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Anne Dao
tradutora: tania navarro swain
Resumo
Eu ando, avançando pela cidade, e estes homens me mostram que têm o direito de me
insultar. Têm este direito porque, mulher no espaço público, isto significa que saí do lar,
único lugar reconhecido como espaço para as mulheres, o privado; sou, literalmente,
uma mulher pública, uma prostituta, nesta ótica. A prostituta é uma mulher colocada em
público (do latim prostituere) antes mesmo de ser um corpo que os homens podem
alugar. Então, eu que estou em público, seria também uma prostituta, uma mulher que,
ao se mostrar, se desonra?
Estas mulheres são objetos-mulheres. A inversão dos termos parece-me permitir uma
visibilidade deste tornar objeto a humanidade das mulheres. Experimento assim uma
dupla cisão:
Uma confusão se estabelece então em mim, numa mistura entre meu eu, sujeito de
desejo e meu eu, objeto de desejo. Isto resulta da abolição da distancia entre meu ser
enquanto sujeito e meu ser tal como é considerado por todos, enquanto objeto de
consumo, à venda : um ser dividido. Eis-me aí alienada, estrangeira à mim mesma. Esta
distancia abolida se faz por meu pudor desfeito, desconstrução feita, entre outras, pela
violência da publicidade pornográfica.
Ora, este conflito sujeito/ objeto é, sem cessar, retomado pela imprensa “masculina” e
“feminina”; podemos observar desenhar-se, nestes dois tipos de imprensa, uma
passagem, indo da beleza à sexualidade, que cria uma equivalência entre beleza
feminina e apelo ( literalmente sex-appeal) à sexualidade masculina
androcêntrica.Dividida, não sei o que fazer. A primeira coisa que se me aparece é a
volta ao lar, a volta a um chez soi, que seria, de fato, um retorno a si mesma, o chez soi
como lócus de reintegração de mim e de meu pudor. Este dobra sobre si mesma, este
véu sobre os gestos, faz-se necessário para materializar, tornar visível o pudor alvejado
em cada esquina.
É preciso que nos velemos para sermos deixadas tranqüilas, para que finjam, ao menos,
respeitar-nos. O uso do véu, pregado pelos muçulmanos é o limite da escala da “ dobra
sobre si”, em todo seu absurdo: as mulheres , neste caso, escondem, camuflam sua
presença no mundo para que sejam deixadas em paz, sob falsos ares de respeito.
Entretanto, sejam quais forem os esforços feitos pelas mulheres para dissimular sua
feminilidade, ela será sempre obscena já que ligada a seu corpo, irredutível,
irremediavelmente, poderíamos talvez, dizer, feminino. A oscilação é um círculo que
aprisiona as mulheres. Mesmo parecendo masculinizada ou afoita, permanece mulher e,
portanto, fundamentalmente obscena. As mulheres devem carregar o peso da
obscenidade, devem encarnar ao mesmo tempo o moralismo e a obscenidade. O
obsceno é o que é feminino, e em primeiro lugar o sexo real das mulheres,
materialização desta oscilação circular.
Mas este círculo não se faz apenas entre dois termos; forma também um cerco em
torno das mulheres, mergulhando-as na obscenidade. Nela as mulheres estariam no
mundo ( no esaco público) como prostitutas, como mulheres que podem ser utilizadas
por todos os homens que as desejem. A pornografia mortifica as mulheres, gangrenam
seus corpos, fazendo de cada um de seus membros um lócus sexualizado e violável, um
terreno de penetração. Ela é a necrose das mulheres. E é pela amputação que se tenta
deter esta necrose, dissimulando-se o corpo feminino. >A pornografia leva também às
últimas conseqüências a cisão entre o sujeito / objeto: a sexualidade feminina é forjada
pela coerção e, portanto, o estupro é o paradigma desta sexualidade pornográfica.
Como salvar seu pudor? Algumas passeiam com o rosto e o corpo velados, outras são
cativas da obscenidade que as aprisiona, como se assim a desconsiderassem. Mas
sabem, no fundo, que nada fizeram. Onde se encontra o pudor das mulheres? Onde se
encontra meu pudor de mulher? Ainda está aqui, mas frágil, quase aniquilado. Como
reconstituí-lo? A cisão sujeito / objeto continua operando em mim, não posso negá-lo,
malgrado meus esforços. A questão pode então se tornar: como nos construirmos,
quando somos sem cessar destrutíveis? Sou obrigada a dizer “eu” se desejo recuperar
meu pudor. Parece-me, o mais das vezes, que o olhar masculino não vê senão um
pedaço de mim, a mulher, a carne, mas eu quero ser considerada plenamente como
sujeito.
Dizer “eu” é me reconstituir, não sou mais um pedaço de mulher, sou uma mulher com
sua vivencia, inteira e lúcida. E aqui surge um despudor particular. Aquele que é próprio
ao discurso feminista, quando é enunciado por mulheres. Dizer minha experiência do
mundo é essencialmente chocante, dificilmente compreensível e aceitável para os que
pensam no masculino “ neutro”. Ser uma mulher feminista é se expor, assumindo
explicitamente sua presença no mundo, reivindicando seu acesso ao mundo e o controle
deste acesso e desta presença por si mesma.
O discurso feminista é obsceno (sentido n.1) pois ilumina o outro que deveria ficar
opaco e obsceno; (sentido n.2). Se der às palavras a realidade feminina que elas (re)
cobrem, ilumino o processo de criação do obsceno ligado ao feminino. Enfim, esta
obscenidade feminista não o é verdadeiramente, o que parece obsceno no feminismo é a
audácia feminina e feminista, percebida como obscena, pois ela é política: os
feminismos são completamente subversivos.
As obras de numerosas artistas sugerem sua experiência feminina do mundo. Com a arte
torna-se manifesta a reivindicação do direito ao pudor e do direito ao despudor oriundo
da denúncia do machismo: o engajamento artístico, naquilo que tem de escolha
voluntária, parece permitir uma re-apropriação ( o controle , portanto, por si mesma) de
seu corpo e da maneira como ele é percebido pela sociedade.
A pornografia na mídia refina a ideologia falocrática, leva o pudor das mulheres à ruína
e este movimento torna impossível o que é propriamente erótico. O erotismo necessita
de pudor, e o direito ao pudor, das mulheres como dos homens: na pornografia as
mulheres se perdem na objetificação e os homens na hipervirilidade. O pudor encontra a
ética; a esta última atribuo a autenticidade viva, o contrário de uma morna austeridade.
O atentado ao pudor se faz pela abolição da palavra e assim, para reintegrar meu pudor,
eu retomo a palavra na esfera pública, mesmo se esta publicidade me torna, de alguma
forma, despudorada aos olhos de todas e de todos.
Brahami, Frédéric, 2001 (« Les lois et les mœurs dans le scepticisme moderne »,
Cahiers Philosophiques de Strasbourg, STRASBOURG, TOME 11,VRIN
Anne Dao