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2ª Edição Eletrônica

BENVINDA ANA BAÇAN


AUTORA

Capa e Edição Eletrônica: L P Baçan


Outubro de 2009

Direitos exclusivos para língua portuguesa:


Copyright © 2009 da Autora

Autorizadas a reprodução e distribuição gratuita desde que sejam


preservadas as características originais da obra.

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SUMÁRIO

A AUTORA
PREFÁCIO
A COBRA E O CÃO
O MONJOLO E A PROFECIA
A PEROBA E A CASA
O FEIJÃO E O MUTIRÃO
OS CAÇADORES SEM CAÇA E
ZÉ-SEM-MEDO
CASAMENTOS E DECEPÇÕES
CASAS GRANDES E SEGREDOS
SONHOS E REALIDADE
A GEADA, A REVOLTA E A
SANTA
A BROCA E A GEADA
FANTASMAS DO PASSADO
O FIM DOS SONHOS

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BENVINDA ANA BAÇAN

Nasceu em 21/03/19... Viúva, aposentada, criou 5 filhos e 2 netos.


Escreve desde 1962, quando fez seu primeiro poema, dedicado ao pai. Reside
em Uraí, Paraná, Brasil. Já publicou os seguintes livros virtuais: "Os Sonhos
de Pedro", "O Baú de Minhas Lembranças", "O Contador de Histórias" e "A
Ponte Caída". Participou da I Antologia do Portal CEN, em 2004.

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TALVEZ SEJA GENÉTICO...

Não sei... Nunca vi nada escrito a esse respeito... Mas tenho motivos para
crer que a atividade artística seja transmitida geneticamente. Em último caso,
por osmose... Ou até por contágio, não sei. Meu pai tinha uma criatividade
imensa e um jeito todo especial de contar histórias. Ele nos fazia rir, quando se
punha a contar suas aventuras de caçador, os causos do Joaquim Bentinho e
muitos outros que ainda hoje me lembro. Meu filho é músico. Aprendeu a
tocar a guitarra, coisa que nunca consegui, a não ser arranhar as posições
básicas do Além disso, também é escritor e palestrante de mão cheia. Minha
filha é fotógrafa, com uma rara sensibilidade e um talento todo especial com
sua câmera. A última e grata surpresa é minha mãe, capaz de criar histórias e
fábulas surpreendentes e, de memória, registrar uma parte da história da
família: os sonhos de seu pai, meu avô.
Os Sonhos de Pedro talvez sejam os sonhos de todos nós. Mas, como ele,
poucos temos a coragem de persegui-los, a despeito de todos os obstáculos.
Há, nesses corajosos, uma audácia egoísta que somente tarde, muito tarde, é
reconhecida. Esta é a história de meus avós... e de minha mãe e de meu pai
também. O resgate histórico contido nessa narrativa vai além de meu alcance e
de minha compreensão, pois se inicia num tempo muito distante: um tempo de
mistérios, crueldade, dramas e, principalmente, amor. O amor de um homem
por seus sonhos e o amor de uma mulher por ele.

L P Baçan
WWW.ACASADOMAGODASLETRAS.NET

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OS SONHOS DE PEDRO

Esta narrativa é feita por uma das personagens desta história.


Os personagens são reais.
Os fatos são verídicos.

A COBRA E O CÃO

A fazenda fora de um senhor de engenho e nos seus grandes canaviais só


trabalhavam escravos. Quando o pai de Pedro a comprou, não havia mais
escravos, mas viviam na fazenda muitos filhos deles, trabalhando agora como
empregados. Contavam que seus pais muitas vezes foram chicoteados pelo
feitor. Ainda se viam, desgastados pelo tempo, a senzala e o tronco onde os
escravos eram chicoteados, às vezes até a morte, ou presos às enormes
correntes como castigo. Havia também uma mesa de tortura chamada de
bacalhau, onde os escravos eram atados com grossos talos de couro. O feitor
ligava uma engenhoca movida a água e uma prancha subia e descia com
violência, abatendo-se sobre o corpo do escravo, deixando-o achatado como
um bacalhau.
O porão da casa da fazenda era usado como sala de castigo para escravos
que eram pegos escondidos ou fugindo do trabalho forçado. O velho Patrício,
já cego, mas lúcido, fora escravo nessa fazenda e contava com tristeza como
todos eram tratados e como morriam de fome e sede, acorrentados ao tronco.
Contava ele que em noites sem luar ouviam-se gritos de dor perdidos na
escuridão dos canaviais.
A fazenda foi comprada por Lúcio José de Andrade, pai de Pedro, em
1890. Lúcio era mineiro de Ouro Preto. Foi garimpeiro muitos anos, juntou
muito dinheiro e comprou a fazenda. Depois casou-se com Ana Bernardini,
um ano depois da compra da fazenda. Mulher frágil e de pouca saúde, veio a
falecer depois que Pedro nasceu. Seus dois irmãos, bem mais velhos, já
estavam crescidos, quando a mãe morreu.

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O pai havia ficado viúvo, com um filho pequeno, por isso voltou a casar-
se. Dinha, mulher má e rancorosa, não gostava do enteado porque ele era
muito parecido com o pai.
A casa da fazenda era construída com a máxima segurança, de madeira,
com duas paredes em forma de caixa. Suas janelas enormes tinham grades de
furos como proteção. Suas paredes serviam de cofre e foram construídas com
essa finalidade. Havia uma espécie de segredo na parede. Para abrir o cofre,
era preciso apertar um ponto da parede. Eram vários os cofres que havia na
casa, ocultos, em sua maioria, nas paredes.
Dinha, egoísta e ambiciosa, começou a esconder dentro dos cofres das
paredes moedas de ouro, libras esterlinas e moedas de prata. Escondeu todo
ouro que encontrou na velha casa da família. Os irmãos de Pedro se casaram e
ele ficou morando com o pai e a madrasta.
Dinha maltratava o enteado, escondendo a comida, que era muito farta.
Não satisfeita, porque o garoto nada dizia ao pai, inventou um motivo e
expulsou-o da casa. Com apenas quatorze anos Pedro foi viver sozinho.
Arrumou um trabalho no pequeno engenho de Ezaías, pai de Márcia. Eles já
se conheciam, eram vizinhos há cinco anos, e brincavam juntos, correndo
pelos campos, colhendo flores e frutos silvestres.
No engenho ele fazia de tudo: cortava cana nos canaviais e ajudava na
fabricação de açúcar e aguardente. Era serviço para gente grande, mas Pedro
dava conta. Ele sonhava ter sua própria família, como seus irmãos. Ezaías
gostava muito do pequeno Pedro, como ele o chamava. Márcia em seus dias
de folga, passou a cuidar das poucas roupas que Pedro tinha, apesar de seu pai
ser um fazendeiro de muitas posses. Ele deixou de fazer sua comida e lavar
suas roupas, ganhando um quartinho junto ao engenho.
Pedro sonhava com a casa grande da fazenda do pai, com os muitos
empregados que viviam trabalhando no engenho dele. Com tristeza dizia para
si mesmo:
— Aqui sou feliz, todos me ajudam e ensinam os serviços e sou muito
bem tratado.
Recordava o quanto havia sofrido, quando tivera que cortar cana na
fazenda do pai como um simples empregado. Muitas vezes ele passava o dia
sem comer, porque a madrasta não o deixava entrar em sua própria casa. Eram
os empregados que lhe davam restos de comida, escondidos da patroa.
Já fazia dois anos que Pedro estava trabalhando no engenho de Ezaías.
Ele não gastava o que recebia e guardava tudo, já que tinha casa e comida,
botas e facão que seu patrão lhe dava. Pedro e Márcia já se olhavam com
muito carinho e o pai dela conversava muito com ele.
Certo dia, disse-lhe:

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— Você precisa se casar, meu rapaz!
Tinha ele dezesseis anos e Márcia, quinze. Ela trabalhava no engenho e,
tendo um pequeno ganho, guardava o que sobrava. Certo dia, Pedro falou com
Márcia:
— Eu gosto muito de você. Gostaria de me casar com você, se o seu pai
deixar.
Ela não esquecera o dia em que eles estavam brincando no campo e ele
disse a ela:
— Quando eu crescer, vou me casar com você.
Agora ele estava falando sério. Cresceu e cumpriu o prometido. Márcia
falou com a mãe, que falou com o pai. Os dois conversaram muito e
decidiram.
— Pedro é um bom rapaz, trabalhador, honesto e decidido. Ele pode se
casar com nossa filha. Os dois tem muito em comum.
Ao receber a notícia Pedro ficou muito feliz, pois teria uma família de
verdade, como seus irmãos. Mostraria à madrasta que estava vencendo na
vida.
Os preparativos para o casamento foram rápidos. Não havia muito o que
preparar. O vestido seria feito pela mãe de Márcia. Quanto ao restante, dava-
se um jeito. Um ano depois os dois se casaram. Ezaías deu uma pequena casa
junto à casa grande. Pedro comprou tudo que era necessário para sua querida
esposa e ainda lhe sobrou dinheiro para guardar.
Ele adorava Márcia e fazia de tudo para fazê-la feliz. Seu jeito de menino
cativou os parentes da esposa e todos o tinham como um filho muito querido.
Pedro sonhava em ter suas próprias terras. Não queria muito, só o que pudesse
cuidar sozinho.
Pedro não visitava o pai, mas sabia de tudo que se passava com ele,
doente e maltratado pela mulher. Dinha, esperta como era, aplicou o golpe do
baú no rico fazendeiro. Com a ajuda dos filhos do primeiro casamento, passou
a vender o rebanho de gado e esconder todo o dinheiro, para depois trocar por
moedas de ouro.
O tempo passou e Pedro já era pai de dois filhos, Ana e Lúcio.
Continuava sonhando e guardando o que sobrava do seu dinheiro. Sonhava em
comprar um pequeno sítio. Até procurou pelas redondezas, mas não
encontrou. Acabou comprando suas terras em São Pedro do Turvo, lugar ruim,
distante de onde eles moravam.
Pedro e Márcia foram morar em seu primeiro sítio, mas ele sempre dizia:
— Ainda vou comprar a terra dos meus sonhos e nós iremos embora
deste lugar.

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Pedro continuou sonhando, enquanto plantava milho, arroz e feijão. Um
de seus irmãos veio lhe fazer uma visita, olhou suas roças e disse:
— Você aqui não tem futuro. Suas terras não produzem nem milho.
Feijão e arroz nem pensar. A mandioca nem brotou. Você está perdendo o seu
tempo. Por que vocês não saem deste buraco? Lá perto do Lajeado tem umas
terras que estão a venda. Ficam perto das terras da família da Márcia.
Pedro Sonhador, como Márcia passou a chamá-lo, disse a ele, certo dia:
— Não estou gostando de sua cara. Você nem olha mais para mim e nem
brinca com as crianças.
— Estou pensando, Márcia, estou pensando — ele respondeu.
— Você está é sonhando, como sempre. Essa ruga em sua testa apareceu
depois que seu irmão conversou com você.
Pedro decidiu contar tudo a esposa.
— Eu vou ao Lajeado ver umas terras que meu irmão me indicou.
— Com que dinheiro você vai comparar estas terras, homem? Eu não
gosto quando você começa a falar assim. Parece que não está feliz aqui.
— Eu estou é preocupado com as nossas plantações. Não vamos colher
nem para os gastos da nossa família. É por isso que eu vou ver aquelas terras.
Nós não temos dinheiro para comprar nada, por isso não se preocupe, mulher,
com pagamentos. Eu ainda nem fechei o negócio. Vou ver as terras primeiro.
Se gostar, vou propor uma troca. Nossa terra é três vezes maior que a outra,
mas só presta mesmo para invernada.
— Você não desiste mesmo dos seus sonhos malucos. Acha mesmo que
o dono das terras vai aceitar uma troca?
— Nossa terra tem vinte alqueires e a dele, só cinco alqueires. A
diferença é grande. Tenho certeza que vou fechar o negócio sem ter que dispor
de nem um conto de réu.
Dias depois, Pedro foi ver as terras do Lajeado, boas e produtivas, mas
estava tudo abandonado. A casa era confortável e tinha uma cozinha até mais
ou menos, um bom poço de água por perto e um pequeno córrego na divisa do
sítio.
Pedro gostou das terras. Tinha uma pequena área de pasto, cercada de
arame farpado. Seriam necessários alguns reparos nas cercas e nos mourões,
mas a porteira estava perfeita.
O dono das terras estava decidido a fazer qualquer negócio. Pedro propôs
a troca das terras, uma pela outra, sem dispor de dinheiro. O dono do sítio
conhecia as terras de Pedro, pois tinha um bom lote que fazia divisa com elas.
— Eu aceito a troca, seu Pedro. Vou plantar um bom canavial naquelas
terras. Assim o meu gado terá um bom reforço na época das secas, quando

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pastos estiverem faltando. Vamos fazer um ótimo negócio. A minha escritura
está a sua disposição — disse a Pedro.
— A minha também está aqui — respondeu Pedro.
— Você tem filhos, Pedro?
— Sim, tenho dois, um casal.
— Então eu vou lhe dar uma vaca com bezerro novo. Ela dá dez litros de
leite. Vai dar para fazer um queijo por dia.
O sonho de Pedro tinha se realizado. Ao chegar em casa, contou para a
mulher, dizendo:
— Eu fiz a troca das terras, uma pela outra, e ainda ganhamos uma vaca
leiteira. Ela vai se chamar Fartura.
Márcia ficou tão feliz que começou a chorar. Pedro soltou seus cabelos
num gesto de carinho, deixando-a encabulada.
Um vizinho ofereceu para fazer a mudança em seu carro de boi. Os
pertences do casal foram colocados no carro, que seguiu chorando pela estrada
cheia de poeira. A casa estava muito suja, mas era uma boa casa. A limpeza
foi rápida. Os dois, em pouco tempo, lavaram tudo e arrumaram seus
pertences.
Pedro tinha muito trabalho pela frente. Precisava preparar a terra para o
plantio e foi necessário fazer uma roçada, para depois fazer a capina. Mesmo
assim, foi impossível limpar tudo a tempo de fazer o plantio. Ficou um bom
pedaço de terra sem preparar.
Sua lavoura logo estava muito bonita, prometendo uma boa colheita de
milho, feijão e arroz. Quando isso ocorreu, Pedro vendeu os cereais e comprou
alguns porcos para criar e engordar. O quintal já estava povoado de galinha e
frangos.
Márcia fazia um queijo todos os dias. A família do casal já tinha
aumentado com o nascimento de mais uma menina, Maria, que veio aumentar
a felicidade do casal. No segundo ano, Pedro preparou mais um pedaço da
terra que tinha ficado para trás, mas ainda não deu para preparar tudo, ficando
um bom pedaço para limpar. Com isso sua colheita iria ser bem maior. Ele
tinha aumentado a área da plantação.
Márcia cuidava da casa e dos filhos e ainda ajudava o marido na lavoura,
na época do plantio e da colheita. As terras do sítio eram muito férteis, tanto
quanto Márcia, que ganhou mais uma menina, por nome Benvinda, onze
meses depois de Maria.
Agora a família já estava bem grande e as despesas também. A casa ficou
pequena para tanta gente. Pedro teria de fazer mais um quarto para as crianças,
além de limpar o restante das terras para aumentar sua plantação. Ele já havia
comprado mais duas vacas leiteiras e Márcia fazia três queijos por dia,

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vendidos no Lajeado todas as semanas. Já era uma renda a mais que o casal
tinha para o sustento da família.
Pedro decidiu, então, preparar o restante das terras. Amolou muito bem
sua foice e começou a roçar o mato. Já estava no final do serviço quando foi
picado por uma cobra cascavel.
A picada foi em sua perna esquerda. Ele estava de bota de cano longo,
mas a cobra perfurou a bota e atingiu sua perna. Ele ainda matou a cobra e
levou para mostrar para a Márcia. Quando ela viu a cobra e soube que ela
havia picado seu marido, desesperou-se.
Ele foi retirar a bota, mas sua perna já estava muito inchada. Foi preciso
cortar o cano da bota para retirá-la. Márcia não sabia o que fazer, mas o
instinto feminino falou mais alto. No seu desespero, ela pegou a navalha, fez
um pequenino corte no lugar da picada e sugou com a boca o sangue
envenenado. Depois aplicou uma compressa de querosene, enfaixando a perna
do marido com muito carinho, rezando a Deus que ele ficasse bom.
No outro dia, Pedro estava tão inchado que mais parecia uma bola. Não
tinha como pôr uma roupa nele. Ele pedia para a esposa abrir a janela, pois
nada enxergava, dizendo;
— Está muito escuro aqui dentro. Por favor abra a janela.
Márcia chorava desesperadamente. Avisou os vizinhos e parentes e pediu
ajuda. Quando Ezaías ficou sabendo, mandou um portador falar com Manoel
Ozires, um benzedor em quem todos tinham muita fé. Esse enviado levou três
dias para retornar, trazendo notícias. Assim que chegou, foi perguntando o que
havia acontecido nesses três dias.
Márcia respondeu:
— Ele vomitou uma espécie de clara de ovo, que guardei para quem
quiser ver.
Respondeu o portador:
— Graças a Deus ele está salvo e foi você quem o salvou, quando fez o
corte em cima da picada da cobra e sugou o sangue envenenado com sua boca.
O Seu Ozires disse que era isso que tinha de ser feito e você fez, sem saber
que estava salvando a vida de seu marido.
Márcia continuou rezando e pedindo a Deus pela saúde do marido. Os
dias se passaram e Pedro continuava cego. Ela pedia de joelho para que Deus
levasse um de seus filhos, mas não lhe tirasse o marido. Sem um filho ela
podia viver, mas sem Pedro, não.
Durante vinte dias ela repetiu o pedido com muita fé e sem remorso,
entregando a Deus um dos filhos que tanto amava. No vigésimo primeiro dia,
qual não foi a sua surpresa ao ouvir o marido dizer:
— Até que enfim você abriu a janela do quarto!

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Ele já não estava mais inchado e queria se levantar, dizendo que já não
agüentava mais ficar na cama. Depois de vinte e um dias Pedro voltou a
enxergar novamente e ficou completamente curado.
Márcia foi agradecer a Deus por ter recebido tão grande benção, dizendo:
— Senhor eu vos prometi, aqui estou. Não me arrependo de ter
prometido um de meus quatro filhos em troca da vida de meu marido. Que
seja feita a vossa vontade. Faço isso de coração limpo, sem remorsos e sem
lágrimas.
O pedido de Márcia, porém, não foi atendido. Deus não levou um de seus
filhos, após devolver a vida de seu marido. Dias depois, no entanto, o cão de
guarda da casa amanheceu morto, Márcia entendeu a resposta de Deus. O cão
era muito estimado por todos da casa e as crianças choraram muito. Márcia
disse aos filhos:
— Vamos enterrar o cão. Ele merece ser por nós enterrado.
Pedro, depois de trinta dias, voltou ao trabalho e foi terminar o serviço
que havia sido interrompido. A terra deveria ficar preparada para a plantação.
O pai de Márcia vendeu suas terras e foi morar perto da filha. Já não
tinha quem o ajudasse no engenho. Márcia guardou segredo de seu pedido a
Deus e só muitos anos depois ela contou aos filhos. Pedro nunca ficou
sabendo que a esposa havia recebido aquela benção.
Ela sempre dizia:
— A fé é o que nos salva. Devemos pedir a Deus em todas as situações
difíceis. Se tivermos fé, podem ter certeza de que somos atendidos.
Pedro estava progredindo, agora as terras estavam todas cultivadas.
Márcia o ajudava na roça e cuidava das crianças. Ela já estava esperando um
outro filho e, mesmo grávida, não deixava de ir trabalhar.
Algum tempo depois nasceu um lindo menino, que recebeu a nome de
José. Agora eram cinco filhos. Pedro dava duro na lavoura, pois a esposa já
não podia ajudá-lo no trabalho. Ele trabalhava por todos sem reclamar.
Pedro nunca mais visitou o pai, mas tinha notícias dele diariamente.
Sabia que ele estava doente e quase na miséria. Certo dia, porém, veio a
notícia de que o pai havia falecido e os irmãos o chamavam para o
sepultamento. Depois de dez anos ele voltava àquela casa que fora sua e que
continha um grande mistério, que um dia seria revelado.
Pedro viu a madrasta toda vestida de preto, com o rosto coberto por um
véu preto, mais parecendo uma dama antiga. Ela não deixou cair a máscara de
boazinha, fingida e esperta. Chorava a morte do marido dizendo:
— O que será da minha vida agora que perdemos tudo que tínhamos.
Quem vai ajudar uma pobre viúva como eu.

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Dinha, a madrasta fingida e esperta, tinha escondido todo o ouro que era
dos filhos. Vendeu toda a boiada e o engenho, só deixando as terras para
serem divididas entre ela e os herdeiros. Se Dinha era esperta, seus filhos eram
muito mais. Pegaram tudo que a mãe havia tirado.
Pedro, depois da morte do pai, voltou à casa grande, por várias vezes.
Quando Márcia perguntava porque ele andava tão triste ele não dizia a
verdade.
— Nós estamos vendendo a fazenda e é por isso que tenho voltado lá.
Vamos fechar o negócio por esses dias. Os compradores darão a resposta até o
final de semana. Apesar de ser muita terra, o dinheiro será pouco.
— Seu pai tinha muito gado. Deve dar um bom valor.
— Você disse certo: tinha, agora não tem nem um bezerro. Você não
sabe da verdade. Nós só temos as terras para serem vendidas.
— E o que foi feito de tudo que era do seu pai?
— Eu não sei e nem meus irmãos. Lá na fazenda não tem mais nada, a
não ser as terras.
Quando Pedro recebeu sua parte da herança, tomou uma decisão. Falou
com a esposa que iria vender o pequeno sítio e que gostaria de comprar um
bem maior em uma outra região. Andava triste, com uma profunda ruga em
sua testa. Márcia andava também preocupada com a tristeza do marido e
achou melhor concordar com ele, esperando que com isso a tristeza passasse.
Pedro saiu num final de semana para procurar um bom sítio para
comprar. Encontrou vários que estavam a venda, mas gostou de um bom
terreno, com uma casa bem grande, com vários quartos. Era uma bela
propriedade e o preço estava ao seu alcance. Deixou o negócio feito e pediu
um prazo para fechar o negócio. Queria falar com a esposa e vender o seu
sítio, para depois fechar a compra das terras.
Márcia gostou do sítio, assim que viu as terras e a casa. Ela disse: —
Vamos comprar. Eu gostei muito de tudo.
Eles já haviam vendido seu pequeno sítio e tinham todo o dinheiro para o
pagamento. O segundo sítio de Pedro era numa localidade chamada Douradão
e suas terras faziam divisa com um rico fazendeiro, que morava em São Paulo.
A fazenda tinha seu nome, Luiz Pinto, próxima de Ipauçu, só de café. Além
desta, havia também muitas fazendas de gado, do Garcia, do Tonão, do
Alcalezes, do Gallos, do Cabral e muitos outros, com gado e café em suas
terras.
A mudança para o novo sítio não foi de carro de boi, como as outras duas
que já haviam feito. Pedro alugou dois caminhões para levarem tudo. Em um
foi a mudança e a família. No outro foram as vacas de leite, os bezerros e os

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porcos. Depois de instalados, Pedro disse a Márcia que não eram aquelas as
terras que ele queria. Ele sonhava mais alto e queria conhecer novos lugares.
Márcia ficou furiosa e disse a ele:
— Deixe de sonhar, homem, e vamos cuidar das terras que temos!
Pedro coçou a cabeça, calçou suas botas e botou o chapéu. E a ruga em
sua testa voltou a aparecer.

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O MONJOLO E A PROFECIA

Algum tempo depois, a mãe de Márcia faleceu e seu pai ficou morando
com a irmã dele, Dora. Apesar da tristeza, Márcia estava decidida e queria
plantar milho, arroz, feijão e tudo o mais. Márcia também começou a sonhar.
— Quero que você faça também um monjolo, vamos fazer farinha para
vender. Aqui todos os vizinhos tem um monjolo e fazem farinha para os
gastos da casa e só a de milho amarelo. Nós vamos fazer a de milho branco.
Farinha de milho branco.
— De onde você tirou esta idéia, Márcia?
— Tem milho branco, não tem? Então nós vamos plantar milho branco
para fazer farinha e vender na cidade e em Ipauçu, Piraju e outras. São cidades
grandes e têm bom comércio.
O idéia de Márcia deixou Pedro preocupado e, sempre que isso acontecia,
a ruga em sua testa voltava a aparecer. Ele saiu decidido a realizar o desejo da
esposa, porém, indo procurar alguém que pudesse explicar como fazer o tal
monjolo, o que não foi difícil, pois havia alguém na região que se dedicava a
esse ofício.
O mais difícil mesmo foi fazer o pequeno açude para a queda de água
que movimentaria o monjolo. Quando tudo ficou pronto, o milho branco já
estava pronto para ser colhido. O monjolo havia sido instalado num barracão à
beira da queda da água. A grande fornalha estava pronta, o tacho instalado, as
linhas preparadas e tudo pronto. A pequena fábrica de farinha foi entregue à
dona, que ficou muito orgulhosa. Ela pensava que, com a nova atividade,
Pedro não mais falaria em conhecer novas terras e deixaria de sonhar com
suas lavouras de café.
Com o milho colhido, começou a produção de farinha. Márcia era uma
mulher decidida e tinha que se desdobrar para enfrentar tanto trabalho.
Começava com a preparação do milho, que era debulhado em uma máquina
manual, para depois ser socado no monjolo e retirado o farelo. O milho ficava
como o da canjica.
Após isso, ficava de molho em grandes cochos de madeira por oito dias,
lavado todos os dias com água corrente. Depois disso, o milho era retirado em
pequeno cestos de bambu. Depois de escorrida toda a água, ia para o monjolo
novamente para fazer o fubá e, com ele, a farinha.
Márcia sabia fazer a farinha. Aprendera com uma vizinha, quando
morava no segundo sítio no Lajeado. Ela começou a sua fabricação com

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apenas cinco sacas de milho. Depois de pronta, lá foi Pedro para a cidade, com
uma amostra, visitar os comerciantes para tirar pedidos.
O comentário foi geral. Eles nunca haviam visto uma farinha como
aquela, de milho branco, que era uma novidade, segundo eles. Pedro visitou
dez comerciantes e cada um encomendou uma saca de trinta quilos da famosa
farinha branca e ficou com uma amostra.
Assim que Pedro entregou os pedidos, os comerciantes disseram que a
farinha já era famosa na cidade. Os pedidos foram de dez sacas por mês para
cada um, sendo cinco sacas a cada quinze dias. Pedro ficou de boca aberta ao
constatar que Márcia tinha razão e que a tal fábrica de farinha dava mesmo
dinheiro.
Márcia ficou ainda mais atarefada, no meio de tantos pedidos, mas
cumprindo direitinho o prazo das entregas. Estava satisfeita, julgando que com
isso Pedro não mais iria querer conhecer novas terras nem sonhar em ser
produtor de café. Pedro, no entanto, não tinha deixado de sonhar. Ele só não
tinha era tempo para sonhar, pois sempre que ia jogar três-sete com seus
amigos italianos, vinha com novas idéias e novos sonhos.
Um dia ele tocou no assunto com a esposa:
— Aqui nós não temos futuro. Até quando você vai ficar trabalhando
dessa maneira? As meninas são pequenas para ajudar e você acabará ficando
doente de tanto trabalhar. Estou com umas idéias.
Márcia não esperou ele terminar e foi logo dizendo:
— Lá vem você com suas idéias malucas. Deixe de sonhar! Bota seus pés
no chão e tire de sua cabeça esses seus sonhos. Você só pode estar brincando
comigo! Aqui nós somos felizes e nada nos falta. Temos nossas terras e a
fábrica de farinha. Por que você sempre quer mais? Eu faço queijo todos os
dias e você vende todos os meses até cinqüenta queijos. Você está guardando
dinheiro por quê? Você é um sonhador!
— Eu sonho com novas terras, sim. Aqui não dá para plantar minha
lavoura de café.
Márcia sentia um aperto no coração. Sabia que ele jamais iria desistir.
Foi logo dizendo:
— Lá vem você outra vez com a mesma ladainha. Eu já sei de cor tudo
que você tem a dizer. Quando é que você vai deixar de sonhar? Olhe seus
filhos! Já estão crescendo e um outro que vai chegar em breve.
Pedro arregalou seus lindos olhos azuis e a voz não saía. Com um nó na
garganta, abraçou sua esposa e chorou.
— É por isso, Márcia, que eu quero conhecer outras terras. Eu não vou
desistir. Muito em breve eu irei fazer uma viagem.

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Ela se calou. Sabia que seu marido jamais iria desistir dos seus sonhos
malucos de conhecer novas terras e de ter sua lavoura de café.
— Pedro sonhador — assim Márcia o chamava carinhosamente, — tome
cuidado, homem, para não quebrar a cara, trocando o certo pelo duvidoso!
Você parece uma criança teimosa quando fala de sua lavoura de café. Quer ser
um lavrador bem sucedido, mas você já é bem sucedido, pai de cinco filhos e
de outro que vai chegar. Tome juízo e deixe esses seus sonhos malucos.
Pedro respondeu:
— Jamais deixarei, jamais! Você terá uma grande surpresa em breve.
Aguarde! Aqui, na época da colheita do feijão, você sabe muito bem que as
formigas saúvas carregam uma boa parte da safra. Não temos meio de acabar
com elas. Estão em toda parte. Por isso eu estou decidido a conhecer novas
terras.
Ele tinha razão, pois era isso mesmo que acontecia. Márcia, muito
preocupada, resolveu procurar uma vidente, uma bruxa, conhecida como
benzedeira. Todos acreditavam em suas profecias. Ela morava num casarão
amarelo, temido por toda a vizinhança. Esse casarão fora de um senhor de
engenho e ela se dizia neta desse senhor, dono do casarão. Era uma construção
com mais de trinta cômodos. Na sala havia enormes mesas e cadeiras cobertas
de veludo vermelho, vinte e quatro ao todo. Tapetes cobriam todo o assoalho.
Os móveis eram os mesmos do antigo dono da casa. Suas cortinas de rendas,
feita por escravos, gastas pelo tempo, ainda era impecavelmente brancas com
detalhes vermelhos, dando um toque de bom gosto naquela aposento sombrio.
Na sala de oração, como ela dizia, todos deviam tirar os sapatos e passar
por uma outra sala para ser purificado. Tinham ainda que lavar as mãos e os
pés, antes de entrar na sala de oração, onde os visitantes recebiam uma rosa
vermelha, colhida no jardim do casarão, muito bem cuidado, demonstrando o
bom gosto de quem o tratava. Ali tudo era misterioso e o mistério que
envolvia o casarão era conhecido de poucos. Por isso ele era temido por toda a
vizinhança.
O temido casarão tinha uma enorme escadaria de mármore branca, com
mais de cinqüenta degraus na entrada principal. Diziam os mais antigos que
em seus porões haviam ossadas de escravos presos nas correntes. Em suas
portas ainda se via enormes cadeados, presos a correntes enferrujadas. O velho
engenho estava abandonado havia muitos anos e coberto pelas matas. Lá havia
casas velhas, caindo aos pedaços. Também ainda estava em pé o tronco e os
restos da senzala. No tronco, ainda havia correntes presas com enormes
cadeados, como os dos porões. Contavam as pessoas que nos seus grandes
bananais e nos restos de canaviais ao redor do velho engenho se ouviam, em

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noites escuras sem luar, choros e gargalhadas. Diziam que eram as almas
penadas dos escravos mortos e dos feitores do engenho.
Muitos visitantes vinham em seus cadilaques reluzentes. Eram as esposas
dos coronéis da região. Todos acreditavam nas previsões da benzedeira, por
isso Márcia foi fazer uma consulta. Depois dos rituais, ela e uma das filhas
entraram na sala de oração.
Havia um grande altar com toalhas de renda branca, várias imagens de
santos e retratos dos antigos donos do casarão. As duas foram apresentadas a
todas as imagens, uma por uma, e também aos retratos que ali estavam,
citando nome por nome. Depois foram convidadas a se sentar. Havia uma fila
de cadeiras, com duas delas colocadas mais à frente, em destaque. Parecia que
ela já estava esperando as duas visitantes.
A benzedeira ajoelhou-se em frente ao altar e começou a falar.
— Eu sei porque você veio aqui. A mudança vai acontecer. Não adianta
você falar. Está escrito no livro do destino da família. Eu ouvi de todos os
presentes neste altar e foi esta a resposta. Vocês terão muito trabalho e vão
sofrer muito. Nem todos os seus filhos serão felizes. Um outro filho vai
nascer, além desse que você está esperando. Ele vai chegar na nova terra,
naquela que vocês vão comprar. Vai ser um garoto, não vai ter boa saúde, mas
vai ter vida longa. Vocês vão vencer. Seu marido terá sua lavoura de café e
será bem sucedido. Vai demorar alguns anos, mas a mudança será em breve.
Márcia não havia feito nenhuma pergunta. A benzedeira respondeu tudo
que ela queria sem que ela tivesse perguntado. Impressionada com as
profecias, Márcia pediu para a filha não contar nada para ninguém. Seria um
segredo das duas.
A imagem da benzedeira jamais foi esquecida por Márcia. Suas vestes
eram brancas, com uma saia longa de renda e um turbante branco na cabeça.
Ela se vestia assim para seu ritual de orações.
Ela continuou a trabalhar na fábrica de farinha, três dias por semana.
Fazia dez sacas por dia e assim podia fazer as entregas dos pedidos, que eram
muitos. Para ela, o monjolo era o seu patrão. Ele tinha pressa de triturar o
milho e fazer o fubá, que depois ia para o grande forno. Ela era rápida ao
peneirar uma fina camada de fubá sobre o tacho quente e retirar em seguida,
no tempo certo, para não queimar a farinha. Uma das filhas controlava o fogo
da fornalha para que a temperatura fosse constante.
Com o tempo, ela teve que diminuir a produção. Sua barriga estava cada
vez maior e tinha muitas dores nas costas. O calor da fornalha podia prejudicar
o bebê, por isso Maria foi trabalhar no lugar da mãe. Ana tinha que lavar o
milho e pôr no pilão do monjolo para socá-lo. Benvinda cuidava do fogo,
mantendo sempre a temperatura controlada.

18
Depois que o bebê nasceu, Márcia assumiu de novo o comando da
fabricação de farinha. Tinha muitos pedidos atrasados e teve que pôr em dia
todas as entregas. Pedro andava com aquela ruga na testa, preocupado com a
quantidade de trabalho da esposa.
Um dia voltou a tocar no assunto.
— Eu vou conhecer novas terras!
Márcia não esquecia da profecia da benzedeira, e, muito preocupada com
o bebê, foi logo dizendo:
— O que está acontecendo com você? Eu dou um duro no trabalho e
você ainda não esqueceu dessas benditas terras. Se você não esquecer dessas
idéias de conhecer novas terras, eu deixo de trabalhar no monjolo. Você pode
escrever! Principalmente agora que entraram no mercado novos fabricantes,
que não fazem como nós fazemos. Usam fábricas elétricas, sem tanto trabalho.
A partir de então, Márcia diminuiu ainda mais a produção e passou a
fabricar a farinha só para fregueses especiais e cuidava dos filhos com mais
atenção. Pedro decidiu que aquela era a hora de resolver o assunto de uma vez
por todas. Esperou mais alguns dias, até que ela ficasse mais calma, mas antes
preparou tudo para depois lhe contar.
Márcia foi se acalmando, mas não conseguia esquecer as palavras da
benzedeira. Sabia que a mudança iria acontecer. Estava escrito e não podia ser
mudado.
Certo dia, inesperadamente, Pedro disse à esposa:
— Eu vou viajar por estes dias e não adianta você dizer que é loucura
minha.
— Para onde você vai, assim de uma hora para outra? Pense bem no que
você vai fazer. Eu já lhe disse mil vezes, mas você é mais teimoso que uma
mula.
Ele abraçou sua esposa e pediu:
— Me deseje boa viagem!
— Está bem, faça o que você quiser e que Deus o acompanhe!
Pedro rapidamente soltou seus cabelos, deixando-a toda despenteada.
Ele, abraçado a esposa, disse-lhe com muito carinho:
— Vou conhecer o sertão do Paraná. Dizem que suas terras são muito
férteis e produtivas. Lá nós teremos futuro e nossos filhos terão mais fartura.
Eu vou plantar minha lavoura de café tão sonhada.
— Está bem! — respondeu Márcia.
Ela via, nos olhos azuis do marido, um brilho estranho e aquela ruga já
não estava mais na sua testa. Na semana seguinte, lá ia Pedro sonhador, com
seus sonhos em sua bagagem, para a tão sonhada viagem ao sertão do Paraná.
Ele, um pequeno lavrador sem grande futuro, nas terras cheias de formigas

19
saúva, ia conhecer a terra prometida. Agarrado aos seus sonhos ele iria
conhecer novas terras. Havia muito ele sonhava em fazer essa viagem.
Pedro não tinha pressa. Ele iria escolher suas terras e, para isso, teria
muito tempo para fazer a escolha certa. A viagem foi num trem lento e
barulhento. Quando passou o rio Paranapanema, ele ficou encantado com as
matas que ladeavam a ferrovia. Era seu grande sonho conhecer aquelas terras.
Chegou em Bandeirantes, desceu na estação e pediu informações. Tinha um
amigo, que morava na região. Percorreu várias fazendas, mas sem sucesso.
Conheceu a fazenda Dois Irmãos, onde o amigo havia morado. Ali ele
arrumou um trabalho para a família, na colheita do café.
Seguiu em frente, então, tomando outra vez o trem que o levaria a um
lugarejo perdido, dentro do sertão paranaense. Quando ele desceu na estação,
leu em uma placa de madeira: Pirianito!
— Cidade dos sonhos dos imigrantes! — disse um senhor nordestino.
Pedro conversou com ele e ficou sabendo que era nordestino, que viera
para fazer derrubada de matas. Disse que era muito bom de machado e foice e
que sabia usar o facão e a espingarda.
Pedro foi até uma pensão para guardar as malas e descansar um pouco. A
dona da pensão serviu um almoço a base de carne seca, feijão e farinha de
mandioca. Ele perguntou onde ficava a companhia que vendia terras, foi
informado pela dona da pensão. Lá ele foi muito bem recebido pelo Senhor
Nambei Tochi, que deu todas as informações que ele queria saber, mostrando
um mapa completo, com as terras já vendidas e as que estavam à venda.
Depois, em um jipe da companhia, percorreu toda a região. Pedro ficou
encantado quando pisou naquelas terras vermelhas. Ele escolheu o seu lote de
terra e fechou o negócio. Deu uma entrada e o restante seria pago com seis
meses de prazo. Assinou os papéis necessários, pegou o recibo comprovando a
compra das terras e agradeceu a Deus por ter realizado seu grande sonho.
Depois de quinze dias, ele voltou para a casa. Já tinha arrumado uma casa
na fazenda Dois Irmãos. Era um rancho de palmito, coberto por tabuinhas, de
chão batido, sem conforto algum, mas era um teto, o único disponível na
fazenda. Era igual a todas as outras casas da fazenda.
Márcia iria reclamar, ele tinha certeza. A casa onde eles moravam era
uma mansão, com todo o conforto. O que ele podia fazer tinha feito. No
começo seria difícil, isso ele sabia.
Já de volta, Pedro foi logo dizendo:
— Comprei as nossas terras. Eu sou o homem mais feliz deste mundo.
Vamos mudar em trinta dias.
Márcia disse:
— Você está maluco! Acorda homem, deixe de sonhar!

20
Pedro abraçou a esposa e disse:
— Não estou sonhando, estou falando sério.
— Como vamos mudar? E as nossas coisas, o nosso gado e tudo que
temos? Como vai fazer esta mudança? Você só pode estar sonhando!
Pedro guardou o chapéu, retirou o paletó e a velha guaiaca surrada que
ele tinha orgulho de usá-la, presente do seu falecido irmão. Sentou-se em sua
cadeira de balanço, tirou suas botas de cano longo e disse:
— Vou vender tudo de porteira fechada. Só vamos retirar a mudança e a
égua Faceira. O resto será tudo vendido.
Márcia começou a chorar, abraçou os filhos e disse:
— O pai de vocês endoidou de vez!
Ele não estava doido. Tinha começado uma nova etapa da sua vida e da
família. Márcia tinha que aceitar. Pensava na profecia da benzedeira e sabia
que a mudança iria acontecer, porque estava escrito em seus destinos.
Entre soluços, Pedro disse:
— Lá as terras são vermelhas, não é areia como a nossa aqui. Lá é a terra
dos meus sonhos. Não faça isso comigo. Eu estou lhe pedindo! Eu nunca fiz
um mau negócio, você sabe muito bem. Eu só quero o melhor para nós e para
nossos filhos.
Márcia, ainda chorando, falou:
— Lá deve ter até onças.
— E tem mesmo — respondeu Pedro, abraçando a esposa, cobrindo-a de
beijos e desfazendo seus cabelos.
Era o que fazia quando estava feliz.
— Então, você vai? — insistiu ele.
— Vamos! — respondeu Márcia, ainda chorando. — Não tem perigo
mesmo? Você tem certeza?
— É claro que tenho. Lá mora muita gente e tem muitas lavouras de café.
A conversa se prolongou até tarde da noite. Ele deu todos os detalhes
sobre a compra e sobre a terra onde iriam morar. Márcia não dormiu naquela
noite. Na manhã seguinte, levantou-se muito cedo, fez café e levou para o
marido na cama.
Pedro tomou o café e disse a esposa:
— Eu vou procurar o Seu Garcia. Tenho certeza que ele vai comprar
tudo, de porteira fechada.
Não foi difícil fazer a venda das terras. Seu Garcia aceitou tudo como
Pedro queria e ainda pagou mais do que Pedro esperava. Com isso poderia
pagar o restante de suas novas terras, fazer a mudança e ainda sobraria
dinheiro para começar uma vida nova nas terras dos seus sonhos.

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Havia pouco tempo para encaixotar tudo, porque a mudança seria
despachada de trem. Quando estavam prontos para partir, os filhos estavam
muito assustados, agarrados à saia da mãe, que chorava sem parar. Ela se
culpava por ter deixado de trabalhar no monjolo, fazendo a famosa farinha de
milho branco. Por outro lado, as palavras da benzedeira não lhe saíam da
cabeça. Tinha muita fé em Deus, mas Márcia chorava sem parar. Pedro
tentava consolar a esposa, mas ela só chorava e dizia:
— Como vamos fazer em um lugar estranho, onde tem até onça?
Pedro dizia:
— Não tem perigo! Você vai gostar, tenho certeza. No começo vai ser
difícil, as crianças vão estranhar. Lá o clima é diferente daqui, é bem mais
frio, mas nosso sítio é lindo. É uma grande mata virgem, sem nenhuma árvore
derrubada.
O medo e a insegurança nublavam os olhos vermelhos de Márcia. E
assim foram eles, ao encontro da profecia.

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A PEROBA E A CASA

As crianças ficaram encantadas. Nunca haviam viajado de trem e para


elas foi uma aventura fantástica. As matas que ladeavam a linha de trem não
tinham fim. A viagem correu bem. Pedro estava tão feliz que não parava de
falar no sítio e na mata.
— Mas lá tem onças? — perguntou um dos filhos.
— Sim — respondeu o pai.
— É verdade que elas comem gente?
— Não é verdade. São histórias de gente boba, que gosta de inventar
coisas só para amedrontar as crianças. No nosso sítio não tem onças, mas lá
por perto deve ter alguma onça pintada e jaguatiricas, mas elas não comem
gente. Vocês podem ficar sossegados, não há perigo.
Pedro e a família chegaram em Bandeirantes. Num caminhão, levou a
mudança para a fazenda Dois Irmãos. Era dia doze de junho de mil novecentos
e quarenta e dois. Foi nesse ano a grande geada no Paraná. Grande foi a
surpresa de Márcia ao ver a casa em que iriam morar. Chorando muito, ela
disse ao marido:
— Isto aqui você chama de casa? Mais parece uma choupana de índios.
Nunca vi coisa igual. Se isto aqui é casa, o nosso paiol lá do outro sítio era
uma mansão.
Ela chorou o dia inteiro, sentindo aquele frio insuportável e vendo o
rancho sujo, cheio de palhas de milho e de tranqueiras velhas. Chorando, dizia
que não ficaria ali e queria ir embora. A noite chegou e depois de uma refeição
quente, todos foram dormir. Márcia chorou a noite toda. O frio era demais e a
cama não esquentava. Ela foi olhar os filhos. Ao ver Lúcio enrolado num
pequeno cobertor, todo branco da geada, começou a gritar, dizendo que o filho
morrera congelado.
Lúcio retirou o cobertor e disse:
— Eu estou com frio, mas não estou morto.
Márcia não tinha cobertores para agasalhar os filhos. Na região onde
haviam morado, o frio não era intenso, o clima era temperado e ninguém
conhecia as geadas. Desesperada, ela disse ao marido:
— Eu aqui não vou ficar. Trate de procurar uma outra fazenda que tenha
uma casa melhor, cercada de tábuas e coberta com telhas.
Sem outra alternativa, Pedro saiu à procura de uma outra fazenda. Logo
na primeira, encontrou Seu João e Dona Carola. Explicou a situação ao

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fazendeiro, que ficou penalizado, cedendo uma de suas casas na grande
colônia que ele tinha na fazenda de café.
A geada provocou grandes perdas, para todos os fazendeiros. A fazenda
do Seu João estava seca, o cafezal, queimado até no tronco. Foi perda total nos
cafezais.
Mudaram-se novamente. Agora Márcia não mais chorava, mas
continuava pensando nas palavras da benzedeira, que dissera que iriam sofrer
muito, venceriam, mas nem todos os seus filhos seriam felizes. Ela sofria
recordando a casa grande do outro sítio, o paiol, a cachoeira, o estábulo e o
monjolo. Quanta saudade!
Pedro e a família ficaram naquela fazenda apenas oito meses. Seu João e
a esposa eram gente muito boa e ajudaram muito a Pedro e Márcia, levando
em seu próprio caminhão a mudança do casal, para ser despachado no trem de
carga de Bandeirantes para Pirianito.
Pedro já havia arrumado uma casa na fazenda do Seu Luiz, filho de
imigrantes japoneses. A família de Pedro seguiu rumo a terra prometida.
Passaram pela balsa do rio cinza e seguiram.
Pedro sonhador não queria acordar, ao chegar na terra escolhida. Márcia,
então, disse ao marido:
— Vamos lutar juntos. Com fé e coragem nós vamos vencer, se Deus
quiser. Você tinha razão. Nesta terra vermelha vamos trabalhar juntos e criar
os nosso filhos. Plantaremos sua tão sonhada lavoura de café.
Chegando na fazenda do Seu Luiz, foi um choque para Márcia. A casa
era igual a primeira em que tinham morado, cercada de palmito e coberta de
tábuas. Ela começou a reclamar da casa. Pedro pedia paciência, até construir a
casa do sítio.
— A casa vai ser igual a esta? — perguntou Márcia, aflita.
— Não vai ser igual a esta. Vai ser cercada de tábuas e coberta com
telhas. Fique tranqüila, vai ser uma casa decente.
Pedro ficou receoso, vendo os moradores da fazenda enrolados em
cobertores, sentado ao sol, tremendo de frio. Era a terrível maleita. Ele teve
medo que a família pegasse a doença. Esse medo era maior do que os seus
sonhos.
Márcia lutou junto com o marido e os filhos, dando força e coragem.
Com muita fé dizia que iriam vencer, mas chorava escondido, recordando o
outro sítio, a casa grande, o pomar e a fábrica de farinha. Ela se culpava por
ter deixado de trabalhar e por não ter tido forças para tirar da cabeça dele seus
sonhos malucos de conhecer novas terras. Agora tinha que enfrentar tudo,
morando numa casa que mais parecia uma tapera. Nem os índios moravam

24
numa casa assim. Acha que a culpa de tudo era dela. Se fosse mais exigente,
não estaria numa casa como esta.
Pedro sempre foi um homem honesto. Cumpriu com o contrato, fazendo
o pagamento do restante da dívida no dia certo. Foi, então, falar com o
engenheiro para providenciar a marcação das divisas, fazendo a picada e
colocando as marcas, para as terras serem liberadas. Tomou todas as
providências para escritura definitiva das terras e em dois meses ele estava
com as terras legalmente suas.
Outro compromisso foi contratar peões com prática em desmatamento,
providenciar as ferramentas, foice, machado e o trançador, um serrote com
dois metros de comprimento, manejado por duas pessoas, uma em cada
extremidade. Providenciada as ferramentas, não foi difícil reunir o pessoal
com prática na derrubada de matas. Depois contratou um bom cozinheiro, que
tinha suas panelas de ferro, enormes caldeirões e todos os utensílios
necessários. Foi feita a lista de mantimentos: feijão, arroz, farinha de
mandioca, sal, açúcar, banha, sabão e muita carne seca, o jabá.
Compra feita, tudo pronto, os peões foram fazer o rancho. Tinha que ser
bem grande para abrigar todos os peões e guardar os alimentos. Seria coberto
de sapé até o chão, para proteger da chuva e do vento. Em dois dias ele estava
pronto. Os peões se mudaram para lá, levando seus galos de briga e suas
roupas em sacos.
O rancho era perto do riacho, onde tiravam a água para beber e cozinhar.
O banho era tomado no rio, quando dava coragem. A rotina ali era trabalhar,
comer e dormir.
Pedro sonhador não tinha tempo de sonhar. Márcia rezava e pedia a Deus
que os protegesse, porque o trabalho era muito perigoso. Havia casos de peões
que ficaram presos debaixo das árvores ao cair e morreram sem ser socorridos
a tempo.
Começou, então, a derrubada. Em uma pequena clareira foi cortada a
primeira árvore. Pedro reservou uma pequena área da mata, junto ao riacho,
até hoje intocável. O trabalho era difícil e todos tinham que tomar muito
cuidado para que não ocorressem acidentes. O serviço seguiu em ritmo lento.
Os peões diziam:
— É assim mesmo Pedro. Temos que tomar cuidado. O senhor sabe, o
trabalho é perigoso.
Após dois meses derrubando a mata, chegavam à parte mais fechada.
Quando Pedro chegou em casa, disse à esposa com um nó na garganta,
— Hoje eu realmente fiquei triste, Márcia.
— O que foi que aconteceu? Alguém se machucou? Pedro, pelo amor de
Deus, fale, homem!

25
— Nada disse aconteceu, mulher. É que hoje foi derrubada a maior
árvore que havia na mata. Era uma peroba com mais de cinqüenta metros de
altura. Devia ter mais de cem anos. Depois de cortada, ela caiu com um
grande gemido de dor, levando junto dezenas de árvores pequenas. Márcia,
Márcia, me ajude! Eu jamais irei esquecer o gemido daquela árvore.
Pedro abraçou a esposa e chorou. Chorou muito naquela noite. Dormiu e
não sonhou. No outro dia ele foi ver a árvore cortada e ficou em pé, junto ao
tronco, que era mais alto do que ele. E Pedro tinha quase dois metros de altura.
— Que pena! — disse ele.
A derrubada foi terminada, agora era hora de atear fogo em tudo. Estava
tudo seco. Não havia chovido. Era a hora certa. Com a ajuda dos peões a
queimada foi feita, mas ficaram muitos galhos sem queimar.
As dificuldades foram muitas. Márcia foi uma mulher de grande força de
vontade, com muita fé em Deus. Lutava junto com o marido, mas ainda
haviam muitas outras etapas para serem vencidas. Pedro sonhador não
sonhava mais. Não tinha mais tempo. Agora ele vivia a realidade e a realidade
era dura e cansativa. A ajuda de Márcia, seu amor, seu carinho e sua coragem
lhe davam forças para continuar.
Márcia disse ao marido:
— Você não vai desistir agora, depois de tanto trabalho, continue
sonhando Pedro. Eu me sinto mais forte com seus sonhos. Vamos em frente,
vamos continuar a lutar juntos, por nós e por nossos filhos. Com fé em Deus
nós vamos vencer.
Nessa noite, Pedro dormiu como uma criança. Pela manhã, quando
acordou, chamou pela esposa:
— Perdi a hora mulher. Por que não me acordou?
— Hoje é domingo, dia de descanso. Continue na cama. Está frio e as
crianças estão dormindo. Fique sossegado. Durma mais um pouquinho, eu vou
fazer café.
Márcia preparou o café e levou para o marido na cama. Ele tomou aquele
café gostoso que só ela sabia fazer e disse:
— Nós vamos vencer.
— Você ainda tem dúvida disso? Onde está aquele homem cheio de
sonhos, coragem e fé? Sonha Pedro. Nunca deixe de sonhar. Seus sonhos
serão todos realizados. Eu acredito em Deus.
Carinhosamente abraçou o marido e beijou sua face. Como era lindo
aquele amor de Pedro e Márcia! A coragem e fé faziam de Pedro sonhador um
guerreiro.
Depois de três meses de muito trabalho, Pedro foi até a serraria e vendeu
toda a madeira grossa, as toras. A madeira fina foi vendida para o lenheiro,

26
que a entregava nas olarias da região. Pedro não derrubou toda a mata do sítio,
deixou uma parte da mata como reserva.
Os peões ainda tinham muito serviço pela frente. Eram, em sua maioria,
nordestinos que deixaram sua terra natal para tentar a vida no Paraná. Para
retirar a madeira, Pedro e os peões improvisaram uma estrada para o
caminhão. Era um serviço muito perigoso. Os cabos de aço que prendiam as
toras de madeira tinham de estar sempre bem presos para que elas não se
soltassem e provocassem um acidente.
Depois da queimada e da retirada da madeira, ficaram ainda muitos
entulhos. A terra tinha que estar limpa para a plantação dos cereais. O serviço
duro foi feito a machado e foice. Os peões voltaram a trabalhar para Pedro,
cortando os restos de madeira, amontoando tudo e ateando fogo. Pedro e seus
filhos, mais o empregado João Américo, vulgo Baiano, prepararam o terreno
para a construção da casa do novo sítio.
Pedro, ao vender as toras, já comprou a madeira para a casa. Como ele
não entendia nada de construção, procurou um vizinho e recebeu algumas
explicações detalhadas. A contração exigia muito cuidado para não cortar o
madeiramento errado. Inexperiente, ele cometeu alguns erros, mas seguiu em
frente. A casa era grande, com cômodos e área de serviço. Na hora de colocar
as telhas, ele chamou o vizinho para ajudá-lo. O serviço foi rápido.
A essa altura, Márcia e a família participavam. Todos se levantavam às
cinco da manhã e para a longa caminhada até o sítio. Eram mais de três
quilômetros para chegar até lá. A estrada era uma picada improvisada por
Pedro. Márcia punha as panelas no fogo para preparar o almoço. A carne seca,
o jabá, era indispensável na alimentação. Entravam também no cardápio a
carne de porco ou a de frango e a farinha de mandioca, muito usada na região.
Quando tudo estava pronto, era levado em caldeirões de alumínio. Em
uma sacola iam os pratos de louça, que depois foram substituídos pelos de
esmalte, porque as crianças quebraram todos, deixando a sacola cair no chão.
José e Benvinda eram os encarregados de levarem a comida para todos. Era
uma longa caminhada até o sítio, carregando os caldeirões pesados, cheios de
comida. Quando chegavam, a bóia já estava fria.
O percurso era feito com muito medo. Na picada que cortava a mata
havia manadas de catetos, antas, queixadas, onças, capivaras, jaguatiricas,
veados e quatis. Os veados tinham o porte de um bezerro, mas não eram
perigosos. Transitavam livremente, sem causar medo à ninguém. Os gatos do
mato já eram de dar medo. Eram muito grandes e quando um deles via as
crianças, parava e se arrepiava todo, abrindo a boca e fazendo um ruído de
deixar qualquer um arrepiado.

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Pedro levava o café, que depois era aquecido no fogão de pedra dos
peões. O feijão e a carne também eram esquentados ali. Enquanto os peões
limpavam a terra, queimando os entulhos, Pedro e os filhos, mais o Baiano,
levantavam a casa, que ficou pronta depois de três meses. Pedro arrumou um
caminhão de puxar toras para levar a mudança.
No último dia, quando terminou a casa, Benvinda e José tinham levado o
almoço e, como estava muito frio, ficaram para voltar juntos com todos. Só
faltava recolher as sobras da construção e guardar as ferramentas. A casa
estava pronta, com as chaves nas portas e as janelas com trancas tramelas.
Começou um vento frio e uma garoa gelada. Em pouco tempo todos estavam
duros de frio.
Era a tal geada negra. Foi uma provação terrível para Pedro e para a
família chegar em casa. Já passava das três horas da tarde, quando isso
aconteceu e Márcia já os esperava com muita água quente para o banho de
todos e uma suculenta sopa de mandioca, reforçada com lombinho de porco e
costelinha defumada.
Depois do banho e da sopa quente, os filhos foram para a cama. Pedro e
Márcia ficaram se aquecendo no grande fogão de lenha, que mais parecia uma
lareira. O vento entrava dentro da casa pelos buracos na parede. Pedro dizia
que a geada mataria os mosquitos da maleita.
Não foi possível mudar-se no dia seguinte. O frio era intenso e o vento,
muito forte. O grande fogão da casa nova tinha de secar ainda o cimento e, por
isso, o fogo não poderia ser acendido. Três dias depois, a mudança foi
realizada. Márcia ainda não havia visto a casa nova. Assim que chegaram, ela
começou a chorar.
Pedro perguntou a ela:
— Você não gostou da nova casa?
— Sim, eu gostei — respondeu ela chorando e abraçou o marido. —
Estamos vencendo.
Pedro sonhador agradeceu a esposa:
— Devo tudo a você. É meu anjo da guarda. Sem você jamais iria chegar
até aqui.
Márcia disse ao marido:
— Agradeça a Deus, Pedro. Foi Ele que realizou mais esse sonho. Ainda
faltam muitos outros, até que você seja um bom lavrador e dono de sua
plantação de café.

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O FEIJÃO E O MUTIRÃO

Pedro tinha feito um poço, que ficava uns cinqüenta metros longe da
casa, com água muito boa. Ele descobriu uma nascente de água cristalina para
o uso da casa e o poço era só para lavar as roupas da família. Construiu um
outro cômodo para guardar as ferramentas. Assim, finalmente, a família estava
bem instalada. Chegava a hora de preparar a terra para plantar milho, arroz e
feijão.
Havia sobrado muita madeira, que seria aproveitada para fazer mourões e
palanques para as cercas de arame farpado, onde seriam guardados os animais.
O restante era para o consumo do fogão.
Pedro, ao vender a madeira, recebeu uma grande soma em dinheiro e
assim pôde pagar todas as despesas com os peões. Retirou a escritura
definitiva da sua propriedade e o que sobrou foi o primeiro lucro. O trabalho
de toda a família não tinha preço.
Pedro tinha agora que comprar as máquinas manuais para plantar o milho
e o feijão. Além disso, os troncos das árvores cortadas brotavam e tinham que
ser cortados com enxadas ou facão. Depois da terra preparada, caiu uma boa
chuva. Começaram a plantação. Um vizinho lhe vendeu as sementes do milho
que tinha sobrado da sua plantação e ensinou como manejar a máquina. Era de
madeira e, para plantar, tinha de ser bem rápido, batendo na terra, abrindo e
fechando e deixando as sementes na pequena cova feita.
O milho foi plantado e precisavam ser cuidado, capinando o mato que
brotava. Era serviço que não acabava mais. Chegou, em seguida, a época de
plantar o feijão, mas antes era preciso dobrar os pés de milho, i, trabalho
extremamente cansativo, mas tudo foi feito na época certa.
Todos já tinham um pouco de prática em manejar as máquinas, mas,
mesmo assim, ainda batiam-na sobre os dedos dos pés, sem ferimentos graves,
porque todos usavam as botinas protetoras. No fim da tarde, Pedro, olhava as
terras que tinham recebido as sementes, e dizia:
— Hoje plantamos um pouco mais que ontem. Amanhã vai ser ainda
mais e logo todo o feijão estará plantado.
Foi a maior plantação que Pedro já havia feito, graças à ajuda dos filhos.
Em pouco tempo o feijão cresceu e era preciso continuar a cortar as plantas
nativas que cresciam junto com ele. O serviço era cansativo, mas todos o
faziam com muito prazer.
Pedro sonhador esquecia de sonhar. Era tanto serviço que ele só pensava
em vencer. Márcia vivia atarefada e com tantas surpresas agradáveis. Todos os

29
dias, na hora da janta, era narrado a ela tudo o que tinha acontecido durante o
dia no trabalho da roça.
Um dia aconteceu um fato interessante com Lúcio, o filho mais velho de
Pedro. Ele estava capinando quando apareceu um enorme lagarto. Ele tentou
acertá-lo com a enxada, mas o lagarto correu muito e Lúcio correu atrás. O
lagarto, então, inesperadamente mordeu o próprio rabo, aparando-o quase pela
metade e desapareceu no meio do mato. Lúcio pegou o rabo do animal e levou
para mostrar a todos. Contou o que havia acontecido e essa façanha ninguém
esqueceu.
São Pedro mandou chuva suficiente para o feijão crescer e pegar uma
carga de vagens nunca visto por Pedro e Márcia. Ela, todo final de tarde, ia
juntar-se a família e admirar a lavoura de feijão. Quando chegou a colheita,
Pedro, sua família e o Baiano o arrancaram em uma semana. Márcia e uma das
filhas preparavam a comida para todos e levavam na roça o almoço da família.
Já deixava sobre o fogão o feijão cozinhando para o jantar.
Márcia agora não chorava mais escondido. Ao ver o marido sujo de terra
vermelha, chorava limpando seu rosto, dizendo:
— Valeu a pena tanto trabalho!
As lágrimas corriam em seu rosto e Pedro as enxugava com carinho,
deixando em sua face a marca da terra vermelha.
Um dia Márcia o abraçou e disse:
— Você não sonha mais, Pedro.
— Sim — disse ele, — é claro que eu sonho. Eu sou um sonhador, é você
que sempre me diz. Ainda falta muito. Vamos ter que trabalhar muito ainda.
Agora vamos ter que bater todo esse feijão.
Ele havia calculado sua produção em duzentas sacas. Antes de mais nada,
precisava de uma carroça para transportar sua primeira safra de feijão.
Comprou uma, feita em Ourinhos, recém-saida da fábrica. Adquiriu também
um cavalo, que foi batizado de Paxola.
Restava bater o feijão. Após consultar seus vizinhos, Pedro decidiu o que
fazer e avisou a esposa.
— Vamos fazer um mutirão. Já falei com os vizinhos e eles me deram
essa idéia. Já está tudo combinado. Em dois dias nós bateremos todo esse
feijão.
Márcia nunca tinha lidado com essa situação, mas as vizinhas já estavam
acostumadas com essas reuniões. Todas se prontificaram a ajudá-la a fazer a
comida para os homens. Foi feita uma lista de tudo que seria consumido e os
preparativos foram encerrados. O sol já havia secado todo o feijão que fora
arrancado e preso em cima dos pés de milho. O sol estava bom. Foram dois
dias de muito trabalho sério para trinta homens adultos. Uns carregavam o

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feijão em grandes feixes preso por uma corda, outros colocavam em cima dos
encerados, outros batiam com varas e cambaus, outros abanavam e outros
ensacavam.
Era um trabalho como o das formigas. Todos juntos fazendo cada um a
sua parte e ninguém cobrava nada pelo serviço. E, assim, todos juntos
ajudavam um vizinho apurado, principalmente na colheita do feijão. Foram
dois dias de festa, muito trabalho e muita comida e alegria para todos que
participaram do mutirão.
Ao contar as sacas, Pedro não acreditou na quantidade. Foram colhidas
trezentas sacas de feijão abanados e de sessenta quilos cada. O rancho que ele
havia construído no meio do sítio não deu para guardar nem a metade da safra
de feijão. O restante foi guardado em mais dois ranchos dos vizinhos. Lúcio e
Baiano transportaram com a carroça, puxada por Paxola. O trabalho começou
na quinta-feira e terminou na sexta-feira. No sábado, foram todos convidados
para uma grande reunião de encerramento, uma festa para todas as famílias
que participaram do mutirão, com os filhos e parentes.
As vizinhas ajudaram na preparação do grande almoço. Márcia cuidava
do grande fogão a lenha. Era comida que não tinha fim. Nos grandes tachos
foram feitos frango ensopado, lombo recheado, frango com macarrão e
macarronada, além de leitões e frangos assados no forno a lenha e muita
salada e farofa.
Foi uma reunião inesquecível. À noite, houve a famosa catira do interior
de São Paulo, rodadas de truco e escopa. O três-sete ninguém sabia jogar. Para
os mais jovens, houve baile numa grande barraca de lona. Foi uma festa muito
especial para a família de Pedro.
No domingo amanheceu chovendo e choveu durante uma semana. Pedro
deu graças a Deus e aos vizinhos pelo feijão estar todo guardado nos ranchos.
Ele havia gasto na alimentação de todos, em três dias, vinte leitões, cinqüenta
frangos, carne de um porco gordo inteiro, um saco de feijão, dois sacos de
arroz e um saco de farinha de mandioca, dois sacos de macarrão e vários
garrafões de vinho. Com dez sacas do feijão vendido deu para ele pagar toda a
despesa do mutirão.
Pedro comprou vários porcos de cria e engorda. Leitões já eram criados
no mangueirão e frangos caipiras povoavam o terreiro da casa. Pedro tinha de
tudo em grande quantidade. Ele se lembrava da casa do pai com tristeza,
quando a madrasta escondia comida e ele passava o dia sem comer. Não sentia
saudades desse tempo. Ele só tinha muita tristeza. Dizia ele a esposa:
— Eu jamais terei coragem de negar um prato de comida a um estranho.
Dinha me negava o direito de entrar na minha própria casa e de falar com meu
pai. Dele, sim, eu tenho saudade. Que Deus o tenha em sua santa Glória. Ele

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sofreu muito com a mulher, mas ela foi muito infeliz depois que meu pai
faleceu. Seus filhos a abandonaram e tiraram tudo que ela tomou de meu pai.
Ela foi castigada por Deus.
Márcia vivia atarefada com tanto trabalho, mas a profecia da benzedeira
sempre lhe voltava a mente. Ela dizia para si mesma:
— Ela disse a verdade. Até agora deu tudo certo. O filho que vai chegar
não terá boa saúde, mas terá vida longa. Eu só vou ter certeza de tudo, quando
os fatos acontecerem. Tenho medo até de pensar.
Pedro a chamou, trazendo-a de volta a realidade. Encabulada disse:
— O que você quer, homem. Você me deu um susto!
— Estava sonhando mulher?
— Eu não! — respondeu — Só faltava essa agora. Eu sonhando.
Ele tinha razão. Pedro a chamou para avisar que iria a cidade, vender o
feijão. Selou sua égua Faceira, colocou sua guaiaca nova e lá foi ele à cidade,
vender sua grande safra de feijão. Só tinha um cerealista comprador.
Combinaram o preço e acertaram a venda. O pagamento era feito só depois da
entrega.
— E quando é que seu feijão vai ser colhido? — perguntou o comprador.
— Com essa semana de chuva, seu feijão deve estar todo brotado, seu Pedro.
— O feijão já está colhido, Seu Martins, e está guardado nos ranchos. O
senhor pode ir buscá-lo hoje mesmo.
— Pedro, você é um homem de sorte. Esta compra é a primeira que faço
este ano. Está de parabéns.
Foram vendidas trezentas sacas de feijão. Pedro reservou quinze sacas
para o gasto da família e o restante para o novo plantio. Seu Martins fez três
viagens em seu caminhãozinho. A estrada estava muito enlameada e
escorregadia. Pedro deixou sua égua Faceira e foi junto com o caminhão
buscar a primeira parte do feijão. Não deu para dar as três viagens no mesmo
dia. No outro dia foram buscar as outras duas.
Pedro recebeu o dinheiro e separou um pouco dele. Com o restante abriu
uma conta bancária. Foi até a Casa Alves, uma loja de tecidos, e fez uma boa
compra.
Alves era o nome do dono da loja. Perguntou a Pedro:
— O senhor é novo aqui na cidade, não?
— Vai fazer dois anos que estou morando aqui perto, no meu sítio.
— Onde fica o seu sítio?
Pedro respondeu:
— É no Maticanã. Lá é tudo mata ainda, senhor. Meu nome é Pedro, a
suas ordens.

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Foi uma festa ao chegar em casa. Pedro trazia enormes pacotes de tecidos
e roupas para toda a família. Ele não havia comprado roupas de frio para as
crianças. Márcia recriminou-o por isso.
— Eu não esqueci, Márcia. Vai chegar na loja do Cavali uns casacos de
frio. Assim que chegar, eu vou buscá-los e levarei os meninos para escolher.
De fato, quando a mercadoria chegou, Pedro comprou casacões de lã para
as filhas e para a esposa. Comprou também agasalhos de frio para ele, Lúcio e
José, e blusinha de frio para Lurdes. Márcia ficou feliz com o casaco. Foi um
presente inesquecível.
Márcia queria uma máquina para costurar todos aqueles tecidos que o
marido havia comprado. Pedro sempre fazia os gostos da esposa e prometeu a
compra da máquina de pé, assim que chegasse na loja de Seu Dantas. Ele a
comprou logo na semana seguinte. Márcia não tinha prática, mas logo pegou o
jeito e foi uma festa só entregar os vestidos de seda para as filhas, muito bem
bordados.
Quando foi preciso colher o milho de novo, Pedro arrumou uns peões,
mais o Baiano e os filhos para a quebra. Ele fez um paiol bem grande, em
poucos dias. Lúcio era quem transportava o milho até o paiol. O serviço era
cansativo e demorado e tinha que ser feito o mais depressa possível. A terra
precisava ser preparada para nova plantação.
Foram plantados, então, arroz, mandioca, batata-doce, cará e abóboras. O
pomar foi tarefa de Lúcio, que se saiu muito bem. Tinham também uma boa
horta e os filhos ajudavam a cuidar. Com tanto serviço, Márcia andava muito
distraída. Pedro notou logo de início, pensou que fosse apenas cansaço e falou
com a esposa.
— O que está acontecendo? Você anda triste, pensativa. Está doente ou
não está feliz?
— Não é nada disso. Deixe para lá. Não fique preocupado, eu estou bem.
— Você tem trabalhado demais. Eu vejo uma sombra de tristeza em seus
olhos. Me diga o que a está atormentando.
Márcia respondeu:
— Eu queria voltar lá onde nós morávamos. Quero rever o sítio, ver meu
pai, fazer uma visita ao túmulo de minha falecida mãe. Eu tenho tanta
saudades de tudo que deixamos lá, você me leva até lá para matar a saudade e
rever o monjolo.
— Sim, nós iremos rever tudo.
Márcia abraçou o marido e continuou:
— Eu estou morrendo de saudade. Quero rever minhas irmãs.
Pedro não sabia dizer não a ela.

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— Nós iremos rever seus parentes, os meus e os amigos. Vou dar uma
ordem para os filhos e para o Baiano. Assim nós dois vamos descansar um
pouco. Uma semana ou duas serão suficientes para visitarmos todos.
Márcia abraçou o marido como uma adolescente e disse:
— Eu sem você não viveria.
Ele respondeu:
— Eu que o digo. Sem você é o mesmo que se o mundo acabasse —
afirmou ele e ficaram abraçados por longo tempo.
Márcia fez vários vestidos, saias e blusas para ela. Para o marido, calças
e camisas. Pedro comprou um par de botas para ele e dois pares de sapatos
para a esposa. Dois dias depois, saíram de viagem para rever sua terra natal.
Levaram a filha Lurdes, que tinha dois ou três anos de idade. A viagem correu
bem. Márcia, porém, estava enganada, pensando que iria encontrar o antigo
sítio como haviam deixado. Já em seu destino, Pedro alugou um carro para
levá-los até o sítio.
Ao chegar na entrada das terras que tinham sido suas, ela não conteve as
lágrimas, ao ver tudo sem nada. A casa grande não estava mais em seu lugar.
O monjolo simplesmente havia desaparecido, tudo havia sido destruído e em
seu lugar só havia pastagem. Márcia chorou muito e disse ao marido:
— Que tristeza! Quanto me arrependo de ter vindo. Eu tinha o grande
sonho de ver tudo no mesmo lugar. O que fizeram com a nossa casa? E o meu
monjolo? Destruíram sem dó este lugar tão querido e onde fomos tão felizes.
Pedro abraçou a esposa e tentou dizer alguma coisa, mas ele também
estava emocionado.
— Vamos embora daqui. Chega de tristeza. Nós lá no nosso sítio somos
muito felizes. Lá não tem lugar para a tristeza. Vamos visitar nossos parentes
e o túmulo da sua mãe.
Ezaías, ao ver Pedro e Márcia, não acreditou que eram eles. Chorava
como uma criança dizendo:
— Agora eu vou com vocês e não tem desculpas.
Já com duas semanas de passeio, decidiram voltar para casa. Ezaías
arrumou sua pequena maleta, com suas roupas e tudo que ele tinha, resolvido
a passar uns tempos com eles.
— Quero conhecer seu novo sítio e a casa grande. Há um cantinho para
mim, pequeno Pedro?
Márcia disse:
— Agora ele não é mais tão pequeno pai. Tem quase dois metros. Será
uma grande alegria ter o senhor conosco por um bom tempo.
Ezaías vivia com sua filha Dora e não saia de casa para viajar. Só visitava
os parentes da cidade. Foi com grande alegria que viajou de trem junto com

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sua filha e Pedro, para ele um filho muito querido. Ao chegar ao Paraná, ele
indagou.
— Este lugar existe mesmo ou eu estou sonhando?
Ezaías ainda não tinha visto nada. Quando chegou no sítio de Pedro, ele
se encantou com tudo que viu e disse ao genro:
— Eu acreditei em você, tinha certeza que iriam vencer.
As palavras da benzedeira voltaram a mente de Márcia. Ela não esquecia.
Lúcio e os irmãos haviam cumprido todas as ordens do pai e ainda
tinham plantado mamonas e amendoim. Os netos ficaram muito felizes com a
chegada do vovô, que iria passar uma temporada com eles.
Um dia, porém, o vô Ezaías chegou perto de um dos netos e meio tonto,
queixou-se de uma terrível dor do lado direito. O neto aflito perguntou:
— O vô está doente?
— Não, estou só com essa dor forte. Ela tem nome. Chama-se dor-de-
bolso.
— O que é isso vô? Eu nunca ouvi falar dessa dor.
— É que eu não tenho nem um réu no bolso — explicou o velho e os dois
deram uma gostosa gargalhada.
O neto deu a ele uma boa porção de moedas. Só assim ele sararia daquela
terrível dor.

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OS CAÇADORES SEM CAÇA E ZÉ-SEM-MEDO

Pedro fez uma reunião com os filhos e anunciou:


— Este ano vamos plantar o café. Temos que fazer as covas e arrumar a
madeira para cobri-las.
Ele já havia conversado com os vizinhos, que já tinham plantado o café.
Eles explicaram como fazer as covas e como medir a distância, o espaçamento
entre elas. Em uma corda fina eram feitos nós a uma distância regular. Era a
distância entre uma cova de café e outra. Duas pessoas seguravam nas pontas
da corda, outras duas, com um enxadão, faziam as marcas e outros já faziam
os buracos. O serviço era uma nova experiência para todos, pois ninguém
sabia fazer aquele tipo de trabalho. Com alguns erros, que eram corrigidos
sem perda de tempo, as covas deveriam estar prontas antes do plantio.
Foram dez dias de muito trabalho. Com garra e muito amor pela terra
Pedro plantou oito mil pés de café. Essa terra vermelha era orgulho de Pedro.
Quanto ele sonhou e ainda sonhava com sua lavoura de café. Ele não desistia
de seus sonhos de ser um produtor de café.
Márcia, além de cuidar da comida no seu fogão a lenha, ainda costurava
para toda a família. Uma das filhas ajudava lavando toda a roupa da família e
tirando água do poço. O trabalho era uma rotina para todos. Assim que
sentiam o cheirinho de café coado, todos pulavam da cama sem preguiça. Com
a maior boa vontade ia todos, com suas ferramentas nas costas, encarar mais
um dia de trabalho.
Depois das covas do café estarem todas prontas, a terra já capinada, o
milho já plantado, as sementes do café escolhidas, foi plantado o feijão, desta
vez um pouco menos. Faltava plantar o arroz.
— Quem trabalha com a terra tem que plantar de tudo — dizia Pedro.
Começou a plantação do café. Em cada cova eram colocado oito grãos.
Depois de nascido, era necessário retirar as mudas que não tinha crescido. Só
ficariam de três a quatro pés em cada cova. A madeira já estava preparada,
para que todas as covas de café fossem cobertas por elas. Assim que o café
começou a brotar, Pedro não cansava de olhar sua lavoura, agradecendo a
Deus por ter vencido mais uma etapa.
Márcia, agora refeita da decepção de não ver sua antiga casa, tinha a
alegria de seu velho pai estar junto dela, Pedro estava feliz da vida, o seu café
já plantado. O milho já estava embonecando, o feijão nascido, o arroz
crescendo. As chuvas vinham na hora certa e eram uma benção de Deus.

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Lúcio pediu ao pai permissão para fazer uma caçada num domingo. O pai
a deu e quis saber quem iria junto:
— Vamos eu, o Baiano e mais quatro amigos.
— Tome muito cuidado! — recomendou o pai.
— Vamos levar sua espingarda e um facão. Os outros também vão levar
espingardas, facões e munição.
Márcia preparou uma panela de carne, uma boa farofa, café e água. Cada
um levou de casa a sua comida. Estavam todos felizes da vida, prometendo
estar de volta antes do jantar. De manhã bem cedinho, os seis amigos fizeram
a tal caçada.
Não era meio-dia, quando eles chegaram. Nem haviam comido o que
tinham levado. Pedro quis saber o que tinha acontecido. Todos, muito
envergonhados, sentaram-se no chão junto a porta da sala e começaram a
falar.
— O senhor não imagina o que nos aconteceu.
— Não encontraram caças — perguntou o pai.
— Encontramos muitas.
— Por que não caçaram nenhuma?
— Não tivemos coragem.
— Como não tiveram coragem?
— Seu Pedro eram tantas que não deu para atirar em nenhuma delas.
Toda a família estava esperando uma explicação dos caçadores. —
Explique melhor — disse Pedro.
— As queixadas mais pareciam bezerros e eram tantas que tivemos de
subir em uma árvore e ficar olhando elas passarem. Logo atrás veio uma
manada de catetos, uns enormes porcos, bem maiores do que temos no
chiqueiro. Os quatis se jogavam de cima das árvores. Ao caírem mais
pareciam uma bola de futebol. Encontramos muitas pacas, que se escondiam
dentro dos buracos, nos troncos das árvores. E os veados pareciam que tinham
asas. Eles não corriam, voavam. As capivaras nadavam melhor que muitos
homens. Até parecia que estavam praticando esportes, coisa de louco. Os urus
e os jacus mais pareciam galos caipiras, bem maiores do que temos aqui. Foi
por isso que não tivemos coragem de abatê-los. O que iríamos fazer com tanta
carne daqueles animais tão bonitos?
Pedro fez um comentário;
— Eu, de minha parte, fiquei muito contente de vocês não terem atirado
em nenhum dos animais.
— Encontramos caçadores que tinham matado várias caças e as levavam
penduradas em uma vara, carregadas por dois homens. Eles riram de nós,

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dizendo: "vocês ficaram com medo rapazes. Caçador tem que ter sangue-frio
como nós, seus medrosos!"
Pedro disse:
— Eles não sabem o que falam. Vocês fizerem muito bem de não ter
matado os pobres bichos.
Márcia. Intrigada, perguntou:
— Por que vocês voltaram tão sujos? Entraram em algum buraco? —
Entramos mesmo, mãe.
— Fazendo o quê em um buraco?
— Nós encontramos uma caverna. Deve ser de índios. Entramos dentro
dela. Havia um buraco estreito e, com a lanterna do Baiano, deu para ver tudo
que tinha dentro da caverna. Levamos um susto grande com os morcegos. Eles
estavam em toda parte, voando por cima da gente.
— O que mais tinha dentro da caverna? — perguntou a mãe.
— Lá dentro parecia uma grande salão de festa. As paredes eram de
pedras e tinham umas letras esquisitas nelas. Mais pareciam rabiscos. Tinha
também uns desenhos feitos nas paredes de pedras, de cabeças de animais.
Tinha também cabeças de veados presas nas paredes e muitos outros bichos
que nós não vimos nem nos livros da escola. Tinha um fogão feito com pedras
e umas coisas jogadas no chão. Parecia ser uma bacia de madeira, a tal gamela
que a senhora falou. Tinha também uns bodoques, quase igual aqueles que a
senhora faz, todos quebrados. Havia muitas penas de aves coloridas, todas
presas por um cordão ou cipó.
— Aonde vocês estavam com a cabeça para entrar numa caverna que
poderia ter até cobras?
— Fique tranqüila, nós não voltaremos mais lá na caverna — disse um
dos amigos de caçada. Nós pegamos esta machadinha, ela está perfeita. Veja
que coisa bem feita seu Pedro. Como eles podem fazer uma machadinha de
pedra?
Pedro ordenou:
— Vão levá-la de volta. Não quero isto aqui em casa.
Ezaías se divertia com a história da caçada em que não teve caça.
— Vocês ficaram com medo, digam a verdade.
— Foi falta de coragem e muito medo também — responderam os
caçadores medrosos.
Aquela caçada ficou na lembrança de todos para sempre, como ficaram
as histórias do vô Ezaías.
— Vovô, o senhor sabe muitas histórias de verdade? — perguntou um
dos netos, no entardecer de um dia qualquer.
— Sei cada uma de arrepiar. Que história vocês querem que eu conte?

38
— Não sendo de assombração qualquer uma serve. Queremos a história
da fazenda do vô Lúcio.
— Então vão buscar um cafezinho para mim e o meu isqueiro para
acender o cigarro.
Após os preparativos, ele começou:
— Eu conheci seu Lúcio lá pelo ano de mil oitocentos e não sei quanto.
Foi quando ele veio das Minas Gerais. Ele era garimpeiro e tinha ajuntado
muito dinheiro. Veio para comprar a fazenda, que era muito grande e tinha
sido dividida em vários lotes menores, pois assim era mais fácil de ser
vendida. Lúcio comprou a parte maior. Ele ficou com a casa grande, o
engenho e boa parte dos canaviais. Tinha também uma grande invernada e
muitas cabeças de gado.
— Conta da casa, vô. O que tinha dentro dela? Era muito grande a casa?
— Uma pergunta de cada vez. A casa era muito grande. Quem morava
nela era um senhor de engenho, já quebrado depois da abolição dos escravos.
Lúcio comprou de porteira fechada.
— O que é isso vô?
— Porteira fechada era tudo que tinha dentro da fazenda: o gado, os
animais, os troles, os carros de boi, o que tinha dentro da casa, que eram os
móveis, tapetes, objetos de ouro e prata, cristais, porcelanas, coisa de gente
muito rica. Os objetos mais bonitos eram os castiçais, todos de ouro. Os
lampiões também eram de ouro. Até as imagens de santos eram todinhas de
ouro. Os talheres eram de ouro e prata. Os porta-jóias também eram todos de
ouro. Os quadros das paredes, ele não sabia o valor que tinham. O quadro
mais bonito era o da Monalisa, esse era lindo demais. Havia uma arca
inteirinha de prata. As estátuas dos antigos donos da casa eram inteirinhas de
ouro. No lugar de ferro eles usavam ouro, até os freios do cavalo do antigo
sinhozinho eram de ouro: estribos, esporas, o peitoral, enfim, o que não era de
ouro era de prata. Quem deu fim nessa riqueza toda foi Dinha, a madrasta
esperta. Guardou tudo nos cofres das paredes da casa. Ela guardava e os filhos
tiravam e vendiam tudo por uma bagatela. Quando seu avô faleceu, na casa já
não havia mais nada. Até os móveis haviam sido vendidos por Dinha e seus
filhos.
— Dinha ficou muito rica com tudo que ela vendeu, vô?
— Não, ela ficou mais pobre que o vô.
— E a sua fazendinha? O que foi feito dela?
— Eu vendi, meus netos. Me pagaram muito pouco por ela. O tempo
passou, eu gastei tudo e fiquei sem nada.
— Então é por isso que o senhor sempre tem essa dor de bolso?

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— É verdade! A falta de dinheiro me deixou essa dor para o resto da
vida. Mas a casa do vô Lúcio era igual ao casarão amarelo, lá perto do outro
sítio de meu pai. Eu não conheci o casarão. Quem sabe dessa história é a mãe
de vocês.
Márcia foi chamada e pediram para ela contar para o vovô a história do
casarão.
— Eu já contei para você.
— Conta para o vovô daquela sala grande que tinha no casarão.
Márcia ficou sem saída:
— Então eu vou contar. Eram duas salas muito grande. A primeira tinha
uma mesa muito grande, com vinte e quatro cadeiras, todas recobertas com
veludo vermelho. Tinha uma linda toalha de renda branca, feita por escravas.
A mesa estava sempre arrumada, como se fosse para uma grande festa. No
centro da mesa tinha sempre um arranjo de rosas num vaso de cristal, com
seus vinte e quatro pratos, com todos os seus copos e talheres. Os talheres
eram de prata e os pratos e copos com filetes de ouro. Essa mesa era
conservada arrumada todos os dias. A outra mesa, na outra sala, era menor,
com treze lugares. Sua toalha também era de renda branca, com detalhes
eucarísticos. No centro da mesa tinha um copo de ouro com vinho e um prato
com um pão. Doze cadeiras tinham no espaldar uma placa de prata com um
nome escrito. A décima terceira, separando seis para cada lado, tinha uma
placa onde estava escrito "Jesus". Cada uma das outras placas tinha o nome de
um dos doze apóstolos. A sala era a da Santa Ceia, com um castiçal com doze
velas.
— Que história, Márcia! Isso é verdade mesmo? — perguntou Ezaías.
— Sim, é verdade. Eu vi esta sala e muita gente daquela região viu
também. Diziam ainda que havia muitas escravas que cuidavam de tudo
durante a noite, para que tudo que tinha ali fosse muito bem cuidado. As
pratarias e os cristais estavam sempre brilhando. No casarão só viviam duas
mulheres, que todos conheciam. Elas atendiam as madames, esposas de
coronéis, donos de imensas fazendas de café onde outrora havia canaviais a se
perder de vista. As escravas viviam escondidas durante o dia. A noite era para
limpar tudo e cuidar das toalhas de renda e linho, todas bordadas a mão por
elas. Diziam que, na época de natal, suas toalhas eram bordadas com fios de
ouro e os castiçais também eram de ouro, como os da sala de orações.
Márcia ajuntou:
— Já é tarde. Chega de histórias por hoje. Vamos todos jantar e num
outro dia continuaremos com as nossas histórias. O vovô conta mais histórias
para nós

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— Sim, eu conto a história da casa de zinco e também a história do Zé-
Sem-Medo.
— Não é de assombração, né, vô?
— Não, é só um pouquinho mal-assombrada. O vô conta de dia para
vocês não ficarem com medo. Combinado, meus netos?
Os dias se passaram e o café crescia. Pedro vistoriava todos os dias para
ver se não tinha nem uma cova de café sem as madeiras em cima, protegendo
as mudinhas. Ezaías, feliz da vida por estar junto de Pedro, de Márcia e dos
netos, que não o deixavam em paz, insistindo para que ele contasse as
histórias que ele tinha prometido.
Certo domingo amanheceu chovendo. Os netos correram todos para o
quarto do avô, exigindo.
— Hoje o vô vai contar as histórias que prometeu.
Levando o café para o pai, Márcia entrou no quarto e viu aquela bagunça.
Tentou retirar os filhos do quarto, mas foi impossível.
— Deixe todos — disse Ezaías. — Eu vou contar umas histórias para
eles. Tenho certeza de que vão todos sair correndo de medo. Esta história
começou quando eu ainda era muito pequeno. Ela foi contada pelo meu avô,
que se chamava Ezaías, como eu. Contava ele que tudo começou há muitos
anos, antes dos escravos serem libertados pela Princesa Isabel. Havia, numa
localidade lá em Minas Gerais, que eu já esqueci o nome e o lugar, um
fazendeiro muito rico. Ele tinha muitas fazendas de café, canaviais, um grande
engenho e muitos escravos, que trabalhavam nessa fazenda e nunca recebiam
um réu pelo seu trabalho. Eles só tinham a comida. Suas roupas eram uns
farrapos que só cobriam as vergonhas.
— O que é isso vô? — perguntou um dos netos.
— As roupas só tampavam a bunda. Esse fazendeiro era tão rico que não
tinha lugar para guardar seu dinheiro. Mandou fazer um grande baú de bronze.
Meu avô contava que para carregar esse baú era preciso vinte escravos. Levou
três dias para fazer um grande buraco no chão para enterrar o baú. Dentro
dele, o rico fazendeiro guardou tudo que tinha. O dinheiro foi trocado por
moedas de ouro e pratas, libras esterlinas, jóias, pedras preciosas e tudo que
tinha valor. Depois de enterrar seu baú com toda sua riqueza dentro, ele
construiu uma casa de zinco.
— Como era essa casa vô?
— Ela era parecida com um grande chapéu sem aba.
— Quem morava nessa casa, vô?
— Nessa casa morava toda a riqueza do rico fazendeiro. Contava meu
avô que, quando ele morreu, foi enterrado dentro dessa casa para vigiar sua
riqueza enterrada e nunca ninguém pode se aproximar dessa casa. Lá dentro

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havia um grande barulho. Ouvia-se o arrastar de correntes e uma voz que
contava um, dois, dez, cem, mil, assim por diante. Dizia meu avô que ele
contava todos os dias suas moedas e seu dinheiro enterrados no grande baú de
bronze.
— Agora conta a outra vô. É a última. Conta logo vô, senão a mãe entra e
não vai deixar o senhor contar mais histórias.
— Esta história não é de fazendeiro, não tem escravo, engenho ou
canaviais, mas tem uma fazendeira. Essa fazendeira era muito rica, boa e
muito querida por todos os empregados da fazenda. Todos os dias ela saia no
seu trole...
— O que é isso vô?
— É uma carroça com quatro rodas de pneus, puxada por dois, até quatro
cavalos. Os cavalos dela eram brancos. O trole tinha capota e até cortinas para
não entrar poeira das estradas, dizia o meu avô. Ela tinha um empregado
chamado José, mas conhecido como Zé-Sem-Medo. Quando o marido da
fazendeira era vivo, José o acompanhava pela fazenda. Todos os dias faziam a
mesma coisa. Olhavam os empregados, o gado e tudo que tinha na fazenda. O
fazendeiro morreu, foi aí que a fazendeira passou a visitar a fazenda todos os
dias. Quando eles iam passar por uma porteira, ela abria sozinha, mesmo
trancada. Zé-Sem-Medo dizia: "obrigado patrãozinho!". Isso acontecia todos
os dias. Todas as porteiras e portões por onde eles passavam se abriam, depois
se fechavam e trancavam sozinhos. Zé-Sem-Medo agradecia e seguia em
frente. Certo dia, a fazendeira voltou das visitas e se queixou de cansaço.
Deitou-se e disse: "me acorde daqui duas horas. Não se esqueça Zé: duas
horas. Deixe o trole pronto que vamos depois do almoço à cidade. Zé preparou
o trole e na hora certa foi chamar a patroa. Chamou, chamou e chamou.
Tentou levantá-la, mas não conseguiu. Avisou os empregados da casa. Pediu
ajuda ao administrador e sua esposa e juntos foram ver a patroinha. Foi um
grande susto aos empregados verificar que ela estava morta. Mas Zé não
acreditou. Ele dizia que ela estava dormindo. Chamaram um médico, que disse
que realmente ela estava morta. Mas o Zé insistia em dizer que ela estava só
dormindo. Prepararam a patroinha e a colocaram em cima de uma mesa para
ser velada. Durante a noite do velório, Zé vinha a toda hora acordar a
patroinha, dizendo: "acorda! A senhora está com frio? Eu vou buscar um
cobertor para lhe aquecer. Todos estavam muito tristes com a morte da
fazendeira tão querida. Quando passou da meia-noite, Zé voltou e disse:
"acorda patroinha! Já é uma da manhã. Os galos estão cantando". Zé voltou
mais tarde, dizendo: "os galos estão cantando pela segunda vez. Acorda
patroinha". Quando o relógio bateu cinco horas, Zé foi para a cozinha e
preparou o café, serviu a mesa e foi chamar a patroinha dizendo: "desta vez eu

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acordo ela". Quando Zé entrou na sala, todos os presentes começaram a
chorar. Ele retirou o cobertor que havia colocado para aquecê-la, pegou suas
botas e calçou-as, dizendo: "está na hora! Levante dessa mesa. Não sei porque
não dormiu na cama. A senhora deve estar com dor nas costas. Eu vou lhe
ajudar a descer dessa mesa". Segurou-a pelos ombros e, com a outra mão,
desceu suas pernas fora da mesa, ajeitou seus cabelos e disse: "acorda
patroinha! O café está na mesa. Todos os presentes, chorando, diziam: "Zé, ela
está morta." Zé respondeu: "ela está dormindo". Segurou, então, seu rosto e
pediu: "acorda, pelo amor de Deus! Acorda! Abre os olhos! O dia já vem
raiando! Acorda, já é tarde! O sol vai aparecer. A patroinha abriu os olhos e
disse: "você não me deixou dormir a noite inteira, por que tanta pressa, Zé?"
Os presentes saíram todos correndo ao ver a morta se levantar e devem estar
correndo até hoje.
— E o Zé, o que aconteceu com ele?
— Foi junto com a patroinha tomar café. E agora, quem vai tomar café
comigo?
— Eu vou — todos falaram, numa só voz.
Dias depois, Ezaías recebeu uma carta da filha, pedindo para ele voltar,
porque seu genro estava doente e chamava por ele. Pedro e Márcia foram levá-
lo e fazer uma visita ao parente tão querido. Ninguém esqueceu das histórias
do vovô Ezaías.

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CASAMENTOS E DECEPÇÕES

Pedro sonhava com sua lavoura e esperava seu café crescer. Seus sonhos
estavam sendo realizados. Márcia rezava para que Deus o ajudasse e a
plantação não fosse prejudicada pelas geadas. Àquela altura, as plantinhas já
estavam fora das covas. Era preciso ralear as madeiras que cobriam a cova e
chegar mais a terra. Toda a família fazia este serviço, inclusive retirando as
mudas que estavam mais fracas, para não atrasar o crescimento das outras. Era
todo mundo dando duro na roça.
Márcia, como sempre, fazia a comida para toda a família. Uma das filhas
ficava em casa para ajudar a mãe nas tarefas domésticas, pois ela não estava
bem de saúde. Não reclamava, mas andava muito sonolenta.
Todos os dias eram as mesmas tarefas: tirar a água do poço para os
gastos da casa, encher os bebedouros dos porcos e das galinhas e lavar as
roupas de todos. Era serviço que não acabava mais.
Os sonhos de Pedro agora eram reais. Ele dizia:
— Agora eu posso tocar os meus sonhos com as minhas mãos, o meu
café. Aqui plantei meus sonhos.
Pedro sonhador sonhava. Ele sentia em Márcia uma profeta, pois o que
ela dizia acontecia. Nas noites de frio, junto ao grande fogão de lenha que
aquecia a casa toda, ele dizia:
— Eu sonho tanto com a minha primeira colheita de café.
Márcia respondia:
— Agora falta pouco. Com a ajuda de Deus você irá realizar seu grande
sonho e ser um produtor de café.
Apesar disso, Márcia continuava triste. As filhas a viram chorando
escondido. Pedro estava feliz, mas uma felicidade que para os filhos não tinha
tanto motivo. Ana perguntou à mãe se estava doente. Ela respondeu:
— Com tanto serviço, não tenho tempo nem de ficar doente.
Márcia deixou de costurar. Fazia o almoço e não comia. Dormia a
qualquer hora. Ana descobriu o motivo da alegria do pai e das tristeza da mãe.
Falou com as irmãs.
— Eu sei o que a mãe tem. Escutei ela e o pai conversando lá na sala. A
nossa mãe vai ter um filho.
Agora estava tudo explicado, a mãe, envergonhada com a gravidez, não
teve uma conversa com as filhas. Ana já entendia a situação da mãe e,
preocupada, não deixava a mãe fazer serviço pesado, ficar muito tempo junto

44
ao fogão ou tirar água do poço. Pedro tinha mandado abrir outro, bem perto da
casa e o trabalho de casa havia ficado mais fácil com isso.
Lúcio arrumou uma namorada e disse aos pais:
— Eu vou me casar com ela.
— Tudo bem! — disse o pai. — Você precisa fazer sua casa.
— Eu posso fazer a minha casa aqui no sítio.
— É só você escolher o lugar.
— Vou fazer a casa mais perto do poço.
Lúcio era um bom rapaz, trabalhador e para ele não tinha tempo ruim.
Era, no entanto, de gênio violento, brigava com as irmãs, obrigando-as a fazer
tarefa de homem. Ele tentava até surrá-las escondido do pai. Elas contavam
para a mãe e, para não criar caso entre os filhos, ela se calava.
Com Ana ele se pegava em briga feia. Muitas vezes a mãe surrava os
dois com uma guasca para que parassem de brigar. Com a notícia do
casamento do filho, Márcia pensava que talvez ele parasse de brigar com as
três irmãs, que eram unidas e trabalhavam juntas.
Por outro lado, José era o irmão que elas adoravam e nunca brigou com
alguma delas. Já estava bem crescido e, com o casamento do irmão, ele teria
mais trabalho.
Márcia ganhou um garoto, como dissera a benzedeira, cujas palavras
Márcia mentalmente repetia:
— Vocês vão sofrer, vão vencer. Seu filho vai nascer na terra nova, vai
ter pouca saúde, mas terá vida longa. Nem todos os seus filhos serão felizes.
Quase tudo que ela havia dito realmente havia acontecido. Ainda
faltavam algumas coisas nas quais ela não queria pensar. Ela pedia a Deus que
protegesse os seus filhos das más previsões da benzedeira.
Antônio, o filho recém-chegado, já nos primeiros meses foi atacado por
uma febre muito alta, com convulsões, que logo foram controladas, mas aquilo
não foi uma simples febre. Era meningite e não foi muito bem tratado,
deixando seqüelas. As convulsões se repetiam, ele era epilético. Ali estava a
profecia da benzedeira.
Lúcio começou a fazer sua casa. O pai comprou o que era preciso e em
pouco tempo a construção ficou pronta. Pedro disse ao filho:
— Derrube um pedaço da mata e plante o que você quiser. Eu vou lhe
dar um pedaço da terra já pronta, com café plantado.
Tudo parecia arranjado e em paz. Pedro, deitado na rede, depois de um
dia de serviço cansativo, contemplava seu sítio.
Márcia veio juntar-se a ele, dizendo:
— Está feliz, Pedro?
— Eu sempre fui feliz.

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— Você ainda sonha?
— Eu sonho.
— Com o que você sonha agora?
— Com minha colheita de café e em ver meus filhos casados, tendo um
pedaço de terra cada um e sendo felizes como eu sou.
Feliz! Esta palavra ecoou na mente de Márcia. A profecia dizia que nem
todos seriam felizes.
Pedro e Márcia se amavam. Seus sete filhos completavam sua felicidade.
Suas terras, seus sonhos, tudo fazia de Pedro sonhador um vitorioso. Ele
contemplava sua lavoura e tinha orgulho de viver ali, onde trabalhava e
banhava com nosso suor. Naquelas terras vermelhas ele plantara o seu sonho.
Lúcio se casou. A mãe tinha esperanças de que ele fosse mudar o seu
gênio agressivo, mas se enganou. Ele piorou ainda mais. Seu mau humor
transformou-se em revolta. Para ele todos estavam errados. A mãe dizia para
si:
— Não entendo esse filho. Alguma coisa ele tem. Nunca está satisfeito.
Não bebe, não fuma, é trabalhador, mas só tenho uma certeza: ele não é feliz.
Lúcio derrubou a mata, com ajuda de alguns peões, fez a queimada,
vendeu a madeira e reservou a lenha para os gastos. No primeiro ano plantou
milho, feijão e o arroz. O pai dera tudo para ele e, por isso, os cereais lhe
deram uma boa renda.
Ele não era ambicioso e nem sonhador como o pai. Pedro contemplava
sua roça e sonhava em ver seu cafezal cheio de flores. Faltava pouco para isso.
As primeiras flores estavam aparecendo. Pedro sonhava:
— Em breve eu vou fazer uma pequena colheita. Eu sei esperar. No
próximo ano vai ser uma colheita com mais frutos.
O tempo de dificuldades havia passado. Pedro agora estava mais
confiante e seus filhos já estavam todos crescidos. Ana arrumou um
namorado, Augusto, um peão picadeiro, que trabalhava com o engenheiro, Dr.
Kuma. O pai não via com bons olhos aquele namoro. Tentou falar com a filha,
sem resultado algum. A mãe falou com a filha abertamente, dizendo:
— Você só pode estar brincando. Eu sou contra esse namoro e seu pai
também. Seu namorado não tem uma residência, vive em alojamentos, junto
com vários peões e passa o mês dentro da mata.
Ana respondeu:
— Eu quero me casar com ele. Se vocês não concordarem, eu vou
embora de casa.
— Para onde? — perguntou a mãe.
— Vou morar com ele.

46
— Vai morar dentro da mata, junto com os outros peões? Não é isto que
eu quero para você.
Ana, porém, estava decidida. Já estava com seus vinte anos de idade e se
achava dona de seu próprio nariz. A mãe tentou explicar para a filha que a
vida a dois não era assim tão fácil.
— Aqui você tem uma casa. A sua família quer o melhor para você.
Ana respondeu:
— Vocês é quem sabem. Com seu consentimento ou não, eu vou me
casar com ele. Vou morar até embaixo de uma árvore. Esta é a minha decisão
e a dele.
A mãe ficou sem saída. O pai, muito constrangido, decidiu:
— Vamos fazer o casamento. Não temos outra saída. Ela é cabeça-dura,
teimosa e não aceita conselhos, principalmente dos pais.
Pedro mandou chamar Augusto, dizendo:
— Você encheu a cabeça de minha filha com propostas de casamento. O
que você tem para oferecer para ela, além do rancho em que você mora?
— Pois, é seu Pedro! Eu pretendo arrumar um bom trabalho, alugar uma
boa casa e me casar com sua filha.
— Pois bem, eu vou fazer esse casamento contra a minha vontade e vou
lhe dar um conselho: faça a minha filha feliz! Eu não quero me arrepender de
ter feito esse casamento contra a minha vontade.
Pedro tinha certeza de que a filha sofreria mais cedo do que esperava.
Augusto não ficava muito tempo num trabalho. Era uma mudança atrás de
outra. Depois do casamento, a filha foi morar em um lugar incerto. Os pais
não tinham o endereço.
Certo dia, no entanto, Ana e o marido chegaram ao sítio de Pedro. Ela
estava grávida e em péssimas condições, sem mudança, sem bagagem e ainda
trazia um filho na barriga. Márcia ficou muito feliz ao ver a filha e o genro,
mas a felicidade de Márcia durou pouco. A filha lhe disse:
— Nós vamos ficar morando aqui no sítio, junto com vocês.
A mãe perguntou à filha:
— Quando a mudança de vocês vai chegar?
Ana, encabulada, respondeu:
— Nós não temos mudança, só temos as roupas.
Márcia viu na filha um olhar triste. Havia perdido a arrogância.
Humildemente, disse a mãe
— Augusto está sem trabalho e a nossa situação não está boa. Eu estou
esperando um filho e ele não tem nem uma peça de roupa. Foi por isso que
vim pedir ajuda.
A mãe não conteve as lágrimas e disse ao marido:

47
— Você tinha razão. Ela se casou contra a nossa vontade e agora vem
pedir ajuda.
Pedro tinha certeza de que o genro não era homem de molhar a camisa de
suor. Márcia, então, não pensou duas vezes. Providenciou acomodações para a
filha e o genro, o senhor Folgado, como dizia Benvinda.
— Este genro veio de encomenda — dizia ela para a mãe.
Augusto não sabia fazer nada, além de picada nas matas. Pedro andava
preocupada com a situação da filha, pois o genro não esquentava a cabeça nem
com a comida. Na casa do sogro ele tinha de tudo. O tempo passava e nada
dele ir procurar um trabalho.
Pedro estava de pés e mãos amarradas. De um lado, a filha e a neta; do
outro, o genro que não procurava um trabalho que desse o mínimo de conforto
para a filha. Tomou, então, a iniciativa. Foi até a cidade e procurou uma
pequena casa para alugar. Arrumou um serviço na praça, alugando uma
pequena carroça para o genro fazer carretos.
Augusto não gostou da decisão do sogro, dizendo:
— Nós não temos mudança. O que vamos pôr dentro da casa?
No pequeno cômodo em que eles estavam morando, Márcia tinha
arrumado uma cama, mesa, cadeiras e os utensílios para a cozinha. Pensava
onde havia ido parar o orgulho da filha, a sua arrogância e o nariz empinado
que ostentavam, sempre que falava em se casar. Já fazia dois anos que haviam
se casado e a vida dos dois era sem progresso. O casal se amava e eram
felizes, mesmo vivendo de um lado para o outro, mesmo dormindo em rancho
de pau-a-pique, no meio do mato. Sua cama sempre fora de estaca, com um
simples colchão de palha de milho. Ana jamais se queixara disso, embora
soubesse que os pais poderiam lhe dar mais conforto.
Para tudo tinha um limite e Pedro não aceitava que o genro vivesse mais
a suas custas. Queria vê-lo trabalhando na praça, transportando cereais para os
comerciantes, descarregando vagões de trigo, sal e óleo, já que o único meio
de transporte da época era o trem de ferro.
Augusto fez corpo mole. Não gostava do trabalho e ficou muito
humilhado com a decisão do sogro. Pedro abriu um crédito para o genro, com
um novo comerciante, muito conhecido como Joãozinho da casa nova, cujo
dono era o pai, um imigrante espanhol. Augusto foi fazer carretos para seu
Nicolau, dono da casa nova.
Augusto não queria crédito. Era dinheiro que ele queria. Pedro ficou
sabendo que o genro andava reclamando da situação. O crédito não era
suficiente para ele. Dizia o genro:
— Eu quero é dinheiro. Lá no sítio estava bem melhor. Ali eu não
trabalhava e tinha casa e comida de graça.

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Pedro pagou a dívida do comerciante e cortou o crédito. Disse a Márcia:
— Nossa filha se casou com um parasita, um folgado. Ela vai sofrer
muito com o que fiz, mas agora ele terá de tomar um rumo na vida. Eu já fiz o
possível, mas o impossível eu não vou fazer.
Lúcio ficou penalizado com a situação do cunhado. Abriu um crédito
para ele, comprou tudo que faltava em casa e fez um bom estoque de comida.
Augusto, no entanto, não pagou o comerciante. Lúcio pagou e cortou o crédito
do cunhado.
Com isso, Augusto ficou sem crédito no comércio. O jeito foi pedir fiado.
Ele reclamou, chorou suas dificuldades, prometeu e fez uma boa compra. Já
tinha feito seus planos. Com uma boa compra, ele tinha que arrumar dinheiro
para ir embora e não foi difícil ele aplicar um golpe no cunhado José. Vendeu
um lote de terra para ele e recebeu dois mil réis, pegou seus poucos pertences,
a mulher e os três filhos e foi embora para Maringá.
Augusto tinha vendido um lote de terra que não lhe pertencia e José ficou
no prejuízo. Augusto foi motorista de táxi por muito tempo. Pedro, Lúcio, o
comerciante Joãozinho e José, todos foram enganados por ele e ficaram no
prejuízo. Augusto, longe do sogro ele teve que quebrar a cabeça e se virar.
Depois de muitas mudanças sem futuro, ele foi trabalhar na prefeitura de
Maringá e Ana foi ser merendeira de uma escola municipal. Ficaram com
vergonha das dívidas não pagas e nem notícias mandavam.
Aos poucos, a família de Pedro foi ficando pequena e a casa, vazia.
Maria se casou e foi morar junto com os sogros. Durvalino não era de molhar
a camisa de suor, exatamente como Augusto. Passou algum tempo e Pedro
ficou sabendo que a filha estava grávida e muito doente, por isso foi buscá-los
para morar no sítio.
Construiu uma pequena casa para os dois, deu-lhes uma área de terra para
plantar e colher e assim sobreviver com as vendas da produção de cereais.
Pedro, mais aliviado com a situação dos filhos, estava feliz. Seu café estava
com uma boa florada e prometia uma boa colheita. Ele sonhava colher seu
café e sempre falava com a esposa.
— Eu vou fazer uma casa nova bem grande.
— Para que uma casa grande? A nossa família está cada vez menor —
ponderou a esposa.
— Os nossos netos aumentaram e a casa ficou pequena para abrigá-los.
Quando vierem passear aqui, vai faltar lugar para tanta gente junta.
Pedro voltou a sonhar. Márcia pensava na profecia. Ate então, tudo se
concretizara. Até em relação ao seu último filho. Só faltava a última profecia:
nem todos os seus filhos seriam felizes.
Márcia pensava:

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— Por que isto não sai da minha cabeça? Ah, Deus que sempre atendeu
as minhas preces, eu volto a lhe pedir que esta última profecia não aconteça.
Eu imploro, olha por meus filhos, não deixe que nada de mau aconteça a
nenhum deles.
Pedro fazia planos. Assim que colhesse o café, iria construir a sua casa
nova. José, moço novo, que herdou do pai o caráter honesto, pontual e de
palavra, assumiu as roças. Trabalhando com o pai e para o pai, nada recebia
pelo seu esforço. Plantavam e colhiam. Ele e Benvinda faziam planos. José
dizia:
— Eu ainda vou comprar as minhas terras.
A irmã replicava:
- Eu quero comprar um carro. Quando, não sei. Um dia eu terei o meu
carrão. Isso só vai acontecer quando eu me casar. Será que o meu marido vai
ter dinheiro para comprar um carro? Eu vou escolher. Não vai ser um Augusto
nem um Durvalino da vida, porque estes dois não valem nada. Não sei como
nossas irmãs escolheram para marido uns folgados, aproveitadores de sogro.
Elas devem gostar muito deles.
Joãozinho andava de olho em Benvinda, mas ela não lhe dava bola,
afirmando:
— Não estou interessada em namorar um moço da cidade.
João freqüentava as brincadeiras-dançantes das fazendas. Havia uma
disputa entre os dois grupos e sempre quem levava o pior era o da cidade. João
procurava uma namorada. Quando era convidado, ia montado em seu burrinho
barrigudo e era sempre muito bem recebido.
Ele era teimoso, por isso decidiu ir sempre sozinho. Deixou de andar em
turma e assim não corria o risco de ser barrado na porta. Era muito disputado
pelas garotas e poderia escolher muito bem.
Namorou várias garotas, até chegar a Benvinda, garota namoradeira, que
não levava nada a sério. O namoro daqueles tempos era bem diferente, nem na
mão da garota o rapaz segurava. Era uma forma de respeito.
João pediu para um amigo falar com Benvinda. O amigo dançou com ela,
mas pediu-a em namoro para si. Benvinda lhe disse um sonoro não e ele quis
saber o motivo. Ela respondeu:
— Eu estou namorando um outro rapaz.
— Eu sei quem é — disse ele.
— Melhor assim. Você não tem chance, não insista, por favor!
Ele não desistiu, dizendo:
— Você já namorou todos os rapazes que freqüentam as brincadeiras.

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— Namorei e namoro mesmo. Você sabe que eu não levo ninguém a
sério. Eu gosto de ver a cara deles, quando levam um fora assim como dei em
você.
Benvinda era assim, falava e não mandava ninguém dizer. João foi
dançar com ela e perguntou:
— O meu amigo falou com você?
— Sim, por que quer saber?
— Me interessa a sua resposta.
— Minha resposta foi não, está satisfeito?
— Por que não,
— Eu não gosto dele.
— Dele quem
— Daquele chato do seu amigo insistente.
— Ainda bem que o chato é meu amigo e não eu.
— Por que quis saber?
Ele ficou embaraçado, começando a entender o que tinha acontecido.
— Sabe, é o seguinte: eu pedi para o meu amigo dizer que eu quero
namorar com você. Ele, apressadinho, foi logo pedindo você em namoro.
Você tem razão, ele é mesmo um chato.
Benvinda não deu uma resposta e pediu tempo. Queria falar com a mãe.
Ela daria a resposta depois de um mês, pois havia um outro rapaz em seus
pensamentos. Ele estava servindo o exército e voltaria a passeio antes do
prazo dado a Joãozinho. Só que nem ele conseguiu a licença nem mandou
notícias.
A mãe falou com o pai, que estava de acordo. Um mês depois, Joãozinho
chegou a casa dela, montado em seu burrinho barrigudo. João era um tipo bom
de conversa, magro e bigodudo. Sua aparência era de um velho, mas tinha
vinte e quatro anos. Benvinda tinha dezessete anos, era morena-clara, cabelos
pretos longos e ondulados, magra e de muito boa aparência. Todos diziam que
era uma mocinha muito bonita. Gostava de brincar com os sentimentos dos
rapazes, por isso eles a chamavam de garota difícil.
Pedro já conhecia João e a conversa deles foi sobre o sítio e o café. Os
dois foram juntos passear pela roça. Elogiando a plantação João sentiu que a
resposta seria positiva. Eles mal tinham se cumprimentado. A conversa foi de
homem para homem apenas. Depois do jantar, ele falou com Pedro.
— Olha, seu Pedro, eu vim saber a resposta da sua filha. Eu a pedi em
namoro e hoje eu vim saber a resposta. Ela deve ter lhe falado.
— Sim, ela me falou. Eu quero saber de suas intenções para com minha
filha.
— Eu quero me casar com ela, caso o senhor me aceite como genro.

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— Só tem um problema: eu não gosto de namoro longo. Filha minha casa
logo, é só marcar a data.
— Tudo bem, seu Pedro, eu aceito suas condições.
Benvinda não estava presente na conversa dos dois, que combinaram que
o casamento seria no prazo de seis meses. Depois de tudo acertado, Pedro
chamou a filha e foi logo dizendo:
— Vocês vão se casar daqui a seis meses.
A garota levou um susto e não disse nada. Foi até a cozinha e falou com a
mãe.
— Eu não quero me casar. Era só para namorar, não era nada sério, mãe.
O que eu faço agora?
— Volte lá na sala e diga a seu pai o que pensa.
— O que eu vou fazer agora? A senhora sabe que eu não quero me casar.
Fale com o pai, por favor, mãe. Faça isso por mim. Eu mal o conheço, Ele é
tão feio, com aquele bigode horrível.
A mãe lhe disse:
— Seu pai já lhe deu sua palavra e ficou tudo combinado.
— Mãe, eu vou ser obrigada a me casar contra a minha vontade, não é
dele que eu gosto.
— De quem você gosta? Por que deu esperanças a ele.
— Eu não dei esperanças a ele. Só pedi tempo para pensar.
— Por que você não me disse que gostava de outro rapaz, quem é ele?
— Eu não quero falar dele, agora é tarde demais. Eu fui uma burra de ter
me calado. Por que isto está acontecendo comigo? O pai nem me perguntou se
eu queria me casar com ele.
O seu protesto, no entanto, não foi ouvido e ela teve que concordar com
os pais.
Dizia a mãe:
— Ele é gente boa. Seu pai conhece os pais dele.
—Mas eu não os conheço — protestava a filha.
— Você vai viver bem, pode ter certeza.
— Eles são espanhóis. Eu não gosto desta raça, a senhora sabe disso.
— O que você queria era ficar namorando todos os rapazes e seu pai sabe
disso.
— Mãe, eu gosto de brincar de namorar e não de coisa séria, como um
casamento. Se não der certo, o que eu vou fazer? Descasar? Ele é sete anos
mais velho do que eu. Parece ser mais velho que o pai. Com aquele bigode
mais parece uma vassoura, mãe. Eu não vou me casar com ele. Eu não gosto
dele para casar. Era só um namoro para passar o tempo...
— Até o outro voltar? — disse a mãe.

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— A senhora acertou. É do outro que eu gosto mesmo para casar. Ana se
casou com Augusto porque gostava dele. Maria se casou com Durvalino
porque gostava dele. Lúcio e Benedita se casaram porque se gostavam. Eu
tenho que me casar com quem eu não gosto.
Os pensamentos de Benvinda foram os piores possíveis: "Vai ser muito
difícil viver com alguém de quem não se gosta. Casar! Desta vez eu fui
enrolada mesmo. Não tenho outra saída. Eu que sempre gostei de brincar de
namorar agora estou num beco sem saída. Se eu pudesse, eu fugiria de casa, só
para não ter que me casar com ele."
Aquela garota alegre, cheia de entusiasmo, feliz da vida, já não existia.
Vivia agora pensativa, resmungando pelos cantos. Seus olhos negros agora
tinham uma sombra de tristeza. Ela não sorria, só pensava. Seu grande amor
por um outro alguém estava sendo sufocado. Ele, distante, e ela, sem notícias.
As palavras dele, na despedida, estavam guardadas em seu coração:
— Você vai me esperar? Um ano passa logo. Eu venho lhe buscar, eu a
amo. Não se esqueça de mim!
Fora uma despedida cheia de promessas, sem um beijo, sem abraços,
somente com um aperto de mão. Ela chorava. Ele secou suas lágrimas com
seu lencinho e guardou-o, dizendo;
— Eu vou devolver, quando voltar, cheio dos beijos todos que eu tenho
vontade de lhe dar. Suas lágrimas eu vou levar de lembrança.
O tempo passou. Nos seis meses que antecederam ao casamento da filha,
Pedro colhera o seu café. Enquanto isso, os preparativos para o casamento
foram concluídos. Benvinda esperava notícias de seu grande amor. Três dias
antes do casamento, ela recebeu uma carta e o lencinho.
Dizia a carta:

"Não fique triste, minha querida! Guarde o


lencinho de lembrança. Ele está cheio dos meus
beijos. Você vai morar em meu coração para
sempre. O nosso amor não vai morrer. Ele era
para nos dar forças para continuarmos vivendo.
Nossos corpos estavam separados, mas nossas
almas estarão entrelaçadas. Eu sei que você vai
tentar ser feliz por mim e por nós dois. Foi o
destino que nos separou. Não culpe o seu pai, ele
só quer o melhor para você. Pense em mim
quando, estiver triste."

53
Chegou o grande dia para todos, menos para a noiva, que ainda
protestava, dizendo para a mãe:
— Se eu pudesse, juro que fugia e não me casaria.
— Deixe de bobagem, menina. Tire esses pensamentos da cabeça. Você
vai ser feliz, tenho certeza.
Benvinda não estava tão segura como a mãe. Era pedir demais para ela
tirar seus pensamentos. As lembranças estavam gravadas em sua alma. Ela
apertava o lencinho contra o peito e dizia:
— Fique comigo, não me deixe sozinha.
Benvinda foi uma noiva muito bonita, com o vestido feito pela mãe. Ela
não sentia nenhuma emoção ao se casar com João e só o tempo poderia dizer
se eles seriam felizes.
No sítio, tudo voltou a sua rotina. Foi uma boa colheita. José comandava
o trabalho, plantando e colhendo os cereais. Lúcio cuidava de sua lavoura e
sempre tinha boa renda ao vender os frutos de seu trabalho. Já pensava até em
comprar suas terras. Lurdes, já mocinha, ajudava a mãe nas tarefas da casa.
Ela era muito vaidosa. Não se contentava com pouco, era exigente e
presunçosa. Márcia sempre dizia:
— Você é bem diferente de suas irmãs.
— Eu não mandei elas se casarem tão cedo. Eu vou aproveitar a vida.

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CASAS GRANDES E SEGREDOS

O sonho de Pedro era agora construir a sua casa grande. Ele vendeu o seu
café e contratou um construtor da região, Miguel Dias, que tinha grande
conhecimento na construção de casas de madeira. Pedro já tinha a planta da
casa em mãos. Miguel fez o orçamento do material e os custos da mão-de-
obra. Tudo foi acertado e a construção, iniciada
Foram meses de muito trabalho, até que a casa ficasse pronta. Pedro se
preparou para dar uma festa para comemorar sua casa nova. Queria reunir a
família e os amigos da cidade, políticos do seu partido. Pedro sempre havia
sido um político sério e tinha muito respeito pelo seu partido. Os convidados
foram tantos que a casa ficou pequena para tanta gente. Era sua maneira de
dizer a todos de que ele era muito feliz. Márcia, no entanto, sabia que o
marido não iria parar de sonhar.
Certo dia ele estava calado, no vai e vem da rede, e Márcia percebendo
que ele estava sonhando. Tinha certeza de que seria mais um de seus sonhos
malucos. Chamou por ele, mas Pedro estava tão distraído, que não a ouviu
chamá-lo.
Aproximou dele e disse:
— Acorda homem. Eu sei no que está pensando.
Ele respondeu:
— Agora deu para ler os meus pensamentos? Eu não sabia disso. Além
de profeta é adivinha também.
— Não brinque com essas coisas.
— Não estou brincando, Márcia! Estou falando sério. Você é adivinha e
lê os meus pensamentos.
— Então agora me diz em que estava pensando.
— Eu estava relembrando tudo que já aconteceu em nossas vidas.
Recordava o passado, de quando eu era menino, a Dinha, o que ela contou
para o meu pai, quando fui expulso de casa. Ela não podia ter inventado
aquela mentira, de que eu havia pego aquelas libras esterlinas.
— Eram muitas essas libras esterlinas?
— Ela disse que eram mais de duzentas mil libras esterlinas. Eu nem
sabia que meu pai tinha isso guardado. Tempos depois é que fiquei sabendo
que eram moedas de ouro de muito valor. Meu pai tinha muito ouro dos
garimpos em que trabalhou, tudo guardado nos cofres das paredes da casa,
além de muita pedra preciosa. Havia um quarto na casa, sem janelas. A porta
era fechada por uma grade de ferro, com enormes cadeados presos a correntes.

55
Quando meu pai faleceu, aquela porta estava aberta e dentro do quarto só tinha
papel velho e muita sujeira. Na parede tinha um sinal de que ali tinha alguma
coisa pendurado. Depois é que fiquei sabendo que, nesse quarto, preso na
parede, tinha um grande relógio de ouro. Ele estava preso na parede e dentro
de uma caixa de madeira havia uma arca cheia de moedas de ouro e objetos de
grande valor.
— Como você ficou sabendo dessa grande riqueza de seu pai? E o que
foi feito disso tudo?
— Eu encontrei uns papéis e neles dizia que aquela riqueza só seria do
novo proprietário depois de cinqüenta anos. Nesses papéis tinha uma relação
detalhada e o valor de cada objeto ali guardado.
— Quantos anos seu pai morou na casa? — perguntou Márcia.
— Cinqüenta e dois anos ou mais.
— Então era tudo dos herdeiros.
— Sim, era. Dinha e seus filhos se encarregaram de dar fim em tudo.
— Mas onde ficava esse quarto?— perguntou a esposa.
— Como a casa era muito grande e tinha vários corredores, para chegar
até esse quarto a gente passava por um labirinto, com becos sem saída.
— Você viu esse quarto Pedro? E a tal grade na porta?
— Meu pai nos levou até lá, eu, meus irmãos e minha mãe. Meu pai
chegou até lá olhando uns rabiscos que indicavam o lugar certo para apertar e
a parede se abria, dando lugar a uma porta. No meu quarto mesmo tinha uma
passagem secreta. Um dia meu pai chamou a minha mãe até o meu quarto. Ele
disse a ela: "quer ver uma coisa? Você vai me prometer que jamais dirá a
ninguém o que você vai ver." Ela prometeu ao meu pai dizendo: "eu juro!" Ele
apertou o pino que prendia o lampião, o guarda-roupas se afastou e a
passagem secreta se abriu. Era um longo corredor. Depois de descer uma
escada sem fim, fomos parar num porão, cheio de esqueletos pendurados em
correntes.
— Pedro, isso mais parece estória de fantasma.
— Não é estória, Márcia. Eu só estou contando isso depois de muitos aos
que estamos juntos. Sei que isso não vai abalá-la agora. Eu a conheço muito
bem, por isso estou contando. Eu tinha que tirar esse peso das minhas costas.
Agora me sinto bem mais leve.
— Esqueça isso, homem, e vamos cuidar da nossa vida.
— Olha, Márcia, meu pai deve ter ensinado o segredo das paredes, a sair
dos labirintos e chegar até esse quarto. Dinha sabia chegar até lá sozinha. É a
única explicação para que tudo tenha desaparecido.
— Como vocês chegaram até lá, depois que seu pai faleceu?

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— Estava tudo aberto, as paredes não tinham mais segredos. Eu percorri
aqueles corredores e cheguei até o quarto vazio, sem janelas e sem as grades
de ferro. Até a porta tinha sido retirada. Fui até o meu antigo quarto e tentei
abrir a porta secreta, mas estava fechada. Eu não consegui abrir aquela porta.
No porão não tinha objetos de valor e Dinha só queria ouro e pedras preciosas.
Toda aquela riqueza, que por direito nos pertencia, nunca me fez falta. Eu
nunca seria feliz com aquela riqueza. Hoje eu posso dizer que sou feliz com
você, com os nossos filhos e com as minhas terras, nossas terras.
— Vamos entrar! Está na hora de tomar um café bem fresquinho que vou
fazer para nós.
Márcia nunca mais falou nos pertences do sogro. Aquela história ficou
enterrada com o passado. Dinha morreu na mais completa miséria. Não deixou
nenhuma herança para seus filhos nem um pedaço de terra para ser devolvido
para seus herdeiros.
A vida de Pedro continuava com muito trabalho. Plantando e colhendo,
José cuidava da terra e entregava ao pai todos os cereais colhidos. Pedro não
mais sonhava e vivia a realidade. Passava o dia olhando suas plantações e
pisando em sua terra vermelha. Ali estava o seu sonho e o de toda sua família.
Com os casamentos, a casa estava mais vazia. Haviam ficado apenas
José, Lurdes e Antônio, um garotão cheio de problemas. Lúcio cuidava da sua
plantação e cada vez mais revoltado. Márcia percebeu que o filho não estava
feliz e não sabia quais eram os motivos de tanta revolta. Maria e o marido
continuavam morando e trabalhando no sítio, mas quem trabalhava era só ela.
O marido não era de se esforçar e pouco fazia. Pedro não andava muito
contente com a situação da filha. O genro vivia cheio de compromisso para
fugir do trabalho.
Maria estava esperando o seu segundo filho e ainda amamentava o
primeiro. Ela, todos os dias antes de sair para o trabalho, ia ver a mãe e o pai.
Certo dia, porém, ela não foi fazer visita aos pais. A mãe ficou preocupada e
foi até a casa ver o que havia acontecido. A mãe a chamou. Ela estava no
quarto e pediu para a mãe entrar. Márcia ao ver a filha com um bebê no colo,
levou um grande susto, dizendo:
— Meu Deus, quem está aí com você? Quem fez seu parto?
— Estou sozinha, mãe. O bebê já nasceu, Eu fiz tudo sozinha.
Márcia estava apavorada. Suas pernas tremiam. Ela se sentou na cama e
respirou fundo. Inconformada com aquela situação, perguntou:
— Onde está o seu marido?
— Ele saiu, mãe.
— Foi buscar a parteira.
A filha, vendo a mãe assustada e trêmula, respondeu:

57
— Eu não falei nada para ele.
— A que horas você começou a passar mal?
— Foi agora de manhã, depois que ele saiu.
— Por que não me chamou.
— Não deu tempo — disse a filha.
Márcia, com as pernas ainda tremendo do susto, falou:
— Que situação, meu Deus! Eu tenho que avisar seu pai.
Maria tentou acalmar a mãe.
— Não é mais preciso, eu estou boa. Não fique preocupada.
— Seu pai vai buscar a parteira. Você não podia ter feito esse parto
sozinha.
Márcia saiu correndo, chamando pelo marido. Pedro veio ao seu
encontro, amparando a esposa para ela não cair.
— O que aconteceu mulher?
— É a Maria. Vai chamar a parteira. Vai correndo, não perde tempo,
homem. O caso é muito sério, é grave. Eu selo a Faceira. Vai depressa, não
perca tempo, pelo amor de Deus.
A parteira chegou, algum tempo depois, e encontrou Maria fazendo o
almoço. Foi aquele sermão.
— Vai para a cama — ordenou-lhe a mãe.
A filha quis protestar, mas não teve outro jeito a não ser obedecer. A
parteira examinou-a e disse que ela estava bem. Pedro chegou e perguntou à
filha:
— Por que não chamou sua mãe?
—Não deu tempo pai, foi muito rápido. Olhe sua neta! Ela é linda. Eu fiz
tudo certinho.
— Mas pode ter alguma complicação...
— Ah, pai, as índias ganham seus filhos de cócoras.
— Você não é índia, filha. Elas são ensinadas para ganhar seus filhos
sozinhas de cócoras.
— Você é mais corajosa do que pensamos — afirmou Márcia. Eu nunca
fiquei sabendo de uma mulher tenha feito seu próprio parto.
Este foi um fato marcante na vida de Pedro e Márcia. Constantemente
conversavam a respeito daquela situação.
— Eu não sei o que fazer. O marido de nossa filha não quer nada com o
trabalho. Quem trabalha é só ela. Com duas crianças pequenas, dá um duro lá
na roça. Ela está tão magrinha e sofrida — falou Pedro, que estava de olho no
genro que não queria nada com o trabalho. — Esta situação não pode
continuar. Eu notei que o Lúcio anda descontente. Eu acho que é por causa do
cunhado.

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Márcia não queria alimentar ainda mais a preocupação do marido e disse
para si mesma: "meu Deus, a última profecia vem sempre na minha mente em
momentos como este. Eu sei que ela vai acontecer. Aquelas palavras eu ainda
ouço: vocês vão vencer, vão sofrer, nem todos os seus filhos serão felizes. Isso
em parte já está acontecendo. Eu sinto que alguma coisa mais grave ainda está
para acontecer."
Pedro chamou-a, trazendo-a de volta à realidade:
— Está triste, mulher? Está com uma cara de quem viu um fantasma.
— Talvez seja mesmo. Sempre há um fantasma que no faz companhia.
— Deixe disso, Márcia. Onde está aquela mulher que eu conheço tão
bem, cheia de decisões tão importantes? O que a está preocupando tanto?
Márcia achou melhor mudar de assunto. José veio falar com o pai: —
Este ano temos que fazer a tulha. O café está com uma boa carga de frutos. Se
começarmos a fazer agora, ela ficará pronta antes da colheita.
Pedro providenciou todo o material para a construção da tulha. A planta
já estava pronta e foi Miguel quem fez o orçamento. Tudo foi devidamente e
cuidadosamente preparado.
Márcia, atenta a todos os acontecimentos, havia notado que o genro havia
viajado muito nas últimas semanas. A filha andava chateada. Era uma pessoa
de boa conversa, alegre, sorridente e não se queixava de nada, mas a mãe
havia notado uma profunda tristeza em seus olhos. Tinha certeza de que ela
estava escondendo alguma coisa. A mãe perguntou se ela estava doente.
— Eu só estou cansada. Tenho trabalhado muito nestes últimos dias.
Mãe, será que o pai compra a minha roça?
— O que significa isso agora, minha filha? Que conversa é essa?
— O Durvalino arrumou um serviço em Maringá, com o Augusto. Eu
quero que o pai compre a minha roça. Eu não agüento mais trabalhar sozinha.
As duas crianças ficam embaixo dos pés de café o dia inteiro. A senhora sabe
que quem trabalha na roça é só eu.
— Eu nunca concordei com essa situação. Seu pai anda muito
preocupado com você.
— A senhora fala com ele, mãe?
— Fale você mesma, filha.
— Eu não tenho coragem, tenho medo de magoá-lo.
— Ele já está magoado com o seu marido. Ele não quer trabalhar. Não é
justo o que ele faz com você e com as crianças.
— Fale com o pai, por favor, mãe!
— Está bem, eu vou falar com ele, mas o seu marido vai ouvir poucas e
boas.
— O pai tem razão. Ele está merecendo mesmo uma boa prensa.

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Márcia falou com Pedro:
— Eu já estava sabendo. Minha filha vai sofrer muito com aquele marido
de merda que ela tem — disse Pedro, furioso com a decisão do genro. Eu vou
falar com ele.
— Cuidado com o que vai dizer a ele.
— Eu só vou falar o que está enroscado na minha garganta.
Pedro foi até a casa da filha e chamou pelo genro. Ele apareceu com o
rabo entre as pernas, convidando:
— Entre seu Pedro.
Pedro estava espumando de raiva e foi logo dizendo:
— Então você quer vender sua roça. Sua não, seu safado! A roça é de
minha filha. Eu vou comprar, não por você, mas por ela e pelas crianças. Eles
não tem culpa de ter um pai de merda como você. Você não tem vergonha de
ser sustentado pela minha filha. Ela está sofrendo e você vive viajando, seu
desocupado, irresponsável e presunçoso!
O genro não sabia onde punha a cara e disse:
— É, seu Pedro, eu arrumei uma colocação em Maringá, perto do
Augusto. Ele vai dar uma força para a gente.
Pedro estava furioso:
— Ele pode lhe dar uma força, como você diz. Eu tenho certeza de que
ele não vai lhe dar nem o que comer, seu merda.
Pedro saiu do sério e ficou muito nervoso, mas ninguém entrou na
conversa. Maria chorava muito. Abraçou o pai e pediu:
— Me perdoa, pai, por mais esse desgosto. Quem sabe não vai ser
melhor para todos.
— Eu sei, filha, que você vai sofrer. Seu marido jamais vai ter
capacidade de fazê-la feliz.
Naquele momento, veio à mente de Márcia a última profecia e ela
percebeu que tudo já está acontecendo.

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SONHOS E REALIDADE

Todos ficaram muito tristes com a mudança de Maria. Pedro foi quem
mais sofreu, mas não fazia comentários. Ia até a casa onde a filha morou e
ficava olhando. Nada dizia.
José falou com o pai:
— Vamos arrumar um colono para tocar a roça que o pai comprou de
Maria.
— Sim, é melhor. Nós vamos começar a fazer a tulha e teremos tempo
para cuidar daquela roça cheia de mato. O café está com uma boa carga de
frutos e tem que ser bem tratado, para não ter queda na produção.
Não foi difícil encontrar um colono bom de serviço para cuidar da
lavoura. Lúcio continuava esquisito. Márcia era quem mais sofria com aquela
situação, pois tinha certeza de que ele não estava contente.
José preparou o terreno para iniciar a construção da tulha, para guardar a
grande safra de café. Pedro ia realizar, finalmente, seu grande sonho de colher
uma grande safra e de ser um grande produtor do tão falado ouro preto, o café.
Já havia deixado de sonhar aqueles sonhos malucos, como Márcia dizia.
Tinham ficado no passado. Agora ele vivia a realidade dos seus sonhos e bem
diferente era a realidade do dia-a-dia de um sonhador.
A tulha ficou pronta a tempo, antes do início da colheita. Só não deu
tempo para aumentar o terreiro para secar o café. Lúcio também fez uma
pequena tulha, pois sua colheita era menor que a do pai. José contratou
diaristas para a colheita. Era preciso muito cuidado para que não ficassem
frutos perdidos no campo.
A colheita foi iniciada. Havia muito trabalho e José teve que contratar
mais diaristas. A região já estava bem povoada. Eram os nordestinos, que
chegavam nos paus-de-arara, à procura de serviço e colocação. Viajavam de
três a quatro meses em caminhões sem conforto algum, que vinham lotados de
gente desnutrida e crianças doentes. Muitos deles faleciam na viagem e as
mulheres grávidas eram as que mais sofriam. Muitas delas deixavam seus
filhos abortados pelo caminho.
Todos vinham fugindo das secas do sertão nordestino e traziam na
bagagem muitos filhos e sonhos. Chegavam para vencer. Na terra prometida,
eles aceitavam qualquer oferta de trabalho. Eram os colonos daquela época e
havia muita oferta de trabalho em todas as fazendas já existentes, a maioria
dos imigrantes japoneses.

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Seu Luiz era filho de imigrantes japoneses e sua fazenda tem uma
interessante história. Certo dia, seu pai apareceu com um bilhete de loteria.
Tinha comprado uma série fechada. A mãe, quando viu a envelope, quis saber
o que era. Ao saber que era um bilhete de loteria, não aceitou que o marido
tivesse gastado dinheiro, comprando um simples papel. Contrariado, o pai de
Luiz jogou pela janela o bilhete e o filho o pegou, guardando-o, sem que o pai
e a mãe soubessem. Assim que ele pode sair para uma cidade vizinha, foi
conferir o bilhete e qual não foi a surpresa ao descobrir que o bilhete estava
premiado. Ganhou sozinho a série toda. Comprou a fazenda e deu a ela o
nome de Duzentos Contos, total ganho na extração do bilhete.
José e os diaristas faziam a colheita. O café era transportado para a
secagem. Pedro e Márcia faziam o trabalho, pois assim eles tinham certeza de
que o café seria bem seco. Pedro estava com a saúde abalada, depois da
mudança da filha.
A colheita do café demorou mais de três meses. O resultado estava,
finalmente, todo dentro da tulha.
— Foi uma grande colheita — disse Pedro.
Márcia perguntou:
— O que você sente ao ver tanto café na tulha?
Ele respondeu:
— Ali dentro da nossa tulha estão os sonhos que você sempre dizia que
eram sonhos malucos.
— E agora você não sonha mais?
— Sim, eu sonho. Isso faz parte da minha vida. O homem que não tem
sonhos não se realiza. Se é muito rico e se ele chegou tão alto, foi porque ele
sempre sonhou. Márcia, você sonha também?
— Só quando estou dormindo — respondeu ela e Pedro deu uma gostosa
gargalhada e soltou seus cabelos num gesto de carinho.
José apareceu para falar com o pai:
— O café foi colhido e está todo guardado. Na próxima semana, vamos
colher o arroz e, neste ano, vamos colher bem mais do que no ano passado.
José era assim. Tudo que fazia, era comunicado ao pai. Lurdes, que
estava presente, fez um comentário sobre a irmã Maria:
— Todos nós sabemos que ela, quando morava aqui, era quem ajudava o
pai. Agora ninguém sabe onde ela está morando. Se não manda notícias, é
porque não é feliz.
Essas palavras caíram em Márcia como punhaladas. Não conseguia
esquecer da última profecia. Ana também não mandava notícias para os pais.
Sofria calada e jamais reclamou do marido. José, trabalhando para o pai,

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plantava e colhia, mas não era pago pelos seus serviços. Nos finais de semana,
o pai lhe dava uns trocados e ele dizia:
— Eu ainda não gastei o que o senhor me deu outro dia.
— Por que não gastou?
— Dinheiro é para guardar e não para gastar à toa.
Lúcio, um dia, presenciou e não gostou do diálogo e disse:
— Para mim o senhor dava menos.
— Mas tudo que eu lhe dava você gastava.
— Ele é o queridinho do papai mesmo!
O pai se ofendeu:
— Você não vai criar caso. Já é casado, tem sua família e seu pedaço de
terra, onde planta colhe e vende. O que você faz com seus lucros? Distribui
para seus filhos gastarem à toa?
— É claro que não faço isso. Eu guardo para o futuro deles.
— Pois foi isso que sempre fiz: guardei para o futuro de vocês— afirmou
o pai, muito magoado.
Márcia conhecia muito bem o filho e tinha certeza de que ele iria atingir
alguém. Ela não sabia quem era e nem porque ele era tão revoltado.
Certo dia, um de seus porcos saiu de seu cercado. O animal começou a
correr. Lúcio, então, pegou uma lasca de madeira e jogou no porco fujão. A
lasca espetou-o na barriga, matando-o na hora.
O pai ficou sabendo e foi falar com o filho:
— Onde você estava com a cabeça? Fazer uma coisa dessas com o
animal...
Ele respondeu:
— O porco é meu e ninguém tem nada a ver com isso.
— E se pega em um das crianças ou em Antônio?
— Azar deles. Na hora da raiva, eu não olho em quem acertar.
— Você não regula bem!
— Problema meu.
O pai se ofendeu com as respostas do filho.
— Problema seu, não senhor! Olha como fala comigo! Eu não sou sua
mulher, que você trata com casca e tudo. Exijo mais respeito, quando falar
comigo. Eu sempre os tratei com igualdade.
— Será mesmo? Quem é o queridinho do papai, não sou eu.
— José nunca me respondeu assim.
— Ele é seu puxa-saco.
Depois do bate-boca, Pedro sentiu que não valera a pena tanto trabalho,
tantos sonhos e sofrimentos. Márcia ouviu tudo e ficou com medo dos dois se
pegarem. Se o pai soubesse o que o Lúcio fizera com as irmãs, quantas vezes

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ele tentara surrá-las com o chicote. Achou que havia feito mal em não ter
contado. Quem sabe hoje o filho não seria assim tão revoltado com todos.
Pedro ficou muito abalado com a atitude de Lúcio. Jamais imaginava que
um filho fosse ofendê-lo tanto. Tentou, de uma maneira muito clara, descobrir
quais eram suas razões e seus sentimentos, mas não encontrou respostas.
Márcia estava arrasada e não tinha palavras para dizer ao marido:
— Esqueça o que ele disse — falou ela. — Ele deve estar magoado com
alguma coisa que nós não sabemos o que é.
— Ele não é mais criança. É um homem feito e age como criança
malcriada. Onde foi que erramos? Criamos todos com igualdade, com os
mesmo direitos, com a mesma educação que demos as meninas. Ana era a
mais rebelde...
Márcia respondeu:
— Ela tem o mesmo gênio do irmão. Você não sabe das brigas dos dois.
Eu escondi de você o que eles aprontavam. Para separar os dois, eu os surrava
com a guasca.
— Então você escondeu de mim o tempo todo?
Márcia ficou confusa com a pergunta do marido e respondeu:
— Eu não contei a você para não criar atrito entre todos.
Pedro não gostou da mãe ter guardado segredo das brigas dos filhos.
— Você fez muito mal de não ter contado. Só faltava essa! Nós dois
discutindo. Você me deixou muito triste. Você escondeu de mim as brigas e
ainda deu cobertura para que continuassem a brigar. Eu estou duas vezes
desapontado com você.
Essa foi a primeira discussão entre os dois e ficaram vários dias de cara
virada. José foi quem mais sofreu com aquela situação. A mãe e o pai não se
falavam, mas ele os tratava como se nada estivesse acontecendo. Na verdade,
ele não tinha nada a ver com o acontecido. Qual era a intenção do irmão?
Jogar um contra o outro e ferir os três? Lúcio deveria ter uma explicação para
agir sem pensar. Estaria doente ou esconderia um segredo? Na verdade, ele
tinha medo de ser traído. Escondia-se atrás de sua revolta, que era o seu
escudo. Ele se protegia, agredindo sua família. Tinha uma pessoa que sabia o
motivo de tudo, por isso ele tinha medo e agredia a todos que estavam em seu
caminho.
A lavoura de café já estava no sexto ano e prometia uma nova e grande
safra, a maior de todas. Os pés de café estavam cobertos de flores. José
chamou o pai e a mãe para ver a linda florada e, assim, os dois conversariam
um pouco mais. A intenção do filho deu certo. Quando os dois viram a florada
do café esqueceram de tudo.

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— Márcia — dizia Pedro, — que coisa linda! Os pés de café estão
branquinhos de flores.
Os dois ficaram encantados.
— É como eu a via em meus sonhos malucos, como você dizia.
— Agora eu sei que eles não era malucos — disse a esposa.
— Jamais esquecerei esta dádiva de Deus. Eu sou um produtor de café. O
que você sente, mulher, ao ver os campos cobertos de flores brancas?
— Eu fui injusta quando dizia que os seus sonhos eram malucos.
— Vamos esquecer as coisas tristes — propôs Pedro e, num gesto rápido,
desfez os cabelos de Márcia.
Era um sinal de paz entre os dois.
José seguiu, fazendo suas obrigações. A colheita do café se aproximava e
foram tomadas todas as providências e contratados os diaristas. A grande tulha
estava cheia de milho, pois o paiol fora pequeno para tantos grãos, por isso
Pedro vendeu o milho que estava na tulha. José tinha aumentado o terreirão.
Agora ele tinha mais capacidade para a secagem do café. Assim, tudo
cuidadosamente pronto para a colheita. O café de Lúcio também prometia uma
boa safra, pois seu café era muito bem cuidado, como era toda a sua lavoura.
Pedro olhava seu cafezal. Ele sempre sonhara um dia vê-lo assim
carregado de frutos. Márcia não esquecia a discussão do marido com o filho e
procurava não tocar no assunto, mas estava muito preocupada. Apesar disso,
tinha esperanças de que tudo fosse esquecido.
Começou a colheita e ninguém pensava em outra coisa. Não havia tempo
a perder. O café tinha de ser colhido no tempo certo. Pedro e Márcia cuidavam
de esparramar o café no terreiro, aproveitando o sol que brilhava no céu azul.
Todas as tardes chegavam uma grande quantidade de café e até tiveram que
fazer uma pausa na colheita, até que secasse o que já estava colhido. Assim foi
por três meses. A tulha fora feita na medida certa e encheu até o teto. Era café
que não acabava mais.
Pedro tinha realizado seu grande sonho de colher uma grande safra de
café. Seus sonhos estavam todos guardados na grande tulha do seu sítio.
José falou com pai:
— Esta colheita valeu a pena.
— Foi realmente uma grande colheita, você trabalhou demais, filho.
— Não, pai, todos nós trabalhamos. O mais difícil na colheita é tomar
cuidado para que não fique frutos no chão e grãos sem colher. Tudo que fica
no chão ou na árvore é prejuízo. Nossos diaristas são gente com muita prática
e todos tomaram muito cuidado. Eu já verifiquei e não encontrei um só grão
do café na árvores ou no chão. Foi uma colheita muito bem feita.
— Graças a você, filho ! — disse o pai.

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Terminada a colheita do café começaram uma outra etapa. José preparava
a terra, chegando o cisco junto aos pés de café. Naquela época não era usado
adubo, pois a terra era fértil. Pedro esperou o produto subir de preço, para
depois procurar os compradores. Normalmente os preços eram os mesmos nas
três máquinas de café e não havia muita opção para o vendedor. Assim que o
preço subiu, porém, Pedro vendeu tudo para o Sr. Miazaki. Foi ele quem fez a
melhor avaliação no seu café. A satisfação foi muito grande, mas mal sabia
Pedro que seus sonhos encerravam um ciclo ali. Na verdade, era o fim de um
ciclo, não o fim dos sonhos.

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A GEADA, A REVOLTA E A SANTA

Foi no ano de 1952, um inverno gelado, com poucas chuvas e um frio era
intenso. Pedro comentou com o filho, dizendo os cafezais estavam correndo
risco de geada:
— É o mesmo frio do ano de 1942, exatamente há dez anos atrás. José
não se lembrava da grande geada daquele ano, mas Pedro e Márcia tinham
viva em sua memória a lembrança do desespero dos fazendeiros. A geada de
52 não veio tão forte como a de dez anos atrás. Os cafezais foram duramente
atingidos, mas não tão profundamente como da outra vez.
Começou, então, um novo trabalho. Foi preciso serrar pé por pé de café,
retirar os galhos secos e esperar nova brota. Foi como começar tudo de novo,
mas ninguém se sentiu derrotado. Foram à luta, plantando milho e feijão em
grande quantidade, para que o prejuízo não fosse tanto.
Pedro aumentou a quantidade de porcos de engorda. Tinha muito milho
estocado e uma boa plantação de abóboras. Durante os anos que se seguiram,
José trabalhou no campo, cuidando das plantações e da terra, sua terra
vermelha, como o pai dizia:
— Eu tenho orgulho de pisar neste chão. Foi aqui que realizei meu
grande sonho. Nós ainda vamos colher muito café nestas terras, se Deus
quiser!
Lúcio não mudou de gênio. Com o passar dos anos ele se tornou ainda
mais revoltado. A mãe sabia que ele ainda iria aprontar uma grande confusão.
As sessões de blasfêmias eram todos os dias, O pai ouvia e comentava com
Márcia:
— Eu fico tão triste, ouvindo o que ele fala. São palavras tão pesadas!
— Eu não digo mais nada — falou Márcia. — É melhor a gente ficar
calado. Não adianta dar ouvidos ao que ele fala. Nós sabemos que ele quer ser
corrigido, para depois criar confusão. Deixe para lá. Não dê ouvidos e não
diga nada a ele.
Márcia amava os filhos com igualdade. Sempre dedicara a todos a
mesma atenção, o mesmo carinho, mas naquilo que a magoava ela se retraía,
fechava-se, sentindo-se anulada. Sem saber o que dizer, ela se afastava sem
comentários. Sofria em silêncio, carregando dentro do peito aquela dor.
Muitas vezes era injusta com quem não merecia. Era a maneira que ela
tinha de se libertar, de pôr para fora toda sua dor, abrindo seu coração com
palavras das quais depois se arrependia, muito chateada, querendo consertar
toda aquela besteira e, com isso, ela sofria ainda mais. Como ela mesma dizia:

67
— Agora tenho uma pedra a mais em meu caminho.
Assim Márcia vivia, sofrendo com os filhos. Era sua fé que aliviava sua
dor. Pedro sonhador não mais sonhava. Tinha realizado todos os seus sonhos
de conhecer novas terras, ter sua lavoura de café e ser dono de sua tão querida
terra vermelha.
Já não mais trabalhava. Passava dia jogando cartas, sozinho, relembrando
as suas noitadas com os amigos italianos. Eles sempre tinham um motivo para
comemorar: final da colheita, começo da colheita, aniversários, todos os dias,
enfim, traziam consigo um motivo de comemoração onde não faltava o
carneiro assado. Passavam a noite jogando o famoso três-sete. Pedro ficava
horas, jogando cartas com seus amigos invisíveis. Arrumava a mesa, colocava
as cadeiras em ordem e, em silêncio, distribuía as cartas para cada um dos
parceiros de rodada do três-sete.
Era incrível vê-lo assim, tão concentrado. Quando ele ganhava, ouvia-se
o som de uma gostosa gargalhada. Todos os dias, após o almoço, Pedro,
dirigia-se à sala de jantar, arrumava a mesa, colocava as cadeiras e distribuía
as cartas aos seus amigos de jogo.
Márcia nunca interrompia a distração do marido. Olhava para ele, tão
concentrado no jogo e, com carinho, oferecia-lhe um cafezinho ou um tira-
gosto. Em silêncio ele se retirava para não perturbar sua distração. Em todos
esses anos, era o único momento de paz que ele encontrava. Jogar sozinho
talvez fosse voltar ao passado e estar de novo junto com seus amigos de
jogatina. Eles nunca jogavam dinheiro, era só passatempo entre amigos.
Certo dia, depois de uma sessão de carteado, Márcia aproximou-se do
marido e perguntou:
— Quem ganhou hoje, foi você ou foram seus amigos?
— Hoje eu perdi.
— Perdeu a nega também?
— Perdi, não ganhei nem uma rodada. Você se lembra, Márcia, naquela
noite de frio, quando você foi atrás de mim? Ainda estávamos morando em
Douradão. Eu jamais esqueci aquele dia. Já estava amanhecendo e eu não
tinha chegado. Foi tão gozado, quando você me viu carregando aquele enorme
coqueiro nas costas para me aquecer do frio. Você não sabia se ria ou chorava.
Eu estava suado, com aquele enorme tronco nas costas. Você fez uma cara de
espanto e raiva. Tive medo de você me dar umas palmadas. Aquele coqueiro
tinha uns dez metros e pesava mais de cinqüenta quilos. Quando o soltei das
costas, foi como se tivesse jogado o mundo no chão. Você fez uma cara tão
zangada, mas depois começou a rir da minha façanha. Você precisava ver a
cara dos meus amigos, quando eu contei a eles o que tinha acontecido. Eles
me chamavam de Pedro do coqueiro. O apelido pegou.

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— Quantos carneiros vocês comeram naquele dia?
— Foram três, com muita salada e polenta italiana.
— O que mais vocês comeram naquele dia?
— O famoso pão caseiro da Dona Chica.
— Você tem saudades daqueles tempos, Pedro?
— Tenho uma grande saudade dos meus amigos, daquelas reuniões
divertidas, regadas com vinho de laranja e carne de carneiro assado. Hoje eu
jogo sozinho, para vocês, mas para mim eu jogo com os meus amigos. Assim
eu volto ao passado.
— As vezes eu não entendo você, Pedro. Você sempre sonhou com o
futuro. Eu não sabia que você vivia o passado, enquanto estava jogando.
— O passado faz parte do presente e do futuro. O passado faz parte da
nossa história e cada ser humano tem seu passado que o empurra para o
futuro. Eu sempre fico pensando que o Lúcio não é feliz. Ele carrega um fardo
vazio. Mais tarde você vai me dar razão. O passado dele vai ficar para os
filhos recordarem com tristeza ou saudade. Ana e Maria também vão carregar
um grande vazio, com uma diferença: elas não têm revolta, como Lúcio.
Benvinda era mais sapeca. Ela pensa que eu não sabia que, em todas as
brincadeiras-dançantes, ela arrumava um namorado. Ela levava a vida na
brincadeira, coisa de menina-moça sem compromisso e sem safadeza.
— Pedro, você não sabe de uma coisa — disse Márcia. — Ela não queria
se casar.
— Por quê? — perguntou Pedro.
— Ela gostava de um outro rapaz, que estava servindo o exército.
— Quem era ele?
— Isso eu não sei. Ela não quis dar o nome dele.
— Então ela é a única filha que tem um passado para recordar. E você,
Márcia, me conte o seu passado, aquele que eu não conheço.
— Eu não tenho nada para contar.
— Você não tem passado como lembrança?
— Tenho sim!
— Quais são?
— Todos que você já conhece. Eu conheci você ainda criança e nós
brincávamos juntos pelos campos, colhendo frutos e flores. Você se recorda
daquela vez em que você colheu um lindo buquê de flores vermelhas, fez com
elas uma coroa e colocou em minha cabeça, dizendo que, quando crescesse, ia
se casar comigo? Você ficou com tanta raiva de mim, quando eu a joguei no
chão e sai correndo, morrendo de vergonha do que você tinha me falado.
Saiba que eu nunca me esqueci das suas palavras.
— Que coisa linda, Márcia! Eu não recordo desse fato.

69
— Eu nunca me esqueci. Eu tinha certeza de que você não tinha
esquecido também. Você foi meu primeiro namorado. Eu tinha uns dez anos.
Foi bem antes de você sair de casa.
— Agora eu estou recordado. Foi no mês de junho e as flores eram
trepadeiras que davam nos campos. Com um cipó de flores eu fiz aquela coroa
de flores vermelhas. Você ficou tão linda com ela na cabeça. Naquele seu
vestido branco, com bolinhas vermelhas, você parecia uma rainha em meus
sonhos de menino.
— É por isso que eu gosto tanto daquelas flores de São João.
— Eu achava que tinha sonhado isso. Foi um sonho tão lindo ficou
gravado no coração. Então eu não sonhei. Foi verdade mesmo.
Márcia ficou muito comovida e disse:
— Eu também me recordo do vestido de chita branco com bolinhas
vermelhas. Eu guardei aquele vestido por muitos anos. Sempre que olhava
para ele tinha medo de que suas bolinhas caíssem, de tão velho que estava. Eu
ainda me recordo de como você estava vestido. Usava uma camisa de mangas
compridas xadrez, branco e vinho, calça meia-canela cinza, com suspensório
vinho. Usava também um boné esquisito, xadrez, da cor da camisa. Com
aquelas botinas, você parecia um reizinho de verdade, só que você era rico e
eu era pobre, nem tinha um sapato para calçar e corria pelos campos descalça.
— Você não esqueceu nem um detalhe desse passado?
— Como eu iria esquecer de uma coisa tão bonita que era só minha?
— Só sua, não, Márcia. Nossa. É o nosso passado e tem muitas outras
coisas tão bonitas como essa. É só começar a pensar no passado, que elas vão
aparecendo.
— E você, Pedro, do que mais tem saudades?
— De minha mãe. Ela foi uma santa, me vestia muito bem, me dava
muito amor e carinho. Eu tinha um quarto só meu, como tinham os meus
irmãos. A nossa mesa era farta. Os empregados de minha mãe eram todos
filhos de antigos escravos. Eu tinha também uma babá, que cuidava só de mim
e de minhas roupas. Ela cuidava de tudo que era meu. Ela preparava o meu
banho, me arrumava e me levava para a sala de jantar. Eu tinha um professor
particular, que vinha todos os dias me dar aulas. O pouco que aprendi foi
graças a minha mãe, que contratou o professor Jacinto. Eu andava só de trole,
junto com meu pai e minha mãe. Nós éramos tão felizes, até que aconteceu
aquela tragédia. Minha mãe adoeceu e morreu. Eu tinha uns dez anos de idade,
mas me recordo muito bem de tudo. Meu pai não perdeu tempo. Casou com a
primeira que apareceu, só porque eu era pequeno e precisava de cuidados. Ela
enganou meu pai direitinho. O que ela queria era dar o golpe do baú. De mim
ela nunca cuidou. Começou tirando a babá e deixou de cuidar do meu quarto e

70
de minhas coisas. Eu não comia mais na mesa com meu pai e meus irmãos. Eu
comia na cozinha, junto com os empregados. Ela servia o meu prato e
mandava eu comer. O pão, o leite e o queijo nunca mais me foram servidos. A
minha madrasta começou a esconder a comida e pedia aos empregados para
não contar nada a meu pai e me deixava de castigo, se me pegasse comendo
uma fruta ou um pedaço de pão. Foi quando conheci você. Nós dois
passávamos o dia todo brincando no campo, onde eu tinha frutos para comer.
— Por isso você era tão magrinho?
— Era, de passar fome, Márcia. As minhas roupas foram se acabando e
ficando pequenas. Ela nunca comprou uma peça de roupa para mim. Quando
ela inventou aquela mentira, meu pai acreditou e me mandou embora de casa.
Ela não me deixou falar com meu pai. Foi castigada pela vida e morreu na
miséria. Quando ela veio me pedir dinheiro, lá no sítio do Douradão, eu nem
dei resposta. Tive vontade de dizer tudo o que ela havia feito para mim. Com
o maior descaramento ela me disse: "você está bem de vida, me arruma um
bom dinheiro que eu não vou perturbar mais." Que vontade eu tive de lhe dar
uma boa surra de chicote. Dei a ela o meu desprezo. Era o único sentimento
que havia guardado para ela. Eu não tenho remorso, só uma grande tristeza
que, as vezes, eu ponho para fora, quando recordo o passado com Dinha.
— Por hoje chega de falar em tristeza. Vamos esquecer todas essas
mágoas e tomar um café bem forte, do jeito que você gosta.
A vida continuava para Pedro e Márcia. A grande tristeza era Lúcio, cada
vez mais revoltado. Pedro dizia:
— Eu tenho motivos para ser revoltado pelo que minha madrasta me fez,
mas eu não guardei mágoa no coração, só uma grande tristeza. Lúcio não tem
motivos para ser tão revoltado. Ele se fecha, só sabe ofender. Tenho muita
pena da mulher dele. Ela morre de medo do marido. Ele deve ter um grande
motivo e deve ser alguma coisa bem séria. Ele tem medo de ser descoberto,
por isso ele se esconde atrás dessa revolta.
— Eu tenho pensado muito nisso também — disse Márcia.
José, por outro lado, era firme no trabalho, falava com o pai, ouvia as
ordens e as cumpria, plantava, colhia e entregava tudo ao pai para se vendido.
Ele era feliz, engordava seus porquinhos e vendia. Essa era a única renda que
ele tinha. Era econômico e sempre tinha seus trocados. Foi aos poucos
juntando um bom dinheiro, pensando em seu futuro.
Freqüentava as brincadeiras-dançantes e gostava de um bom jogo de
bola. Não perdia um bom filme. Com sua bicicleta equipada com um bom
farol, pedalava dez quilômetros à noite para ir ao cinema na cidade.

71
Um bom namoro, sem compromisso, isso ele não dispensava. Quando
chovia no domingo, ele e seus amigos faziam uma boa rodada de truco ou
escopa.
As garotas tentavam conquistar o jovem José, moço sério e trabalhador e
um bom partido, disputado pelas moças do bairro, mas ele já estava de olho
em uma garota especial. Não disse nada para os pais, porque ele não tinha
condições financeiras para assumir um compromisso mais sério.
Certo dia, sua irmã Benvinda perguntou-lhe:
— Você já pensou em se casar, mano?
— Eu já tenho uma namorada, mas não conte para ninguém, é segredo
ainda.
— Ela vai esperar você se decidir?
— Vai, nós não temos pressa. Daqui a uns dois ou três anos eu decido,
mana.
Certo dia, Pedro foi convidado para uma reunião cidade, justamente pelo
delegado. Márcia ficou preocupada com aquele convite. Pedro estava
tranqüilo. Era um político honesto e sempre fora fiel ao seu governo, mas
mesmo assim estranhou a reunião ser na delegacia.
— Você está preocupado, Pedro? — indagou Márcia.
— Eu estou confuso. Não é sempre que recebo um convite, a não ser
reunião do partido.
Pedro vestiu seu melhor terno de linho. Ao chegar na tal reunião foi
recebido com muitas palmas. Ele ficou ainda mais confuso. Todos o
abraçavam e diziam:
— Parabéns Pedro! Você é um grande homem e merece este título que
estamos dando a você. Vai ser uma tarefa difícil e muitas vezes complicada.
Nós decidimos dar a você o título de Inspetor de Quarteirão. A partir de hoje
você é uma autoridade no seu bairro. É de sua responsabilidade tudo que
acontecer em seu bairro, como brigas de casais em brincadeiras-dançantes e
outras, em qualquer lugar. Você terá que resolver na base de conselhos e até
desarmar os briguentos. Se alguém sair ferido em brigas de armas brancas ou
armas de fogo, você desarma o fulano, pega a arma e traz todos para a
delegacia. Nós o escolhemos porque é honesto, honrado e um homem de bem.
Temos certeza de que irá resolver esses casos sem problemas.
Pedro ficou satisfeito com o cargo que recebeu. Márcia esperava aflita a
volta do marido, que chegou e contou para a esposa o que tinha acontecido.
Ela disse ao marido:
— Você pegou um grande abacaxi e difícil vai ser descascá-lo.

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Na primeira brincadeira-dançante que houve, logo depois, Pedro foi
chamado para pôr fim a uma briga de baderneiros. Eles chegaram e apagaram
o lampião. Foi uma grande confusão. Pedro entrou e deu uma ordem:
— A festa continua. Ninguém se atreva a me desobedecer. Aqui eu sou
autoridade,. Volto a dizer, a festa continua e todos os baderneiros estão
convidados a comparecer, segunda-feira, às dez horas da manhã, na delegacia.
Quem não for, mando a polícia ir buscá-lo e ficará preso por três meses até um
ano.
Pedro ficou orgulhoso de seu primeiro serviço. Na segunda-feira, lá
estavam todos, com medo do delegado. Ele passou a ser chamado para
acalmar casais. Com uns bons conselhos, ficava tudo em paz. E assim seguiu
por muito tempo.
Márcia ficava preocupada com as chamadas em noites de chuva, mas ele
nunca deixou de atender um chamado sequer, para desespero dela. Certa vez,
fizeram uma brincadeira-dançante em um casarão desocupado. Retiraram as
paredes de dentro, deixando um grande salão. Pedro foi chamado para tomar
conta da festa, mas ele se atrasou. Nisso chegou um grupo de novatos da
cidade. Com eles vieram duas moças, Marta e Geruza.
Ninguém conhecia esse novo grupo de rapazes e eles também não sabiam
que o Inspetor iria tomar conta da festa. O salão só tinha uma porta de entrada.
A festa estava animada, quando eles chegaram e apagaram o lampião. Nesse
instante, Pedro chegou na porta e disse:
— Estejam todos presos, seus desmancha-festas!
Sacando seu revólver, deu um tiro para cima e fora da porta. Foi um
corre-corre. Moças e rapazes pularam pelas janelas, caindo um em cima do
outro. Os briguentos deitaram-se no chão, por ordem de Pedro. Foram levados
para a cidade e ficaram presos até a segunda-feira. As duas moças foram
levadas para a casa dos pais. Este fato ninguém esqueceu, porque do lado das
janelas tinha um curral e todos ficaram cheios de bosta de vaca. Esta festa foi
muito divertida e comentada por muito tempo.
Pedro era chamado até em vendas de beira da estrada. Era bêbado que
não queria pagar a conta ou era peão de faca na mão, desafiando comerciantes.
Ele era um convidado especial, com direito a uma rodada de truco, que ele
gostava muito.
Pedro estava sempre presente em todas as reuniões festivas do bairro, era
respeitado por todos e querido até pelas crianças na porta das escolas. Nunca
recebeu um réu por isso. Foi um político honesto e esquecido pelas
autoridades, que nunca lhe fizeram uma homenagem, dando seu nome a uma
rua da cidade que ele tanto amou. Tinha orgulho de pertencer a esta terra
vermelha, a terra dos seus sonhos.

73
Essa foi uma experiência para Pedro. Apesar de tudo, valeu a pena ser
útil e isso dava a ele um enorme prazer. Seus conselhos nunca foram
esquecidos. Os casais em atrito viam em Pedro um conselheiro. A cada caso
em que ele era chamado, eram novos amigos que ele arrumava.
— Santo de casa não faz milagre, é um ditado popular! — dizia Pedro, e
era uma grande verdade, porque o filho jamais aceitara um conselho seu.
Isso magoava-o muito, tirando sua autoridade. Tanto que, certo dia, ele
comentou com Márcia:
— Eu tenho medo que o Lúcio faça uma grande besteira. Ele comprou
um sítio e ficou devendo mais da metade do valor. Ele não diz nada sobre seus
negócios. Parece que ele está fugindo de nós ou está escondendo alguma
coisa. Eu não o entendo. Para que tanta revolta e mágoa? Ele é tão infeliz.
Márcia recordou da profecia. Fazia tempo que ela não pensava no
assunto. Ela não havia esquecido daquelas palavras. Mesmo depois de tantos
anos, ela estava viva em sua mente. Sabia que aconteceria algo de muito
grave.
— Com quem será? — perguntava-se. — Quando será? Meu Deus, não
deixe que nada de mal aconteça a nenhum de meus filhos. José é tão meigo e
obediente, respeita tanto o pai e a mim. Já o outro parece um estranho com
aquela revolta. Ele quer atingir alguém de uma maneira cruel. É uma intuição
que tenho. Isto para mim não falha e eu tenho muito medo.
Certa feita, Pedro a chamou:
— Venha aqui na rede comigo. Eu quero lhe dizer uma coisa muito séria.
Márcia sentiu um grande arrepio. Seus cabelos ficaram em pé.
— Meu Deus, o que será desta vez? O que foi que aconteceu? —
perguntou-se de imediato.
— Venha aqui, Márcia. Eu quero convidar você para fazermos uma
viagem.
Ela sentiu um alívio geral. Ainda assim, suas pernas tremiam, sua voz
não saia e ela gaguejava. Pedro começou a rir do embaraço da esposa.
— O que foi? Você está tremendo? E por que está gaguejando dessa
maneira?
Ela começou a chorar e cobriu o rosto com as mãos. Pedro disse:
— Deixe de bobagem. Por que esse choro agora, sem motivo? —
indagou, enquanto, carinhosamente, enxugava suas lágrimas. — Não quer
viajar comigo e com as crianças?
Márcia nem podia falar, de tão emocionada que estava. Continuou
calada: Pedro insistiu?

74
— Hei, mulher! Ficou muda de uma hora para outra? Fale comigo! Não
gostou de meu convite? Nós vamos a Aparecida do Norte. Eu sei que você
sempre teve vontade de ir até lá.
Ela chorou ainda mais, abraçada ao marido e em silêncio:
— Obrigada, meu bom Deus, por esta notícia! — agradecia ela.
Pedro, notando que ela estava confusa, desfez seus cabelos, fazendo-a
sorrir. Os cabelos de Márcia eram longos e presos com um birote no alto da
cabeça.
— Veja o que você fez! Outra vez soltou o meu birote e me deixou com
cara de bruxa, com esses cabelos soltos.
— Você está linda, Márcia. Eu gosto de soltar seus cabelos só para ver
sua cara de brava. Então, vamos viajar? Posso marcar as passagens? — De
que jeito vamos viajar?
— De caminhão — respondeu o marido. — Vamos de pau-de-arara.
Vocês vão gostar da viagem.
Márcia ficou de boca aberta.
— De pau-de-arara, Pedro? Que loucura! Você deve estar brincando
comigo. Você me deixou muito triste com essa brincadeira.
— Não é brincadeira minha. Nós vamos viajar de caminhão mesmo, só
que não é pau-de-arara, fique sossegada. Eu sei o que estou fazendo.
Com os preparativos para a viagem, Márcia se esqueceu da profecia, da
revolta do filho, das preocupações que tanto a afligiam e do tremendo susto
que levara, quando o marido a chamou para falar da viagem. Agora iria
realizar um grande sonho adormecido, que guardava no fundo de seu coração,
que era ir a Aparecida do Norte, fazer uma visita à santa de sua devoção.
A sua alegria era tão grande que ela se esquecia até de comer. Era como
uma criança que iria ganhar seu tão sonhado presente de Natal. Ela Márcia
cantava, sorria e chorava de alegria, fazendo seus planos. Pretendia pagar
todas as promessas que devia a Nossa Senhora.
Tinha muita fé que tudo iria melhorar, depois dessa viagem. Queria pedir
à santa para que tirasse dos seus pensamentos a profecia, que tanto a
atormentava. Pediria também pela felicidade de seus filhos e eram tantos os
pedidos que ela teve que fazer uma lista de tudo que iria pagar ou a sua santa.
Não podia esquecer de nenhuma promessa, por menor que fosse. Tudo era de
grande importância para ela.
Pedro fez as reservas das passagens, com direito a hotel, duas refeições
por dia e café da manhã. Na época não tinha asfalto. As estradas eram de chão
batido. Caso chovesse, a viagem demoraria de quatro a cinco dias. Era uma
excursão sem pressa para voltar, com muita fé na santa.

75
Chegou, finalmente, o grande dia. Márcia preparou comida para um
mutirão e disse o marido:
— Vamos levar pão caseiro, lingüiça frita, lombo cheio, farofa com
frango, frango assado e muita água para todos.
Pedro comprou três corotes, grandes o suficiente para guardar água para
todos durante a viagem. Quando tudo pronto, Pedro arrumou um jipe com um
vizinho e foram para a cidade, onde embarcaram.
Apesar de estarem todos mal acomodados e do vento frio e forte que
levantava a lona que cobria o caminhão, tudo valia a pena. Iam cantando hinos
católicos e rezando, pedindo proteção a Nossa Senhora da Aparecida. Quando
chegaram naquela cidade, encontraram uma multidão que lá estava. A Basílica
era pequena para tanta gente.
Mal chegaram ao hotel, Márcia tratou de fazer sua via sacra. Primeiro
comprou uma vela de seu tamanho e foi cumprir sua primeira promessa. Tinha
levado uma foto de toda a família e a colocou na sala dos milagres. Assistiu à
santa missa e agradeceu a Nossa Senhora pela boa viagem. Pediu pelos filhos,
pela paz e felicidade de todos. Pediu para a santa dar mais calma ao filho
Lúcio e para que tirasse dele aquela revolta que tanto a fazia sofrer.
Márcia foi se confessar e contou ao padre o que tanto a atormentava, a
profecia. Ela queria uma penitência para que nada de mal acontecesse a
nenhum de seus filhos. Ela recebeu os conselhos e a penitência e o padre lhe
disse:
— O que está escrito, vai acontecer, é o desígnio de Deus. Vá em paz e
que Deus a proteja. Tenha fé. É a sua fé que vai proteger sua família.
Márcia comprou uma Bíblia, um terço, uma imagem de Nossa Senhora e
várias lembrancinhas para todos.
A viagem de volta transcorreu tranqüila e sem problemas. Márcia sentia
que tinha deixado na Basílica todos os seus temores. Prometera a santa que
voltaria em breve para agradecer a benção recebida. Já não mais pensava na
tão temida profecia.

76
A BROCA E A GEADA

Após a viagem, inspecionando a lavoura, José descobriu, com espanto,


no café já quase maduro, bichinhos que se pareciam com carunchos. Ele
colheu vários grãos de café e levou para o pai ver. Pedro olhou bem e disse:
— Se não estou enganado, isto aqui é broca do café. É uma praga nova
que apareceu e só com BHC podemos combatê-la. Temos que tomar
providência bem rápido, antes que ela acabe com nosso cafezal.
Foi uma grande batalha para combater a broca do café, que danificava o
grão ainda em formação, depreciando o produto na hora da venda. O inseticida
usado era muito perigoso para a saúde. José tomava muito cuidado,
carregando nas costas a bomba cheia do veneno. Era um trabalho difícil,
cansativo e perigoso. Não podia deixar cair na pele nem uma gota. Tinham
que tomar leite em lugar da água e na hora do sol muito quente era muito
perigoso.
Precisava trabalhar a favor do vento. O cheiro forte dava muita dor de
cabeça e de estômago, mas ele não se queixava de nada. Queria passar logo o
veneno para controlar a broca do café, porque acabar com ela era impossível.
A praga já havia se alastrado por todos os cafezais da região.
Pedro sentiu-se derrotado com a praga nos cafezais. José, no entanto,
dizia ao pai:
— Nós vamos ter mais cuidado, não fique preocupado. Eu vou cuidar de
tudo.
— Se não fosse você, filho, eu iria desistir desse café. Mandava arrancar
tudo e botava fogo. Assim acabaria com essa maldita broca dos cafezais.
— Nada disso, pai. Eu vou combater essa praga. Alguns prejuízos vamos
ter. Por mais que combatamos, todo ano ela vai aparecer de novo.
— Tem fazendas aqui por perto que já estão arrancando todo o café. Vão
plantar algodão e o tal rami. Eu ainda não conheço essa planta. Dizem que dá
muito dinheiro e ocupa muita gente na sua colheita. Dizem também que a
máquina usada é muito perigosa. Ela não têm nenhuma proteção e pode cortar
o braço do peão. Todo o cuidado é pouco.
— O senhor não está pensando em arrancar o nosso café e plantar o tal
rami?
— Eu só não vou mandar arrancar o café por você, que cuida muito bem
de tudo.
— Então vamos combater a broca e seja o que Deus quiser — respondeu
o filho.

77
O café que Lúcio cuidava também estava com a broca. Ele vivia
xingando as malditas brocas que queriam acabar com seu café.
— Eu comprei um sítio e tenho que dar mais uma parcela do pagamento
com a venda do café. Agora essa maldita praga vai acabar com meus lucros.
Dizia ele aos amigos:
— Eu não quero nem saber de plantar café no meu sítio. Eu vou plantar
hortelã pimenta. Essa plantação é de poucos gastos e muito lucro. Não tem
pragas para prejudicar na hora da colheita. Aqui estão arrancando café e vão
plantar algodão e o tal rami. Algodão é uma droga também. Tem as lagartas
que destroem tudo e se chove na hora da colheita é prejuízo na certa. O rami
eu não conheço, mas dizem que é muito perigoso para quem trabalha na boca
da máquina. O peão pode perder o braço e ficar aleijado para sempre.
Esses eram os planos de Lúcio. Pela primeira vez ele falava aos amigos
sobre o que ele pretendia para o futuro. Enquanto isso, a broca continuava a
ser combatida com o B.H.C.
Márcia, depois da viagem a Aparecida do Norte, vivia bem mais
tranqüila e não sentia mais aquele mal-estar. Graças à santa e às palavras do
padre agora ela não se martirizava tanto e conseguia afastar de seus
pensamentos a profecia que tanto a atormentara. Mantinha consigo a Bíblia
comprada, mas não a lia, pois não sabia. Só viria a aprender muito tempo
depois.
Certo dia, Lurdes falou com a mãe:
— Arrumei um namorado.
— Quando foi que você conheceu esse moço? — perguntou a mãe.
— Foi na brincadeira aqui na tulha, sábado passado. Ele me pediu em
namoro, e eu disse a ele que sim.
— Por que você não fez como sua irmã Benvinda, que pediu um tempo
para eu falar com seu pai?
— Ele é meu primeiro namorado. Fale com o pai que eu estou
namorando o Ricardo.
Pedro, ao saber, não viu com bons olhos aquele namoro, pois Lurdes fora
muito precipitada. Ela mal conhecia o rapaz. No domingo, depois do almoço,
ele chegou. A filha disse ao pai:
— Este aqui é Ricardo, o meu namorado.
Pedro fez muitas perguntas ao rapaz e não ficou contente com as
respostas.
— Tudo bem! — disse Pedro. Eu não quero namoro longo. Filha minha,
quando arruma namorado, tem que se casar logo. Foi assim com as outras três
filhas e será com esta também. Assim que ela completar dezesseis anos, eu

78
faço o casamento. Eu não gosto de agarra-agarra e nem de namoro à noite.
Traga seus pais para eu conhecer na próxima semana.
Assim foi feito. Os pais de Ricardo vieram, trataram do casamento e
marcaram a data para o dia 22 de abril.
— A festa eu faço, não preciso de ajuda. A despesa corre tudo por minha
conta. Eu sou o pai da noiva, é minha obrigação.
Lurdes disse à mãe:
— Eu quero um lindo vestido de noiva, com uma grande cauda e o tecido
de rendas.
Márcia respondeu:
— Você não acha que está querendo muito?
— Casamento é só uma vez. Eu não tenho culpa se minhas irmãs não se
casaram com um lindo vestido, como eu quero, porque elas não pediram ao
pai.
— Filha, não é o vestido que traz a felicidade para quem se casa.
— Não me importa, mãe. Eu quero o meu vestido com cauda bem longa
e o tecido de renda.
A mãe insistiu:
— Eu posso fazer o seu vestido. Fiz os da suas irmãs e elas gostaram.
— Eu quero o meu vestido feito por uma boa costureira da cidade.
— Tudo bem — concordou a mãe. — Seu pai vai a cidade falar com sua
irmã. Ela conhece uma boa costureira para fazer o seu vestido.
— Eu quero ir junto para escolher o tecido e o modelo.
— Tem muito tempo.
— O tempo passa depressa. Eu não quero deixar para a última hora.
— Que pressa é essa?
— Casamento não é um casaco que se pendura em um prego ou cabide.
Eu agora vou cuidar só da minha casa.
— Tudo bem, filha. Tomara que você seja muito feliz!
— Eu vou ser feliz, a senhora vai ver.
Márcia ficou muito magoada com as palavras da filha. Se ela soubesse
como era difícil a vida, não agiria daquela forma. Tempos depois, porém,
Lurdes descobriria que a vida de casada não era tão linda, como fora o seu
vestido de noiva.
Tudo, afinal, foi feito como elas queria. Pedro fez um grande almoço,
servido ao ar livre, no quintal de sua casa. Depois disso, a vida no sítio
continuou. A maior preocupação era a batalha contra a broca do café. José,
incansável nessa luta, disse ao pai:
— A praga já está controlada. Este ano eu ainda não encontrei um só
grão com a broca.

79
Tempos depois, ele comunicou aos pais que iria marcar a data de seu
casamento. As duas famílias já se conheciam. Lúcio continuava cada vez mais
revoltado. Saía de casa chutando tudo que encontrava pela frente. O gato e o
cachorro eram os primeiros a receber seu pontapé. Se ele chamava o cachorro
para pegar um porco que havia saído do chiqueiro, o cachorro saia correndo se
esconder, bem longe dele.
Lúcio xingava, berrava e iniciava sua sessão de blasfêmias contra os
pobres animais. Se ele ia pegar a égua Faceira para selar, ela erguia o rabo e
desembestava numa louca corrida pelo pasto a fora. Todos os animais tinham
medo dele, até o velho Paxola.
— Ele só pode estar doente — disse um velho amigo da família.
Pedro sentiu as palavras do amigo e respondeu:
— Ele é um bom rapaz. Trata os amigos muito bem é trabalhador,
honesto e nunca deixou faltar nada para a família. Eu não tenho explicação e
fico muito triste a magoado com essa situação. Ando muito nervoso.
— O senhor tem que se cuidar. Saia de casa, vá a cidade, converse com
sua filha, com os amigos que tem na cidade e se distraia um pouco.
— Eu faço isso, caro amigo. Todos os dias vou na venda do Pedro
Japonês e passo boa parte do dia, jogo truco e bato um bom papo com todos os
meus amigos. O meu coração parece que quer apostar uma corrida comigo. Eu
gosto mesmo é de jogar o meu três-sete sozinho, no faz-de-conta com os meus
amigos do passado.
Márcia entrou na sala, servindo um cafezinho, e ouviu boa parte da
conversa. O amigo perguntou pelas filhas Ana e Maria.
Com tristeza, Pedro respondeu:
— Elas não me mandam notícias. Ana está em Maringá e trabalha como
merendeira em um colégio. O marido trabalha na prefeitura. Fiquei sabendo
que o marido de Maria toma conta de uns maquinários do dono da fazenda em
que eles moram. A fazenda se chama Espoleta e, perto dela, tem uma venda
que tem mesmo nome. É só o que sabemos.
— Então peça para a sua filha Benvinda escrever para a tal venda
pedindo informações.
Márcia achou uma boa idéia e a carta foi enviada ao proprietário da
venda Espoleta e chegou ao seu destino, depois de algum tempo. O dono da
venda recebeu a carta e não teve coragem de abri-la, pensando ser alguma
ameaça de jagunços. Essa carta correu de mão em mão, até que um valentão a
abriu. Dizia:

80
Eu procuro uma família, Maria e
Durvalino.
Gostaria que o senhor me fizesse essa
gentileza, pedindo informação aos seus
fregueses e amigos. Eles moram na fazenda
Espoleta. Quem escreve é a irmã de Maria.
Aqui estão o nome e o endereço. Aguardo
ansiosamente uma resposta e que Deus o
abençoe por este favor.

Depois de vários dias chegou a resposta, com o endereço completo do


casal. Pedro ia todos os dias à casa da filha, à procura de notícias. Certo dia,
quando o pai ia chegando, a filha de longe acenou com a carta.
Coitado do coração de Pedro. Ele mal podia acreditar que estivesse
recebendo notícias da filha. A carta dizia que haviam encontrado o casal
procurado que morava ali perto e não mais na fazenda Espoleta, indicando
como chegar até a tal venda. Pedro ficou muito feliz com a notícia e decidiu ir
com Márcia, naquela mesma semana, à casa de Maria.
Assim o fizeram. Ao chegarem à tal venda, mostraram a carta ao senhor
que os atendeu, dizendo
— Eu me chamo Pedro e sou o pai de Maria. Esta é minha esposa
Márcia.
O senhor gentilmente disse:
— É um prazer conhecê-los. Eu também sou pai de filhas distantes, por
isso eu entendo suas preocupações. Seu genro eu não conheço. Dizem que ele
trabalha na cidade. Sua filha e as crianças vêm sempre fazer compras aqui na
minha venda. Eu só não sabia o nome dela. Venham tomar um café. Depois
iremos fazer uma surpresa para eles.
Realmente foi uma grande surpresa. Maria, quando viu os pais chegarem,
dizia, chorando de alegria:
— Eu estou sonhando. Não acredito que são vocês. E o restante da
família?
Maria, abraçada ao pai e a mãe ao mesmo tempo, chorava muito.
— Quanta saudades eu tinha de vocês.
Pedro, emocionado, perguntou a filha:
— Por que não mandou notícias. E o seu marido, o que ele faz na vida?
Maria, meia sem jeito, disse ao pai:
— Ele trabalha em um clube de jogo na cidade. É o que ele diz. Vem de
quinze a vinte dias para casa e não trás nada no bolso. Fala que o que ganha

81
gasta tudo lá mesmo e só volta quando acaba o dinheiro que dou a ele. Ganho
alguma coisa costurando para fora.
— Você está se acabando nessa máquina de costura, filha.
— Pois é dela que eu tiro o sustento da família. Veja o pedal da minha
máquina já está gasto. O ferro já está fino, de tanto eu pôr os pés para costurar.
E ainda tenho que dar dinheiro para ele ir trabalhar.
— Que vida é essa, minha filha? Você vive sem conforto, trabalhando na
costura dia e noite sem parar. Eu fico muito triste por você e pelas crianças.
— Eles estão bem, pai. Não fique preocupado. Todos estão estudando e
um dia eles irão me retribuir todo o meu esforço. Tenho certeza e muita fé em
Deus.
Maria queria saber de todos os irmãos. A mãe contou detalhadamente a
situação de cada um deles. Lurdes tinha se casado, José iria se casar ainda este
ano, Benvinda estava bem e Lúcio cada dia mais revoltado, mas todos estavam
bem de saúde.
A mãe contou da viagem a Aparecida, do cafezal com as pragas da broca
e passaram o dia conversando. Falou também que o pai não andava bem de
saúde, mas que não era nada de grave, pois o médico nem tinha lhe receitado
remédio. A doença do pai era só nervoso.
Foram três dias de muita conversa. Para matar a saudade, foi muito
pouco para quem estava longe e sem notícias. O genro chegou com aquela
cara-de-pau que sempre teve, cumprimentou a sogra, abraçou os filhos e
perguntou para a mulher.
— Como você está? Tem costurado muito?
Os pais ouviram os dois conversando a noite.
— Quanto dinheiro você trouxe desta vez? A situação não está boa. O
dinheiro está curto e o que eu ganhei, gastei tudo. Você vai voltar?
— Vou sim, Maria!
— Então trate de ganhar o dinheiro para viajar. De agora em diante, eu
não vou lhe dar nem um centavo. Você não tem é vergonha. Passa tanto tempo
fora de casa e não traz nem um quilo de alimento para as crianças.
No outro dia, os pais voltaram para casa, tristes com a situação da filha
mas ainda assim acharam que valera a pena terem ido ver a filha.
— Agora sabemos que ela é mais esperta do que pensamos. Ela fala e
não manda recado.
Márcia contou ao marido que tinha dado uns conselhos para ela deixar de
ser boazinha. Ele não merecia a mulher que tinha.
A viagem fez muito bem para Pedro. Apesar de tudo, ele estava contente
com a atitude da filha. Sabia que ela iria dar um basta no merda do seu
marido. Maria tinha falado com a mãe que ele estava arrumando uma casa

82
para eles na cidade. Graças aos conselhos da mãe, a filha havia tomado a
decisão certa. Maria havia prometido mandar o endereço assim que eles
mudassem para o endereço novo.
José tinha ficado sozinho, enquanto os pais estavam viajando. Havia
decidido marcar a data do seu casamento. Falou com os pais. Pedro ficou
muito contente e disse-lhe:
— Vocês vão ficar morando aqui, juntos com a gente, até fazer a casa de
vocês. Arrume seu quarto com a cama de casal. Sua mãe tem uma guardada lá
no depósito. Podem usar por alguns tempos.
José, depois de jantar, pegou sua bicicleta e foi visitar a noiva e marcar a
data do casamento. José amava Aparecida e era muito querido pela família da
noiva.

83
FANTASMAS DO PASSADO

Pedro amava Márcia. Eles se conheceram ainda pequenos e foi um amor


muito grande, que venceu todas as barreiras que o destino pôs em seus
caminhos. Ele foi muito querido pela família de Márcia e os dois foram
felizes.
Parentes é Deus que nós dá e amigos a gente escolhe. Pedro sempre teve
o maior respeito pelos amigos e grande estima pelos parentes, por isso ela era
tão querido por todos.
Márcia tinha nos amigos uma outra família. Aquelas a quem ela havia
escolhido eram suas amigas, que lhe faziam companhia. Suas visitas a
deixavam com novo ânimo para enfrentar os dissabores que, no seu dia-a-dia,
apareciam. Os parentes muitas vezes a magoavam. Ela se sentia derrotada,
sem saída, porque eram parentes. Dias depois, o pessimismo de Márcia foi
anulado por um novo fato.
José foi convidar o irmão, para o seu casamento. Lúcio prometeu que
iriam todos. Conversaram normalmente. Lúcio até parecia outra pessoa.
Falaram da broca do café, do sítio que ele havia comprado, onde iria plantar
hortelã pimenta, algodão, milho, feijão e um bom pomar. Iria depois plantar
seu café, tão logo arrendasse o sítio para uma boa família formar a plantação.
Antes ele teria que fazer uma casa para o empregado, uma represa para criar
peixes e para os amigos fazerem pescaria aos domingos.
Pedro, ao saber da conversa dos filhos, ficou muito contente, comentou
com Márcia que Lúcio estava mudando para melhor.
— Era isso que me estava faltando. Agora eu sou completamente feliz —
disse ela.
A nora comentou que o marido iria comprar roupas novas para toda a
família e a paz havia voltado ao sítio de Pedro. Márcia se recordou da
profecia, não com desespero, mas como algo que havia ficado no passado,
enterrado pelos conselhos do padre. Ela agora respirava aliviada. A lembrança
não mais a fazia sofrer. Ela agradecia a Deus pela benção recebida. A paz
entre todos era realmente uma grande benção.
Tudo estava correndo bem, a paz trazida por Deus fazia o mundo de
Pedro e Márcia mais iluminado. O céu era mais azul, os pássaros cantavam
nos galhos das laranjeiras, o bem-te-vi os saudavam todos os dias. O sabiá
vinha comer as frutas maduras, o beija-flor os visitava todos os dias no
pequeno jardim sempre florido de Márcia, que ela cuidava com muito carinho.
Depois de tanto tempo vivendo atormentada pelos seus pensamentos, pela

84
profecia e pelo medo de que poderia acontecer alguma coisa que ela não sabia
o que era, ela havia acordado desse pesadelo de muito tempo. A família unida
era tudo que Márcia tinha pedido a Deus. Ela se recordava do passado, do
engenho do pai, do quanto ela tinha trabalhado, cortando cana ainda menina.
Suas irmãs e irmãos eram tão unidos. Uma grande saudade havia ficado desse
tempo, do pai tão querido que faleceu e da mãe nunca esquecida.
Um dia, perdida em seus afazeres, ela pensava: "eu estou sentindo um
grande vazio. É esta saudade que dói aqui em meu peito. A minha casa tão
grande ficou vazia. A vida é uma grande ilusão, assim como foram os sonhos
malucos de meu marido, nossa vida juntos, tantos anos de sonho e realidade.
Agora me sinto tão só. O meu mundo ficou vazio, sem lutas, sem sonhos, sem
esperanças. Eu não tenho mais nada a ser realizado. Pedro não desfaz mais
meus cabelos. Parece que ele se esqueceu que eu estou ao seu lado. Ele já nem
sonha mais. Pedro sonhador esqueceu de sonhar, esqueceu o passado. Ele vive
o presente agora e não pensa no futuro. Por que isto está acontecendo comigo
e com ele? Será que valeu a pena tantas lutas e dificuldades, tanto trabalho?
Sofremos juntos para criar nossos filhos. Demos a eles toda a nossa vida e o
que nos restou? Só este rosário de preocupações."
Márcia estava voando com seus pensamentos e nem notou o filho Lúcio
olhando para ela, com um grande pacote de compras que ele havia feito. Disse
à mãe:
— Venha ver as roupas que eu comprei para toda a família. Nós vamos
todos ao casamento do José. A senhora já comprou suas roupas também? Eu
quero ver.
A mãe não acreditava que o filho estava tão entusiasmado com o
casamento do irmão. Foi correndo buscar suas roupas. Ele olhou e gostou,
muito dizendo:
— A senhora vai ficar muito bem com este vestido de seda.
Há muito tempo que ele não a tratava assim. Ela já havia esquecido do
som daquela voz.
Finalmente os preparativos para o casamento já estavam todos prontos,
assim como as roupas novas para toda a família e o terno do pai e do noivo.
Foram dias de muito trabalho e alegria.
Márcia pedia a Deus para que aquilo durasse para sempre. Estava feliz
com o casamento de José. Ele sempre fora um filho que nunca lhe dera
desgosto nem ao pai. Sempre tratara bem as irmãs e era muito querido e
estimado por elas.
Um dia, Pedro sentiu-se mal, com uma forte tontura e chamou por
Márcia pedindo:
— Traga uma xícara de chá bem quente para mim.

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Ela fez o chá rapidamente e deu para o marido tomar.
— O que foi que aconteceu?
— Não foi nada. Eu me senti mal. Parece que tudo está rodando.
Márcia ficou aflita.
— Eu vou chamar o José.
— Não chame ninguém. Vai passar logo.
— Então fique calmo e vai se deitar um pouquinho.
— Não fique preocupada, mulher! Já passou. Eu estou melhor.
— Então vai jogar cartas com seus amigos.
— Com os meus amigos Márcia? Agora você entendeu que eu não jogo
sozinho e sim com os meus amigos do passado. Traga mais biscoitos e faça
um pouco mais de chá para todos.
— Você vai jogar três-sete com eles?
— Sim, eu vou jogar. Traga uma xícara só, está bem.
— Eu faço tudo para agradar você.
— Então tome o chá comigo e me faz companhia.
Rapidamente ele desfez seus cabelos e ainda lhe fez cócegas. Márcia
arrependeu-se de seus pensamentos anteriores. Ela estava enganada a respeito
do marido.
Pensou: "ele precisa é de carinho. Quer a minha atenção e carinho. Nós
dois somos dois carentes de afeto. Nós dois esquecemos de nós."
Pedro tomou o chá e foi se deitar na rede. Não quis jogar cartas e chamou
Márcia para ficar com ele, conversando.
Ele disse:
— Como nós trabalhamos nestas terras! Aqui criamos nossos filhos, aqui
também plantamos nossos sonhos malucos, como você sempre dizia. Márcia,
você ainda acha que eles foram malucos?
— Não, Pedro, eles não foram malucos. Eles foram todos realizados e
você ainda sonha?
— Não, Márcia, eu não sonho mais. Agora eu só quero ter boa saúde, e
para você também, para nós dois juntos cuidarmos do Antônio, que não tem
boa saúde. Outro dia ele estava lá na roça e teve uma convulsão. Ele se
debateu tanto. Eu nunca tinha visto coisa igual e eu fiquei com muita pena
dele. Custou para voltar a si.
— Nós temos que ter muito cuidado com ele. Não podemos deixá-lo
sozinho por muito tempo e nem permitir que ele faça serviços com
ferramentas. Ele pode se ferir gravemente.
Depois de conversar com a mulher, Pedro sentiu-se bem melhor. Márcia
perguntou:
— Quer ir jogar cartas agora?

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— Não, eu vou tirar uma soneca aqui na rede e você vai fazer um frango
caipira para o jantar. Quero com molho caipira também.
— Eu sei, e como muito alho. É como você gosta.
Márcia se abaixou para beijá-lo. Ele aproveitou para soltar seus cabelos
num gesto de carinho que ela gostava de receber do marido. Depois do jantar
ele se sentou em sua cadeira de balanço e ficou pensativo, fumando seu
cigarro preferido.
Chegou, então, o dia tão esperado. Todos almoçaram, cada um em suas
casas, vestiram-se e lá foram todos para a cidade para assistir a cerimônia
religiosa. Após o casamento de José e Aparecida, foram comemorar tomando
uma cerveja. Os noivos iam viajar de lua-de-mel para Aparecida do Norte.
José não quisera que o pai fizesse a tradicional festa a que todos estavam
acostumados. A mãe tinha que ser poupada de tanto trabalho. Ele fazia muito
gosto de que a mãe fosse ao seu casamento. Ela não assistira a nenhum dos
casamentos das filhas e para a mãe foi uma grande alegria assistir o casamento
do filho.
Depois de uma semana, o casal voltou e José pegou firme no trabalho,
agora com mais incentivo. Tinha uma esposa e iria trabalhar ainda mais para
ter seu futuro garantido .
Ele trabalhava para o pai, cuidando da lavoura que não era pouca. No
sítio moravam ainda Lúcio e um colono. Ao todo, eram três famílias que
tocavam as lavouras do sítio de Pedro. Todos viviam em paz. Lúcio tinha
moderado a sua revolta. Não mais era ouvido xingando e nem batendo no gato
e ou no cachorro. Apesar de todo estar tranqüilo e das famílias terem uma boa
amizade entre si, Márcia vivia sempre com um pé atrás, enquanto Pedro já não
precisava mais dar ordem a José, que era um profissional da lavoura. Seus
conhecimentos eram profundos e corretos.
Havia dois meses que José estava casado e morando junto com os pais,
enquanto esperava que o pai decidisse fazer sua casa. Pedro, depois de uma
longa conversa com Márcia, decidiu que José e sua esposa ficariam morando
junto com eles.
Chamou o filho e comunicou o que tinham decidido. José, então, disse ao
pai:
— O senhor quer igualdade de tratamento da parte dos dois filhos, mas
para o outro o senhor fez a casa e para mim, não. O senhor não está sendo
justo. Eu tenho lhe dado provas da minha lealdade. Não mereço ter a minha
casa?
Pedro percebeu que ele tinha razão, mas apenas queria o filho morando
junto com eles, para ocupar os espaços vazios do casarão. Percebeu, porém,
que era um direito de José ter sua casa.

87
— Então eu vou mandar fazer sua casa bem perto da minha, assim não
me sentirei tão sozinho.
Foi uma conversa entre dois adultos. Pai e filho se entendiam muito bem
e não havia discórdia. Tudo era resolvido em paz e com respeito.
Quando as plantações de cereais estavam para serem colhidas, Pedro
chamou José e disse:
— O que você produzir é tudo seu.
José pensou no assunto e, mais tarde, concluiu que o pai ficaria no
prejuízo. Uma intuição pessoal que tinha lhe dizia que aquela idéia não daria
certo.
Sua casa ficou pronta em poucos dias e o casal foi morar nela. Como José
ainda não tinha dinheiro para comprar os móveis, Aparecida pegou no
depósito uma mesa velha e duas cadeiras quebradas, a cama do casal caindo
aos pedaços e um colchão de palha, muito usado na época. Seria temporário.
Assim que fosse feita a colheita e a venda dos cereais, eles comprariam o
necessário.
José e a esposa trabalhava de sol a sol. Aparecida tinha uma grande força
de vontade. Quando começou a colheita dos cereais, eles não perderam tempo.
Trabalhavam aos domingos e feriados para não correr o risco do tempo mudar
e começar a chover.
Nesse ínterim, o colono sítio terminou a colheita e deixou o sítio. Havia
encontrado um trabalho melhor. Como Ricardo, o marido de Lurdes não
estava bem financeiramente, Pedro cedeu as terras a ele, mesmo sabendo que
ele não era bom naquele tipo de trabalho. A filha insistiu e o pai não teve
desculpas. Concordou.
Enquanto isso, José colheu os cereais, separou uma parte para os gastos e
vendeu o que sobrou. Parte do milho foi reservada para seus porcos, que
estavam na engorda, e o restante também foi vendido. O café logo estava
também todo colhido e guardado na tulha. Eles esperavam agora o preço subir
para vender.
Ricardo e a família mudaram para o sítio. Ele tocaria as terras em que o
colono trabalhara e já havia muito serviço para ser feito. Pedro vendeu o café,
recebeu o dinheiro e voltou para casa satisfeito com o negócio.
Pedro chamou José e foi acertar a venda do café, dizendo:
— Eu vou ficar com cinqüenta por cento dos lucros e você fica com os
outros cinqüenta por cento.
— O senhor está certo pai, eu concordo. É justo que tenha uma renda do
sítio.
O pai acrescentou:

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— O Lúcio vai ficar com todo o café e os cereais. A partir do ano que
vem, Ricardo também vai dar a sua porcentagem de cinqüenta por cento.
— O Lúcio está cheio de dívidas — afirmou José. — É justo que seu
lucro seja total. Eu estou de pleno acordo.
Em casa José explicou à esposa o acordo feito.
— O sítio é do pai e nós cuidamos das terras — disse José. — Nossos
lucros não foram poucos. Eu estou satisfeito.
Aconteceu, porém, que o genro, quando ficou sabendo, não gostou do
acordo do sogro e disse a Pedro:
— Lúcio vai ter que dividir os lucros do café também. Eu não concordo
com o senhor.
Pedro respondeu:
— Você entrou aqui ontem e já quer ter direitos de filho? Ponha-se no
seu lugar. Aqui você é um colono, como o outro que saiu. O que você tem que
fazer é cuidar melhor de sua lavoura e seus lucros serão bem maiores.
Pedro deu o assunto por encerrado. Estavam todos apurados no trabalho e
não podiam perder tempo. Um dos filhos de Lúcio fez uma arte na casa do tio,
apossando-se de um punhado de moedas antigas, algo que não lhe pertencia. O
tio o encontrou com o que ele tinha pego na mão e disse ao garoto:
— Vá pôr isso onde você achou!
Lúcio ficou sabendo de uma outra maneira, contada pelo filho, e ocorreu
um grande rebuliço naquela tarde cheia de sol. Lúcio encontrou o irmão que
voltava do trabalho. Estava furioso e foi logo dizendo:
— Eu vou lhe dar uns tapas para você aprender.
José respondeu:
— Você é quem sabe. Você é grande, mas não é dois. Eu sou pequeno e
não sou pedaço. O errado é seu filho e não o meu. Você tem o dever de
corrigir o seu filho e não vir brigar comigo.
Lúcio estava louco da vida. Foi até a porta da casa do irmão e jogou o
que o filho havia retirado da casa do tio.
— Pegue suas porcarias. Ninguém precisa delas. Isto aqui para mim é
lixo e é como lixo que eu jogo em sua cara — disse, ofendendo o irmão e a
esposa com palavras pesadas.
Essa foi a gota d'água que Márcia temia. Por isso ela estivera sempre com
um pé atrás. "Coração de mãe não se enganava", dizia ela.
Pedro chegou e assistiu toda aquela cena, vendo os pertences de José
jogados no chão. Lúcio, ao ver o pai, saiu xingando o irmão e a cunhada.
Pedro recolheu os pertences do filho e entregou a José, que disse:
— Não pai, não vou pegar.

89
— É seu, guarde tudo — insistiu Pedro. — Eu estou lhe pedindo, faça
por mim.
— Está bem pai, eu vou guardar.
Pedro, inconformado com a cena, passou mal, com falta de ar e muito
cansaço. Seu coração disparou e ele teve de ir para a cama. Márcia estava
arrasada com o acontecido e temeu pela saúde do marido. A situação, a partir
de então, tornou-se insuportável. Benedita, esposa de Lúcio, ofendia a
cunhada sempre que a via.
Márcia voltou a se atormentar com a profecia, pensando: "será que tudo
vai acontecer? Estará escrito no meu destino? Eu tenho que tirar isso da minha
cabeça, mas está acontecendo do jeito que ela me falou. Até agora tudo deu
certo. Em meus pensamentos eu ouço sua voz, repetindo dia e noite. Eu tenho
medo, muito medo. Se eu pudesse voltar até lá e falar com ela, pedir mais
detalhes dessa profecia, eu juro que iria. Só Deus poderá nos livrar. Eu errei
em ter ido falar com ela, mas eu não pedi nada, ela foi logo dizendo um
amontoado de coisas que me deixaram zonza. Até hoje eu me sinto presa a
essa profecia. Por mais que lute para esquecê-la, eu não consigo. Aquelas
palavras estão gravadas em minha mente. Deus, me entrego em suas mãos.
Imploro. Afaste essa sina dos meus pensamentos, do meu caminho e dos
destinos de meus filhos."
A verdade era dolorosa. Ela não estava preparada para superar a força
daquela profecia, que era mais forte do que Márcia pensava. Tinha medo de
ser derrotada. A vida tinha lhe ensinado muitas coisas que ela não tinha
aprendido na escola. As lições do mundo eram mais amenas que aquela
profecia, que a martirizava, atormentando sua alma. Para ela, era como
caminhar de olhos vendados.
Estava tão perdida em seus pensamentos, que não viu Pedro, observando-
a com uma grande ruga em sua testa. Quando ela notou a presença do marido
disse:
— Eu estou tirando um cochilo em sua cadeira de balanço.
— Você estava falando sozinha. O que está acontecendo com você? Eu
nunca a vi assim. Tem alguma coisa a mais que eu não sei? Você está doente
ou está escondendo alguma coisa muito grave, que a está deixando assim,
atormentada? Eu conheço você muito bem. Márcia, me conta o que está se
passando em sua cabeça. Você está guardando um grande segredo neste seu
coração sofrido, igual ao meu? O que a faz falar sozinha? Você está sofrendo
e não quer me contar o que é?
Pedro insistiu ao perceber que algo realmente atormentava sua esposa.
Tinha que saber a verdade.

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— Ah, Márcia! Desabafa, chora, grita, quebra os pratos, joga as panelas
de comida no quintal. Faça alguma coisa, mas ponha para fora tudo que você
tem guardado ai no seu peito. Essa sua mágoa me atinge, me fere também.
Vamos conversar. Vamos resolver juntos tudo que a está atormentando. Eu
também já guardei segredos de você, mas acabei contando tudo e fiquei bem
mais aliviado. Foi como tirar um peso de minhas costas.
Márcia começou a chorar e, entre soluços, disse ao marido:
— Eu não tenho nada para contar. Eu só estava dormindo aqui, em sua
cadeira de balanço. Talvez eu tenha sonhado ou tive uma visão do passado.
Foi só isso, acredite em mim.
Pedro, no entanto, estava decidido a descobrir a verdade.
— Eu acredito em você, mas sei também que você está escondendo a
verdade. Talvez por medo, mas isso se chama falta de confiança. Entre nós
não pode existir dúvida ou segredo. Com isso eu acabo duvidando da sua
lealdade.
— Não é segredo, Pedro! É um fantasma que me persegue, é só isso que
posso lhe dizer.
— Está bem, você não confia mais em seu marido.
A forte pressão que Pedro fez deixou Márcia assustada.
— Não é falta de confiança, me entenda, por favor! Eu não posso lhe
dizer mais nada. E vamos parar por aqui. Eu não quero brigar com você sem
motivo.
Pedro não deu o caso por encerrado e continuou:
— Motivos tem, Márcia. Eu tenho certeza de que este fantasma do
passado está ligado ao casarão amarelo, lá do sítio do Douradão. Acertei ou
não?
— Por que essa pergunta?
— Me responda apenas sim ou não?
— E se eu não responder?
— Você vai fazer isso comigo? Sempre fomos leais um com o outro.
— Está bem, eu respondo, sim.
— Eu tenha certeza de que ela falou para você o mesmo que falou para
mim — confessou ele, fazendo-a estremecer.
— O que foi que ela disse à você? Por favor, eu preciso saber. Me conte
desde o começo.
— Está bem, eu vou contar tudo a você. Quando lá cheguei, segui um
ritual. Tirei as botas, lavei as mãos e os pés, para depois entrar na sala de
orações. Ela foi logo dizendo: "eu sei o que você quer saber. A mudança vai
acontecer, vocês vão vencer, vocês vão sofrer, nem todos os seus filhos serão
felizes. Vai nascer um outro filho, não é este que sua mulher está esperando,

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ele vai nascer nas terras que você comprará. É um garoto, não terá boa saúde,
mas terá vida longa." Foi isso que ela falou para você também?
— Foram exatamente essas palavras.
— E por que você vive pensando nessas palavras?
— Eu falei com um padre em Aparecida. Ele me disse para não pensar
mais nisso e tirar dos meus pensamentos essa profecia, mas ele disse também
que está escrito nos destinos de todos os cristãos, que ele vai pagar uma falta
da vida passada. O cristão está pagando uma dívida. Esta foi a explicação que
ele me deu sobre a profecia.
— Não devemos nos atormentar mais — disse Pedro.
— Então você sabia de tudo e nunca me disse nada?
— Você também guardou segredo.
— Sim, guardei — disse Márcia.
— Eu não dei muita importância às palavras dela. Você, além de guardar
segredo, viveu atormentada todos esses anos, sofrendo por falta de confiança.
— Eu tinha medo de contar para você. Não sabia qual seria a sua reação
ao ficar sabendo da profecia. Ela falou tudo sem eu perguntar nada. O mesmo
aconteceu com você.
— Vamos esquecer tudo. Já sofremos demais em acreditar nas palavras
da benzedeira. Se nós estamos devendo dívidas da vida passada, nós teremos
que pagá-las. Com dívidas não se brinca.
— Ainda bem que descobrimos a tempo, porque nós dois nada
entendemos disso — disse Márcia.
— Vamos viver em paz, pelo menos nós dois. Vamos deixar o resto para
o destino resolver e ficar de longe, olhando tudo. Se está escrito, vai acontecer
e não somos nós que vamos impedir que essa dívida seja paga. Se dos nossos
filhos nem todos serão felizes, é o destino deles e eles não poderão mudar
nada. Nós dois, com fé em Deus, venceremos.
Márcia ficou mais aliviada do peso que carregara por tantos anos. Vivera
atormentada e com medo de ouvir a palavra infeliz, carregando como escudo a
profecia, o fantasma do seu passado. Agora podia erguer a cabeça e enfrentar
o destino sem remorso, sem culpa e sem medo.

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O FIM DOS SONHOS

Pedro faleceu alguns anos mais tarde, depois de muitos aborrecimentos


com os filhos e genros. Naquela terra ele havia plantado seus sonhos e esta foi
uma das razões pela qual José não permitiu que o sítio fosse vendido, na
partilha. Em cada centímetro de terra onde Pedro pisou, ali estavam seus
sonhos. Eles nasceram e cresceram em cada um pé de café florido.
Márcia viveu até os oitenta e cinco anos, mas seu resto de vida foi
atribulado. Ela colheu os frutos dos sonhos do marido, pois Pedro não viveu
para desfrutar de seus bens. Sempre viveu humildemente e sem nenhum
conforto. Foi feliz sem luxo e sem vaidade.
Márcia conservou suas raízes. Ela sempre teve orgulho de ter vivido na
roça. Ser caipira para ela era um cartão de visitas. Foi na infância que ela
aprendera a amar suas raízes. Sua vida foi dividida em muitas fases, mas a
infância foi a mais marcante para a formação de suas raízes. Menina pobre,
trabalhou no engenho de açúcar e aguardente do pai, recebendo pequenos
salários, fazendo serviços em seus dias de folga para as vizinhas.
Cortando canas e trabalhando no engenho, ela ajudava o pai com uma
parte do ganho e guardava o restante. Sua mocidade foi curta. Quando se
casou com Pedro, tinha dezesseis anos de idade. Aos dezessete, ela teve sua
primeira filha, que veio a falecer com sete dias de vida. Márcia não tinha
experiência nem instrução, mas sua grande força de vontade, depois que Pedro
faleceu, fez com que ela aprendesse a ler.
Quando Márcia conhecera Pedro, ela tinha dez anos de idade. Enquanto
meninas da sua idade brincavam com bonecas, ela já trabalhava no engenho.
Apesar do pai ser o dono e ter um pequena fazenda, eram os filhos que faziam
todo o serviço, como cortar a cana e fabricar a aguardente. O pai dela era
mineiro de nascimento e paulista de coração, de família numerosa. Todos
juntos tocavam o engenho.
Márcia nunca foi à escola e nem suas irmãs. Dizia o pai:
— Filha minha nasceu para ser dona de casa e cuidar dos filhos e do
marido.
Ela sentiu na pele a falta de saber ler e escrever, por isso foi à luta,
aprendeu a ler com seus próprios esforços e aprendeu a escrever seu nome.
Para ela foi uma grande vitória, ninguém a obrigaria a assinar seu nome sem
antes ter lido o que estava escrito.

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Dos filhos de Márcia todos tinham o primeiro grau. Foi o que ela pôde
dar aos filhos, pois naquela época não era fácil freqüentar uma escola
morando no sítio. Ela dizia:
— O saber não ocupa lugar. Eu não vou deixá-los sem aprender o básico.
No futuro vocês me agradecerão.
Márcia libertou-se da profecia. Dizia ela:
— O que tem que acontecer, acontece, dependendo ou não de aceitarmos.
Só Deus tem o poder de pôr ou tirar dos nossos destinos o que teremos de
passar. As dívidas das vidas passadas, eu tenho certeza de que elas foram
pagas por mim e por Pedro.
Gostava de puxar da memória fatos antigos de sua infância, do seu
vestido branco com bolinhas vermelhas. Quantos anos ele ficou guardado no
fundo do baú, junto com a coroa de flores que Pedro havia feito para ela e
colocado em sua cabeça, dizendo:
— Quando eu crescer, vou me casar com você.
Ela jogara a coroa no chão e mais tarde voltara para apanhá-la e escondê-
la no baú por muitos anos, enrolado no seu vestido branco de bolinhas
vermelhas.
A coroa de flores de São João era a sua relíquia, eram as suas doces
lembranças, assim como o vestido de noiva branco, feito por sua santa mãe.
Era longo, com sete saias, o que o deixava bem bufante. O corpete era bem
apertadinho em seu corpo e as mangas bem franzidas, dando um toque
especial. O longo véu vinha preso na grinalda de flores de laranjeiras. O buquê
era de flores naturais, colhidas no campo, dando um contraste especial e eram
suavemente coloridas e com um leve perfume.
Essas doces lembranças vinham como uma flor desabrochando, abrindo
as portas do passado. Lá no fundo do baú estavam as relíquias de Márcia,
trazendo de volta grandes emoções, enchendo o seu mundo, que ela pensava
estar vazio. As recordações devolviam a ela um passado adormecido, que
vinha preencher aquele vazio em seu coração.
A única coisa que o baú não guardou foram os sonhos de Pedro. Esses ela
guardou para sempre no seu coração.

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