafio de compreender por si mesmo as
duas grandes realidades que considera acessíveis à força da razão
individual: o próprio homem - uma sugestão que se configura, desde
Sócrates, no desafio do "conhece-te a ti mesmo" - e o mundo, cuja
lógica a cultura ocidental busca desde os seus alvores.
A revolta da Razão contra as limitações impostas à sua
actividade remonta às lonjuras medievais. Desde o sec. XII que a
irreverência de Abelardo (1079-1142) faz inflectir o pensamento
Ocidental no sentido da "lógica da razão e da ciência"25 para, pela via
da dúvida, numa antecipação cartesiana, alcançar a verdade.
A Razão ocidental, que recusa fechar-se na redoma da "mera
coerência lógica", torna-se instrumento eficaz do conhecimento útil da
natureza, esse saber donde deriva o poder que, através da tecnologia -
aliança da ciência e da técnica - liberta o Prometeu agrilhoado,
esculpido no esforço do homem europeu, que, agarrado ao estreito
espaço físico de uma terra madrasta, consegue, com o suor do seu
rosto e a perspicácia da sua inteligência prática, arrancar-lhe o
sustento e torná-lo palco de uma vanguarda civilizacional assente na
construção e difusão de um saber útil.

24
Harold J. Lasky, O Liberalimo Europeu, trad, de Álvaro Cabral, The Rise of
European Liberalism, Ed.Mestre Jou, 1973, p. 188.
25
Jean Gimpel, A Revolução Industrial da Idade Média, Lisboa, Publ. E América,
1976 p. 165.

154
Algumas Considerações Sobre o Liberalismo e a Escola Clássica Inglesa

O homem europeu dos alvores da civilização do crescimento


não dispõe do dadivoso solo vulcânico da América, onde entumesce o
conuco e pula o milho, nem da "fábrica" do arrozal inundado chinês,
espaços cuja produtividade satisfaz, com reduzido esforço, as
necessidades de uma humanidade densa e numerosa. Contudo, o
homem dos campos de trigo, aveia, oliveira, vinha e de criação de
animais - concorrentes do homem que a técnica da atrelagem
transforma em aliados - , apoiado numa inteligência realizadora,
desenvolvida para vencer o desafio da natureza, recorre às inovações
tecnológicas para conseguir um nível singular de povoamento - o
"mundo cheio europeu".26 - esse óptimo demográfico indispensável ao
progresso da civilização.
A sociedade tradicional da cristandade ocidental, acicatada pelos
desafios do seu espaço económico, aparece-nos, desde o see. XII-XIII,
com um vigor criativo singular: o seu povoamento denso e contínuo, o
seu território penetrado por rios e marés - nenhum recanto se encontra
a mais de 500 Km dessas privilegiadas vias de integração económica -
- , singularidade planetária que, ao favorecer um elevado nível de
comunicação e de troca, desencadeia um processo de crescimento
animado por milhares de cérebros pensantes em diálogo genesíaco
permanente.
A orientação utilitária da razão ocidental permite descobrir e
domesticar um repositório de forças naturais: a força do vento, com as
velas dos navios e moinhos; a força cinética dos rios, transformada
pelas azenhas e moinhos; a dinâmica das correntes marítimas
aproveitada pelos moinhos de marés; e a força dos animais de carga e
de tiro, cuja tracção é potenciada pela coelheira e pela atrelagem em
fila.
A óptima relação do homem com o espaço - o mundo cheio -
potencia a comunicação, facilita a difusão das inovações e forja as
condições do vanguardismo tecnológico ocidental, filho do

26
Pierre Chaunu, A História Como Ciência Social, Rio de Janeiro, Zahar Editores,
1976, 179 e ss. O mundo cheio é uma forma original de povoamento contínuo, com
uma densidade média de 35-45 habts no centro, e não menos de 5-6 Hab./Km2 na
periferia.

155
Revista Estudos do ISCAA

racionalismo pragmático e utilitário voltado para o conhecimento e


domínio das forças naturais.
Os meios materiais e humanos da Europa, gerados no seio de
um processo de longo prazo, e as múltiplas motivações - falta de trigo,
de ouro, nomeadamente no Sul, e de terra, já que o estilo de
crescimento da Europa vai continuar baseado no alargamento do
espaço - constituem factores que lançam o Ocidente para o "grande
descompartimentação planetária" - os Descobrimentos - que lhe vão
abrir novas fronteiras físicas e mentais.27
A tendência racionalista, que liberta o espírito humano e gera a
verdadeira matriz da mentalidade moderna, floresce no seio de um
complexo processo histórico - o Renascimento, onde os Descobrimen-
tos ocupam lugar primacial - e bifurca-se no racionalismo filosófico
de Descartes e no racionalismo científico de Newton, cuja fusão
consolida o método experimental e o paradigma da época moderna,
moldado pela concepção mecanicista do universo Newtoniano.
O racionalismo, com os seus sucessos, solidifica a convicção de
que o Homem pode - e deve fazê-lo - conhecer as leis do universo e
dominar a natureza sem constrições, como forma de melhorar as
condições de vida. Mas, se as élites intelectuais do sec. XVII limitam
a pesquisa da razão, não submetendo ao seu crivo as instituições e a
religião, os seus epígonos transformam essa confiança na razão num
verdadeiro camartelo que avança, subversivo, para todos os níveis da
realidade económica, fazendo entrar a civilização europeia na "Era das
Revoluções".
Montesquieu deixa bem expressa esta orientação desde "Espírito
das Leis", 1748, ao afirmar que "as leis que regulam as sociedades
humanas assentam nas condições geográficas, históricas e sociais, isto
é, "são relações necessárias que derivam da natureza das coisas"28, que
a razão deve investigar.
O sentido profundo desta mudança, que não se opera apenas em
França, aflora neste texto de Paul Hazard:

Pierre Chaunu, A História como Ciência Social, Rio de Janeiro, Zahar Editores,
1976, passim.
28
A. Piettre, Histoire Économique, Paris, Ed. Cujas, 1986, p. 60.

156
Algumas Considerações Sobre o Liberalismo e a Escola Clássica Inglesa

"Que contraste ! Que evolução tão brusca ! A hierarquia, a


disciplina, a ordem garantida pela autoridade, os dogmas que regulam
com firmeza: eis o que os Homens do sec. XVII amavam. Sujeições,
autoridade, dogmas: eis o que detestam os Homens do sec. XVIII,
seus sucessores imediatos. Os primeiros são cristãos e os outros anti-
cristãos; os primeiros crêem no direito divino, e os outros no direito
natural; os primeiros vivem à vontade numa sociedade que se divide
em classes desiguais, os segundos sonham só com a igualdade. Sim, é
certo que os filhos discutem de motu próprio com os pais, supõem que
vão fazer o mundo que só esperava por eles para melhorar; mas os
remoinhos que agitam as sucessivas gerações não bastam para
explicar uma mudança tão rápida e decisiva. A maioria dos Franceses
pensava como Bossuet; de repente, os Franceses pensam como
Voltaire: é uma revolução".29
Voltaire, acompanhado pelos Enciclopedistas, acentua a visão
racionalista da realidade social, que deseja ver transformada ao nível
do pensamento e da acção, de acordo com a orientação das Luzes e as
descobertas científicas úteis, carreadas pelo método experimental,
com reflexos no progresso da civilização, isto é, nas condições
materiais e culturais da existência humana.
Concluindo, podemos afirmar que o liberalismo se impõe como
um autêntico individualismo, pois é na avaliação pelo indivíduo da
"utilidade" ou "desutilidade" das coisas que radica o seu valor; as
virtualidades da acção espontânea individual para, em liberdade,
realizar o bem comum, assentam no optimismo antropológico, e
mesmo o naturalismo, de que aparece imbuído o liberalismo
económico, a ponto de considerar a economia uma espécie de física
social, arranca da crença nas capacidades da razão individual.

29
Paul Hazard, Crise da Consciência Europeia, (1680-1715), Lisboa, Ed.Cosmos,
1970, p. 7

157
Revista Estudos do ISCAA

5. A CONSTRUÇÃO TEORICO-DOUTRINAL DA ESCOLA


CLÁSSICA30 INGLESA

5.1. A "MÃO INVISÍVEL"


O pensamento económico liberal acolhe o influxo cultural
deste catalisador movimento de ideias e não deixa de o promover com
as suas formulações teóricas, no seio das quais a liberdade económica
se transforma num dos seus princípios basilares.
O cabouqueiro da Escola clássica inglesa, A. Smith (1723-1790),
descobre no mundo cor de rosa da liberdade algumas nódoas negras,
mas recusa entregar ao Estado a tarefa de as colorir: a sua intervenção,
- que apenas deve ocorrer em casos restritos, a indústria da guerra e a
segurança - , seria perniciosa no domínio do económico, pois o mal
que pode advir do pleno funcionamento da liberdade é sempre menor
do que aquele que resultaria de um papel activo do Estado.
A nova ordem económica e social preconizada deve construir-se
com base no confronto dos interesses individuais, naturalmente
diferentes e mesmo antagónicos.
O autor de "A Riqueza das Nações" descobre que a ordem social
resulta da "eficácia colectiva dos egoísmos individuais": "Não é da
benevolência do magarefe, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos
o nosso jantar, mas sim do cuidado que põem nos seus interesses. Não
nos dirigimos à sua bondade, mas ao seu egoísmo e não é nunca das
nossas necessidades que lhes falamos, é sempre da sua vantagem ".31
O autor dos "Sentimentos Morais" realça a importância da
fraternidade humana, mas considera que o verdadeiro móbil da acção
económica, capaz de realizar o equilíbrio económico e a harmonia
social, é o o interesse individual, conduzido pela "mão invisível", e
não o altruísmo.

Denomina-se clássico o pensamento económico liberal que atinge o seu apogeu


na Ia metade do sec. XIX, pela forma sistemática como é apresentado, pela sua
duração e força inspiradora.
Michel Sallon, Histoire Économique Contemporaine, Paris, Masson & C ie , 1972,
p. 268

158
Algumas Considerações Sobre o Liberalismo e a Escola Clássica Inglesa

"Cada individuo /.../, afirma em A Riqueza das Nações, não


pretende, normalmente, promover o bem público, nem sabe até que
ponto o está a fazer. Ao preferir a indústria interna em vez da externa
só está a pensar na sua segurança; e, ao dirigir essa indústria de modo
que a sua produção adquira o máximo valor, só está a pensar no seu
próprio ganho, e neste, como em muitos outros casos, está a ser
guiado por uma mão invisível a atingir um fim que não fazia parte
das suas intenções".33
O pensamento económico de A. Smith acumula reflexões
sobre os mais diversos problemas económicos: a riqueza é gerada pelo
trabalho - que por razões de eficácia, deve ser dividido - , aplicado às
diferentes actividades económicas, com o apoio do capital; a criação
de riqueza passa da circulação para a produção, como já o haviam
feito os fisiocratas, embora de forma limitada; o valor das coisas, sem
dispensar a consideração da terra e do capital e de outros factores
como a escassez, depende essencialmente do trabalho; o salário,
considera, para ser "justo" e motivador deve permitir que os
trabalhadores "possam estar toleravelmente bem alimentados, vestidos
e albergados"; o dinheiro, se bem que indispensável à actividade
económica não tem as vantagens da troca directa; a renda, onde se
vislumbram os desenvolvimentos Ricardianos, etc.
Contudo, o mais importante do pensamento Smithiano
relaciona-se com a questão da "mão invisível", do desenvolvimento e
do papel que nele desempenha o trabalho, o capital e a poupança.

A "mão invisível" parece, ainda, evocar uma ressonância teológica que vincula a
origem da ordem natural à Providência. Contudo, a base do equilíbrio não resulta do
fluxo dos fisiocratas, mas dos preços dependentes do Wvrejogo do mercado - ou dos
diversos mercados de bens e serviços - , onde se definem os custos dos diversos
factores.
33
João César das Neves, Princípios de Economia Política, Lisboa, Verbo Ed., 1997,
- 2 L Lucas, Historia de las Doctrinas Económicas, Barcelona, Ed. Teide, 1960, p. 87.
P 4Beltran

159
Revista Estudos do ISCAA

Smith lança no pensamento ocidental a visão optimista de que a


construção da "vasta república dos mercadores".35 depende da
espontânea organização da vida económica pelos indivíduos.
A sua formulação teórica sobre o desenvolvimento - que a par
do princípio da população, de R. Malthus, e do princípio do equilíbrio,
de J. B. Say, constitui o suporte teórico da economia liberal
permite-lhe ajuizar que o progresso é possível, desde que a
acumulação de capital seja superior ao crescimento demográfico, isto
é, desde que este não esgote as possibilidades de poupança: "A
indústria apenas aumenta na medida em que o capital cresce, e o
capital não pode aumentar senão na medida em que cresce a
poupança".37
A importância que o trabalho assume na filosofia social de
Smith permite considerar que doutrina do valor trabalho saiu das suas
reflexões para inspirar não apenas os epígonos ingleses, mas também,
com inovador alcance, os teóricos que, como Marx, se mostram
inconformados com as realizações e expectativas do liberalismo
clássico.
As reflexões teóricas de Smith, mesmo quando não primam pela
clareza, assumem as preocupações do seu tempo e insinuam os
caminhos a desbravar pela ciência económica: as reflexões sobre a
poupança e o valor do trabalho integram na ciência económica a
ascese, a sensatez e o ideal activista da burguesia; o interesse pessoal
vem da psicologia, enquanto a magia da "mão invisível" deriva da
"ordem natural", cujas leis, para a ordem económica e social
continuarão a ser procuradas pelos economistas vindouros.

35
A.Piettre, Histoire de la Pensée Économique et Analyse des Théories Contemporaines,
Paris, Dalloz, 1986, p.63
36
Maurice Flamant, Le Libéralisme, Paris, P.U.F., Col. Que sais-je ?, 1979, p. 43-44.
37
A.Piettre, Histoire Économique, Paris, Cujas, 1986, p. 100

160
Algumas Considerações Sobre o Liberalismo e a Escola Clássica Inglesa

5.2. A CONSCIÊNCIA DOS LIMITES: A DOUTRINA DA


POPULAÇÃO

O pensamento económico inglês tem consciência de que a


liberdade apenas viabiliza o melhor dos mundos possível, isto é, não
realiza o melhor dos mundos nem faz descer o céu à terra.
Assim, desliza para o pensamento económico liberal uma
tendência "pessimista" que se traduz em várias formulações
doutrinais.
O liberalismo rompe com a concepção demográfica tradicional -
o populacionismo mercantilista -, que considerava a população fonte
de riqueza das nações, alicerce do poder do Estado e fundamento do
crescimento económico.
O liberalismo económico, mesmo quando populacionista,
orienta-se no sentido do optimismo demográfico gerado pelo
automatismo do mercado: "a procura de homens, exactamente igual à
de qualquer mercadoria, reconhece A. Smith, regula, necessariamente,
a produção daqueles, aumentando-a quando é demasiado lenta e
refreando-a quando vai demasiado depressa"39. O incitamento à
poupança que, desde Smith ecoa no pensamento económico, aponta
no mesmo sentido.
A obra de Mal thus (1760-1834), Ensaio sobre o Princípio da
População, teve um efeito decisivo na construção do sistema de
pensamento económico clássico: fixou um dos seus pilares - o
princípio da população.

Preferimos doutrina a teoria, princípio ou lei, para denominar as diferentes


formulações teóricas dos clássicos da economia, pois estamos no domínio das
ciências sociais, onde as teorias, apesar do desmentido da experiência, continuam a
"orientar ou dirigir a acção". Por todos, pela sua simplicidade, invocamos as
entradas de Le Petit Robert: teoria é um "conjunto de ideias, de conceitos abstractos,
mais ou menos organizados, aplicados a um domínio particular", enquanto doutrina
é definida como um "conjunto de noções tidas por verdadeiras e pelas quais se
pretende fornecer uma interpretação dos factos, orientar ou dirigir a acção".
39
Carlos Gide y Carlos Rist, Historia de las Doctrinas Económicas desde los Fisio-
cratas Hasta Nuestors Dias, trad, da 4 o ed. francesa por C. Martinez Penalver,
Madrid, Instituto Editorial Reus, 1973, p. 93.

161
Revista Estudos do ISCAA

A doutrina Malthusiana assenta em duas ideias nucleares: a


paixão entre sexos promove o aumento demográfico em progressão
geométrica ( 2, 4, 8, etc.) e aprofunda a escassez de alimentos, que
apenas crescem em progressão aritmética ( 2, 3, 4, etc.); por outro
lado, considera que essa tendência do "instinto de reprodução", pode
ser contrariada por dois tipos de "restrições" naturais: as "restrições
preventivas" - o controlo de nascimentos, por via do celibato e do
casamento tardio - e as "restrições positivas", como a guerra, a
doença, etc.
Nestas circunstâncias, a pulsão demográfica, muito superior à
capacidade de produzir alimentos, compromete a subsistência de todos
os que nascem no "vale da fome", onde a população duplica todos os
25 anos.
O drama da fome torna-se intransponível, pois o socorro à
miséria apenas resultaria em mais nascimentos, que semeariam bolsas
de pobreza. Não há lugar para a racionalidade económica, e o desejo
de melhorar não funciona como força correctora de uma situação que
enlaça o homem a uma inevitabilidade patente nos ritmos de
crescimento desfasados, e incorrigíveis, da população e dos alimentos.
Mais tarde Malthus avança a possibilidade de o
"constrangimento moral" poder conduzir ao equilíbrio desejado e
evitar a tragédia humana, pois sem essa acção a natureza agiria
friamente: "um homem que nasce num mundo já ocupado, se não
pode obter os meios de subsistência de seus pais , a quem pode
justamente pedi-los, e se a sociedade não pode utilizar o seu trabalho,
não tem o menor direito à mais pequena porção de alimento, e na
realidade está a mais sobre a terra. No grande banquete da natureza
não há lugar para ele. A natureza ordena-lhe para se ir embora, ela não
tarda a por em ordem esta execução".
O princípio da população não tem qualquer consistência
científica: a validade metodológica não resiste ao confronto com a
realidade, mas o aparecimento do "constrangimento moral", capaz de
diminuir as forças instintivas da reprodução, acrescenta nova

40
A. Piettre, Histoire de la Pensée Économique et Analyse des Théories
Contemporaines, Paris, Dalloz, 1986, p. 65.

162
Algumas Considerações Sobre o Liberalismo e a Escola Clássica Inglesa

debilidade epistemológica, já que a "teoria deixou de ser falsificável",


pois sempre seria possível, face aos dados empíricos, apelar "a esse
domínio moral sobre as forças naturais".
Contudo, a doutrina da população assume enorme importância
na evolução da ciência económica: por um lado "descredibilizou a
economia", "desviou"-a "para uma linha errada", e pôs os
economistas, durante décadas, a fazer previsões sobre o andamento
dos salários, do produto e do bem estar, que estavam em patente
contradição com a realidade; por outro esfriou a euforia pós-Smi-
-thiana, que se deixou deslumbrar pela eficácia da "mão invisível",
perdendo a noção das dificuldades, e evitou que a Economia se
tornasse, em vez da "ciência sinistra" de Carlyle, a "ciência do
optimismo pateta .
A doutrina da população deu à ciência económica consciência
dos limites físicos do crescimento e trouxe-lhe um novo conceito - o
de escassez. - que, a par da "mão invisível", integra o núcleo duro da
ciência económica.
A debilidade científica do "princípio da população" e os
caminhos ínvios do seu contributo para a ciência económica não
impediram a sua aceitação generalizada.
A tese Malthusiana aparece ataviada de um roupagem científica
adequada às circunstâncias coevas: "a utilização de postulados e
silogismos" e o "uso de progressões matemáticas" emprestam-lhe uma
credibilidade "imponente e impenetrável" que lhe permite circular nos
salões da moda, mais atentos aos procedimentos da sociabilidade
galante, que os inundava de novidades acolhidas com sofreguidão pelo
insaciável Século das Luzes, do que ao rigor do método utilizado.

41
João César das Neves, Memorial - os 195 anos do Ensaio Sobre o Princípio da
População de Thomas Malthus - 1798, in Economia, Lisboa, Vol. XVII, n° 2,
Universidade Católica - Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais, Maio,
1993, p. 293
42
João César das Neves, Memorial - os 195 anos do Ensaio Sobre o Princípio da
População de Thomas Malthus - 1798, in Economia, Lisboa, Vol. XVII, n° 2,
Universidade Católica - Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais, Maio,
1993, pp. 232-234.

163
Revista Estudos do ISCAA

Este insinuante dispositivo promocional e as mudanças


estruturais em curso, operadas na sociedade pela revolução industrial,
reuniram à volta do princípio da população as forças sociais
tradicionais, os proprietários da terra, categoria social dominada pela
nobreza, ciosos da sua riqueza, do seu poder e da sua supremacia
social - pilares de um prestígio ameaçado pelo acolhimento dado ao
tímido projecto industrialista de A.Smith.
O princípio da população trazia, de novo, para o centro das
preocupações a agricultura, actividade que poderia debelar o
recorrente e atávico medo da fome.
Se, como afirma César das Neves, que vimos seguindo, o
"optimismo de Smith jogava a favor da classe burguesa industrial, o
pessimismo de Malthus equilibrava as forças transferindo parte da
ênfase de novo para a agricultura", não é menos certo que o
Malthusianismo empolgava outros poderes sociais. De facto, tornava-
-se fundamento de uma política de baixos salários - que, naturalmente,
agradava aos patrões sedentos de lucros - e suporte teórico do
alheamento das questões sociais por parte dos Estados, mais sensíveis
à saúde das finanças públicas do que à miséria dos deserdados - duas
tarefas em que mal se poderiam desdobrar face às dificuldades
emergentes.
A lição de Marcel Reinhard é concludente: Malthus,
"involuntariamente, trazia uma justificação aos patrões desejosos de
pagar salários baixos e aos governos desejosos de equilibrar as
finanças. Justificavam (as suas concepções) uma política de dureza
desumana, conduzida egoisticamente pelos privilegiados, a expensas
dos deserdados, o que pode contribuir para explicar o sucesso do
malthusianismo".43

Cit. in Valentin Vasquez de Prada, História Económica Mundial, Vol. II, Porto,
Livraria Civilização, 1972, p. 29.

164
Algumas Considerações Sobre o Liberalismo e a Escola Clássica Inglesa

5.3. A RENDA E O SALÁRIO

O pensamento clássico deixa, com David Ricardo, o âmbito da


produção, onde o situaram os cabouqueiros do liberalismo, os
fisiocratas e A. Smith, e orienta-se para a distribuição, em cujas
doutrinas, nomeadamente a da renda e a do salário, deixa a marca
inevitável do pensamento Malthusiano e acolhe a ideia de que a ordem
natural, não sendo perfeita, é inelutável.
A reflexão teórica de Ricardo sobre a Renda abarca duas
questões conexas: a que desemboca na formulação da "lei dos
rendimentos decrescentes" e a que enuncia a "lei da renda
diferencial".
A "lei dos rendimentos decrescentes" apoia-se na observação de
que a pressão demográfica, com efeitos no aumento da procura do
trigo, conduz a sucessivas ocupações de terras menos férteis. Ou seja,
realiza-se um crescimento extensivo da área cultivada e decrescem os
rendimentos da terra, já que a conquista de novas espaços para a
agricultura exige investimentos acrescidos em trabalho, utensílios, etc.
Este facto traduz-se no aumento do custo marginal do alqueire de trigo
produzido e no consequente aumento do seu preço no mercado, que
permanece fechado ao trigo mais barato vindo de fora.
A terra generosa e dadivosa dos fisiocratas torna-se madrasta,
aconselhando uma reorientação económica industrialista.
A "lei da renda diferencial" é definida com base no quadro de
ocupação das terras na Inglaterra. Os aristocratas usaram o seu poder
para se assenhorearem das melhores terras, isto é, aquelas que
produzem mais e exigem menos investimentos. O preço dos produtos
da terra, nomeadamente os cereais, que o mercado uniformiza pelo seu
custo nas terras pobres, deixa aos proprietários das boas terras uma
"mais valia", isto é, uma renda diferencial, que não resultando do
trabalho, mas da desigual fecundidade das terras, se torna fonte de
uma injusta apropriação.

A doutrina do salário natural insere-se, como todas as outras, na


visão clássica de que o funcionamento da economia obedece a leis

165
Revista Estudos do ISCAA

naturais às quais se submete a fixação do salário - a mais tarde


denominada, pelos meios socialistas alemães, "lei de bronze do
salário". (Ferdinand Lassale, 1825-1864)
O raciocínio é simples: o salário permite acesso aos alimentos e
destes depende o crescimento demográfico; o aumento de salário
induz a pressão demográfica que, transferida para o mercado do
trabalho, desencadeia concorrência entre os trabalhadores, fazendo
descer o preço da mão de obra, isto é, o salário.
O pensamento clássico adquire, com a doutrina do salário
mínimo de subsistência, um verdadeiro regulador demográfico. Se a
pressão demográfica desencadeia a contenção dos salários, é natural
que, como forma de resolver o receio do excesso de população, acabe
por se impor uma política de baixos salários, que já fora contrariada
pelos fisiocratas.
A doutrina do mínimo vital, que se impõe ao longo do Séc. XIX,
estimula a rebelião marxista e inspira as críticas mais contundentes à
sociedade capitalista.
As formulações teóricas de Ricardo levam-no a concluir que a
ordem das coisas aparece imbuída de alguma injustiça. Contudo,
enquanto se conforma com o salário natural, pois considera a
intervenção do Estado desaconselhável, propõe, contra as "mais
valias" dos proprietários, uma ordem económica sem proteccionismos
nem barreiras - o livre câmbio - , nomeadamente em relação aos
cereais.

5.4. O LIVRE CÂMBIO

Em 1938, sob a bandeira do livre câmbio, constitui-se,


protagonizada por Richard Cobden, um discípulo de Ricardo, a Liga
contra a lei dos cereais - uma lei proteccionista e restritiva da
circulação de cereais -, cujos objectivos foram conseguidos em 1846,
após a Reforma do Parlamento de 1832. Seguidamente, em 1850,
caem todas as barreiras alfandegárias, com abolição dos Actos de
Navegação.

166
Algumas Considerações Sobre o Liberalismo e a Escola Clássica Inglesa

A abertura de fronteiras promove uma nova ordem social: os


barões da indústria, os Whigs, colhem benefícios com a descida do
preço dos cereais, que se reflecte na descida do preço das terras e dos
salários, enquanto os terratenentes, com a descida do preço dos cereais
e da terra, consequência do trigo mais barato vindo de fora, assistem
ao encolher dos seus rendimentos.
As forças sociais, cujo prestígio se constela em volta da terra,
deixam romper, triunfantes, os grupos sociais promotores da
industrialização, do comércio e da exploração das colónias e procuram
não perder os trilhos da nova dinâmica económica. Os Lordes do
algodão - o algodão, vindo das colónias, é a matéria prima da
revolução industrial, desencadeada no domínio dos têxteis -
- imprimem uma nova orientação à sociedade que, ao arrepio da
tendência pessimista do doutrinarismo inglês, acredita nas
virtualidades do livre câmbio, esteado no suporte doutrinal ricardiano
das vantagens comparativas, apresentado como fundamento do
comércio internacional.
As doutrinas de Ricardo, produzidas no seio das tensões sociais
em desenvolvimento, têm uma cumplicidade social iniludível, cujo
alcance se torna claro: o banqueiro Ricardo alinha pelos interesses do
capitalismo industrial.
As formulações teóricas de Ricardo constituem a base doutrinal
da industrialização e o suporte ideológico dos seus fautores: todos os
patrões estavam interessados em pagar baixas remunerações, mas os
industriais e comerciantes eram os que mais usufruíam com essa
política, pois foi nessas actividades que mais progrediu a relação
salarial; a concepção parasitária da renda diferencial transforma-se em
crítica social demolidora da base ética do prestígio social da
aristocracia terratenente; a profecia dos rendimentos decrescentes
jogava a favor da industrialização, pois justificava a busca de novas
alternativas às actividades económicas tradicionais; o livre câmbio e a
lei das vantagens comparativas promove a divisão internacional do
trabalho, a dinâmica do comércio internacional e colonial e consagra o
triunfo da fábrica inglesa.

167
Revista Estudos do ISCAA

As tensões da sociedade industrial desvelam-se igualmente no


corpo doutrinal ricardiano: "a doutrina do carácter parasitário da renda
fundiária deu expressão ao antagonismo da burguesia perante os
agrários; a pessimista teoria do salário, segundo a qual o trabalhador
só podia receber sempre o mínimo vital como salário, mesmo que a
produção aumentasse, exprimiu o antagonismo entre a burguesia e o
operariado".
Molinari, um dos teóricos do liberalismo, bem consciente do
significado da lei do salário natural e do lugar do trabalhador no seio
do sistema, opinava: "Do ponto de vista económico, os trabalhadores
devem ser considerados como verdadeiras máquinas".

5.5. O ESTADO ESTACIONÁRIO

John Stuart Mill (1806-1863), apesar das simpatias que nutre


pelo positivismo, não vislumbra razões para se afastar do pensamento
clássico. Prefere uma atitude conciliatória em relação às contradições
internas e às críticas do socialismo: torna-se reformista.
A sua obra "Princípios de Economia Política", publicada no
mesmo ano do "Manifesto Comunista" de Marx, 1848, discrimina na
realidade económica dois planos distintos: a produção de riqueza,
cujas "leis e condições" partilham as características das verdades
físicas, e a distribuição, que lhe aparece como "uma instituição,
exclusivamente humana".
A consideração desta autonomia - fractura incompatível com os
fundamentos da dialéctica, que Marx contestará na sua "Introdução
Economia Política", de 1857, - permite-lhe evocar a existência de dois
modos distintos de distribuição: um que se funda na propriedade
privada, "instituição primitiva e fundamental sobre a qual, fora

44
Walter Theimer, História das Ideias Políticas, Lisboa, Círculo de Leitores, 1977,
p. 165
45
A. Piettre, Histoire Économique, Paris, Cujas, 1986, pp. 257-258.
46
Henri Denis, História do Pensamento Económico, Lisboa, Livros Horizonte, 1973,
p. 180.

168
Algumas Considerações Sobre o Liberalismo e a Escola Clássica Inglesa

algumas circunstâncias excepcionais, assenta o sistema económico, e


o outro, que se funda na propriedade comum".47
A sua reflexão económica desce à realidade envolvente e realça
algumas das suas contradições. O ideal liberal atinge, na Inglaterra, o
seu apogeu: a plena liberdade, assente na propriedade, conduz ao fim
da assistência aos pobres, 1834, e à abolição da lei dos cereais, que
inaugura o livre câmbio, mas surgem as crises, o escandaloso
pauperismo e a luta operária por direitos económicos, sociais e
políticos.
Stuart Mil repara que as "invenções" mecânicas, nas quais
deposita enormes esperanças, não começaram ainda a operar no
destino da Humanidade as grandes mudanças que está na sua natureza
realizar: até hoje não conseguiram diminuir "a fadiga quotidiana de
um único ser humano", embora tenham aprofundado as cisões sociais,
lançando uns numa vida de reclusão e de trabalho penoso e permitindo
a outros, como os manufactureiros, "fazer grandes fortunas"48; as
crises comerciais sucedem-se devido à má gestão do crédito, cuja
expansão desencadeia situações especulativas, fatalmente seguidas de
baixa.
Que soluções vislumbra para resolver os desequilíbrios que se
infiltram na exalçada harmonia social dos liberais?
Os remédios que propõe consubstanciam um reformismo
preocupado em conciliar o individualismo liberal e o socialismo
nascente que, através dos seus arautos, desmontava as contradições da
nova sociedade.
Considera que o aumento do nível de vida passa pelo controlo
demográfico, uma ideia malthusiana, que a crispação social poderia
ser superada através da criação de cooperativas de produção, onde o
espírito do lucro, através da harmonia de interesses do trabalho e do
capital - dos operários e dos empresários - tenderia a esmorecer.

Henri Denis, História do Pensamento Económico, Lisboa, Livros Horizonte, 1973,


pp. 499 e 500.
Henri Denis, História do Pensamento Económico, Lisboa, Livros Horizonte, 1973,
p. 500.

169
Revista Estudos do ISCAA

A dinâmica social deve realizar o "estado estacionário" que


ultrapassa todos os conflitos e resolve todas as contradições inerentes
à fase actual do processo industrial. É que o ideal de vida da
humanidade não pode ser lutar sem fim para vencer: "o melhor estado
para a natureza humana é aquele em que ninguém é rico, ninguém
aspira a tornar-se rico, e não teme ser derrubado para trás pelos
esforços que os outros fazem por se precipitarem para diante".
A concepção de estado estacionário de Mill realiza igualmente a
síntese perfeita entre o pessimismo e o optimismo que divide os
clássicos: a sombria perspectiva de que, face ao aumento da
população, a taxa de lucro tende a aproximar-se do mínimo - aí se
situa o "estado estacionário" - desfaz-se num clarão de esperanças,
pois é nesse momento que o Homem deixa de procurar
desesperadamente a riqueza para se votar à cultura e ao
aperfeiçoamento moral. A impossibilidade do crescimento económico
- pessimismo - cria as condições para o progresso da dignidade
humana e a verdadeira felicidade - optimismo.
A concepção de "estado estacionário", uma plataforma
civilizacional que visa a síntese harmoniosa entre propostas
antagónicas - o individualismo dos clássicos e o socialismo dos seus
críticos - e tendências distintas - o optimismo da Escola Franco-
Americana e o pessimismo da Escola Inglesa - traduz um esforço
conciliador para salvar o capitalismo. Contudo, a esperança de que a
humanidade consiga substituir o progresso material pelo desen-
volvimento moral assinala o abandono das posições utilitaristas,
enquanto a desconfiança em relação à capacidade da ciência e da
técnica para realizar a felicidade geral significa falta de entusiasmo em
relação ao industrialismo - atitudes que tornam o mundo de Mill
inconciliável com os fundamentos filosóficos de onde emerge a
economia clássica.
A Escola clássica inglesa, que talha os fundamentos teóricos do
capitalismo liberal, deixa-nos, igualmente, com Ricardo, o construtor
dos alicerces doutrinais da sociedade industrial, a lei da baixa

49
Henri Denis, História do Pensamento Económico, Lisboa, Livros Horizonte, 1973,
p. 502.

170
Algumas Considerações Sobre o Liberalismo e a Escola Clássica Inglesa

tendencial da taxa de lucro - uma previsão nada auspiciosa para o


capitalismo. Stuart Mill não fez mais do que transformar esse axioma
numa situação económica e social concretizadora da felicidade geral -
- o "estado estacionário".
CONCLUINDO, podemos afirmar que o liberalismo, enquanto
expressão dos multímodos comportamentos humanos, acolhe
tendências culturais revolucionárias que sobem do Antigo Regime e
faz delas a matriz do seu pensamento e acção.
O projecto social de compatibilizar, sob o signo da igualdade, da
dignidade da pessoa humana e do aperfeiçoamento individual e
institucional, liberdade e justiça social esbarra com inúmeras
dificuldades geradoras de tensões sociais.
A visão antropológica do liberalismo, o eixo estruturante de
todas as suas manifestações sociais, assente no pressuposto de que o
homem é bom e racional, inspira uma atitude de plena liberdade face a
todas as escolhas individuais, incluindo a adopção de diferentes
escalas de valores. Ora, não seria possível - e não foi - realizar um
óptimo colectivo, sem uma comum escala de valores.
A filosofia social do liberalismo convive com esta contradição: a
sua matriz doutrinal valoriza o subjectivo e o individual, enquanto a
concretização das finalidades prosseguidas - a optimização dos
interesses colectivos - exige uma escala de valores assente em
critérios objectivos reconhecidos por todos. Essa consonância,
geradora de uma comum escala de valores está ausente do pensamento
clássico e aparece significativamente reflectida nas distintas
formulações sobre o valor - um núcleo doutrinal de essencial
importância.
A doutrina do valor recebe duas formulações no seio da escola
clássica - a doutrina do valor trabalho e a doutrina subjectiva do va-
lor - , divergência que exprime a singularidade das culturas que as
assumem - a inglesa e francesa.
Nos finais do Séc. XIX , o refinado pensamento económico neo-
clássico conduz à formulação da doutrina da utilidade marginal, uma
enorme conquista da ciência económica, mas apenas A. Marshall
(1842-1924), na viragem para o Séc. XX, consegue conciliar as duas

171
Revista Estudos do 1SCAA

persistentes visões - a do trabalho e a da utilidade - através da


consideração do tempo na análise económica e do recurso à
tradicional eficácia da metáfora na formulação de teorias - a da
tesoura, cujas lâminas simbolizam a pressão da oferta e da procura.
Pelo caminho tinha ficado a deserção Marxista50, inspirada nas
reflexões teóricas da escola clássica inglesa, que levou consigo a
doutrina do valor trabalho, e a viragem reformista de John Stuart Mill.
A produção científica da escola clássica ocorre no interior de um
processo histórico, cujas profundas transformações revolvem as
funduras da economia, da sociedade e da cultura. Neste contexto, as
formulações teorico-doutrinais da escola clássica inglesa reflectem a
complexidade do novo mundo, tais como as perplexidades face ao
modelo de desenvolvimento; as tensões sociais latentes, que acabam
por eclodir no movimento cartista da década de 3051; os interesses de
uma burguesia compósita - racional ou sentimental, de acordo com as
conveniências - onde assomam os industriais; e, finalmente, a
subversão do Estado neutral, cujo estatuto descamba para a dominação
da economia mundo europeia, mais atento aos interesses dos grupos
dominantes do que aos da colectividade.

Nunes, Adérito Sedas, História dos Factos e Doutrinas Sociais, Lisboa, Ed.
Presença, 1992, p.281 ess.
51
0 movimento cartista conduziu ao primeiro partido operário, cujas principais
reivindicações constituem a denominada "carta do povo": sufrágio universal,
abolição das distinções com base na propriedade, parlamentos eleitos anualmente,
igualdade de colégios eleitorais, salário para os deputados e voto secreto. Uns anos
antes, na segunda década do século, deixou eco o movimento dos ludites, que
conduziu à destruição das máquinas industriais pelos operários, em vez de as
colocarem ao seu serviço.(A.J. Avelãs Nunes, Os Sistemas Económicos, Separata do
Boletim de Ciências Económicas, Vol. XVI, Coimbra, 1973)

172
Algumas Considerações Sobre o Liberalismo e a Escola Clássica Inglesa

BIBLIOGRAFIA

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174
Revista Estudos do ISCAA, IIa Série, 5 (1999) 175-188

DIÁRIOS/WRITING JOURNAL: CONTRIBUTO PARA O


DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA EM CURSOS TÉCNICOS

Luís GOUVEIA
DOCENTE DE LÍNGUA INGLESA DO ISCAA
RESPONSÁVEL PELA GESTÃO DO EQUIPAMENTO MULTIMÉDIA PARA
APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS DA SALA DE LÍNGUAS
Revista Estudos do ISCAA

RESUMO:

São várias as limitações ao desenvolvimento da escrita nas aulas de


Inglês de cursos técnicos e científicos - falta de tempo,
heterogeneidade de níveis numa mesma sala, elevado número de
alunos por turma. Porque escrever é essencial - é a forma mais
comum de avaliação e uma óptima forma de pensar! - divulgamos
neste artigo uma experiência feita no âmbito da disciplina de Inglês
Aplicado, no ISCA-Aveiro, destinada a promover a produção de
textos mais longos e a estimular a prática da escrita: o Projecto de
Escrita de Diários. Os textos produzidos pelos alunos fornecem um
corpus de erros mais frequentes que possibilita uma abordagem formal
contextualizada na sala de aula.

176
Diários / Writing Journals: Contributo para o Desenvolvimento da Escrita em
Cursos Técnicos

"WHY DO WRITERS WRITE? TO INFORM, TO


PERSUADE, TO ENTERTAIN, TO EXPLAIN, BUT
MOST OF ALL TO DISCOVER WHAT THEY HAVE TO
SAY."
DONALD MURRAY

"HUMAN LEARNING IS FUNDAMENTALLY A


PROCESS THAT INVOLVES THE MAKING OF
MISTAKES"
H. DOUGLAS BROWN

INTRODUÇÃO

O equilíbrio no desenvolvimento das quatro skills - ouvir, falar,


1er e escrever - é essencial para uma formação integral em língua
estrangeira. No entanto, relacionadas por imperativos de tempo,
limitações físicas (de espaço) ou condicionantes com o nível dos
alunos, a escrita é, destas quatro capacidades, a menos exercitada e
"ensinada".
A realidade demonstra que as actividades que envolvem o acto
de escrever, quer na aula quer fora dela, se resumem às seguintes
categorias:

- testes e quizzes;
- traduções;
- exercícios (gramaticais, lexicais, etc.);
- apontamentos
- preenchimento de formulários;
- composições temáticas.

É clara a tendência eminentemente avaliativa das actividades


referidas. Junta-se a este facto a atitude mais frequente dos professores
que, interpretando uma das funções da sua profissão, corrigem

177
Revista Estudos do ISCAA

formalmente os textos que lhes são submetidos, negligenciando os


aspectos de organização e de conteúdo, tal como realça Penny Ur:

"Many teachers are aware that content and organization are


important, but find themselves relating mainly to language forms
in their feedback, conveying the implicit message that these are
what matters. (...) The problem is one of potential conflict between
two of our functions as teachers: language instructors versus
support and encouragement of learning. The correcting of
mistakes is part of the language instruction, but too much of it can
be discouraging and demoralizing. "
(Ur, 1996:170-171)

Esta abordagem tem claras implicações na forma como os


alunos encaram o acto de escrever:

- quanto menos se escrever menos hipóteses há de errar (o que


leva à produção de textos reduzidos);
- usar formas conhecidas implica menor probabilidade de errar
(o que induz a repetir, em vez de criar);
- escrever é uma forma de avaliação (o que deixa implícita a
ideia de ser julgado e, possivelmente, "punido").

A escrita envolve tanto aspectos linguísticos como


comportamentais e cognitivos. Ann Raimes, no seu trabalho
Techniques in Teaching Writing, esclarece que

"(...) writing helps our students learn. How? First, writing


reinforces the grammatical structures, idioms, and vocabulary that
we have been teaching our students. Second, when our students
write, they also have a chance to be adventurous with the language,
to go beyond what they have just learned to say, to take risks. Third,
when they write, they necessarily become very involved with the new
language; the effort to express ideas and constant use of eye, hand,
and brain is a unique way to reinforce learning. " (Raimes, 83:3)

Não permitir o desenvolvimento destas capacidade é limitar a


progressão dos alunos e condicionar a sua evolução académica, tanto

178
Diários / Writing Journals: Contributo para o Desenvolvimento da Escrita em
Cursos Técnicos

em língua materna como numa língua estrangeira. Enquanto a


conversação é estimulada, como forma de expressar opiniões e de
contribuir para o exercício da língua estrangeira, a escrita, pelo
estatuto elevado com que é encarada, não possibilita a exploração,
nem a expressão pessoal ou a descoberta de significado.
Embora seja genericamente aceite que se aprende a escrever
escrevendo, a realidade é que a aula de língua estrangeira não
possibilita, em condições normais, nem o tempo nem a oportunidade
para que isso aconteça. O mesmo não se passa, é verdade, para a
prática da oralidade, promovendo-se a conversação - admitindo até
erros pontuais do discurso, desde que a mensagem não seja
prejudicada - e sendo largamente aceite a noção de que "é falando que
se aprende a falar".
Esta situação é particularmente sentida no caso do ensino de
línguas para fins específicos, onde o elevado número de alunos por
turma, a heterogeneidade de níveis, os tempos lectivos reduzidos e a
pressão para que sejam abordados conteúdos, temas e formatos
específicos limitam grandemente a gestão da aula.
O objectivo deste trabalho é apresentar o Projecto de Escrita de
Diários como uma alternativa para promover o desenvolvimento da
escrita em cursos técnicos e científicos, no ensino superior,
descrevendo a experiência realizada no âmbito da disciplina de Inglês
Aplicado (ano lectivo de 1997/98), do Curso de Bacharelato em
Contabilidade e Administração do Instituto Superior de Contabilidade
e Administração de Aveiro.

1. CONTEXTO

O ISCA-Aveiro disponibiliza duas disciplinas opcionais


semestrais de Língua Inglesa aos alunos do Curso de Bacharelato em
Contabilidade e Administração: Inglês e Inglês Aplicado à
Contabilidade e Administração. As disciplinas funcionam em duas
aulas semanais de Ih 30m cada, durante as 15 semanas do semestre
(um ideal de 45h por semestre). A inscrição nestas disciplinas é livre,
não está sujeita a exame prévio nem a requisitos mínimos e não existe

179
Revista Estudos do ISCAA

precedência entre elas. No ISCA-Aveiro existe apenas um docente de


Inglês. As aulas são conduzidas exclusivamente em inglês, estando o
professor à disposição para esclarecimentos em português, fora do
horário das aulas.
As disciplinas de língua inglesa são as mais requisitadas de entre
as disciplinas do grupo de opções em que se encontram, o que obriga à
formação de turmas com um grande número de alunos (+ - 45 por
turma). Dado que não existe qualquer tipo de selecção dos alunos (a
Língua Inglesa não é uma disciplina nuclear para o ingresso no curso
de Contabilidade), é evidente a existência de uma grande
heterogeneidade de níveis em cada turma.
A gestão da aula de Inglês nestas condições obriga a opções
claras no que diz respeito aos conteúdos a ensinar, ao formato das
aulas e ao tipo de avaliação. O tempo dedicado a actividades escritas é
extremamente reduzido. Por um lado, os alunos são em número
demasiado elevado para que o docente possa acompanhar as
actividades individualmente; por outro, a diferença de níveis requer
uma diversificação das actividades, num esforço de adaptação
impossível de realizar nestas condições.

2. APRESENTAÇÃO DO PROJECTO

Reconhecendo os factos acima expostos, procurou-se, com o


Projecto de Escrita de Diários, ultrapassar a pouca atenção dedicada à
escrita.
Escolheram-se as turmas de Inglês Aplicado do ensino diurno e
nocturno, durante o 2o semestre do ano lectivo de 1998/99, para
apresentação do Projecto. Os motivos da escolha residem no facto de
estas disciplinas funcionarem normalmente no 2o Ano do Curso e na
sua maioria com alunos que já frequentaram antes a disciplina de
Inglês, pelo que:

- os alunos já conhecem o funcionamento da disciplina;


- os alunos já adquiriram conhecimentos introdutórios da área de
contabilidade e administração;

180
Diários / Writing Journals: Contributo para o Desenvolvimento da Escrita em
Cursos Técnicos

- as turmas são geralmente mais reduzidas (+ - 25 alunos).

É, assim, possível não só abordar assuntos mais específicos de


áreas nucleares do Curso, como fazê-lo de uma forma mais
individualizada e demorada.
No início do ano esclareceu-se que, paralelamente às actividades
realizadas no âmbito das aulas - Weekly Report (momento semanal de
prática oral voluntária); Business Comment (tradução e comentário de
notícias sobre economia, retiradas de revistas da especialidade);
Grammar Point (esclarecimento e exercícios sobre estruturas
linguísticas), etc. - os alunos poderiam envolver-se, em regime
voluntário e não avaliativo, no Projecto de Escrita de Diários
(Journals). Para tal necessitavam de:

- um caderno de apontamentos exclusivo para esta actividade


(não se aceitam folhas soltas);
- disponibilidade para escreverem, fora da aula, sobre assuntos
de interesse comum;
- escrever exclusivamente em inglês, um mínimo de duas
páginas por "entrada";
- entregar semanalmente o caderno ao professor para ser lido e
comentado;
- aceitar que o seu texto fosse comentado apenas quanto ao
conteúdo e não quanto à forma (i.e. erros gramaticais, erros de
ortografia, etc.).
Foi também esclarecido que o objectivo desta actividade era
proporcionar aos alunos de Inglês Aplicado uma ocasião para escrever
e 1er em inglês, numa relação de um para um, funcionando o
professor como um "leitor" e não um "corrector", i.e., o professor
propunha-se discutir ideias e opiniões, avançando também as suas e
deixando para outra ocasião a correcção formal dos textos. A
quantidade era claramente mais importante que a qualidade.
Aprender uma língua estrangeira é um processo complexo que
envolve vontade, aprendizagem permanente e prática. Foi tornado

181
Revista Estudos do ISCAA

claro que o sucesso do projecto dependia em grande parte do empenho


de cada um. Com o Projecto de Escrita de Diários pretendeu-se dar
lugar à escrita como forma de pensar e organizar as ideias, não apenas
como forma de produzir textos. Tal como Donald Murray sugere: "In
teaching the process (writing process) we have to look, not at what
students need to know, but what they need to experience. " (Murray,
1982:25).
Durante o semestre eram esperadas 10 entradas. O pretexto para
cada entrada poderia ser um assunto de conhecimento comum, actual
e da área da economia mundial ou nacional, mas poderia também ter a
forma de um comentário a um texto retirado da imprensa, cuja
fotocópia o aluno deveria inserir no caderno, acompanhando a
entrada. Foi sugerido que os textos fossem escritos na página direita
do caderno, deixando a página da esquerda livre para os comentários
do professor.

3. DESENVOLVIMENTO DO PROJECTO

Dos 30 alunos inscritos na disciplina de Inglês Aplicado, apenas


15 aceitaram participar neste projecto e, destes, apenas 8 efectuaram
as 10 entradas sugeridas.
Os cadernos eram entregues ao professor na primeira aula da
semana, lidos e comentados por ele e entregues na aula seguinte,
dando aos alunos 4 dias, incluindo o fim-de-semana, para produzirem
os seus textos.
Para além de 1er e comentar os textos produzidos, o professor
procurou, sempre que possível, lançar questões para discussão,
recomendar leituras adequadas à continuação da discussão, lançar a
dúvida perante certezas dos alunos e estimular o esclarecimento de
opiniões, induzindo à reformulação de partes do texto que estivessem
menos claras. Os alunos puderam escolher entre retomar os temas das
entradas anteriores ou introduzir novos temas. Em cada comentário o
professor tinha a oportunidade de rever as entradas anteriores e não só
verificar os progressos dos alunos como aconselhá-los a reler textos
anteriores. Este processo encontra-se esquematizado na figura 1.

182
Diários / Writing Journals: Contributo para o Desenvolvimento da Escrita em
Cursos Técnicos

Pré-actividade Reacção do Reacção do


professor aluno

Discussão na aula Leitura e Resposta a


Tema do Programa Comentário comentários
Tema livre (conteúdo) +
Comentário a frase Sugestões de novo texto
ou texto leituras
(...)
i i i
a
I Entrada —» Comentário —> 2a Entrada

i
Actividades a
desenvolver na Aula

Aula de análise de erros


Explicação / exerc. gr.
Tema para discussão
Org. de texto
Fig.l

É importante para o sucesso do projecto que os alunos


concebam o seu texto como a "leitura" de outra pessoa (no caso, do
professor) preocupando-se com a audiência e procurando escrever
para serem lidos (e não para serem avaliados!), tal como salienta Ann
Raimes:

"Traditionally, the teacher has been not so much the reader as the
judge of students' writing. (...) One problem that arises from this is
that student writers rarely see that their writing is a piece of
reading for someone else - a piece that should be clear and
interesting to the reader. "
(Raimes, 83:17)

183
Revista Estudos do ISCAA

Cabe ao professor manter a motivação e estimular, através de


comentários/reacções originais, a manutenção do fluxo da escrita.
Donna Brinton sugere que os comentários/reacções do professor
sigam as seguintes máximas:

"Respond directly and personally. Be sensitive. Use journals as


teaching tools. Share experiences. Be honest. " (Brinton, 93:5)

Perante a insistência dos alunos para que os seus textos fossem


também corrigidos quanto à forma (i.e., erros ortográficos,
gramaticais, etc.), o professor propôs-se sublinhar as palavras e/ou
expressões que impedissem a compreensão do texto, que fossem
evidência de distracção do aluno ou que apresentassem erros de
concordância. Para tal foi utilizada como critério de correcção a
definição de erro avançada por Bartram (Bartram, Walton, 1991: 20):

- mistake - erros que um falante nativo não faria - são evidência


de uma tentativa falhada de usar a língua alvo; implicam uma
instrução específica e renovada desse item (feita na aula durante o
Grammar Point); a sua sinalização não contribui para a aprendizagem,
a não ser que venha acompanhada de sugestões de correcção;
- slip - erros que um nativo faria - são evidência de distracção.

Não foram nunca feitas pelo professor correcções com sugestão


da forma correcta. Ficou claro que existem outros momentos para tal
actividade.
Assinalaram-se as "distracções" (slips - ex.: "witch", "whith",
"I like it, to!", "The index rised to ...", "... he didn't wanted to ...")
com sublinhado acompanhado de um ponto de exclamação,
permitindo ao aluno a oportunidade de se auto-corrigir. Se isso não
acontecesse, o professor poderia sempre recomendar a revisão dessa
parte do texto.
Os "erros" propriamente ditos não foram marcados
isoladamente, mas sim em contexto. Quando o texto se apresentava
confuso ou de difícil compreensão, essas partes eram assinaladas -

184
Diários / Writing Journals: Contributo para o Desenvolvimento da Escrita em
Cursos Técnicos

com sublinhado e ?, ou com ondulado lateral - e acompanhados de um


comentário breve, destinado a promover a clarificação (ex.: "Can you
provide an example of this?", "I am not sure I understand your point.
Could you rephrase this?", ...)•
Tanto os erros como as "distracções" mais frequentes foram
objecto de uma abordagem formal na aula, durante a rubrica Grammar
Point. Os casos eram apresentados de forma anónima e organizados
segundo as seguintes categorias (não necessariamente por esta ordem):

- ortografia;
- concordância;
- ordem das palavras;
- adequação de vocabulário e registo de língua.

Era promovida a reflexão colectiva sobre o que estava


incorrecto, qual a regra gramatical aplicável a cada situação e quais as
possíveis alternativas. Desta forma pretendeu-se promover um
conhecimento consciente da gramática da língua inglesa como forma
de maximizar a aprendizagem de uma língua estrangeira, uma
tendência da didáctica das línguas que se vem afirmando ultimamente
(Torre, 95: 293) e com a qual concordamos inteiramente.
A actividade de análise de erros Grammar Point não tinha
periodicidade regular, acontecendo sempre que, do material produzido
pelos alunos ou da interacção oral na aula, se identificassem
problemas que merecessem esclarecimento e instrução específicos.

CONCLUSÃO

O reduzido número de alunos que efectivamente participaram no


Projecto de Escrita de Diários diz bem da fraca popularidade da
escrita entre os alunos. As desculpas apresentadas para justificar a
falta de uma "entrada" variaram entre o "não tinha nada para dizer" e
o "tenho tido muito que fazer". O facto de a maioria dos alunos que
executaram as 10 entradas serem do ensino nocturno (i.e.

185
Revista Estudos do ISCAA

trabalhadores estudantes) revela que o que estava em causa não era


efectivamente falta de tempo.
A característica não avaliativa do projecto, os hábitos difíceis
de eliminar subjacentes à forma como a escrita é ensinada ( ) e as
expectativas dos alunos quanto ao papel do professor como
"corrector" (2) são outras condicionantes que limitaram o seu
empenho no Projecto.
O professor deve aceitar que nem todos os alunos se sintam
estimulados pelo projecto e não queiram por isso participar nele. Isto
pode até ser um factor de singularidade que galvanize ainda mais
aqueles que se sentiram envolvidos desde o início.
Essencial para a gestão deste projecto é também assumir que
os alunos se encontram numa fase de desenvolvimento pessoal em
que reagem mal a serem corrigidos. "Sugerir", "propor" e "pedir a
opinião" são fórmulas mais facilmente aceites pelos jovens, que
suscitam cooperação em vez de confronto.
É importante realçar que esta actividade possibilitou a escrita de
textos que seria impossível produzir de outra forma (tanto na
frequência quanto na dimensão), atendendo às condicionantes acima
expostas. A apresentação e comentário dos erros mais frequentes na
aula possibilitou uma relação directa entre a instrução e as
1
É prática relativamente comum no ensino básico e secundário utilizar actividades
escritas (nas mais diversas disciplinas) como forma de punição perante situações de
indisciplina (ex.: "Estão a fazer barulho?! Então tirem uma folha e vamos fazer um
teste/redacção/ditado!")-
2
O intercâmbio de ideias e a comunicação por escrito não satisfez a maioria dos
alunos que solicitaram uma correcção formal dos seus textos (na convicção de que
assim aprendiam mais!). Isto não impediu, no entanto, que alguns erros de superfície
(essencialmente ortográficos), devidamente assinalados pelo professor,
continuassem a ocorrer. Esta solicitação é reveladora das expectativas dos alunos
quanto à função do professor: a de corrector. Isto porque sempre produziram para
serem avaliados, não para comunicar. É difícil para o aluno compreender a recusa do
professor em corrigir formalmente, preocupando-se essencialmente com a
organização e conteúdo das ideias. Sente-se defraudado nas suas expectativas. Só a
continuidade do projecto pode provar que a prática é a melhor forma de eliminar
erros recursivos.

186
Diários / Writing Journals: Contributo para o Desenvolvimento da Escrita em
Cursos Técnicos

necessidades particulares dos alunos. Esta é também a nossa


interpretação do que Donna Brinton sugere ao recomendar que se
explore o Diário como recurso de ensino: "Use the journal as
teaching tool. " (Brinton, 93:5).
Os Diários permitiram ainda constatar progressos significativos
na organização de texto, na ortografia e na concordância verbal entre
os alunos directamente envolvidos no Projecto. Muitas das
"confusões" iniciais que se materializavam em erros de ortografia
(embora sem impedir a compreensão) foram rareando, tanto pela
prática da escrita quanto pela leitura das formas correctas contidas nos
textos escritos ou recomendados pelo professor.
A disponibilidade demonstrada pelo professor neste projecto
contribuiu para uma maior aproximação dos alunos, promovendo o
processo de cooperação na aprendizagem (ex.: pedidos de
esclarecimento sobre questões de trabalho, dúvidas sobre programas
de TV em canais estrangeiros, sobre formulários de recibos e facturas
de empresas estrangeiras, etc.).
Este projecto exige do professor mais tempo extra-aula, mas o
seu correcto aproveitamento pode beneficiar todos os intervenientes
no processo. O professor pode converter parte do seu tempo de
correcção formal de trabalhos (de reduzida dimensão) feitos na aula
em comentário e análise de textos (mais longos) produzidos por
alunos mais motivados. O aluno pode escrever sem limitações, com
maior autonomia, usando a língua inglesa de acordo com o seu nível,
preocupando-se com a mensagem mais do que com a forma e
exercitando a língua estrangeira para aquele que é o seu fim efectivo:
a comunicação.

BIBLIOGRAFIA ACTIVA

BROWN, H. Douglas (1987), Principles of Language Learning and Teaching, New


Jersey: Prentice Hall.
UR, Penny (1996), A Course in Language Teaching: Practice and Theory,
Cambridge: C.U.P.

187
Revista Estudos do ISCAA

RAIMES, Ann (1983), Techniques in Teaching Writing, New York: Oxford


University Press.
MURRAY, Donald (1982) Learning by Teaching, New York: Boyton / Cook Pub.
BARTRAM, Mark & WALTON, Richard (1991), Correction: mistake management
- A Positive Approach for Language Teachers, London: Language Teaching
Publications.
TORRE, M. Gomes da (1995) "O Ensino das Línguas Vivas Estrangeiras", in Novas
Metodologias em Educação, Porto: Porto Editora.
BRINTON, Donna M. (1993) "Responding to Dialogue Journals in Teacher
Preparation: What's Effective?", in TESOL Journal, vol. 2, No. 4, Summer.
Alexandria /EUA: TESOL Inc.

BIBLIOGRAFIA PASSIVA

FANSELOW, John F. (1987), Breaking Rules: Generating and Exploring


Alternatives in Language Teaching, New York: Longman.
HARMER, Jeremy (1998) How to Teach English. Essex: Longman.
PARROTT, Martin (1993) Tasks for Language Teachers: A Resource Book for
Training and Development. Cambridge: CUP.

188
Revista Estudos do ISCAA, IIa Série, 5 (1999) 189-212

POLINÓMIOS E FUNÇÕES POLINOMIAIS


FACTORIZAÇÃO NO ANEL DOS POLINÓMIOS

MARGARIDA MARIA SOLTEIRO MARTINS PINHEIRO


PROFESSORA ADJUNTA DE MATEMÁTICA
DO ISCAA
Revista Estudos do ÍSCAA

RESUMO:

O presente artigo faz parte de um dos temas discutidos no


concurso de provas públicas para professores-adj untos do ensino
superior politécnico realizado em Dezembro de 1994. Após a
introdução de alguns conceitos básicos, passa-se ao estudo da
irredutabilidade de um polinómio, do ponto de vista dos corpos dos
números complexos, reais e irracionais.

Palavras-Chave
Anel de polinómios, grau de um polinómio; função polimonial: raiz de
um polinómio; factorização de um polinómio; polinómio irredutível.

190
Polinómios e Funções Polimoniais. Factorização no Anel dos Polinómios

PRELIMINARES

O que é um polinómio?
Em cursos elementares de álgebra definimos muitas vezes
polinómio como uma expressão da forma x3 x ou, mais

genericamente, anx" + an_lx"~l+...+a1x+ a0 em que os a,- são


chamados coeficientes e são usualmente números reais. Por esta
definição, x é u m polinómio.
Mas o que é "JC"?
A resposta mais vulgar é a de que "JC" é uma incógnita; isto é,
um número pertencente ao mesmo conjunto dos coeficientes mas que
não está especificado.
Outra resposta à questão "O que é xT é dada, pondo em
destaque que o que realmente tem significado é uma função f, cujo
valor em x é dado, por exemplo, por f(x) = xi x2. Neste sentido

"JC" é afinal o nome genérico de um elemento do domínio da função. A


esta função chamamos função polinomial, definida sobre um corpo e
que toma valores nesse corpo. (Por exemplo, funções reais de variável
real). Através desta perspectiva podemos até dar uma definição
recursiva de função polinomial:
Seja K um anel comutativo.
Chamamos funções polinomiais a todas funções f:K^K tais
que
i) Para cada k e K a função constante / ( x ) = fccom xeK é
uma função polinomial;
ii) A função identidade f(x) = x para todo o xeK, é uma
função polinomial;
iii) Se f(x) e g(x) são funções polinomiais, então também são
funções polinomiais (/ + g)(x) = f(x) + g(x) e (f.g)(x) = f(x).g(x)
Observe-se que esta definição inclui tão somente as funções do
tipo anxn + an_1xn'l+...+aix + a0.

191
Revista Estudos do ISCAA

Mas às vezes dois polinómios distintos induzem a mesma


função, logo esta correspondência não seria sequer aplicação. Por
exemplo, x e x são dois polinómios distintos que dão origem à mesma
função em Z
Outra resposta à questão "O que é xT pode ser a de que é um
símbolo. E o que representa?
A abordagem que vamos aqui seguir, começa por definir
polinómio para finalmente chegar à definição de função polinomial,
pretendendo que a resposta à questão anterior seja pelo menos não tão
embaraçosa.

ANÉIS DE POLINÓMIOS

Definição 1
Seja (A,+,.) um anel. Chamamos polinómio f sobre A, a toda a
sequência do tipo {(a0,a],...,an,...):aj e A} onde apenas um
número finito de termos é não nulo. Como consequência, verifica-se
que, para cada polinómio não nulo/, existe um inteiro não negativo n
tal que an * 0 com ãj =0,\/j>n. Ao número inteiro n chamamos
grau do polinómio f, que representamos por gr(f)=n e a an chamamos
coeficiente principal de/!
(Por questões de notação e de agora em diante, sempre que não haja
perigo de confusão, representaremos o anel (A,+,.) simplesmente por
A)1

Definição 2
No conjunto de todas as sequências {(a 0 ,a x ,...,a n ,...):a t G A]
definimos duas operações, a saber:
(a0,al,...)®(b0,bl,...) = (a0 +b0,al +bx,...)
(a0,a1,...)®(b0,b1,...) = (c0,c1,...) onde
c 0 — ã0t?0

Como caso particular, refira-se que o grau do polinómio nulo não está definido.

192
Polinómios e Funções Polimoniais. Factorização no Anel dos Polinómios

c, = a0bx + axb0
c2 = a0b2 + axbx + a2b0

cr = S a,bj
i+j=r

Teorema 1
Seja A um anel. Então o conjunto dos polinómios sobre A,
munido das operações © e ® atrás definidas, ainda é um anel, a que
chamamos anel de polinómios.

Demonstração:
A verificação de que a adição de polinómios forma um grupo
abeliano, resulta imediatamente da própria definição da operação ©
feita termo a termo sobre as sequências e do facto de A ser grupo
abeliano. O zero do anel é a sequência do tipo (0,0,...,0,...) e a que
chamamos polinómio nulo.
Para provar a associatividade da operação <S>, teremos de provar
quey® (g®h)=(j®g) ®h onde/ g, h são polinómios sobre A. Para a
demonstração calculemos o r-ésimo termo de cada membro. Sejam
f = (a0,al,...) , g = (b0,blt...) e h = (c 0 ,c x ,...)• O p-ésimo termo
de (g®h) é dado por ^Jbicj . Donde, o r-ésimo termo de fS> (g®h)
i+j=p

vem

q+p=r P+q=r '+j=P i+j+q=r

Analogamente, o r-ésimo termo de (f®g)®h vem

l+j=r l+j=r <7+i=í q+i+j=r

Para provar a distribui ti vidade da operação ® relativamente à


operação ©. temos de provar que f®(g®h)=(fS)g)®(J®h) Calculando
os termos de ordem r de cada membro, encontramos
^[a^bj +Cj) e ^afij + X a < c ; respectivamente.
i+j=r i+j=r i+j=r

193
Revista Estudos do ISCAA

Pela distribuitividade em A tiramos a conclusão pretendida. *

De modo a que a abordagem adoptada se aproxime da visão


usual dos polinómios, introduzimos de seguida algumas notações.
Designemos por axr o polinómio (0,0,...,a,0,...)onde a é o (r+l)-ésimo
termo do polinómio. Assim, por exemplo, ax°=(a,0,...) e
ax!=(0,a,0,...).
Então, s e / é um polinómio de grau n (a0,al,...,an,0,...) pode
tomar a forma a0x° +a 1 ^ 1 +...+a n x" . Simplificando a escrita e
representando simplesmente por a o polinómio ax° e por ax o
polinómio ax verificamos então que qualquer polinómio
(a0,al,...,an,0,...)pode ser escrito como a0+a1x+...+anxn ; é esta
convenção que estabelece a ligação entre a definição l e a definição de
polinómio que já conhecíamos.
Designemos a partir de agora e pelas razões apontadas, por A[x]
o anel dos polinómios sobre A na indeterminada x. Os elementos de
A[x] são geralmente representados por letras minúsculas ,por exemplo
/ o u mais geralmente por f(x). Aos elementos de A identificados com
A[x] chamamos polinómios constantes.2
Outra forma de relacionar as duas definições dadas tem por base
o seguinte teorema:

Repare-se que a definição agora dada de polinómio é coerente com a definição


usual de polinómio. Assim, dados os polinómios pl(x) = x2 — 3x + 2 e
p2 (x) — X + 4x — 3x +\ a sua soma é o polinómio
p3(x) = x5 +4x3 -2x2 + 3 x - l . Utilizando a definição 1, temos pi=(2,-
3,1,0,0,...) p2=(l,0,-3,4,0,l,0,0,...) e p,+p2=(3,-3,-2,4,0,l,0,0,...) que representa p3
na nova notação.

194
Polinómios e Funções Polimoniais. Factorização no Anel dos Polinómios

Teorema 2
Seja:
ç: A —> A[x]
r _> (>5o,... ) • Então cp é um monomorfismo.

Demonstração:
Queremos provar que (p(r+s)=(p(r)©cp(s) e ainda que
(p(rs)=(p(r)®(p(s) para todos os elementos r,s de A. Ora, por construção
(p(r+s)=(r+s,0,0,...) e pela definição 2
(p(r)0(p(s)=(r,O,...)©(s,O,...)=(r+s,O,...).
De modo análogo provaríamos a segunda relação. *

Como consequência do teorema (p(A)={(r,0,...) reA} é um


subanel de A[x] isomorfo a A, o que justifica a equivalência das duas
definições.
No que se segue, utilizaremos pois a notação
anx" + an_xxn~x +.. .+axx + a0 em vez da notação indicada na definição
1, tendo sempre em conta que um polinómio pode ser encarado como
uma sequência de coeficientes .

G R A U D E UM POLINÓMIO

Recorde-se que ao introduzirmos na definição 1 a noção de grau


de um polinómio, associamos a cada polinómio não nulo, um número
inteiro não negativo. Por convenção tome-se gr(0)=-°°.
Onde 0 representa o polinómio nulo. Temos assim:
gr:A[x]^Z;u{-oo}
f^gr(f)=n

3
A partir de agora e caso não haja dúvidas, representaremos apenas por + e x as
operações definidas na definição 2.

195
Revista Estudos do ISCAA

Ainda por convenção (-oo)+(-oo)=(-oo) com (-°o)<n, sendo n um


número inteiro não negativo.

Proposição 1
Sejam f,geA[*]. E ntão gr(f + g)<max{gr(f),gr(g)} e
gr(pcg)<gr(f) + gr(g)

Teorema 3
Se A é um domínio de integridade então A[x] é um domínio de
integridade e nestas condições gr(fxg) = gr(f) + gr(g)\/f ,g e A[x]

Demonstração:
No teorema 1 foi já demonstrado que, sendo A um anel, também
A[x] é um anel. Por outro lado, é imediato que, se A é um anel
comutativo com elemento unidade, também A[x] é um anel
comutativo cujo elemento unidade é o polinómio constante 1 (distinto
do polinómio nulo). Falta provar que, se A não tem divisores de zero
também A[x] não tem.
Para tal, considerem-se dois elementos f e g de A[x], não
nulos, tais que
f(x)-anx" +an_lxn~l+...+alx + a0 com an ■£■ 0
e g(x) = bmxm +bm_lxm-1+...+blx + b0 com bm*0
Então, por definição, (fxg)(x) = cn+mx"+m+...+clx + c0 onde os
e, se determinam de acordo com a definição 2. Como A é domínio de
integridade e anïO e bm*0 , tem-se anbm*0 . Mas anbm - cm+n .
Logo fxg * 0. Provámos assim que, sendo f e g dois elementos
não nulos de A[x] se tem fxg ï 0 o que prova não existirem divisores
de zero em A[ x ]. Conjugando este resultado com as conclusões
anteriores, fica provado que A[x] é um domínio de integridade.
Do que foi dito podemos também concluir que
gr(fxg) = n + m=gr(f) + gr(g)\/f,ge A[x] c.q.d.*

196
Polinómios e Funções Polimoniais. Factorização no Anel dos Polinómios

FUNÇÕES POLIMONIAIS

Definição 3
Seja A um anel. Uma função yr:A —>A diz-se uma função
polinomial se existe um polinómio anx" +an_1;c""1+...+a1x + a0 de
A[JC] tal que, para todo o be A se tem
n n1 4
y(b) = anb + an_lb ' +...+blx + b0

POLINÓMIOS SOBRE UM CORPO

Iremos falar de seguida de polinómios sobre um corpo, dado


que, de um certo modo, podemos dizer que o anel A[x]é
particularmente "bem comportado" quando A é um corpo.

Teorema 4
Seja K um corpo e sejam f,geK[x] dois polinómios. Sendo
g ï 0 existem q,reK[x] tais que f=gq+r onde gr(r)<gr(g) ou r=0. Os
polinómios qtr assim definidos são únicos.

Demonstração:
I a parte: demonstração da existência dos polinómios qe r.
É claro que, sef=0 então o teorema verifica-se trivialmente com
q=r=0. Suponhamos / # 0 e seja gr(f)=n e gr(g)=m. Note-se que, se
n<m então basta fazer q=0 e r=f. Consideremos então n>m. Vamos
proceder por indução sobre n. Se gr(f)=0, isto é, se n=0, vem gr(g)=0
pelo que os polinómios são constantes. Nesse caso a existência de q e
r está garantida, uma vez que K é corpo. (Recorde-se que, num corpo,

4
Cada polinómio f(x) = ãnx" + an_,x"~ +...+a1x + a0 pode obviamente ser
associado à função definida em A cujo valor em bE A é dado por
anbn -\-an_xb"~ Jr...Jrblx + b0 e que notaremos por
f(b) = anb"+an_1b-1+...+aib + b0.

197
Revista Estudos do 1SCAA

as equações do tipo ax-b têm uma única solução do tipo a b). De


facto, sendo f=a e g=b, com a,beK e i ^ O , basta fazer r=0 e q—ab1.
Admita-se agora a veracidade da proposição para todo o / tal que
gr(f)<n. Sejam f(x) = anxn + an_lx"~l+...+a1x +a0 com an * 0
e g(x) = bmxm +bm_1xm-1 +...+b1 x + b0 com bm * 0
Consideremos o polinómio qx = anbm~lx"~m . Obtem-se assim:
f=gqi+n (i)
com ri-f-gqi onde gr(ri)<n ou rj=0 .
Pretendemos provar que a proposição ainda é válida para
gr(f)=n.
Ora, sendo ainda r}EK[x]. e por hipótese de indução, existem
polinómios q2 e r2 de K[x]. tais que rj=gq2+r2 com T2=0 ou
gr(r2)<gr(g). Substituindo em (1) vem f=gqj+gq2+r2 ou seja
f=g(qi+q2)+r2 . Fazendo q=qi+q2 e r-r2 tem-se finalmente
gr(r)<gr(g) ou r=0, o que dá por findo o processo de indução e
demonstra a existência de q e r.

2aparte:.demonstração da unicidade de q e r
Por absurdo, suponhamos que q e r não eram únicos; isto é,
f=gq+r com r=0 ou gr(r)<gr(g)
f=gq'+r com r'=0 ou gr(r')<gr(g) (com g ^ g ' ou r±r').
Mas então gq+r=gq'+r' . Pelas propriedades do corpo g(q-q')=r'-r .
Pelo Teorema 3,
gr(g(q-q'))=gr(g)+gr(q-q'). Logo gr(g)+gr(q-q')=gr(r'-r).
Por outro lado, pela proposição 1, gr(r'-r)<max{gr(r'),gr(>)} .
Mas, por hipótese, max {gr (r'),gr(r)} < gr(g).
Logo gr(g)+gr(q-q')<gr(g) ; ou seja gr(q-q')<0 . Mas então
gr(q-q')=-°°; atendendo às convenções feitas resulta q-q'=0 e portanto
q=q'. Donde resulta, f=gq+r e f=gq+r' e finalmente r=r', como
pretendido. *

198
Polinómios e Funções Polimoniais. Factorização no Anel dos Polinómios

POLINÓMIOS DE VÁRIAS VARIÁVEIS

Antes de continuarmos o nosso estudo sobre polinómios e sua


factorização, façamos referência, ainda que breve, a polinómios de
várias variáveis.
Consideremos o polinómio x2 + xy + y2 . Podemos considerá-lo
como um polinómio em y com coeficientes em A[X]. Tal afirmação
tem sentido, bastando fazer 5 = A [ X ] que é um anel, tal que
B[Y]= A[X ,Y]-
Se agora considerássemos o polinómio zx + 2(x + y)z ,
podiamos, de um modo idêntico, pensá-lo como um polinómio em z
com coeficientes em A[X,r] e que notaremos por A[X,y,Z] . A
definição é indutiva.

Definição 4
Seja A um domínio de integridade e seja A(0)=A. Define-se
indutivamente A(n) tal que A(n) = A ( " _1) [z] .

De outro modo, se feA (n) então f pode ser escrito como uma
sequência (ao,aj,...) com ai e A (n_1) . (Isto é, cada a, é ainda uma outra
sequência e assim sucessivamente).

RAIZ DE UM POLINÓMIO. TEOREMA DA FACTORIZAÇÃO.

Definição 5
Seja fe A[x] onde A é um domínio de integridade. Chama-se
raiz de f a todo o elemento ce A tal que/fcj=0.

Apresentamos de seguida um teorema que caracteriza as raízes


de um polinómio deÁT[x], sendo K um corpo.

199
Revista Estudos do ISCAA

Teorema 5 (Teorema da factorização)


Seja K um corpo e/E K[X]. Então aeK é uma raiz de f se e só
se x-a é um divisor de f.

Demonstração:

Suponhamos que a é raiz de f. Consideremos um polinómio x-a. Pelo


teorema 4, sabemos que exstem polinómios g.reíTfX] tais que/=(x-
a)q+r com r=0 ou gr(r)<l. Ou seja, r-0 ou r é uma constante. Em
particular e para x=a, tem-se f(a)=(a-a)q(a)+r e logo f(a)=r.
Como, por hipótese a é raiz de /, resulta r=f(a)=0. Concluímos
assim que o resto da divisão de f por x-a é igual a zero; ou seja, f é
divisível por x-a.
«=)
Para provar a implicação em sentido contrário, comecemos por
admitir que x-a é um divisor de f. Isto é, que existe qG K[X] tal que
f=(x-a)q. Em particular, f(a)=(a-a)q donde resulta f(a)=0. Mas tal
significa que a é raiz de f, como queríamos provar. *

Definição 6
A raiz a de um polinómio f diz-se de multiplicidade k se (x-a) é
um divisor de f mas (x-a)k+1 já não é divisor de f.

Teorema 6
Seja fe K[x] e aeK.
a é uma raiz de f de ordem de multiplicidade r se e só se f=(x- a)rq
onde qG K[X] e tal que a não é raiz de q.

Demonstração:
(=>)
Ora, por definição, sendo a uma raiz de f de ordem de
multiplicidade r, sabemos que {x-aj é um divisor de f. Em particular
f=(x-a)rq para algum qG K[X] .Queremos provar que a não é raiz de

200
Polinómios e Funções Polimoniais. Factorização no Anel dos Polinómios

q. Por absurdo e se tal acontecesse então q era divível por x-a e


poderíamos escrever q=(x-a)q' para algum ç'eíT[Z]. Mas então
r=(x-a)r+1q' e (x-a)r+1 dividiria f o que contradiz a definição de a ser
raiz de ordem de multiplicidade r. O absurdo resultou de se ter suposto
que a era raiz de q. Logo, concluímos que a não é raiz de q, como
pretendíamos.

(<=)
Para provar a implicação contrária, consideremos f=(x-a)rq ,
com çeA'fX]. Por absurdo, suponhamos que a é uma raiz de f de
ordem de multiplicidade m, com m>r. Por definição f=(x-a)mqi , para
algum qie K[x]. Mas então e pela transitividade, (x-a)rq=(x-a)mqi ■
donde (x-a)m'rqi=q , com m-r>0, o que significa que a é raiz de q, o
que contraria a hipótese. O absurdo resultou de se ter suposto que a
era raiz de f de ordem superior a r. Logo podemos concluir que a é
raiz de f de ordem de multiplicidade r, como pretendíamos. *

Outro teorema essencial da teoria de anéis de polinómios diz


respeito ao número de raízes de um polinómio.

Teorema 7
Seja K um corpo e fe K[X]. Se gr(f)=n , com n>0, então f tem
no máximo, n raízes distintas em K.

Demonstração:
Vamos proceder por indução sobre n.
Se gr(f)=l então tem-se f=ao+a;x e -aoaf1 é a única raiz de f.
Logo a proposição é verdadeira para n=l. Admita-se a proposição
verdadeira para n-1; isto é, que se um polinómio tem grau n-1, então
tem, no máximo, n-1 raízes distintas.
Seja f tal que gr(f)=n. (É claro que se f não tem nenhuma raiz, o
teorema fica imediatamente demonstrado). Suponhamos então que f
admite pelo menos uma raiz, seja a. Pelo teorema da factorização,

201
Revista Estudos do ISCAA

existe qe K[X] tal que f=(x-a)q. Pelo teorema 3 e atendendo a que


todo o corpo é domínio de integridade, podemos escrever
gr(f)=gr(x-a)+gr(q) ; ou seja, n=l+gr(q). Logo gr(q)=n-l . Por
hipótese de indução, q tem no máximo n-1 raízes distintas. Mas,
porque f=(x-a)q qualquer raiz de f, distinta de a, é também raiz de q,
pelo que se pode concluir que f tem, no máximo, n raízes distintas,
c.q.d. *

Antes da definição propriamente dita de polinómios irredutíveis,


vamos introduzir novos conceitos.

Definição 7
Seja A um anel comutativo com elemento identidade 1. Um
elemento e de A diz-se uma unidade se c.e=l=e.c , para algum c de A.
Designamos por U(A) o conjunto de todas as unidades de A.

Definição 8
Seja A um anel comutativo com elemento identidade 1 e seja b
um elemento de A. Um elemento a de A diz-se um associado a è s e e
só se a=be , onde e é uma unidade.

Definição 9
Seja A um domínio de integridade. Um elemento r de A diz-se
irredutível se :
i) r£U{A)
ii) Se r=ab, então ou a é uma unidade ou b é uma unidade.

Definição 10
Um domínio de integridade A diz-se um domínio de
factorização única (DFU) se:
i) Todo o elemento a e A \ {0} admite uma factorização do tipo
a=u.ai.ã2....a„ onde UEU(A) , n>0 ea(- é irredutível, para i=1,..., n.

202
Polinómios e Funções Polimoniais, Factorização no Anel dos Polinómios

ii) Tal factorização é única; isto é, se u.ai.ã2....an -


u'.a'i.a'2....a'm com w,w'eí/(A) , n > 0 , m > 0 , a,-,aj irredutíveis,
para i=l,...,n e j=l,...,m então n=m e existe uma permutação TI de
{l,2,...,n} tal que a\ é associado de a\i).

Definição 11
Seja A um domínio de integridade e v uma função tal que
v: A —» Z 0 + e que verifica as condições:
a) \/aeA,\/beA\{0},3q,reA:a = bq + r com r=0 ou
vCr/)<vf&)
b) Vfl,è6A\{0),v(a)<v(&)
À estrutura formada pelo domínio de integridade A munido da
função v assim definida chamamos domínio euclediano.
Como consequência desta definição e do que até aqui foi visto,
podemos concluir que "Se K é corpo, então K[x] munido da função
grau, é um domínio euclediano"

Definição 12
Seja K um corpo e pe K[X] . Diz-se que p é um polinómio
irredutível sse:
i) p não é um polinómio constante;
ii) Para todos os g.he K[X] se p=gh, então ou h é um polinómio
constante não nulo ou g é um polinómio constante não nulo.

A questão seguinte é a de saber quais são os polinómios


irredutíveis em K[X]. Antes porém verifiquemos que:

Proposição 2
Se pe K[X] é um polinómio de grau um, então p é irredutível.

203
Revista Estudos do 1SCAA

Demonstração:
De facto, se p é um polinómio de grau um, então p não é
constante. Falta provar que, se p=gh com g,/ie K[x], então g é um
polinómio constante não nulo ou h é um polinómio constante não
nulo. Suponhamos, por exemplo, que g não é um polinómio
constante. Logo gr(g)> 1 . Por absurdo, suponhamos que h também
não é um polinómio constante e logo gr{h) > 1 . Pelp teorema 3
gr(p)=gr(g)+gr(h) . Logo gr(p) > 2 o que contradiz a hipótese. O
absurdo resultou de se ter suposto que h não era constante. Logo h é
um polinómio constante . c.q.d. *

Proposição 3
Seja ueU(A) e veA tal que u=kv para algum keA. Então
V£[/(A).

Demonstração:
Queremos provar que existe v'e A tal que v.v'=l= v'.v. Ora,
por hipótese, 3u'e A:u.u'= 1 = u'.u . Substituindo atrás, vem
1= u.u'= (kv).u'= (u'k).v ; pelo que basta tomar v'=u'k .
De modo análogo procederíamos para a outra igualdade. *

Iremos de seguida abordar a questão dos polinómios irredutíveis


nos casos de C[X],/í[X],Q[X] .

POLINÓMIOS IRREDUTÍVEIS C[X]

O teorema básico que permite determinar os polinómios


irredutíveis em C[X] é conhecido pelo teorema fundamental da
álgebra.

204
Polinómios e Funções Polimoniais. Factorização no Anel dos Polinómios

Teorema 8 (Teorema fundamental da Álgebra)


Todo o polinómio pe C[X] de grau superior ou igual a um,
tem uma raiz em C.

Para a demonstração, ver "A concrete introduction to higher


algebra" de Lindsay Childs; 1979, Springer Verlag.
Como consequência apresentamos o corolário seguinte:

Corolário
pe C[X] é um polinómio irredutível se e só se gr(p)=l
(Isto é, em C os únicos polinómios irredutíveis são do primeiro grau).

Demonstração:
Já vimos que se o grau de p é um, então p é irredutível. Falta
provar a implicação contrária; suponhamos que pe C[x] é um
polinómio irredutível. Então gr(p)>l . Logo, pelo teorema
fundamental da álgebra, p tem uma raiz em C.Designemos por a tal
raiz. Por outro lado e atendendo ao teorema 5, p=(x-a)q , par algum
qe C[X] . Ora, como p é irredutível e (x-a)í í/(c[x]) resulta, pela
proposição 3 que qeU(c[x]j . Mas então q é um polinómio
constante não nulo e logo gr(p)=l. c.q.d. *

POLINÓMIOS IRREDUTÍVEIS R[X]

Analisemos o estudo da irredutabilidade de polinómios com


coeficientes em R à luz do resultado seguinte.

Teorema 9
/?e/?[X] é um polinómio irredutível se e só se gr(p)=l ou
p=ax2+bx+c com a # 0 e è 2 - Aac < 0

205
Revista Estudos do ISCAA

(Isto é, os polinómios irredutíveis em R[X] são os de primeiro grau e


todos os de segundo grau cujo binómio discriminante é negativo).

Demonstração:
(=0
Seja peR[X] um polinómio irredutível . Então gr(p)>l. Se
fôr gr(p)=l o teorema fica provado. Caso contrário, suponha-se
gr(p) > 2. Pelo teorema 8 e porque Rr C, p tem pelo menos uma raiz
complexa. Seja a tal raiz. Então podemos escrever a = w+si com
s * O. Seja h = (x - a)(x - a) com a = w - si Efectuando os cálculos
facilmente se verifica que então h e R[X] \ {0}. Então e pelo teorema
4, existem q,reR[X] tais que p-hq+r com r=0 ou gr(r)<gr(h)
sendo gr(h)=2. Suponhamos gr(r)<2; isto é, r=a}x+a0 com a , , , » ^ ^ .
Por outro lado e como a é raiz de p tem-se p(a)=0. Portanto
0=p(a)=(hq+r)( a)=h(a)q(a)+r(a)=r(a).
Isto é, r(a)=0
ou seja aj(a)+ao=0
ai(w+si)+ao=0
(ao+aiw)+aisi=0
Donde resulta (ao+aj\v)=0 e ajs=0 .Como s ï O resulta aj=0 e
portanto a0=0. Mas então r=0 donde p=hq, com h E R[X] \ {6},
q £ R[X] e gr(h)=2. Como, por hipótese p é irredutível, tem-se que q
é um polinómio constante não nulo, donde gr(h)=gr(p)+gr(q)=2+0=2
Seja p=ax +bx+c . Como sabemos este polinómio tem duas
-b + Vè 2 - Aac -b - 4b1 - Aac
raízes, al = e a2 = , que só são
2a 2a
2
reais se b - 4ac> O . Mas, se tais raízes fossem iguais, o polinómio
p poderia ser escrito p = a(x-al)(x-a2) , com a constante, o que
contraria a hipótese de pe R[X] ser um polinómio irredutível. Logo
b2 -4ac<0.

206
Polinómios e Funções Polimoniais. Factorização no Anel dos Polinómios

Já vimos que, se gr(p)=l então p é irredutível. Suponha-se então


p=ax +bx+c com a # 0 e í ) 2 - Aac < 0. Logo p não é uma unidade.
2

Sejam f.ge R[X] tais que p=fg; e gr(p)=2. Ou seja, gr(f)+gr(g)=2 .


Portanto, ou gr(f)=2 e gr(g)=0 ou gr(f)=l e gr(g)=l ou gr(f)=0 e
gr(g)=2. Mas, se fosse gr(f)=gr(g)=l e sendo p=fg, resultava que p
tinha duas raízes reais o que contradiz o facto de b - \ac < 0.
Concluímos então que
P = fg^(gr(f) = 2Agr(g) = 0)v(gr(f) = 0Agr(g) = 2).
Ou seja, p = fg=*ge U(R[X)) V/G U(R[X]) .
Resumindo, provámos que:
Í)P£U(R[X])
ii) \/f,geR[x] p = / g = > / é um polinómio constante não
nulo ou g é um polinómio constante não nulo; c.q.d. *

POLINÓMIOS IRREDUTÍVEIS Q[X]

Vimos anteriormente como resolver o problema da determinação


de polinómios irredutíveis em C[x] e em R[X] .Vejamos o que se
passa em Q[X], Ora, até hoje, ninguém conhece uma resposta para a
questão "Quais os polinómios irredutíveis em <2[X]?" O que se
conhece são apenas condições suficientes. Assim, sendo fe Q[X]
basta multiplicar o polinómio f por um inteiro suficientemente grande
para que todos os coeficientes resultem inteiros. O polinómio assim
encontrado tem exactamente as mesmas raízes que o polinómio dado.
Ou seja, se conseguirmos factorizar o polinómio inicial com
coeficientes em Q, também conseguimos factorizar o polinómio
encontrado com coeficientes inteiros e queremos é saber se esta
factorização é ou não irredutível sobre os racionais. Seja
Pi
p = a0+ a^+.-.+a^" £ Q[X\ onde, para cada i=0,...,n ai = —' - com

207
Revista Estudos do ISCAA

p, 6Z,q i e Z \ {0},m.d.c.(/?,,qx ) = 1 . Seja ainda


t = m.m.c.(q0,---,q„)- Então tïO e podemos escrever/? tal que
p=l/t(tp) com tpe Z[x]. Ora p é irredutível em <2[-X"] se e só se tp
também é irredutível em Z[x]. Para polinómios em Z[X] podemos
enunciar:

Teorema 10
pe Z[Z]é irredutível em Q[X] se e só se p é irredutível em
Z[X].
Para a demonstração, ver "Lectures in abstract algebra I" de
Nathan Jacobson; 1975, Springer Verlag.

Deste teorema podemos concluir que a determinação de


polinómios irredutíveis em Q[x] pode reduzir-se à determinação de
polinómios irredutíveis em Z[X].
O teorema seguinte é um critério que permite, sob algumas
condições, determinar polinómios irredutíveis em Z[X].

Teorema 11 (Critério de Eisenstein)5


Seja p-a0 + axx+...+anxn com a ^ O e n > 2 um polinómio
de Z[X]. Se existe um número primo a e Z tal que:

i) aXan
ii) a\ãi com i=0,...,n-l
iii) cfXao
então p é irredutível em Z[X].

Antes da demonstração vejamos alguns conceitos preparatórios


do teorema enunciado.

O símbolo \ deve ler-se "divide".


O símbolo X deve ler-se "não divide".

208
Polinómios e Funções Polimoniais. Factorização no Anel dos Polinómios

Definição 13
Seja D um domínio de integridade crés elementos de D. Diz-se
que r divide s (simbolicamente r\s) se existe ke. D tal que s=kr.

Definição 14
Seja D um domínio de integridade e r um elemento de D. Diz-se
que r é um elemento primo em D se e só se:
i ) r í O e r€U{D)
ii) Dados a ,beD, se r\ab então r\a ou r\b

Posto isto, passemos à demonstração do teorema anterior.

Demonstração (do critério de Eisenstein):


Por absurdo, suponhamos que p não é irredutível em Z[X].
Então existem polinómios não constantes, / e g de Z[X] tais que
p=fg. Suponhamos / = b0 + blx+...+brxr ,br ï 0,r> 1 e
5
g = c0+ qjc-K..+csx ,cs * 0,5 > 1 e ainda, sem perda de generalidade
que r>s . Observe-se que e como consequência do teorema 3,
gr(p)=gr(f)+gr(g) o que implica n=r+s. Da própria construção, resulta

ax = V i + V o

as=b0cs+b1cs_l+...+bsc0

ar =b0cr + V r -i+---+Vo

a„ = brcs
Por hipótese ii) ocVzo isto é, a\boCo . Como a é primo, a\bo ou
a\co . Podem então ocorrer três situações:
1) a\bo e cc\co
2) a\b 0 e ocXc0

209
Revista Estudos do ISCAA

3) aXbo e a\c 0
Se ocorresse o primeiro caso, tínhamos b0 - ka e c0 -k'a
com k,k'eZ Logo a0 = b0cQ - kak'cc = kk'a2 Mas então a 2 \a 0 o que
contradiz a hipótese iii) . Não podendo ocorrer a situação 1 é porque
se deve verificar a situação 2 ou a situação 3. Suponhamos que se
verifica a situação 2. Então a\t>o e oc\ai e a1 = b0cx + bxc0 o que
implica a\b]Co. Mas como otXc0 e a é primo, terá de se concluir que
oc\bi . Analogamente cc\b0 e cc\t>i e cc\a2 e az - b0c2 + bxcx + b c0 o que
implica oc\D2Co . Mas como aXco e a é primo, terá de se concluir que
cc\b2. Continuando um raciocínio análogo, concluímos que a\bj com
j=0,...,r. Por último e atendendo a que an = brcs e a\br conclui-se que
oc\an , o que contradiz a hipótese 1.
Não podendo ocorrer nem 1 nem 2 é porque deve ocorrer 3.
Suponha-se então que 3 se verifica. Então a\co e a\ai e
a, = b0c] + 6,c0 o que implica cc\boCi. Mas como ocXbo e a é primo,
terá de se concluir que a\ci. Mas então a\co e a\ci e a\a2 e
a2 =b0c2 +blcl +b c0 o que implica a\boC2. Como ocXbo e a é
primo, terá de se concluir que a\c2. Continuando um raciocínio
análogo, concluímos que a\ck com k=0,...s. Por último e atendendo a
que an =brcs e cc\cs, tem-se que oc\an o que é absurdo. O absurdo
resultou de se ter suposto que p não era irredutível. Logo p é
irredutível, c.q.d. * 6

Vejamos outro exemplo.


Estude-se a irredutabilidade de x4+x3+x2+x+l sobre Q[X]. Será
que, mediante algum artifício poderemos aplicar o teorema de
Eisenstein a este polinómio? Faça-se a substituição se x por x+1.
f(x + 1) = (JC + l) 4 + (x + l) 3 + (x + l) 2 + (JC + 1) + 1

O teorema 11 é apenas um critério e que nem sempre permite determinar


polinómios irredutíveis de <2[-^J- Por exemplo, x2+3 não verifica as condições do
teorema e contudo é irredutível sobre os racionais.

210
Polinómios e Funções Polimoniais. Factorização no Anel dos Polinómios

f(x + 1) = x4 - 5JC3 + l(k 2 +10* + 5


Podemos agora aplicar o teorema, com o primo 5 e concluir que
f(x+l) é irredutível. Mas então f(x) também é irredutível uma vez
que,fazendo y=x+l concluímos ser f(y) irredutível.
Provemos um último teorema.

Teorema 12
Seja f um polinómio tal que f = a0+ a^x+..A-anxn ,an ■*■ 0 . Se

- fôr uma raiz racional de/(com reZ e seZ\{0} eres primos entre
s
si), então r\xo e s\an.

Demonstração:
Se - é raiz de f(x) então f(-)=0 ; ou seja
s s
a0 + ai(r/ s)+...+a„_,(r / s)"-1 +an(r/s)n=0
Desembaraçando de denominadores, vem
sna0+alsn-1r+...+an_lrn-ls + anrn = 0
elogo
r{alsn-x+...+an_lrn-2s + anrn-x) = -aQsn
Mas então o primeiro membro da equação é múltiplo de r, pelo
que também o segundo membro o é. Ou seja, r\ a0sn . Como, por
hipótese, r e s são primos entre si e sn tem um número finito de
divisores resulta que, ao fim de um número finito de tentativas,
encontramos que r\ao .
De modo análogo, se tivéssemos dado à expressão
s"a0 +alsn-lr+...+an_lrn'ls + anrn = 0
a forma equivalente
s(a0s"-i+...+an_lrn-2s) = -anrn
e efectuando um raciocínio análogo, concluiríamos que s\an , como
pretendíamos. *

211
Revista Estudos do ISCAA

Exemplo:
Estude-se a irredutabilidade de x3-3x-l em Q. Comecemos então
f
por construir todas as possíveis fracções do tipo - onde Aa0 e s\an .
s
Ora, os únicos divisores inteiros de an e a0 são 1 e -1. As possíveis
fracções são apenas 1/1 , -1/1 , 1/-1 , -1/-1 ; ou seja, o polinómio só
pode ter duas raízes racionais, 1 e -1. Efectuando os cálculos,
verificamos que / ( 1 ) * 0 e / ( - 1 ) * 0 , pelo que nem 1 nem -1 são
raízes. Logo x -3x-l não tem raízes racionais pelo que é irredutível.
A laia de observação final, diga-se que nem sempre é tarefa fácil
decidir se um dado polinómio é ou não irredutível, apesar de existirem
certas regras gerais.

BIBLIOGRAFIA

GODEMENT, R. (1966) Cours d'Algèbre. Hermann, Paris.


SANTOS, V., (1994) Apontamentos de Álgebra, Universidade de Aveiro.
(1994).Apontamentos de Álgebra, Mestrado da Universidade de Coimbra

212
SUGESTÕES PARA APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAIS

1. Os originais podem ser acompanhados por uma nota biográfica que não exceda três linhas.
2. Os textos devem fazer-se acompanhar de um sumário elaborado de acordo com os tópicos do
artigo.
3. Os artigos não podem, em princípio, exceder 25 páginas, marginadas de acordo com os
parâmetros da Revista. As recensões não devem ultrapassar as cinco páginas.
4. Os originais serão acompanhados de registo em diskete, de acordo com as seguintes normas de
processamento de texto:
4.1. Sistema Operatitvo: MS/DOS - ambiente Windows.
4.2. Tipo de Letra:Times New Roman, com o seguinte tamanho: 14 no título, 13 nos capítulos, 12
nos subcapítulos, 10 nas subdivisões menores, tudo em small caps; 12 no texto e 10 nas notas.
4.3.Alinhamento do texto em centímetros: Top. 5,5; Bot. 6,75; Ins.5,5; Out. 3,5; Head. 1,25;
Foot.5,5; Parágr.1,0; espaço entre linhas 1,0 e com opção de páginas par e ímpar.
5. Bibliografia, referências bibliográficas, citações e notas.
5.1. A Bibliografia deve ser ordenada com base no apelido do autor: Amorim, Jaime Lopes. Se a
obra for colectiva, normalmente mais de três autores, refere-se pelo nome do 1.° autor e pelo vocábulo
latino alii ( ou apenas al.). Ex: Amorim, Jaime Lopes et al. (ou e o.).
5.2. As referências bibliográficas devem seguir as orientações vulgarmente aceites: rigorosas,
precisas e uniformes, respeitando o seu carácter específico.
As monografias devem inserir as seguintes informações: autor, (eventualmente o ano da 1.' ed.),
título, volume, edição, local da edição, editor, colecção, ano da edição consultada.
Os artigos das publicações periódicas devem referir: autor, título do artigo, in (título da
publicação), local da publicação, série, volume, n.°, data, com referência ao mês(es) e/ou elementos
relacionados com a periodicidade - v.g. 1 ° trimestre, ano, págs (50-75) em que se encontra o artigo.
5.3. As referências bibliográficas coladas às 1." citações devem acrescentar aos campos
enunciados em 5.2, a(s) página(s) - p. ou pp. - e, se for caso disso, como nos Dicionários e Jornais, etc.
a(s) coluna(s). Ex. Godinho, Vitorino Magalhães, Complexo histórico-geográfico, in Joel Serrão,
(Dir. de), Dicionário de História de Portugal, Vol. 1/A-D, Porto, Iniciativas Editoriais/Figueirinhas,
p. 645, col. 2. As referências bibliográficas relativas às 2."s citações colhem a vantagem da sequência das
notas: aparecem abreviadas recorrendo aos vocábulos latinos idem (autor), ibidem (obra) e, às vezes,
passim (em vez de uma indicação precisa da página). A redução dos campos bibliográficos acontece
igualmente quando as referências têm por suporte a bibliografia geral. Ex: Amorim, Jaime Lopes A (ou
B); ou simplesmente o ano de publicação: Amorim, 1929, p. 20.
5.4. Localização das referências bibliográficas.
5.4.1. As referências bibliográficas podem aparecer em nota de rodapé, na totalidade ou
articuladas com a bibliografia geral.
5.4.2. Podem igualmente surgir, em alguns casos restritos, no interior do texto, logo a seguir à
citação, seguindo o modelo mais sintético de referência: Amorim, 1947 D, p. 20.
5.4.3. As notas podem também aparecer no final do texto, devendo esta opção prevalecer sempre
que o artigo exige longas notas informativas ou explicativas, que, em rodapé, tornam demasiado pesado o
seu desenvolvimento.
2.2. Os colaboradores naturais da Revista Estudos do I.S.C.A.A. são os
Docentes da Escola e seus diplomados, cujas páginas se podem
constituir em espaço privilegiado de divulgação dos seus trabalhos
académicos, após adaptação ao seu modelo editorial.

2.3. Não sendo uma revista para consagrados, acolherá, com gosto,
trabalhos de personalidades com prestígio no mundo da
contabilidade e vizinhos domínios científicos - podendo mesmo
solicitar a sua colaboração.

2.4. Toda a colaboração não solicitada deverá ser acompanhada de uma


síntese do curriculum vitae.

2.5. A colaboração dá direito a seis exemplares da Revista Estudos do


I.S.C.A.A., podendo o autor solicitar algumas separatas, sem
qualquer encargo adicional para a Revista, cujo número não poderá
ultrapassar 10% da edição.

3. Responsabilidade dos artigos


3.1. Os textos publicados são da total responsabilidade dos seus autores.

3.2. A Revista não se responsabiliza pela devolução do material enviado


para publicação.

4. Reprodução dos artigos


4.1. A reprodução integral ou parcial dos textos publicados fica
dependente de autorização da Revista, sendo sempre exigida a
indicação da origem.

4.2. Esta limitação não abrange a pequena citação indispensável ao


comentário crítico.

4.3. Os autores dos trabalhos não abdicam do natural direito de


propriedade em relação aos mesmos, mas a sua publicação pela
Revista dispensa esta de lhes solicitar autorização para satisafazer os
pedidos abrangidos pelo n°. 4.1. deste Estatuto.

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