O documento analisa as percepções de alimentos como "quentes" ou "frios" comuns em várias regiões do Brasil, derivadas da medicina hipocrática grega. Mais do que classificações de alimentos, são categorias de alcance cosmológico que refletem a relação entre comida, corpo humano e doenças. A oposição "quente-frio" transcende os alimentos e reflete uma visão de mundo equilibrada.
O documento analisa as percepções de alimentos como "quentes" ou "frios" comuns em várias regiões do Brasil, derivadas da medicina hipocrática grega. Mais do que classificações de alimentos, são categorias de alcance cosmológico que refletem a relação entre comida, corpo humano e doenças. A oposição "quente-frio" transcende os alimentos e reflete uma visão de mundo equilibrada.
O documento analisa as percepções de alimentos como "quentes" ou "frios" comuns em várias regiões do Brasil, derivadas da medicina hipocrática grega. Mais do que classificações de alimentos, são categorias de alcance cosmológico que refletem a relação entre comida, corpo humano e doenças. A oposição "quente-frio" transcende os alimentos e reflete uma visão de mundo equilibrada.
cor po humano e pessoasI Kl aas Woor t mann Resumo: oartigo analisa percepes de alimentos como "quentes" ou"frios", comuns avrias partes do Brasil, todas elas derivadas de classificaes gregas sistematizadas por Hipcrares etambm utilizadas por Herdoto. Mais do que classificaes de alimentos, so categorias de alcance cosmolgico, visto lJ ue Hipcrates, alm de mdico era tambm gegrafo. "Reima" tambm de derivao grega - rheuma. () artigo focaliza arelao entre acomida eo corpo humano asprticas alimentares como linguagem <.juefala de eatcgona~ sociais. noradamenre gnero. Palavras-Chave: Classificaes Grega.<;deAlimentos. Relao entre Comida eo Corpo Humano. Prticas Alimentares como Linguagem. Abstract: The article analyzes theperception of food as "hor" or "cold" that are common to several Brazilian regions. Such catcgories are derivcd from ancient Greek cosmological classifications (which also include the opposition "dry- humid't.Iess frequcnt in Brazil) systernatizcd by Hipocrates and by Hcrodorus. "Reima" is also of Greek derivation - rheuma, The article focuses on the relation between food and the human body and on food as alanguage that "speaks" of social catcgories, notably gender caregories. Keywords: Greek Cosmological Classifications. Rclation bctwecn Food and the Human Body. Food as a Language. Klaas Wnorlmnnn Professor titular da Universidade de Braslia (Dep, De Antropologia) PHD, Harvard Universiry, 1975. reas de pesquisa: famlia e parentesco; h hiro s alirneruares: carn pe sina to. (klaas@unb.br). 1 Texto recebido: 11/06/2008. Coderno Espoo Feminino, v . 1 9 , n.01, J on./J ul. 2008 1 7 . , Quente, frio e reimoso: alimentos, corpo humano e pessoas 2 CURRIER, R. L. The hOl' cold syndrome and symbolic balance. Mexican and Spauish-American folk medicine. F. fhnnlngy, 5, 1966, p.251-261. Em vrias regies do Brasil, como na Amaznia, no Nordeste e no Brasil Central, assim como emboa parte da Amrica Latina", observa-se um sistema de classificao de alimentos que opera com os pares de oposies "quente-frio" e "reimoso-manso". Muitas prescries ou proibies alimentares so baseadas nesse sistema de classificaes. Todos os alimentos so percebidos como sendo ou "quentes" ou "frios", com relao sua "qualidade", independentemente da condio trmica. Assim, por exemplo, na Amaznia, a carne de boi "quente", ea de porco "fria"; a de cao "quente" e a de rainha "fria". No Brasil Central, o arroz "frio" e o feijo "quente". No h uniformidade quanto percepo dessas "qualidades". Ummesmo alimento pode ser considerado "quente" numa regio e "frio" emoutra. O que importa que emtodas elas persiste esse modelo classificatrio. () que importante tambm que rais qualidades so sempre referidas ao organismo humano. Comidas "quentes" so aquelas consideradas ofensivas ao aparelho digestivo, enquanto as "frias" so ofensivas ao aparelho circulatrio, devendo ser evitadas por quem estiver atacado de bronquite, gripe ou asma. Se existe uma relao entre o sistema alimentar eo sistema orgnico, preciso ressaltar que tambm as doenas e as partes do organismo humano so classificadas como "quentes" ou "frias". Doenas "quentes" so aquelas originadas do prprio corpo, como as "do sangue" (sfilis, por exemplo) eas que se manifestam na pele, como alepra. "Quentes" so ainda a "dor d'olhos", diarria, hemorridas, ferimentos inflamados e qualquer tipo de febre. So "quentes" t.ambmos distrbios nervosos que levamo indivduo a um estado de clera ou que o fazem ficar "muito nervoso" - por isso mesmo o alimento "frio" tido como "calmante para os nervos", almde apropriado para pessoas com "presso alta". Doenas "frias", ao 1 B Caderno Espao Feminino, v.19, n.Ol, J an./J ul. 2008 , contrrio das "quentes", so emsuamaioria originadas do ambiente externo e afetam o sistema respiratrio - a prpria palavra "resfriado" , neste sentido, significativa. Contudo, a apatia ou a frigidez sexual so igualmente tidas como "frias". "Frios" so tambm os ferimentos sem pus, o reumatismo e doenas dos rins. Mas, como observa Novin ', tais oposies s adquirem sentido na medida emque incorporam o princpio de equilbrio. De fato, a oposio complementar "quente - frio" transcende o domnio estrito dos alimentos. Como disse um campons nordestino, referindo-se ao cultivo da terra, "tudo nesse mundo de Deus ou quente ou frio". Assim, existemsolos "quentes" eoutros "frios". Os primeiros, argilosos, no podem ser adubados comestrume de gado enquanto os segundos, arenosos, o podem, da seremmuito valorizados. Isso se deve ao fato de ser o estrume percebido como "quente"; colocado numa terra a(}uentc". deirdestruir aplantao, ao contrrio do gue ocorre numa terra "fria" - por isso, as terras arenosas podem ser cultivadas ano aps ano semperda de produtividade, enquanto as primeiras precisam de umtempo de pousio. evidente ahomologia entre a relao adubo - solo eaquela entre comida ecorpo: o adubo a "comida" da terra, que a torna forte. evidente, tambm, o princpio do equilbrio. Ademais, no sistema de cultivo por consorciarnento, no se deve plantar uma planta "quente", como o feijo, ao lado de outra tambm "quente", mas apenas ao lado deuma planta percebida como "fria", como a mandioca. A "sndrome quente-frio", com relao aos alimentos eao corpo humano, derivada damedicina hipocrtica e da teoria dos humores; poderia ser considerada uma "pequena tradio" derivada de uma "grande tradio", nos termos propostos por Redfield." Mas Hipcrates era tambm gegrafo, e organizava o mundo, tal como Hcrdoto, segundo o Klaas W oortmann , NOVIN, M. J . A,utOnJO fisiologia popular e alimentaro na mulher e no hin6mi" me - filho. Bra s lia: UnB, Departamento de Antropologia. Br as li a, 1976. -t W OORTMANN, 1:0:.; W OORTMANN. K. () /1'I1balhoda leITO. A J o~ca c a simbo lica da lav oura curnponcsa, fira"iJ i., LlnH, 1997. , REDFIELD, R. The lillle (OnJnru"ity/ Peasant society and cult ure. Chicago: University Press, Chicago, 1960. Caderno Espao Feminino, v.19, n.Ol, J an./J ul. 2008 1 9 Quente, frio e teimoso. alimentos, corpo humano e pessoas HARTOG, F. L, mirr oir d'Hrodote. Essa)" sur Ia rpresentation de I'autre. Paris: Gallimard. 19RO. modelo "quent.c-frio/seco-mido". Distintos povos eramclassificados nesses termos e, conhecendo-se o ambiente de umdeles, podia-se deduzir umoutro por oposio - como os citas (frio-seco) emoposio aos et,>ipcios(quente-mido)." As concepes populares sobre comida, organismo humano, solos eplantas so, pois, parte de ummodelo cosmolgico mais amplo. Se o domnio dos negcios deve ser "frio", racional, o do lar deve ser "quente", afetivo. Existem olhares "clidos" e olhares "glidos". Existempessoas que"irradiamcalor humano", enquanto outras so "frias". Mas, se as categorias num plano se opem, em outro se complementam e de sua combinao equilibrada que depende a harmonia universal. Se os diferentes atributos devem coexistir, eles no devem, contudo, invadir o domnio ao qual no pertencem. Se a aferividade do lar "quente" no deve invadir o domnio do trabalho, onde deve predominar uma "cabea fria", o oposto tampouco deve ocorrer - para que o "homem de negcios" mantenha seu equilbrio preciso que, ao sair do escritrio "frio", ele encontre umlar "quente" . O corpo humano parte do universo, euma parte muito especial, pois nele que "existe" o prprio indivduo que percebe o universo. Esse corpo tambm percebido como composto de partes "quentes" e "frias" (sangneas e sem sangue; vermelhas ebrancas) que seopem mas que tambm se integram complementarmente numa totalidade harmnica, desde que a "qualidade" de uma parte no invada a outra. O organismo humano composto de duas partes: acabea eo corpo, eabriga dois rgos fundamentais, o "miolo" (crebro) e o corao. O primeiro, percebido como "frio", semsangue e branco, tem por funo "governar as idias"; o segundo, "quente", vermelho e sangneo, tema funo de "governar o corpo", fazendo circular o sangue e "dando vida ao 2 0 Caderno Espao Feminino, v.19, n.Ol, J an./J ul. 2008 Kl aas Woor t mann corpo". A mulher, contudo, distingue-se do homem por possuir um rgo a mais, o tero, vermelho e sangneo e cuja funo governar a menstruao e gerar crianas. Ela possui, pois, trs rgos, dos quais dois so sangneos equentes. Como emmuitas outras culturas, a imparidade (no caso, trs rgos) relacionada ambigidade eao desequilbrio. Assim, se no homem existe um domnio "frio" e outro "quente" (equilibrio), na mulher existemumdomnio "frio" e dois domnios "quentes" (desequilbrio). A percepo do corpo humano conduz, ento, a uma diferenciao entre homens emulheres que transcende a simples diversidade anatmico/ fisiolgica. Se a mulher difere do homem por rer umrgo a mais, o tero, ela tambm percebida como tendo mais sangu que o homem. Essa maior quantidade de sangue relaciona-se aos processos fisiolqicos da men sr ruuio e da gravidez, assim como amamemao. Essa diferena, segundo as representaes populares, implica que na mulher o equilbrio est em permanente perigo de ruptura, noradameru enos perodos demenstruao egravidez, rnornenr os em que li mulher percebida como "perigosa" no plano social. Se o tero evita o desequilbrio fisiolgico, evitando a contaminao de uma rea "fria" e no sangnea (acabea) por outra, "quente" esangnea, amulher , contudo, percebida como potencialmente causadora de desequilbrios no plano da sociedade. A neutralizao dessa pericu- losidade social, e no s do desequilbrio fisiolgico, depende de comportamentos adequados, emque se destacam as prescries eproibies alimentares. F: necessrio distinguir, nos termos da percepo popular, dois tipos de sangue: o sangue "branco" e o sangue "vermelho", sendo o primeiro uma transformao do segundo. No homem, o "sangue vermelho" se transforma em"branco" (smen) pela operao dos testculos, por ocasio do desejo sexual. O encontro desse "sangue branco" masculino como Caderno Espao Feminino, v . 1 9 , n.Ol, J an. / J ul . 2 0 0 8 2 1 . , Quente, Iria e reimoso: alimentos, corpo humano e pessoas NOVI<':>N, M. L Op. ar. MAUJ iS, R. 11.;MAUf:s, M. A. Hshitos ideologias alimentares numa comunidade de pescadores. Dras lia: Departamento de Antropologi a. UoB, 1976. sangue vermelho do tero dar origem a umnovo ser, sendo cada umdos "sangues" responsvel pela formao de distintas partes: o "sangue branco" masculino dar origemspartes brancas, notadarnente a cabea e o crebro; o sangue vermelho feminino dar origem carne, tero e corao." H nessa percepo uma clara classificao ideolgica de gnero: o homem gera o domnio das idias; amulher gera o corpo. Do pai vemo crebro, a razo; da me, o corao, a emoo. Do pai o domnio "frio"; da me o domnio "quente". O organismo humano compe-se, portanto, de partes "frias" e"quentes" constituindo uma totalidade emequilbrio. O rompimento de tal equilbrio se d quando "o sangue sobe cabea", ou quando se "esquenta acabea", isto , quando umdomnio "sem sangue" e "frio" invadido pela "quentura" natural do domnio "corpo". Sintomaticamente, diz-se de algumaquemo sangue "subiu cabea" que "perdeu a cabea". Tal invaso/inverso pode ser causada por doenas "quentes" ou, na mulher, pela "suspenso da regra". Entre os meios pelos quais se busca assegurar o equilibrio est uma dieta equilibrada, uma combinao de alimentos "quentes" e"frios" (como o feijo com arroz). Seo desequilbrio alimentar no causa doenas, ele agrava uma doena j instalada. Por outro lado, uma pessoa com "bons humores" dificilmente contrair uma doena e uma dieta equilibrada maxirniza o equilbrio dos "hurnores'". Na presena de doenas "frias" deve-se evitar alimentos igualmente "frios", mas deve-se tambm ingerir alimentos "quentes"; inversamente, emestados "quentes" (certas doenas e o perodo menstrual, percebido como prximo a umestado de doena) deve-se ingerir comidas "frias" eevitar as "quentes". Sendo a mulher percebida entre a menarca e a menopausa como estando numpermanente trnsito entre sade edoena enumestado emque o domnio 22 Caderno Espao Feminino, v .19 , n.01, J an./J ul. 2008 do "frio" pode ser invadido pelo "quente", a ela que seaplicamcommaior freqncia as prescries e proibies alimentares. Alm de "quentes" ou "frios", os alimentos podem ser "reimosos" ou "mansos". A "reima" - possivelmente umtermo derivado de rhetona e que tambm designa "mau gnio" - uma "qualidade" do alimento que o torna ofensivo para certos estados do organismo e emcertos momentos da vida da pessoa. Assim, por exemplo, o alimento "reimoso" "faz mal para o sangue", "agita o corpo da pessoa", "pe a reima [do corpo] para fora'". Umalimento "reimoso" s pode ser consumido por algum em perfeitas condies de sade". Tal como ocorre comas qualidades de "quente" e "frio", a "reima" tambm exprime urna relao entre o alimento e o organismo. O alimento "reimoso" no pode ser comido por quem esteja com o prprio corpo "reimoso", isto , com o "sangue agitado", com reumatismo, comferidas da pele. Hurnacerta relao entre "quente", especialmente "muito quente", e"reimoso" mas nemtodo alimento "quente" "reimoso", eexistemalimentos "frios" que o so. O que define a "rei ma" difere das definies dessas outras qualidades. Um primeiro critrio diz respeito "idade" do animal ou planta (embora a "reima" seja atribuda principalmente a alimentos de origem animal). Um animal ser tanto menos reirnoso quanto menos idade tenha; assim, uma leitoa "novinha" no tem"reima" mas um porco emidade reprodutiva "reimoso". Inversamente, asplantas mais novas (verdes) so mais "reimosas" que as mais velhas (maduras). No caso dos animais, "maduro" significa ter funes sexuais e em todas as culturas a maturidade sexual tem significados simblicos cercados de procedimentos rituais. De forma coerente, animais castrados tampouco tm"reima", ou tmpouca "reima". Outro critrio aquele que ope o domesticado Klaas W oortmann B RANDAo, c. R. Plantar, colher) comer. Rio de Janeiro: Graal, 1981. io MAUS, R. H. A ilha encantada. Medicina e xamanisrno numa comuni- dade de pescadores. Belm: UFPa, 1990; MAUf:s, M. A. Trabatb a deiras e camara dos, Relaes de gnero, simbo- lismo e ritualizao numa comunidade amaznica. Belm: UFPa, 1993. Caderno Espoo Feminino, v.19, n.Ol, J an./J ul. 2008 2 3