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Labirintos
Alquimia e Misticismo
Houve um tempo em que estudar ou aludir a estas matérias herméticas não era bem
visto. Não se considerava que fossem dignas de estudo.
Jung foi pioneiro na defesa da importância do discurso alquímico como discurso
arquetípico, matricial, de uma consciência ou de um imaginário colectivo em que se
desvendava o permanente pulsar do Universo criado e da sua Manifestação.
No fundo, a experiência alquímica era uma experiência da alma em transformação, uma
experiência mística, daí o discurso ser a-lógico, intuitivo, mais facilmente expresso por
imagens do que por elaborados raciocínios.
Os raciocínios, quando existiam, e a dada altura existiram com alguma abundância (no
século XVIII e seguintes) serviam mais para perder o fio de Ariadne do que para o
encontrar, e inclusivé punham a descoberto a dificuldade do próprio, adepto ou apenas
curioso, se entender a si mesmo e ao que pretendia dizer.
O discurso alquímico é mais para ver do que outra coisa, é mais para ser assimilado
como revelação, a ser ou não posteriormente transmitida.
Vem isto a propósito de uma pequena edição da Taschen, que no New York Times
Book Review é apreciada nestes termos:
" ...a fast food, high-energy fix on the topic at hand".
Trata-se de facto de um pequeno guia, um pequeno dicionário de imagens alquímicas,
com os comentários necessários para que o leitor fique esclarecido sobre a evolução
dessa arte, dessa filosofia de iniciação cristalizada desde os tempos mais antigos e de
que modernamente a Maçonaria, nos seus rituais, também se constituiu herdeira.
Se é certo que a doutrina dos 4 elementos remonta a Empédocles, que os define como "
as quatro raizes de todas as coisas" não é menos certo que a terra, a água, o fogo e o ar
(suas oposições, conjunções, transformações) continuaram ao longo dos tempos a
habitar o imaginário colectivo de múltiplas culturas, a Oriente e a Ocidente.
Aristóteles afina estes conceito, como nos diz Alexander Roob na introdução, cunhando
a ideia de uma prima materia comum a todos os elementos, e será esta hyle ou matéria
primeira que mais interessará os alquimistas, que a definem como o seu "caos", a sua
matéria negra", entre várias outras designações, - desde que apontem para algo de
informe, indefinido, carecendo de sublimação.
Na sublimação dessa matéria consistirá a Obra, a Magnum Opus.
Théatre d'Amour
Encontramos nesta belíssima edição da Taschen uma igualmente bela prova de amor: a
selecção de 143 gravuras de emblemas de amor coloridos à mão por um coleccionador
francês do século XVII. Os emblemas são de inspiração mitológica, alegórica e erótica,
muito ao gosto da época.
O fac-simile é notável, tendo na folha ímpar do texto as versões necessárias ao leitor:
original francês e tradução inglesa.
Os 27 folios que constituem este teatro de amor, onde Cupido é o Hermes condutor,
revelam na escolha das situações e dos pormenores um profundo conhecimento dos
segredos alquímicos: estão presentes os quatro elementos fundamentais da Obra e o
processo de trabalho; estão presentes os animais emblemáticos, desde o cão ao leão, ao
veado; e nem falta a reprodução de uma das gravuras que mais encontramos nos
tratados medievais, alusiva à nigredo, sem a qual nenhuma transformação se verificará:
sobre o cadáver de um velho estendido no chão ( em Basilio Valentino é mesmo um
esqueleto) está pousado um mocho, emblema da sabedoria.
Igualmente interessantes são os espaços e os objectos, na maior parte já conhecidos por
outras obras anteriores ou mesmo do século XVII, como as de Michael Maier.
Lareiras, fogões, colmeias (a pedra dá o mel às abelhas, no Rosário dos Filósofos)),
troncos de velhas árvores, todos os cenários, embora referidos às situações amorosas,
podem ter dupla leitura, também hermética.
Papageno I
I
Nas primeiras cenas do Acto I adquirem especial importância Tamino, a serpente que o
persegue, as damas de negro que o salvam e Papageno, o passarinheiro, coberto de
penas como se ele mesmo fosse uma criatura mais próxima do reino animal do que do
reino dos humanos.O cenário é descrito como uma paisagem rochosa, onde há grutas e
árvores, vendo-se ao longe um templo de forma circular: duas esferas, a natural,
primitiva, em parte por isso assustadora, e a religiosa ou espiritual, ao longe ainda, na
representação do templo. Mas já estão presentes ambos os cenários, ambas as esferas, a
natural e a espiritual.Os autores não querem deixar nada ao acaso.
No diálogo que se estabelece entre Tamino, o príncipe, e Papageno que fingirá ter sido o
seu salvador, torcendo o pescoço da serpente, terá uma das deixas mais importantes.
Quando o príncipe lhe pergunta "quem és tu?", este responde:
Wer ich bin? Dumme Frage!
Ein Mensch, wie du.
Quem sou eu?Que pergunta mais tola!
Um homem, como tu.
A Rainha da Noite, para além de ser um símbolo da nigredo alquímica, é neste contexto
da ópera de Mozart algo mais, de mais remoto, mais ancestral, primitivo. Daí o seu
fascínio, desde logo sobre o príncipe, que aparentemente tinha sido atraído ao seu reino:
Sternflammende Koenigin!-Wenn es etwa gar die maechtige/Herrscherin der Nacht
waere!
A rainha de estrelas flamejantes!Se fosse mesmo a poderosa/Senhora da Noite!
O que o príncipe não percebe, como diz a seguir, nem os autores nos explicam, é por
que razão o príncipe ali se encontra, ali é perseguido por uma grande serpente e salvo
pelas damas de negro da rainha.
O fascínio das damas pelo príncipe é idêntico ao que ele sente pela poderosa Senhora.
Os diálogos deixam no ar uma certa ambiguidade: tanto quando as damas o
contemplam, desmaiado no chão, desejando, cada uma delas, ficar ali a guardá-lo
enquanto as outras vão chamar a rainha, como quando ele, já bem desperto, ainda que
algo confuso sobre o que lhe está a acontecer, se vê perante um pedido da rainha: que
seja o salvador da sua filha Pamina, raptada por Sarastro, nestas cenas ainda
apresentado como espírito do mal.
É importante o momento em que a terceira dama entrega ao príncipe o retrato da
princesa. A primeira sedução é exercida pela imagem, que ele contempla emudecido e
que parece hipnotizá-lo. A incumbência de a salvar parece-lhe um imperativo a que não
pode nem quer furtar-se. Assim começará a sua grande aventura.
Papageno II
Embora as personagens nobres sejam o príncipe e a princesa, como é natural nos contos
de fadas, é por Papageno que sinto especial carinho: o seu estado ainda meio selvagem,
de primitiva inocência e espontaneidade, faz dele um ser (volúvel, vai mudando de
opinião ainda que um pouco forçado...) volátil, no sentido mesmo que os alquimistas lhe
dariam: um ser que, ligado ao vôo dos pássaros que é sua missão"apanhar" e "prender
em gaiolas" , será ele mesmo "fixado", preso ao dever que lhe impõem de seguir e servir
o príncipe, cumprindo ao fim e ao cabo todos os rituais necessários.
Na cena 8 o coro das damas com Papageno e o príncipe estabelece o que vai ser a norma
do comportamento:
Statt Hass, Verleumdung, schwarzer Galle/ Bestuende Lieb und Bruderbund.
Em vez de ódio,difamação, negra bílis/que vivam o amor e a fraternidade.
Ainda estamos no Acto I e já alguns, para não dizer muitos, sinais nos foram dados: da
simbólica alquímica, sem dúvida, mas dos ideais maçónicos e dos seus códigos, cada
vez menos secretos, também. Uma das causas apontadas para o corte de relações entre
Mozart e um dos libretistas, Giesecke, parece ter sido o facto de serem revelados na
ópera demasiados segredos. Também consta da lenda tecida em torno da morte de
Mozart que, por inveja ou outro sentimento menos nobre,os amigos alquimistas o terão
lentamente envenenado com mercúrio - uma das matérias da química secreta. Mas
voltando a Papageno e à felicidade risonha que o acompanha sempre:
Há algo de mozartiano na sua alegria, como no seu terror, na sua expansividade
comunicativa, como no desgosto de quem descobre que errou e, acima de tudo, no
modo como a ideia e a realidade do amor o seduzem e encantam e finalmente o levam a
aceitar o seu destino. Destino que, vendo bem, não é pior do que o do príncipe, ainda
que o possamos considerar mais terreal...mas Papageno é aquela materia prima, a Pedra
que tem de ser fixada, tem de ser terreal para depois se sublimar, algures, noutro tempo,
noutra fase. É mais humano, por isso mais verdadeiro. Não disse ele logo ao príncipe
que era "um homem" como ele ? Considerando a pergunta do príncipe algo tola?
É no dueto de Papageno e Pamina que, curiosamente, poderemos encontrar a mais
sentida expressão do motivo do amor.
Na cena XIV, ainda do Acto I, temos um dueto famoso pela origem que se lhe atribui
(rosacruz, do Casamento Químico de Christian Rosencreutz..., da autoria de Johann
Valentin Andreae, e ainda pela utilização dos mesmos versos por Goethe, em carta a
Madame von Stein) :
Pamina
Bei maennern, welche Liebe fuehlen,
Aos homens que sentem amor
fehlt auch ein gutes Herz nicht.
não falta um bom coração.
Papageno
Die suessen Triebe mitzufuehlen,
Corresponder à doce atracção
Ist dann der Weibe erste Pflicht.
é pois da mulher o primeiro dever.
Beide/Ambos
Wir wollen uns der Liebe freu'n,
Queremos do amor sentir a alegria
Wir leben durch die Lieb allein.
só pelo amor conseguimos viver.
Pamina
Die Lieb' versuesset jede Plage,
O amor adoça todo o sofrimento
Ihr opfert jede Kreatur.
a ele se sacrificam todas as criaturas.
Papageno
Sie wuerzet unsre Lebenstage,
É ele que tempera os nossos dias
Sie wirkt im Kreise der Natur.
influencia a esfera natural.
Beide
Ihr hoher Zweck zeigt deutlich an,
O seu fim último indica claramente
Nichts edlers sei, als Weib und Mann.
nada há de mais nobre do que mulher e homem.
Mann und Weib, und Weib und Mann,
Homem e mulher, e mulher e homem,
Reichen an die Goetter an.
alcançam a divindade.
É na cena seguinte que o cenário se transforma num bosque aprazível onde se ergue um
Templo com a seguinte inscrição: Templo da Sabedoria.
Este divide-se, ao longo de um corredor de colunas, em dois outros templos: à direita o
Templo da Razão; à esquerda o Templo da Natureza. É Tamino quem surge, guiado
pelos três jovens, que seguram na mão um ramo prateado de palmeira e lhe dizem ser
este o caminho procurado e as leis que o devem reger: ser firme, paciente e guardar
silêncio!
( Sei standhaft, duldsam und verschwiegen!)
Tamino quer entrar no templo, e desenrola-se um diálogo, também codificado, de
perguntas e respostas rituais com o sacerdote que o guarda, antes que a entrada lhe seja
permitida.
Monostatos fará ainda uma tentativa de prender Pamina e Papageno, na cena 17, mas
este, com as campainhas mágicas que as damas da rainha da noite lhe tinham dado para
sua protecção, conseguirá encantá-lo, a ele e aos escravos e a cena será interrompida
pelo anúncio da chegada de Sarastro.
É impossível não relacionar esta cena, de composição divertida, humilhando as forças
do mal, com a cena, no Fausto II, em que os Anjos distraem e seduzem Mefisto,
metendo-o a ridículo do mesmo modo, não com campainhas, mas com abundância de
pétalas de rosa.No caso de Fausto a simbólica seria a da rosa alquímica, que dá o mel
(da sabedoria) às abelhas...
Neste final de acto anunciara-se a albedo, a passagem ao branco, com os ramos
prateados dos jovens guias.Mas eles pairam no ar, o que significa que ainda falta um
tempo, uma fase, para que o branco da prata desça à terra e nela se fixe, com raiz.
No acto II a descrição do cenário já indica, na primeira cena, que o espaço se
transmutou e o mesmo vai acontecer aos intervenientes deste processo alquímico:
" A cena é um bosque de palmeiras; todas as árvores são de prata com folhas de ouro;há
18 assentos de folhas;em cada um uma pirâmide, e um chifre negro preso com ouro; no
meio ergue-se a pirâmide maior e também as árvores mais altas; Sarastro, com outros
sacerdotes, entram em passo festivo, cada qual com um ramo de palmeira na mão.Um
conjunto de instrumentos de sopro acompanha cortejo " (Acto II, cena 1).
Aqui entramos verdadeiramente na descrição do que seria um processo iniciático numa
Loja maçónica, que bem poderia ter sido a de Mozart.
Mas prefiro demorar um pouco mais no motivo do amor, tal como foi entendido pelos
rosacruz, fazendo depois o seu caminho em doutrinas posteriores.
Papageno III
Papageno, na seguna cena do Acto I, apresenta-se coberto de penas, como um pássaro e
canta alegremente aquilo que é: um passarinheiro, uma caçador de pássaros, feliz com a
sua condição humilde (ele nunca tinha tido o privilégio, muito menos a ideia aterradora
de ver a Rainha da Noite, até se encontrar ali com o príncipe Tamino). Apenas sente a
falta de uma jovem companheira a quem dedicar o seu amor.
Na aria da edição de 1791, Papageno tem direito a duas estrifes, de que vou apenas
resumir o sentido:
"Sim, sou um passarinheiro, sempre contente, e conhecido de todos, jovens e velhos.Sei
usar a minha rede, sei tocar a minha flauta, e assim apanho os pássaros que quero. Mas
de verdade o meu desejo é prender uma jovem, e guardá-la agarrrada a mim".
Na edição de 1795 a Aria tem mais uma estrofe, como anota van den Berk, em que se
acentua o desejo de ter alguém a quem amar; resumindo:
"Se todas as jovens do mundo fossem minhas eu escolheria uma para beijar e abraçar,
ela seria a minha mulher, eu o seu homem, ela dormiria a meu lado, comigo a embalá-la
como se fosse uma criança".
Já se vê, neste acto, que haverá um par natural, por assim dizer, em complemento do par
espiritual que formarão Tamino e Pamina.
Referi nos outros posts a mais que provável influência do texto de Johann Valentin
Andreae, As Bodas Químcas de Christian Rosenkreutz, anno 1459.
Este pequeno tratado alquímico pertence a um conjunto mais conhecido como Bíblia
dos Rosacruz e foi estudado por Rudolf Stein e por Bernard Gorceix, entre outros
eruditos, que nos dão, simultâneamente, a versão francesa do texto.
No Segundo Dia da viagem a caminho do encontro misterioso que aguardava Christian,
este, já na floresta, encantado com o canto dos pássaros que o rodeiam, entoa o seguinte
hino:
Bernard Gorceix observa que o cântico pode ser dividido em duas partes:
de I a IV, descrição do amor primitivo e criador; de V a VII, a referência aos corpos
dos reis separados ainda, aguardando o momento da conjunção final, a Boda Química,
que dá o título à obra de V.Andreae.
Tratar-se-á, ao fim e ao cabo, como na ópera de Mozart, de reunir cada par com o seu
oposto complementar, o que na alquimia significa unir corpo e alma, ou razão e
coração, ou mais quimicamente fundir enxofre e mercúrio, pela mediação do sal.
Nas primeiras cenas da ópera poderíamos hesitar no sentido a atribuir a Papageno:
pássaro simbólico ele mesmo,colorida cauda pavonis, materia necessitando de ser
fixada, para sair do estado volátil em que se encontra, é óbvio que temos de o considerar
como um dos "pares" da obra, e não apenas como mediador.. É verdade que ele medeia
o encontro do príncipe com Pamina. Mas também ele, na sua esfera própria, de súbdito
inferior, se se quiser, cumpre os rituais de iniciação e encontra a sua Papagena,
celebrando então com ela o canto do amor e anunciando, com a sua juvenil alegria os
muitos papagenos que poderão fazer juntos.
(Aqui um hermetista falaria da "multiplicação" da Pedra; mas não é preciso ir tão longe,
basta ficar pela conjunção, objectivo supremo e alcançado tanto por Tamino/Pamina,
como por Papageno/Papagena).
No blog de Cultura Visual escrevi um pouco sobre este estudo de van den Berk,
recomendado por uma amiga, conhecedora da minha paixão pela Flauta Mágica de
Mozart e o seu simbolismo hermético, que eu pessoalmente considero de dois pontos de
vista, o alquímico e o maçónico, sabendo-se que grande parte do imaginário maçónico
enraiza nas doutrinas alquímicas e rosacruz divulgadas na Europa culta dos séculos
XVII-XVIII e influenciando ainda artistas posteriores, como se vê no caso de Richard
Wagner.
M.F.M. van den Berk (1938) é doutorado em Teologia e ensina na Universidade
Católica de Utrecht, na Holanda.Tem obra publicada sobre as relações entre a religião e
a arte.
Neste volume de quase 700 páginas, se contarmos bibliografia e ilustrações, apresenta a
sua leitura alquímica da obra de Mozart e seus libretistas, dos quais Emanuel
Schikaneder é o mais conhecido.
Para o autor a ópera de Mozart é, ao longo dos seus dois actos, uma representação fiel
da Grande Obra alquímica,conduzindo ao Casamento Químico de que Jung se ocupou
extensamente no Mysterium Coniunctionis, retomando, como faz van den Berk, o
estudo dos grande tratados de alquimia conhecidos, sobretudo o Rosarium
Philosoph0rum (de 1550). Deste tratado há uma tradução francesa feita a partir da
edição latina, da autoria de um grande pensador alquimista, E.Perrot,Le Rosaire des
Philosophes, ed.Librairie de Médicis, Paris, 1973.
Refiro a sua existência porque van den Berk, entre muitas outras gravuras, como as de
Michael Maier, escolhe também várias deste tratado, que são explícitas em relação ao
fenómeno do casamento químico, representado "fisicamente" também pela união ou
fusão corporal dos elementos masculino e feminino, enxofre e mercúrio e, no caso da
ópera, o príncipe e a princesa, Tamino e Pamina.
Mas passemos à obra, antes de passarmos à ópera propriamente dita:
M.F.M. van den Berk, The Magic Flute,Die Zauberfloete,an Alchemical Allegory, ed.
Brill,Leiden-Boston,2004.
O Índice abre com uma introdução geral sobre Hermes, a figura emblemática,
condutora, e que o autor relacionará com Papageno, o passarinheiro da Rainha da Noite.
De facto, Hermes é o "Pai" da alquimia, e é útil conhecer as doutrinas que lhe são
atribuídas, desde logo no Corpus Hermeticum, revelado ao Ocidente pelos Humanistas
dos séculos XV-XVI.
Segue-se a descrição da Flauta Mágica como alegoria alquímica,ou seja, um conto de
transformação em que todos os intervenientes são submetidos a uma estrutura
simbólica, iniciática, que os conduz a um grau superior de realização e espiritualidade:
nos opostos que se confrontam, luz e sombra, negro e branco, mal e bem, sairão
vencedores os representantes de uma humanidade regida pelos princípios em que
imperam o Belo, o Bom, a Verdade da Razão Iluminada (como se dizia ao tempo, no
século XVIII).
Depois da Introdução Geral,van den Berk desenvolve o Background histórico em que a
obra se insere. Descreve a Viena do tempo, o gosto pela maçonaria, os grupos de
"Iluministas" (os racionalistas, da escola francesa) e os Iluminados (os que bebiam na
tradição dos grupos místicos de tipo pietista, como os que influenciaram, a dada altura,
o próprio Goethe).
Ainda neste capítulo é estudado o movimento rosacruz, e a influência que teve, na
Alemanha como neste caso em Viena de Áustria, desde o seculo XVII. O propagador
das doutrinas, Johann Valentin Andreae, conseguiu durante bastante tempo, ocultar a
sua identidade sob o nome de Christian Rosenkreutz,suposto autor e herói das Bodas
Químicas de cujo influência simbólica teremos exemplos em Goethe e em Mozart (ou
nos seus libretistas : aqui todo o processo se desenvolve em torno do conceito do Amor
como raiz e fundamento da criação do mundo, da natureza e da condição humana.
van den Berk encaminha-nos depois para outro cenário: o background mitológicco
subjacente sobretudo ao caso da Rainha da Noite, Grande-Mãe decaída, evocando os
cultos tenebrosos da primitiva Isis, Cybele, ou Hecate, ou Astarté, ou outra das figuras
arcaicas ligadas ao culto da natureza e da Mãe-Terra que se lhe possam assemelhar.
Neste caso Isis é a melhor escolha, pois do templo de Osiris se tratará com Sarastro
(cujo nome inclui já a palavra astro) e o par de opostos em questão é precisamente
Isis/Osiris (como poderia ser a lua/o sol).
Esta é uma Isis negra, daí que tivesse de ser vencida.
E Tamino, identificado a Orfeu, será o domador desses instintos perversos, que no culto
de Cybele, por exemplo, levavam à imolação de Attis, o filho/amante perfeito.
Pamina, neste caso, será a força luminosa que, contrariando a Isis negra, ajudará
Tamino - Orfeu ou mesmo Horus, se quisermos avançar um pouco mais nesta simbólica
- a recuperar, ou a manter, o seu estatuto superior de futuro herdeiro das funções de
Sarastro: o condutor que se guia pela suprema Razão Iluminada.
Passamos então, no volumosos estudo, ao capítulo que se ocupa da Estrutura Alquímica
(primeiro nas definições gerais, depois já na análise concreta da ópera).As fases são
descritas com fidelidade às doutrinas e tratados mais conhecidos, que me dispenso agora
de citar. Não se esquece a nigredo, a cauda pavonis, a albedo, a arubedo - tal e qual
como apontei no meu estudo do Conto da Serpente Verde de Goethe, em que encontro
muitas semelhanças com a ópera de Mozart( Goethe, entusiasmado quando a viu,
pretendeu fazer-lhe uma continuação, que ficou incompleta e não admira, pois o que já é
perfeito em si mesmo não pode ter continuação...).
van den Berk analisa ainda os motivos, na inspiração musical e os esboços feitos para a
cena, em que também se verificam, na sua opinião muitas marcas herméticas.
E continuamos, finalmente, com os autores da Flauta Mágica, suas vidas e obras, seu
percurso, com tão abundantes e detalhadas informações que tudo se lê como num livro
de aventuras, com o desejo de não mais acabar. Os libretistas são Emanuel Schikaneder
(1751-1812) e Karl Giesecke (1761-1831). Sguem-se Apêndices e Ilustrações, num
conjunto precioso, como tudo o resto, para os apaixonados e estudiosos. Não há paixão,
na alquimia, sem muito estudo: Ora, Lege, Lege, Lege, Relege, Labora et Invenies!
A edição vem acompanhada de um cd/audio com a ópera completa, segundo o libreto de
que van den Berk também nos dá, no livro, em apêndice, a transcrição do texto de 1791.
Que mais se pode desejar?
Da sua leitura me ocuparei noutro post.
O Negro
Um haiku do poeta David Rodrigues, a que fiz referencia
no outro blog, de Literatura e Arte, fez-me pensar em
como a marca do negro é importante.
Voltando ao negro.