O presente artigo visa abordar a corrupção no Brasil segundo a concepção foucaultiana do poder, ou seja, observando não seu seio soberano, mas suas pontas onde de fato se dão as trocas de favor e negociações de interesses. Através das análises históricas de Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, busca observar quais foram as condições sócio-políticas, a mentalidade e os mecanismos que permitiram o desenvolvimento da corrupção a despeito de sua proibição, buscando compreender como a população brasileira se sujeita obediente e passiva a um poder político corrupto. Preocupa a fronteira tênue entre o ethos cordial e oleoso do brasileiro e a perigosa viscosidade política, demonstrando certos traços da mentalidade brasileira que requerem atenção e transformação, possíveis a partir da retomada do conceito grego da parresía.
Autoria: Noa Cykman
O presente artigo visa abordar a corrupção no Brasil segundo a concepção foucaultiana do poder, ou seja, observando não seu seio soberano, mas suas pontas onde de fato se dão as trocas de favor e negociações de interesses. Através das análises históricas de Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, busca observar quais foram as condições sócio-políticas, a mentalidade e os mecanismos que permitiram o desenvolvimento da corrupção a despeito de sua proibição, buscando compreender como a população brasileira se sujeita obediente e passiva a um poder político corrupto. Preocupa a fronteira tênue entre o ethos cordial e oleoso do brasileiro e a perigosa viscosidade política, demonstrando certos traços da mentalidade brasileira que requerem atenção e transformação, possíveis a partir da retomada do conceito grego da parresía.
Autoria: Noa Cykman
O presente artigo visa abordar a corrupção no Brasil segundo a concepção foucaultiana do poder, ou seja, observando não seu seio soberano, mas suas pontas onde de fato se dão as trocas de favor e negociações de interesses. Através das análises históricas de Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, busca observar quais foram as condições sócio-políticas, a mentalidade e os mecanismos que permitiram o desenvolvimento da corrupção a despeito de sua proibição, buscando compreender como a população brasileira se sujeita obediente e passiva a um poder político corrupto. Preocupa a fronteira tênue entre o ethos cordial e oleoso do brasileiro e a perigosa viscosidade política, demonstrando certos traços da mentalidade brasileira que requerem atenção e transformação, possíveis a partir da retomada do conceito grego da parresía.
Autoria: Noa Cykman
Curso de Cincias Sociais Pensamento Social Brasileiro Professor: Jacques Mick Aluna: Noa Cykman
Resumo: Abordar a corrupo no Brasil segundo a concepo foucaultiana do poder, ou seja, observando no seu seio soberano, mas suas pontas onde de fato se do as trocas de favor e negociaes de interesses. Atravs das anlises histricas de Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, observar quais foram as condies scio- polticas, a mentalidade e os mecanismos que permitiram o desenvolvimento da corrupo a despeito de sua proibio. Buscar compreender como a populao brasileira se sujeita obediente e passiva a um poder poltico corrupto. Buscar observar a fronteira tnue entre o ethos cordial e oleoso do brasileiro e a viscosidade apontada por Raymundo Faoro.
Genealogia da corrupo no Brasil Temos, no Brasil, uma Constituio de acordo com a qual o uso das competncias pblicas para fins privados ilegal. O que vemos com exacerbada frequncia , contudo, um desprezo completo por tais prescries, associado maciez para no dizer ausncia da punio por tais crimes. A cultura da corrupo um fenmeno que chama a ateno no Brasil, tanto por suas propores atuais quanto pela marcante presena ao longo de toda a histria do pas, desde sua colonizao. quase senso-comum admiti-lo como o maior dos problemas nacionais, visto que de essncia e magnitude transcendentes sua prpria esfera poltica; transborda para toda a sociedade, ao criar dificuldades e impedimentos para o investimento em outras reas, como educao e sade, alm de perverter a prpria funo e estrutura da poltica, afastada do interesse coletivo. Como evento recorrente e capaz de gerar sua prpria reproduo, a corrupo torna-se preocupante pelos efeitos que tem na realidade imediata tanto quanto na perspectiva de longo prazo da trajetria poltica do pas. No curto prazo, perverte eleies (onde reside a certeza de democracia de muitos cidados), bloqueia mecanismos de participao e de controle social os sujeitos so acostumados passividade e, acima de tudo, rege pequenas e grandes decises polticas, orientadas segundo vontades e interesses particulares. A longo prazo, temos os efeitos: no se desenvolvem projetos e aes de melhoria da vida pblica e obtm-se uma massa de cidados mais ou menos despolitizados, inertes.
questo da corrupo vincula-se diretamente a questo do poder: de que maneira se estabelecem as relaes entre governantes e governados? Especificamente no contexto brasileiro, como se d a sujeio dos dominados dominao corrupta dos polticos? Na situao pervertida em que o poder que deveria dar diretrizes e direes ao pas torna-se um poder particularista e vicioso, como se estabelece a aceitao passiva por parte do povo? Para analisar como se deram e se do as relaes de poder na sociedade brasileira numa singular configurao que permite a corrupo infrene preciso, antes, definir-se o que se entende como poder. Foucault, em seus estudos sobre o tema, faz uma anlise profunda que quebra com a concepo tradicional e, abandonando a difundida tese de um poder que se d verticalmente, de uma unidade soberana a seus sditos, traz a definio nova de uma configurao em rede. Um sistema de inter- relaes entre as quais se estabelecem os reais mecanismos e aplicaes do poder, e que por isso permitem observ-lo tal como se exerce de fato. Conforme a epistemologia arqueolgica desse autor, para entender a realidade dessas relaes, no bastaria estud- las na teoria, em suas definies conceituais e jurdicas; deve-se, principalmente, perceber como este funciona na prtica, observando suas capilaridades e a forma como essas relaes so realizadas e entendidas na sociedade ao longo do tempo. Se queremos entender como chegamos a tal condio de corrupo generalizada e uma quase paralisao da capacidade poltica dos cidados, no nos basta, portanto, analisar apenas a base terica do ordenamento jurdico, que classifica a corrupo como crime e exige determinada punio. A delimitao da descrio e da penalidade do ato corrupto no nos diz tanto quanto o estudo dos mecanismos menores em que este se realiza, da conjuntura social real que permite essas relaes. H, sem dvida, relaes de poder subjacentes s oficiais que permitem a desconsiderao quase completa das prescries legais e que estabelecem, por sua vez, a verdadeira trama de poder que orienta o pas. o tal poder das senzalas, o poder de mando do senhor, de carter domstico e familiar, que acaba por dominar as diversas formas de poder, do familiar ao governamental, do profissional ao estatal. Aliando essa abordagem epistemolgica foucaultiana recuperao histrica realizada por Sergio Buarque de Holanda, que observa a subjetividade das entrelinhas da histria da colonizao, pode-se chegar a uma melhor compreenso das formas que o poder tomou at hoje no Brasil formas, em geral, corruptas.
As relaes de poder no Brasil se estabelecem, muitas vezes, mais pelas vias corruptas que por qualquer eleio supostamente democrtica. O poder oficialmente atribudo a presidentes e prefeitos carregado de simbolismo; so privilgios conferidos, cargos presenteados, lobbies e outras linhas dessa larga teia, contudo, os verdadeiros protagonistas das relaes de poder. Mais alm dos poderes oficiais ou legitimados, so afinidades particulares, arbitrariedades e jogos de interesse que definem, nas vias subterrneas do governo, as vozes que imperam. Bastante alm dos poderes oficialmente codificados, temos as verdadeiras tramas de relaes que os estabelecem de fato. Cabe observar, para compreender tais minuciosas conjunturas, como a relao entre os diversos setores sociais se estabeleceu nas origens da sociedade brasileira, com o devido destaque feito por Gilberto Freyre relao entre senhor e escravo e maneira como esta se desenvolveu e difundiu sua forma para outros mbitos. Considerada de modo geral, a formao brasileira tem sido, na verdade, como j salientamos s primeiras pginas deste ensaio, um processo de equilbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europia e a indgena. A europia e a africana. A africana e a indgena. A economia agrria e a pastoril. A agrria e a mineira. O catlico e o herege. O jesuta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietrio e o pria. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo. verdade que agindo sempre, entre tantos antagonismos contundentes, amortecendo-lhes o choque ou harmonizando-os, condies de confraternizao e de mobilidade social peculiares ao Brasil: a miscigenao, a disperso da herana, a fcil e freqente mudana de profisso e de residncia, o fcil e freqente acesso a cargos e a elevadas posies polticas e sociais de mestios e de filhos naturais, o cristianismo lrico portuguesa, a tolerncia moral, a hospitalidade a estrangeiros, a intercomunicao entre as diferentes zonas do pas. (FREYRE, pgs. 53-54)
Autor da obra-prima brasileira Casa Grande & Senzala, Freyre descreve nessa obra o processo de colonizao do Brasil, origem e fundamento da sociedade brasileira que perdura. Esse amlgama dos mais variados elementos nos fornece algumas pistas para analisar a elasticidade das relaes que se estabeleceu de forma to profunda. Nota- se como recaem sobre a formao social e poltica as condies peculiares em que se desenvolveu a sociedade brasileira sua histria de miscigenao, entrecruzamentos e uma familiaridade quase generalizada geram um constante pano de fundo de flexibilidade; intercambiam-se posies, papeis, relaes. E o destaque do autor: a relao entre senhor e escravo, na qual figuram iconicamente os dois plos, nem sempre cristalizados, do mando e da obedincia. Sergio Buarque de Holanda tambm nos fala da poca da colonizao: O peculiar da vida brasileira parece ter sido, por essa poca, uma acentuao singularmente enrgica do afetivo, do irracional, do passional, e uma estagnao ou antes uma atrofia correspondente das qualidades ordenadoras, disciplinadoras, racionalizadoras. Quer dizer, exatamente o contrrio do que parece convir a uma populao em vias de organizar-se politicamente. (HOLANDA, pg. 61)
Em seu resgate histrico que recupera a sociedade colonial e sculos seguintes, o autor observa, alm dos fatos desse processo, a mentalidade e a forma das relaes sociais que o acompanharam uma chave para a compreenso da conjuntura poltica que se desenvolveu. Sua anlise inicia na prpria personalidade do colonizador portugus apontando a motivao de carter privado e oportunista de suas empreitadas , e volta-se muitas vezes ao longo do texto maneira como relaes familiares acabam moldando as relaes em geral, inclusive na vida pblica e profissional. Temos, desde sempre, um Estado patrimonialista, mais de favor que de direito, sombreado por um clientelismo que favorece muito mais indivduos que qualquer coletividade. Citao holandinha
Foucault vincula suas reflexes sobre o poder a uma observao deste como elemento histrico, que se transforma de acordo com a forma social em que se vive. Segundo o autor, a noo de soberania do direito ocidental, na qual repousa tambm a mentalidade da populao em geral, fruto de uma legislao que orbita em torno no poder rgio, datada da Idade Mdia. Mesmo com o fim das monarquias efetivas, tal forma de pensamento jurdico persiste nos cdigos legais at os dias de hoje, e uma grande maioria cr que em funo desse poder soberano unificado que operam as decises e direcionamentos governamentais. Assim, mesmo em formas de governo no monrquicas, o cdigo legal dissolve a dominao, transformando-a em obedincia obrigatria perante uma soberania legtima e desejvel. Concomitante emergncia do sistema capitalista e ascenso da burguesia nos sculos XVII e XVIII, entretanto, surge, conforme Foucault, um novo tipo de poder, este sim em maior conformidade com a realidade observvel e mais pertinente a anlises atuais. Trata-se de um poder disciplinar, que incide no mais sobre as terras e a riqueza, como o poder soberano na era feudal, mas diretamente sobre os corpos dos indivduos, sobre seu trabalho. Funciona em contnua vigilncia, buscando o mnimo de dispndio e o mximo de eficcia, mascarando-se sob normas que ganham mais fora que leis. Com a eminncia dessa nova forma de poder, o antigo problema da soberania e da obedincia perde espao para o problema da dominao e da sujeio. interessante observar como, apesar do surgimento desse novo tipo de poder, persistiu, no campo terico e jurdico, a teoria da soberania (isso ocorre por duas razes: em primeiro lugar, por esta poder servir como instrumento crtico e, em segundo aspecto mais delicado , porque uma teoria do poder disciplinar poderia possivelmente comprometer sua prtica.) Dizer que o problema da soberania o problema central do direito nas sociedades ocidentais significa que o discurso e a tcnica do direito tiveram essencialmente como funo dissolver, no interior do poder, o fato da dominao, para fazer que aparecessem no lugar dessa dominao, que se queria reduzir ou mascarar, duas coisas: de um lado, os direitos legtimos da soberania, do outro, a obrigao legal da obedincia. (FOUCAULT, pg. 31)
Encontramo-nos ento num momento em que rege, por um lado, o Direito da soberania e, por outro, a mecnica disciplinar. Tornam-se cada vez mais incompatveis um com a outra chegamos a um ponto de estrangulamento. O direito, considerado em seus fundamentos e seus aparatos de aplicao, serve hoje de instrumento aplicao das relaes de dominao, no mais de soberania a dominao entendida como uma relao entre mltiplos sujeitos e que se d em vrios sentidos, dentro do corpo social. Para realizar essa anlise de desvelamento da dominao, o autor recomenda cinco precaues de mtodo, s quais pertinente atentar para compreender a cena poltica do Brasil e como a populao brasileira se sujeita obediente e passiva a um poder poltico corrupto. Podemos supor, j de antemo, que existem mecanismos na forma como se do as decises, acordos e determinaes entre indivduos, que se sustentam muito mais em maneiras de manipulao, de certa forma legitimadas pela tradio, que em um cumprimento da ordem legal estabelecida. Padres de relacionamento que permitem essa dominao justamente por escond-la sob o famoso jeitinho brasileiro. A primeira precauo de Foucault refere-se importncia de se analisar o poder pelas vias menos jurdicas de seu exerccio, quer dizer, pelas suas capilaridades, em suas menores manifestaes e mediante instituies mais regionais, mais locais, (...)sobretudo no ponto em que esse poder, indo alm das regras de direito que o organizam e o delimitam, se prolonga, em consequncia, mais alm dessas regras. (ibid, pg. 32). Como j desenvolvido anteriormente, trata-se de atentar menos s determinaes legais que balizam o poder e mais s relaes onde se estabelece efetivamente, buscando compreend-lo assim como se d na prtica em nossa sociedade e no como teorizado. A segunda prescrio recomenda voltar o olhar ao modo como se funda a sujeio dos indivduos. Desviando o foco da questo de como se firma o soberano, no alto, observar, na instncia material, de que forma os sditos se constituem como tais. Advertida a infecundidade de questionar-se acerca de quem detm o poder, convm deixar de buscar essa sua face interna para observar seu lado externo, suas prticas efetivas, no ponto imediato de contato entre o poder sendo exercido e aquele por ele atingido. Observar, por exemplo, como se do as relaes no sistema prisional entre guardas e prisioneiros, ou no sistema manicomial entre os considerados loucos e aqueles por eles responsveis, so vias possveis para essa compreenso. Para compreender esses mecanismos no cenrio brasileiro, cabe observar primordialmente a relao entre senhor e escravo, tida como fonte originria da trama de poderes do pas, alm daquela entre senhores feudais e industriais modernos, entre outras. Tais contextos oferecem chaves que, como manifestaes espontneas e extra-oficiais das relaes de poder, podem revelar, sob o modo como se tratam as partes, a compreenso e mentalidade de certa sociedade a esse respeito. sabido que desde os tempos coloniais verifica-se certa abertura entre as classes sociais, vinda j da metrpole portuguesa, e que, talvez em decorrncia disso, o trato entre senhores e escravos nem sempre era de rgido mando; mesclava-se s vezes mesmo com relaes de amparo e proteo, para citar o mnimo. A terceira precauo de mtodo de Foucault para o estudo do poder diz respeito sua configurao em rede. Segundo sua concepo, no se tratam de dois plos em que um detm exclusivamente o poder e outro o obedece, mas sim de um funcionamento em cadeia, algo que circula e envolve uma multiplicidade de agentes que podem ora estar em posio de exerccio, ora de submisso no algo apossado, mas algo que funciona. Os indivduos no detm poder, o poder transita pelos indivduos (que so, eles mesmos, produto dos efeitos do poder, no que se refere noo de indivduo). A quarta prescrio indica que se faa uma anlise ascendente do poder, ou seja, a partir de seus mecanismos mais atomsticos, estudar de que maneira se combinam e se configuram em nveis cada vez maiores e mais gerais de dominao. Cada um desses mecanismos possui sua prpria histria e tcnica, no necessariamente atreladas ao campo jurdico, e a maneira como so cooptadas pelas redes de poder e transformadas em seus dispositivos revela uma inverso de sentido do que seria o estabelecimento da estrutura das formas de dominao. A quinta e ltima precauo nos diz que, nas pontas do poder, formam-se no ideologias diferena de Estados e grandes mquinas de poder mas sim, saberes. Verifica-se, no exerccio ltimo e menor do poder, a constituio de instrumentos de gerao e acmulo de saber, no acompanhados de determinada base ideolgica. Quer dizer, aquilo que o Estado exerce em termos ideolgicos referentes sociedade em geral no necessariamente ligado ao que se cria e se estabelece entre indivduos reais em suas relaes. No plano brasileiro, alguns exemplos podem ser citados: talvez seja essa uma das razes pela qual a revoluo burguesa processou-se to lenta e resignadamente, nascendo e firmando-se entre os indivduos muito antes de acoplar-se ao Estado nacional, ou o caso da abolio da escravatura, eminente entre os discursos e interesses de certa parcela social para depois ser oficializada com decretos governamentais. Ou seja, as ideias que nascem do contato entre os indivduos apenas lenta e gradativamente formam-se como ideologias, para depois serem oficializadas e acopladas ao governo.
Podemos, ento, apropriar-nos das recomendaes foucaultianas na busca por uma melhor compreenso do cenrio scio-poltico que se desenvolveu no Brasil ao longo dos sculos, observando de que maneira se deram as relaes e como estas foram sendo absorvidas pela ordem legal.
Conforme nos conta Gilberto Freyre, a colonizao portuguesa no Brasil foi um evento parte no cenrio colonial da poca. Descreve-a como um encontro entre uma cultura muito pouco ortodoxa, como era a portuguesa, com outra ainda em desenvolvimento no pas recm encontrado, resultando numa configurao peculiar e pouco slida, intoxicada por uma ebulio sexual. Sendo a civilizao portuguesa j envolvida com a moura e a judaica e agregando-se posteriormente a etnia africana ao caldo cultural em que se cozinhava o Brasil, formou-se um desenho misto, constitudo de uma especial diversidade de culturas, caracterizado por uma acentuada inclinao maleabilidade social. Alm da especificidade subjetiva dessa coliso, a colonizao do Brasil foi dotada de polticas social, tcnica e econmica novas, em relao s polticas de outras metrpoles. A utilizao e desenvolvimento de riqueza vegetal pelo capital, a iniciativa e esforo do particular, e o aproveitamento de gente nativa, especialmente da mulher, no apenas como instrumento de trabalho, mas tambm como elemento de formao de famlia, so algumas das principais caractersticas de distino. Os portugueses que vinham ao Brasil o faziam numa aposta entusiasmada: deixavam para trs toda a vida que tinham no pas de origem em busca de riqueza que, criam, surgiria como fruto de sua aventura, e no de um trabalho asctico. Com essa inteno, pulavam de um trabalho a outro em busca de maiores lucros, e associavam-se mais pela inclinao a se ajudar que pela disciplina de organizar o trabalho. Segundo Sergio Buarque de Holanda, os portugueses tiveram sucesso na colonizao justamente por sua pouca rigidez de disposies, que se flexibilizaram conforme as condies apresentadas. Adaptaram-se ao clima extico, em primeiro lugar. Seu catolicismo, menos fechado e severo que o protestantismo e, portanto, mais adaptvel aos costumes indgenas e negros, tambm foi um fator importante. Por fim, a disposio mestiagem, mais que ao orgulho de raa, levou a condies mais plsticas de interao social. Ilustra bem esse ltimo aspecto o critrio de entrada na colnia: eram bem vindos indivduos de qualquer pas e qualquer etnia, desde que se apresentassem catlicos. Estabelecidos no Novo Mundo, os portugueses no se mantinham, como outros europeus, alheios estrutura social encontrada. Muito pelo contrrio: envolviam-se sexualmente com indgenas e negros e frequentemente abarcavam-nos em suas famlias, de um modo ou de outro. O escravo das plantaes e das minas no era um simples manancial de energia, um carvo humano espera de que a poca industrial o substitusse pelo combustvel. Com frequncia as suas relaes com os donos oscilavam da situao de dependente para a de protegido, e at de solidrio e afim. (HOLANDA, pg. 55) Trata-se de uma formao social bastante contrastante com a de outra colnias, amalgamando-se despudoradamente senhores e escravos, transitando entre o mal trato e o apego, o sexo e a violncia. O estudo de Freyre, apesar de controverso justamente pela abordagem suave e tolerante do perodo da escravido, mostra-nos o lado mais ntimo e domstico das relaes que se davam. A oleosidade de tais relaes pode ser apontada como o carter mais significativo e de maiores efeitos; o limiar escorregadio entre a intimidade sexual ou sensual e o verso violento que se estabelecia leva a uma plasticidade social nica. No que se refere s decises pblicas, eram tomadas dentro do mbito privado e confundidas com este. Cada famlia na qual estavam considerados tambm os escravos representava um domnio parte, no qual imperava a voz do senhor de engenho sobre todas as demais, segundo suas vontades e julgamentos particulares. Um territrio sem direito em que o patriarca constitui a norma, esta mais soberana que a lei. Ao longo do sculo XIX, uma srie de fatores vem transformar radicalmente a sociedade brasileira. A abolio da escravatura, um intenso processo de urbanizao e de progresso material, o surgimento de novos meios de comunicao e de transporte, dentre outras significativas transformaes, abriam as portas ao capitalismo cujo sopro j se sentia vindo da Europa. Os fazendeiros e suas famlias, que monopolizaram a poltica durante todo o perodo monrquico, no tiveram suas foras reduzidas, como caberia supor. O processo de abolio da escravatura define bem o funcionamento scio-poltico da poca: enquanto a tendncia bvia era cessar o mercado de escravos, os senhores de terras, principais interessados no negcio, organizaram toda uma estrutura para mant-lo, subvencionando jornais, subornando funcionrios, estimulando, por todos os modos, a perseguio poltica ou policial aos adversrios (HOLANDA, p. 75), no apenas permanecendo invulnerveis e impunes no exerccio ilegal de seus interesses, mas tambm multiplicando extravagantemente seus lucros na medida em que se proibia esse comrcio. Apartados e negligentes da situao das cidades em expanso, da criao de bancos, crditos e investimentos do nascimento da modernidade, enfim os engenhos seguiram funcionando normalmente, como microcosmos autnomos e autrquicos, providos de tudo quanto necessitavam e desejavam, e cada senhor de engenho manteve intactos seus domnios. Dos vrios setores de nossa sociedade colonial, foi sem dvida a esfera da vida domstica aquela onde o princpio de autoridade menos acessvel se mostrou s foras corrosivas que de todos os lados o atacavam. (HOLANDA, p. 81) um fenmeno notvel como, aliado a sua fora econmica, o poder poltico da classe dominante perseverou ainda que j condenado ao declnio. Este cenrio brasileiro demonstra com toda a evidncia o modo como os poderes estabeleciam-se externamente ordem legal. A organizao dos grupos polticos se dava tambm sob essa forma generalizada de relaes laos biolgicos e afetivos servindo como critrio de adeso, sempre prevalecendo sentimentos e deveres sobre interesses ou ideias. Pouco espao poderia sobrar para o autntico conflito poltico, para o mbito do pblico, do coletivo. O ncleo familiar, inabalvel, seguia ditando as diretrizes. Representando o nico setor onde o princpio da autoridade indisputado, a famlia colonial fornecia a ideia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obedincia e da coeso entre os homens. O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos prprios comunidade gdomstica, naturalmente particularista e antipoltica, uma invaso do pblico pelo privado, do Estado pela famlia. (HOLANDA, pg. 82).
Vinha j da herana portuguesa a tendncia ao patrimonialismo pas cujo passado caracterizava-se por um feudalismo e nobreza fracos, em oposio a uma igreja forte. A relao social com o Estado estabelece-se, assim, de maneira distinta do restante da Europa, deixando esta entidade frgil merc dos grandes fazendeiros na verso brasileira que se seguiria. Os portugueses chegam ao Brasil sem implementar uma estrutura poltica slida mas, muito pelo contrrio, designando famlias para governar em territrios concedidos. No de admirar que, no processo de organizao e configurao do Estado brasileiro, tenham-se encontrado tantas dificuldades em incumbir-lhe carter slido, neutro e eficiente. No processo de decadncia do sistema colonial e ascenso dos centros urbanos, passam ganhar importncia as ocupaes polticas, burocrticas e liberais. Os senhores de engenho, ttulo que vinha perdendo fora e privilgio, foram os mesmos atores que ento ocuparam as novas posies de regncia. Constituindo-se maneira inversa do Estado burocrtico, o poder, no Brasil, se distribua conforme afinidades e arbitrariedades particulares. Sergio Buarque nos aponta essa formao com clareza: No era fcil aos detentores das posies pblicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distino fundamental entre os domnios do privado e do pblico. (...)Para o funcionrio patrimonial, a prpria gesto poltica apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funes, os empregos e os benefcios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionrio e no a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrtico, em que prevalecem a especializao das funes e o esforo para se assegurarem garantias jurdicas aos cidados. A escolha dos homens que iro exercer funes pblicas faz-se de acordo com a confiana pessoal que meream os candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades prprias. Falta a tudo a ordenao impessoal que caracteriza o Estado burocrtico. (HOLANDA, pg. 146) em perfeita sintonia com essa configurao poltica que se desenvolve um dos mais clebres tipos-ideais da sociologia brasileira: o homem cordial. A hospitalidade e a inclinao ao trato amigvel e ntimo so o vu que contm a exacerbada abertura ao emotivo e ao familiar, a tal ponto em que se sente desconfortvel em qualquer relao onde essa proximidade no se aceite. O carter domstico esparramado para todos os mbitos da sociedade e, na contramo de uma estruturao poltica legtima e organizada, cresce uma rede de homens cordiais. So os herdeiros do patriarcalismo e do ruralismo em que se desenvolveu o pas, acostumados moral das senzalas e ao livre entrelaamento social, os sujeitos que firmam o poder legal do Brasil. Sinuosa at na violncia, negadora de virtudes sociais, contemporizadora e narcotizante de qualquer energia realmente produtiva, a moral das senzalas veio a imperar na administrao, na economia e nas crenas religiosas dos homens do tempo. (ibid., p. 62) O tipo primitivo da famlia patriarcal de herana rural, que vem a governar as cidades, acarreta desequilbrios e conflitos no desenvolvimento social. Muito antes de sua adaptao s exigncias e contextos dos novos tempos, importa ao patriarca manter os mecanismos e privilgios com os quais se acostumou. No seu ttulo de mando que define as relaes que se estabelecem; so seus hbitos, seus caprichos e seus afins.
Com efeito, onde quer que prospere e assente em bases muito slidas a ideia de famlia e principalmente onde predomina a famlia de tipo patriarcal tende a ser precria e a lutar contra fortes restries a formao e evoluo da sociedade segundo conceitos atuais. A crise de adaptao dos indivduos ao mecanismo social , assim, especialmente sensvel no nosso tempo devido ao decisivo triunfo de certas virtudes antifamiliares por excelncia, como o so, sem dvida, aquelas que repousam no esprito de iniciativa pessoal e na concorrncia entre os cidados. (ibid., p. 144) As relaes familiares imperam e truncam a poltica brasileira desde suas origens. Seus interesses vm sempre bem antes das preocupaes coletivas expressas na lei. A busca pela organizao de um sistema de representao, de um parlamento, de associaes em geral, enfraquecida j em seu germe por essa rede de relaes de carter familiar que vm governando o Brasil, explcita ou subterraneamente, h sculos. No existem mais as capitanias hereditrias; no existe mais o sistema de latifndio, monocultura e escravido; no existe mais a colnia que oficialmente institua o senhor de engenho de poder: mas as novas formas de governo, as legislaes recentes, a constituio atual, no destruram as marcas da antiga e tradicional forma de domnio. Foucault, tratando de temas humanos em geral, traz uma proposta metodolgica para o estudo de matrizes de experincia, onde se pode enquadrar a corrupo, dentre muitos outros temas de conflito e polmica, sociais e tericos. Sua proposta consiste no deslocamento de algumas noes e na reformulao da percepo e abordagem delas, que giram em torno de trs eixos: a formao dos saberes, a normatividade dos comportamentos (relacionada prtica do poder) e a constituio dos modos de ser do sujeito. Segue com seu princpio de estudar os tomos, as menores unidades das relaes, para compreender subsumi-las cena mais ampla. Como se funda uma mentalidade? A partir de onde os saberes brotam; como se constituem as prticas discursivas e as formas de veridico de uma sociedade em que impera a corrupo? O que orienta o comportamento dos sujeitos, que tcnicas permitem que sejam governados? Como se configura um sujeito enquanto tal? Essas so algumas das questes que podemos levantar com base na abordagem foucaultiana e que podem abrir-se em caminhos para compreender a corrupo, dentro do contexto e da sociedade brasileira. Uma das possveis chaves para a compreenso das relaes humanas, no apenas quanto esfera poltica, mas incluindo-a, a antiga ideia de parresa retomada por Foucault. Em sua definio mais simples, trata-se da fala franca, do dizer-a-verdade toda a verdade necessria, sem temer as consequncias que esse ato pode provocar. uma noo ampla, que se trata tanto de uma qualidade ou virtude quanto de um procedimento ou tcnica, mas, mais alm, trata-se de um dever dos homens e mulheres que buscam se conhecer e se constituir, no processo bilateral de direo da prpria conscincia e da dos outros. Foucault refere ainda a compreenso grega de que a parresa servia como forma de autoconhecimento e crescimento, surgindo no contato ntimo e sincero com outra pessoa. Algo anlogo iluminao.
O homem cordial no , necessariamente, um homem corts. Brasileiro no tem parresiaa (...) a obrigao e a possibilidade de dizer a verdade nos procedimentos de governo podem mostrar de que modo o indivduo se constitui como sujeito na relao consigo e na relao com os outros. (FOUCAULT, 2010, p. 42). Os que querem prescindir do juzo e dos outros na opinio que formam de si mesmos, esses diz Galeno, frequentemente caem. (p. 44) (...) os parresiastas so os que empreendem dizer a verdade a um preo no determinado, que pode ir at sua prpria morte. (p. 56) S pela transgresso da ordem domstica e familiar que nasce o Estado e que o simples indivduo se faz cidado, contribuinte, eleitor, elegvel, recrutvel e responsvel, ante as leis da Cidade. (pg. 141)
Apesar de certas tentativas pontuais de restringir a influncia dos homens de cor, as resolues acabam ficando apenas na teoria e no perturbavam seriamente a tendncia da populao para um abandono de todas as barreiras sociais, polticas e econmicas entre brancos e homens de cor, livres e escravos. (pg. 55)