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TEMAS LIVRES FREE THEMES


A representação social do cuidado
no programa saúde da família na cidade de Natal *

Social representation related to care


in the family health program in Natal-Brazil

Maísa Paulino Rodrigues 1


Kenio Costa de Lima 2
Angelo Giuseppe Roncalli 2

Abstract This study examines the core and out- Resumo Este estudo buscou apreender os ele-
lying representational elements of healthcare con- mentos representacionais centrais e periféricos do
structed by Family Healthcare Program teams in cuidado em saúde construídos pelas equipes do
Natal, Brazil, using the theory of social represen- Programa Saúde da Família (PSF) em Natal (RN).
tations and the central core theory. The sample Nessa perspectiva, fez-se uso da teoria das repre-
consisted of ninety healthcare practitioners work- sentações sociais e da teoria do núcleo central. A
ing with this Program, with data collected through amostra constituiu-se de noventa profissionais
free word association, a questionnaire and focus do PSF e para a coleta do material foram utiliza-
groups. The core representation consists of atten- dos a associação livre de palavras, o questionário
tion/love and comfort, disclosing different under- e a técnica de grupo focal. O núcleo central da
standings and showing that accumulated knowl- representação é composto por atenção/amor e
edge is supported by a view that is close to care- acolhimento, revelando diferentes entendimen-
giving. However, traditional values and trivial tos e mostrando também que o conhecimento
connotations are maintained, hindering the im- construído está amparado por uma visão aproxi-
plementation of more effective interventions in mada do cuidado, embora valores tradicionais e
by this Program. The core composition indicated conotações banalizadas sejam mantidos, dificul-
that any capacity-building efforts that try to mod- tando a implementação de intervenções mais efe-
ify attitudes - and thus the daily practice of these tivas do cuidado no PSF. A composição do núcleo
*
Artigo integrante da tese de practitioners – must assign high priority to dis- central indica que qualquer capacitação que pre-
doutorado realizado no
Curso de Pós-Graduação de
cussions on redefining these elements of attention/ tenda modificar atitudes – portanto, a ação coti-
Ciência da Saúde da love and comfort. They must consider the set of diana desses profissionais - deve priorizar o deba-
Universidade Federal do mental, emotional, and practical elaborations as te sobre a ressignificação dos elementos atenção/
Rio Grande do Norte.
1
Departamento de Ciências
well as explanations arising from daily life that amor e acolhimento e considerar o conjunto de
Biomédicas, Faculdade de are introduced into the constitution of the social elaborações mentais, emoções, práticas e explica-
Ciências da Saúde, UERN. representations under examination, influencing ções oriundas do cotidiano que se introduzem na
Rua Atirador Manoel da
Silva Neto S/N, Aeroporto.
choices and shaping the strategies used by practi- constituição da representação social em foco, in-
59607-360 Mossoró RN. tioners to provide care. fluenciando as escolhas e estratégias utilizadas
maisapaulino@digi.com.br Key words Healthcare, Social representations, pelos profissionais na produção do cuidado.
2
Departamento de
Odontologia, Universidade
Family Health Program Palavras-chave Cuidado em saúde, Representa-
Federal do Rio Grande do ções sociais, Programa Saúde da Família
Norte.
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Rodrigues, M. P. et al.

Introdução um desenho de saúde humanizado, o que requer


considerar a singularidade e a subjetividade de cada
Nos dias atuais, é comum convivermos com uma sujeito no processo diagnóstico-terapêutico, in-
gama de problemas que alteram intensamente a cluindo as dimensões subjetivas e sociais envolvi-
capacidade dos serviços de saúde de responde- das no adoecimento. Nessa perspectiva, a comu-
rem de forma eficaz às demandas por saúde na nicação se constitui em importante instrumento
vida individual e na vida coletiva dos cidadãos para humanizar o cuidado em saúde no PSF.
brasileiros, o que pode ser detectado por meio Apesar da grande polêmica gerada no campo
da pouca efetividade das ações de promoção, da Saúde Coletiva, por ocasião da implantação
proteção e recuperação da saúde. do Programa Saúde da Família no Brasil, obser-
Essa situação tem sido observada cotidiana- va-se que cotidianamente essa estratégia vem se
mente nas instituições de saúde do Brasil, sendo afirmando como um processo capaz de contri-
revelada por meio da insatisfação e da insegu- buir para a mudança do modelo assistencial no
rança dos usuários com o tipo de atendimento Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2005, 44,4%
prestado e da forma como os profissionais de da população brasileira eram cobertos pelo Pro-
saúde operam os serviços, ou seja, desenvolven- grama, isto é, cerca de 78,6 milhões de pessoas
do práticas histórico-socialmente determinadas atendidas pelo PSF 2. A potencialidade para a
pela ação médico-hegemônica. mudança advém do conteúdo estratégico, que
Nesse horizonte de crise, o Programa Saúde permite um rompimento com o comportamen-
da Família (PSF) pode significar um processo to passivo dentro das unidades básicas de saúde,
instituinte de mudanças na atenção à saúde, res- com extensão das ações para e com a comunida-
gatando conceitos fundamentais de vínculo, hu- de, possibilitando o desenvolvimento do traba-
manização, co-responsabilidade e outros, que lho em equipe, a responsabilização sobre um ter-
apontam para a reorientação do modo de ope- ritório, os vínculos de compromisso e de co-res-
rar os serviços de saúde. ponsabilidade entre serviços de saúde, profissio-
De acordo com o Ministério da Saúde1, o ob- nais e população.
jetivo do Programa Saúde da Família é o de contri- A partir desse referencial, buscamos estabe-
buir para a reorientação do modelo assistencial a lecer um olhar mais atento sobre o processo de
partir da atenção básica, em conformidade com os trabalho em saúde e os desafios necessários para
princípios do Sistema Único de Saúde, imprimin- a construção de um novo fazer no PSF.
do uma nova dinâmica de atuação nas unidades
básicas de saúde, com definição de responsabilida-
des entre os serviços de saúde e a população. O trabalho em saúde
O PSF é considerado uma estratégia que pri- e a produção do cuidado
oriza as ações de promoção, proteção e recupe-
ração da saúde dos indivíduos e da família, do O cuidado deve ser sentido, vivido e, para que
recém-nascido ao idoso, sadios ou doentes, de isso ocorra, é necessário que ele seja absorvido e
forma integral e contínua. Apresenta-se, assim, faça parte da vida dos profissionais de saúde. O
como uma possibilidade de reestruturação dos cuidado humano é baseado no respeito à digni-
serviços e de novas práticas de intervenção na dade, na sensibilidade e na ajuda. Dessa maneira,
atenção à saúde. o cuidado humano deveria constituir-se num
Nessa perspectiva, visa à reorganização da imperativo moral, da atitude ética, em que seres
atenção básica em novas bases e critérios, em humanos percebem e reconhecem os direitos uns
substituição ao modelo tradicional de assistên- dos outros. Nesse cuidado existe um compro-
cia, centrado no hospital e orientado para a cura misso, uma responsabilidade em estar no mun-
de doenças. O foco de atenção está centrado na do, ajudando a construir uma sociedade com
família, entendida e percebida a partir do seu base em princípios morais3.
ambiente físico e social, o que possibilita às equi- A compreensão de cuidado aqui proposta
pes de saúde uma compreensão ampliada do comunga com a concepção apresentada por
processo saúde-doença e da necessidade de in- Ayres4, ou seja, é uma compreensão ampliada,
tervenções que vão além de práticas curativas. que não se refere ao conjunto de recursos e medi-
Em sua retórica, o Programa Saúde da Famí- das terapêuticas, tampouco aos procedimentos
lia conclama para a construção de uma nova ma- auxiliares que possibilitam efetivar a aplicação
neira de operar a saúde, isto é, aponta para a pro- de uma terapêutica, mas o cuidado entendido
dução do cuidado com vistas à implantação de como um constructo filosófico, com o qual que-
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remos designar, simultaneamente, uma compre- Ao considerarmos a complexidade dos fato-
ensão filosófica e uma atitude prática frente ao res envolvidos no adoecimento, verificamos que
sentido que as ações de saúde adquirem nas di- a atuação dos profissionais não pode restringir-
versas situações em que se reclama uma ação te- se apenas aos aspectos biomédicos, mas faz-se
rapêutica, ou seja, uma interação entre dois ou necessário ampliá-los. Campos8 utiliza o concei-
mais sujeitos objetivando o alívio de um sofri- to de “clínica ampliada” para definir a clínica ne-
mento ou a aquisição de um bem-estar, sempre cessária nos serviços de saúde, ou seja, uma clíni-
mediada por saberes especificamente direciona- ca que inclua, além da doença, a pessoa e seu
dos a essa finalidade. contexto, e se responsabilize tanto pela cura e a
O modelo de atenção hegemônico, vigente, reabilitação quanto pela prevenção e a proteção
centrado na concepção médico-curativa, tem por individual e coletiva. Uma clínica que consiga
finalidade a produção da cura, orientada pela compreender de forma ampliada o processo de
fragmentação dos procedimentos, a tecnificação adoecimento e sofrimento do usuário e elaborar
da assistência e a mecanização dos atos. Já um projetos terapêuticos singulares com ações que
modelo assistencial produtor de saúde deve to- visem intervir nas diversas dimensões relaciona-
mar por base a produção do cuidado, com ênfa- das ao sofrimento e ao adoecimento. Enfim, uma
se no trabalho em equipe, na humanização da clínica comprometida com o cuidado com a pro-
assistência e na ética da responsabilidade: O gran- dução de saúde e de vida.
de desafio para o ser humano é combinar trabalho Esses projetos terapêuticos devem direcionar-
com cuidado. Eles não se opõem, mas se compõem. se também para a construção da autonomia do
Limitam-se mutuamente e ao mesmo tempo se usuário, contribuindo para aumentar a sua ca-
complementam. Juntos constituem a integralida- pacidade de enfrentamento dos problemas de
de da experiência humana, por um lado, ligada à saúde a partir de suas condições concretas de vida,
materialidade e, por outro, à espiritualidade. O o que os tornará capazes de instituir novos mo-
equívoco consiste em opor uma dimensão à outra dos de vida e protagonizar a produção da saúde.
e não vê-las como modos-de-ser do único e mesmo Isso significa possibilitar o conhecimento sobre
ser humano5. o processo saúde-doença-restabelecimento, dia-
A produção de serviços de saúde pode ser logar com os saberes, os desejos e valores do usuá-
entendida dentro da categoria “serviço”, expres- rio na construção dos cuidados à saúde8 .
sando a necessidade de cumprir uma finalidade
útil; entretanto, os resultados do trabalho não se
constituem em mercadorias passíveis de comer- O modo de operar os serviços
cialização, como produtos mercantis em si mes- na atenção básica
mos, mas são serviços produzidos pelo encon-
tro entre quem produz e quem recebe, ou seja, a O modo de operar os serviços de saúde é defini-
sua produção é singular e se dá no próprio ato6. do como um processo de produção do cuidado.
Dessa forma, o profissional de saúde, duran- É um serviço peculiar, fundado numa intensa
te o exercício de sua atividade, precisa manter uma relação interpessoal, dependente do estabeleci-
relação “humanizada” com seus pacientes. André mento de vínculo entre os envolvidos para a efi-
Levy7 nos diz que a abordagem clínica – a palavra cácia do ato. Por ser de natureza dialógica e de-
“clínica”, em sua raiz primitiva, significa “ao pé do pendente, constitui-se também em um processo
leito” – supõe sujeitos às voltas com um sofri- pedagógico de ensino-aprendizagem9.
mento, uma crise que os toca por inteiro. O clíni- Diferentemente do que se propaga no discur-
co depara-se com um ser pensante e igualmente so médico hegemônico, a atenção básica em saú-
desejante, assim como ele próprio o é. Nesse en- de não é uma ação simplificada. Quando assu-
contro entre dois sujeitos, as emoções fluem entre mida de forma integral e resolutiva, ela exige dos
ambos, criando uma relação autêntica entre dois profissionais que nela atuam um arsenal de atri-
seres, e não entre um técnico e uma patologia. butos e recursos tecnológicos bastante diversifi-
Uma prática de saúde humanizada não é o cados e complexos.
desenvolvimento de uma técnica ou artifício, mas Merhy10 destaca que um profissional de saú-
um processo vivencial que deve permear toda a de, no desempenho de uma ação, mobiliza con-
atividade dos profissionais, procurando realizar comitantemente seus saberes e modos de agir.
e oferecer um tratamento que os usuários mere- Esse modo de agir é definido inicialmente pela
cem como pessoas humanas, dentro das circuns- existência de um saber específico sobre o proble-
tâncias peculiares aos serviços de saúde. ma que o profissional vai enfrentar, acerca do
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Rodrigues, M. P. et al.

qual se coloca em jogo um saber territorializado que possam corresponder aos requerimentos téc-
no seu campo profissional de ação, mas ambos nicos e sociais de tais processos11.
envolvidos por um território que marca a di- A produção do cuidado em saúde pressupõe
mensão cuidadora. Portanto, todos os trabalha- que, no momento do encontro entre usuário e pro-
dores em saúde possuem potenciais de interven- fissional, este consiga captar as necessidades singu-
ção nos processos de produção em saúde. Esses lares de saúde do usuário, tornando-se imprescin-
potenciais são marcados pela relação entre os dível uma abertura por parte do profissional para
núcleos de competência profissional e o núcleo inclinar-se à escuta qualificada. Implica acolher o
cuidador, quer seja esse trabalhador um médico outro, oferecer espaço para a fala e para o diálogo,
ou um arquivista. o estabelecimento de vínculo e de laços de confian-
No modelo médico-hegemônico, o núcleo ça; portanto, uma maior capacidade diagnóstica e
cuidador ocupa um papel irrelevante e comple- de efetividade da intervenção terapêutica12.
mentar em relação ao núcleo profissional, que se Os problemas de saúde são sempre comple-
encontra fragmentado, constituindo-se em seara xos, porque envolvem diversas dimensões da vida,
de disputa pelo poder. A implicação mais séria desde as que se circunscrevem no corpo até as de
desse modelo é o enfraquecimento da dimensão caráter social e subjetivo. Portanto, o trabalho em
cuidadora do trabalho em saúde, em particular saúde, para ser eficaz, deve responder a essa com-
do próprio médico. Um outro problema existen- plexidade e dar sentido à intervenção nos varia-
te é a submissão dos outros profissionais da equipe dos campos da saúde. Abre-se aqui uma gama de
à lógica dominante da ação médica. Tal lógica possibilidades de uso de inúmeras tecnologias de
empobrece consideravelmente o núcleo cuidador. trabalho para a produção do cuidado.
Alguns autores advogam que a baixa incorpora- Faz-se necessário, portanto, resgatar e incor-
ção do saber clínico no ato médico compromete porar assistências progressivas totalizadoras do
seriamente a eficácia da intervenção; inversamen- cuidado produzido, em vez da somatória dos atos
te, podemos dizer que a morte da ação cuidadora especializados; incluir a dimensão subjetiva nas
dos diversos profissionais de saúde tem constru- práticas em saúde como parte da inovação tec-
ído modelos de atenção pouco resolutivos peran- nológica, revalorizando, tanto para os usuários
te as necessidades de saúde dos cidadãos. quanto para os profissionais de saúde, uma prá-
Essa compreensão implica reconhecer que a tica cujas relações interpessoais resguardem o
construção de um novo modelo de saúde, huma- sentido humano das profissões de saúde. Isso
nizado, pressupõe a ampliação da dimensão cui- equivale a se contrapor à visão predominante de
dadora, no sentido de desencadear processos me- uma cisão necessária entre o que é técnico-cientí-
lhor partilhados dentro da equipe de saúde e tam- fico e o que é humano nas ações técnicas, quer
bém entre os profissionais e usuários, para que se pelo conhecimento dos limites da primeira di-
garanta o vínculo e a co-responsabilização. Isso mensão, quer pelo conhecimento dos espaços
implica também uma melhor combinação entre a efetivos da segunda, no interior das intervenções
capacidade de produzir procedimentos e cuida- e da produção dos serviços13.
do, requerendo competências diversificadas, por Nessa perspectiva, este estudo teve por obje-
parte dos profissionais atuantes, que se expres- tivo identificar as representações sociais do cui-
sam no campo da cooperação (núcleo cuidador), dado subjacentes ao processo de trabalho em
pelo conhecimento ético, a destreza nas relações saúde no contexto da atenção básica na cidade
interpessoais, o conhecimento institucional e a do Natal (RN), no sentido de apreender os di-
compreensão do processo de trabalho; no campo versos produtos mentais e culturais estrutura-
da direcionalidade técnica (núcleo profissional/ dos, com componentes cognitivo, afetivo, avali-
específico), pelo conhecimento técnico-científico, ativo e simbólico (entre outros), construídos no
o da clínica, o do planejamento e, ainda, o conhe- cotidiano das relações pessoais, que norteiam o
cimento sobre gerência e supervisão dos serviços6. comportamento e as atitudes dos sujeitos e dos
Dessa maneira, a tecnologia só adquire senti- grupos sociais em que se inscrevem, de forma
do como expressão conjunta das determinações compartilhada14,15.
internas dos processos de trabalho e, portanto,
contemporânea destes. Não há tecnologia, nessa
perspectiva, fora dos processos de trabalho. Há Perspectiva metodológica
saberes, conhecimento de estatuto científico ou
cultural que podem, em tese, transformar-se em O objeto das representações sociais está incluído
momentos dos processos de trabalho à medida num contexto ativo e dinâmico, sendo concebi-
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do pelo sujeito ou pela coletividade como pro- da que, igualmente, como afirma Sá, caracteri-
longamento do seu comportamento. Dessa ma- zam as representações sociais17.
neira, a representação social é uma “preparação O estudo da representação social deve sempre
para a ação”, que remodela e recompõe os ele- buscar apreender a complexidade do objeto em
mentos do meio ambiente, estabelecendo um sen- questão. Nesse sentido, visando apreender as di-
tido para a ação15. Visando complementar a teo- versas dimensões do objeto, adotamos uma abor-
ria das representações sociais, a teoria do núcleo dagem plurimetodológica, usando, para isso, téc-
central, desenvolvida por Abric16 em 1976, esta- nicas e estratégias metodológicas diversificadas.
belece que as representações sociais se organi- Dessa forma, a metodologia adotada procurou
zam em torno de um núcleo estruturante com- explorar aspectos quantitativos e qualitativos, com
posto por um ou mais elementos, que dão signi- vistas a captar, através dos discursos produzidos,
ficado à representação. Assim, o núcleo central as representações sociais de diferentes sujeitos
também é denominado núcleo estruturante, implicados com o processo do cuidado no PSF.
possuindo duas funções fundamentais: Assim, ela procurou colocar em evidência os ele-
a. uma função geradora: elemento através mentos representacionais centrais e periféricos das
do qual se cria, ou se transforma, o significado representações sociais em questão.
dos outros elementos característicos da repre- O campo de investigação foram as unidades
sentação. É por meio deste que os outros ele- de saúde do SUS situadas nos distritos sanitários
mentos adquirem sentido e valor; Norte e Oeste - únicos distritos que haviam im-
b. uma função organizadora: núcleo central, plantado o PSF há pelo menos um ano. Dessa
que define a natureza dos elos, ligando entre si os forma, todas as unidades de Saúde da Família
elementos da representação. Portanto, o núcleo é (USF) foram incluídas, isto é, dezoito unidades,
o elemento unificador e estabilizador da repre- contemplando-se uma equipe por USF (médico,
sentação. enfermeiro, dentista, auxiliar de enfermagem e
Pode-se dizer que o núcleo central é o elemen- auxiliar de consultório dentário).
to mais estável da representação, aquele que con- O foco de observação foi dirigido para no-
segue manter sua continuidade em contextos va- venta profissionais que compõem as equipes, e o
riáveis e evolutivos. Na representação, ele é o ele- critério de inclusão dos sujeitos foi sorteio entre
mento mais resistente à mudança. Por essa ra- as equipes lotadas em cada USF. A amostra foi
zão, qualquer modificação do núcleo central vai composta por dezoito profissionais de cada ca-
determinar na modificação completa da repre- tegoria.
sentação. De acordo com a teoria, é a partir da Para a coleta do material, utilizamos a com-
identificação do núcleo central que se torna pos- binação de três instrumentos, quais sejam: um
sível o estudo comparativo das representações. questionário, a técnica de associação livre de idéias
Para que duas representações sejam diferentes, e de palavras e a entrevista em profundidade (téc-
elas devem estar organizadas em torno de dois nica de grupo focal).
núcleos centrais diferentes. Somente a identifica- Inicialmente, aplicamos o questionário, com-
ção do conteúdo de uma representação não é posto por duas partes. A primeira foi destinada
suficiente para o seu reconhecimento e especifi- à coleta referente aos dados pessoais, tais como:
cação. A organização desse conteúdo, por conse- idade, sexo e tempo de trabalho no serviço públi-
guinte, é essencial: duas representações definidas co e no PSF, enquanto a segunda, destinada à
por um mesmo conteúdo podem apresentar-se associação livre de palavras, objetivou captar os
radicalmente distintas, caso a organização dele - elementos representacionais centrais e periféri-
portanto a centralidade de certos elementos - seja cos sobre o “cuidado no PSF”. A partir da frase
diferente16. indutora “Escreva rapidamente as palavras que,
Complementando o núcleo central, existe um na sua opinião, associam-se ao cuidado”, foram
sistema periférico constituído pelos elementos anotadas seis palavras que vinham à cabeça dos
não-centrais da representação, isto é, elementos profissionais e, em seguida, numeradas por or-
que não se incluem no núcleo central. Os elemen- dem de importância.
tos periféricos são responsáveis pela interface A partir das evocações obtidas com a técnica
entre a realidade e o sistema central, posto que de associação livre de palavras, foi possível se-
atualizam e contextualizam as determinações guir a análise sugerida pelo autor16, ou seja, a
normativas e outras formas consensuais do nú- investigação do conteúdo representacional, a es-
cleo central. É essa interface que permite a mobi- trutura e a organização desse conteúdo e a deter-
lidade, a flexibilidade e a expressão individualiza- minação e controle do núcleo central. Para a ob-
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Rodrigues, M. P. et al.

tenção dos núcleos central e periférico, utiliza- alidade e o sistema central da representação. Par-
mos o software Evoc 2000. timos, pois, aqui, da teoria do Núcleo Central e
No segundo momento, lançamos mão da das orientações metodológicas sugeridas pelo
entrevista em profundidade do tipo estruturada, autor16, a fim de compreendermos a organização
favorecendo a interlocução e a interação entre os interna da representação social do cuidado.
sujeitos de forma espontânea, o que contribuiu As associações que emergiram quando utili-
para o enriquecimento das entrevistas. Essa téc- zamos a frase indutora “Escreva, rapidamente, as
nica estruturante18 foi executada no período de palavras que na sua opinião associam-se ao cui-
setembro a dezembro de 2004 junto aos grupos dado”, totalizaram 540 evocações. A análise des-
amostrais (seis grupos com cinco componentes sas evocações, feita por meio da observação da
cada um), perfazendo um total de trinta sujeitos. freqüência simples de cada uma delas, revelou 134
Esses sujeitos foram selecionados do universo palavras diferentes, correspondendo a uma mé-
dos respondentes do questionário e o critério de dia de seis evocações por sujeito. Observamos,
inclusão foi o desejo e a disponibilidade de parti- uma variação significativa das palavras evocadas,
cipar do grupo focal, mantendo-se, entretanto, a colocando em evidência a polissemia em relação
heterogeneidade do grupo (contemplando-se as ao objeto, conforme observado na Tabela 1.
cinco categorias profissionais). No primeiro momento, foi possível acessar
Para as entrevistas com os grupos focais, uti- os mais diversos conteúdos semânticos. Em se-
lizamos o seguinte roteiro de perguntas: “O que guida, através de classificação baseada em sinô-
vem a sua cabeça quando eu falo a palavra cui- nimos ou proximidade semântica das palavras,
dado?”; “De que maneira os pacientes estão sen- fizemos a primeira aproximação ao corpus, pos-
do cuidados no PSF?”; “Qual a proposta de vo- sibilitando a representação gráfica dos resulta-
cês para que se possa exercer efetivamente o cui- dos por meio de tabelas de freqüências. Seguiu-
dado no PSF?” se então a classificação em unidades de significa-
Para a análise das variáveis sociodemográfi- ção, e, por conseguinte, a categorização, dando
cas e das entrevistas, trabalhamos com o trata- visibilidade à estrutura interna existente no cor-
mento estatístico descritivo e a análise de conteú- pus em análise.
do categorial19. Em seguida, foi possível a cons- Na seqüência, foram evidenciados os elemen-
trução de campos semânticos, que ratificaram tos organizadores da representação através dos
as conclusões obtidas com a determinação e o seguintes indicadores: a freqüência do item evo-
controle do núcleo central. Todavia, dado o cará- cado, a média de freqüência da evocação e a im-
ter mais livre e fluido das entrevistas, pudemos portância do item para o sujeito. Assim, as pala-
identificar outros elementos variantes e invari- vras evocadas mais freqüentemente e mais pron-
antes que compõem a representação em estudo. tamente pelos sujeitos, provavelmente, compõem
As representações sociais são entendidas os elementos centrais das representações desses
como teorias compartilhadas pelo grupo que ser- sujeitos acerca do tema.
ve de referência – nesse caso, as equipes de saúde A Tabela 2 apresenta as ordens de classifica-
do PSF. Dessa maneira, buscamos compreender ção obtidas a partir da significação das palavras
a construção compartilhada que forma o senso evocadas pelos sujeitos, compondo-se assim, as
comum desse grupo. categorias: atenção; acolhimento; amor; assis-
Cabe aqui ressaltar que este estudo foi anali- tência; conhecimento; dedicação; humaniza-
sado e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa ção; responsabilidade; trabalho e higiene.
da Universidade Federal do Rio Grande do Nor-
te, de acordo com o parecer n. 116/03, sendo ga-
rantido total sigilo em relação aos nomes dos
trabalhadores envolvidos na pesquisa.
Tabela 1. Sumário dos resultados da associação livre
de palavras obtida a partir das evocações de
profissionais do PSF. Natal (RN), 2005.
Apresentação e discussão dos resultados
Número total de evocações 540
Como já dissemos anteriormente, de acordo com Número de palavras diferentes evocadas 134
Abric16, toda representação social é organizada Média de evocação por sujeito 6
em torno de um núcleo central – que unifica e dá Sujeitos que indicaram a palavra mais 90
sentido ao seu conteúdo – e de alguns elementos importante
periféricos, responsáveis pela interface entre a re- Total de sujeitos 90
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Tabela 2. Evocações segundo a ordem de classificação e ordem média de evocação. Natal (RN), 2005.

Palavras 1ª evoc. 2ª evoc. 3ª evoc. Total evoc. OME

1. ATENÇÃO 24 18 21 63 1,95
2. ACOLHIMENTO 22 16 9 47 1,72
3. AMOR 18 14 9 41 1,78
4. ASSISTÊNCIA 10 8 9 27 1,96
5. CONHECIMENTO 1 8 4 13 2,23
6. DEDICAÇÃO 1 6 12 19 2,57
7. HIGIENE 5 8 6 19 2,05
8. HUMANIZAÇÃO 8 11 11 30 2,10
9. RESPONSABILIDADE 12 8 9 29 1,89
10. TRABALHO 3 3 6 12 2,25
TOTAL 104 100 96 300 20,50

Nota: *OME = Ordem Média de Evocação.

Nessa perspectiva, a freqüência de evocação drantes superior direito e inferior esquerdo, si-
foi calculada a partir do somatório das freqüênci- tuam-se os elementos que se relacionam menos
as com que a palavra foi evocada em cada posi- diretamente com o núcleo central20.
ção, enquanto a ordem média de evocação foi Entre os noventa profissionais que participa-
obtida ponderando-se com o peso 1 a evocação ram deste estudo, 54 possuíam nível universitá-
feita em primeiro lugar, com peso 2 a segunda rio e 36, nível médio. A maioria (87%) era do
evocação e, assim, com tantas ponderações quan- sexo feminino e a média de idade do grupo era de
tas foram associações solicitadas20. O somató- 44,5 anos. O tempo médio de atuação nos servi-
rio desses produtos dividido pelo somatório das ços públicos de saúde ficava em torno de dezes-
freqüências da palavra citada nas diversas posi- sete anos de trabalho.
ções correspondeu à ordem de evocação da pa- Os resultados demonstram que a freqüência
lavra. A média aritmética dos valores da ordem média de evocação foi igual a 30 e a média arit-
de evocação de cada palavra corresponde à or- mética das ordens médias de evocação foi igual a
dem média de evocação. Procedendo à análise 2,05. De acordo com a análise combinada das
desses dois índices, de forma simultânea e com- indicações apontadas, delimitamos a área de lo-
binada, foi-nos possível revelar os elementos que calização dos elementos que, provavelmente, par-
provavelmente participam do núcleo central da ticipam do núcleo central e do sistema periférico
representação devido à sua saliência17 . da representação do cuidado, o que pode ser
A partir desse procedimento, pudemos dis- observado no Diagrama 1.
tribuir os resultados obtidos em um diagrama Assim, acolhimento, atenção e amor situam-
de quatro quadrantes, de forma que o eixo hori- se no quadrante superior esquerdo, por apre-
zontal se refere à ordem média de evocação (com sentarem uma maior saliência e, dessa forma,
os valores menores para o lado esquerdo do eixo) compõem o núcleo central da representação so-
e o eixo vertical à freqüência de evocação (com os cial do cuidado. Os elementos dos demais qua-
valores maiores dispostos na parte superior do drantes tendem, por conseguinte, a representar
eixo). Assim, o quadrante superior esquerdo é os elementos periféricos da representação, que se
composto pelas evocações de maior freqüência e relacionam menos diretamente com o núcleo cen-
prontamente expressas; o inferior direito, pelas tral, portanto não sendo capazes de interferir ou
evocações de menor freqüência e as mais tardia- modificar, ainda, tal representação.
mente enunciadas. Os elementos que participam Durante a análise de conteúdo, algumas cate-
do núcleo central da representação situam-se no gorias emergiram de maneira mais enfática, re-
quadrante superior esquerdo (maior freqüência forçando as evocações que constituíram o nú-
e pronta evocação); já no quadrante inferior di- cleo central. O Diagrama 2 apresenta as catego-
reito, estão os de menor freqüência, que são de- rias com as respectivas citações.
nominados de “elementos periféricos”. Nos qua- Na análise do Diagrama 1, percebemos que,
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Rodrigues, M. P. et al.

no quadrante inferior esquerdo, estão localiza- al, ela não elimina o sujeito. Partilhar uma ver-
das as categorias responsabilidade e assistên- dade sobre determinado objeto não significa,
cia; no quadrante superior direito a categoria portanto, anular-se diante do coletivo: Humani-
humanização, mostrando uma certa proximi- zação [...], Escutar [...], Acolher as pessoas que
dade do núcleo central; e no quadrante inferior necessitam não só da parte curativa, mas da escu-
direito estão situadas as categorias dedicação, ta, pois são muito carentes e não precisam só da
higiene, conhecimento e trabalho, ou seja, os parte curativa. No momento que o profissional sen-
elementos periféricos da representação. A estra- ta e escuta suas aflições e dificuldades do dia-a-dia,
tégia metodológica20 utilizada ajuda a perceber, eles têm [...]Eu acho que eles já saem mais alivia-
para além da natureza essencialmente coletiva, a dos. (dentista)
variação de sentido que cada sujeito atribui ao Assim, podemos compreender a saliência dos
objeto representado. Essa conclusão ajuda a com- elementos humanização, responsabilidade, as-
preender que, embora a representação seja soci- sistência, e compreender também como os ele-
mentos periféricos que aparecem no quadrante
inferior direito - apesar de alguns já representa-
rem uma certa aproximação do sentido atribuí-
do ao cuidado (ao incorporarem elementos como
dedicação e conhecimento) -, não conseguem
ainda provocar mudanças de significados nos
Diagrama 1. Elementos constituintes do núcleo central
e dos elementos periféricos da representação social do
elementos do núcleo central.
cuidado. Natal (RN), 2005. Observando o Diagrama 2, percebemos que
a justificativa relacionada ao acolhimento deixa
OME < 2,05 OME > 2,05 claro que os sujeitos compreendem o significado
Atenção (63) 1,95 da palavra “acolhimento”, podendo-se dizer, por-
Acolhimento (47)1,72 Humanização (30) 2,10 tanto, que começa a haver uma ressignificação,
Amor (41) 1,78 ou seja, uma maior aproximação ao cuidado,
F >30 visto que o acolhimento é parte fundamental
F < 30 Conhecimento (13)2,23 deste, pressupondo uma escuta qualificada com
Dedicação (19)2,57 vistas ao desenvolvimento de ações que interve-
Assistência (27)1,96 Higiene (19)2,05 nham nas dimensões relacionadas ao sofrimen-
Responsabilidade (29)1,89 Trabalho (12)2,25 to e ao adoecimento.

Diagrama 2. Categorias e evocações submersas da análise de conteúdo a partir do tema cuidado. Natal
(RN), 2005.

“Atenção, porque se você está atento, você pode curar e prevenir as doenças, e
ATENÇÃO dessa forma está cuidando” (médico). “Atenção, pois é essencial que você preste
uma assistência com atenção aos fatores biológicos e sociais” (dentista).
“Acolhimento, o ato de acolher é fundamental, pois implica um atendimento
que respeita o paciente, possibilita acesso e gera um atendimento humanizado”
ACOLHIMENTO
(dentista).
“Amor, por se tratar de um sentimento que engloba todo os outros” (auxiliar
AMOR Enfermagem). “Amor, porque tudo que se realiza na vida deve ser com amor”
(enfermeiro). “Amor, pois tudo que se faz com amor tem resultado positivo”
(médico)
“Humanização [...], escutar [...], acolher as pessoas que necessitam não só da
HUMANIZAÇÃO parte curativa, mas da escuta, pois são muito carentes e não precisam apenas da
parte curativa. No momento que o profissional senta e escuta suas aflições e
dificuldades do dia a dia, eles tem [...] eu acho que eles já saem mais aliviados”
(dentista).
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Para a categoria amor, o sentido atribuído preocupação é realmente qual tipo de cuidado,
pela maioria dos sujeitos foi superficial, isto é, de assistência que a gente está dando ao usuário,
teve conotação banal, algo repetido pelo senso qual a qualidade do atendimento?” (médico).
comum no intuito de convencer a quem está ou- Nas respostas emitidas a respeito da questão
vindo. “Amor,, por se tratar de um sentimento “Qual a proposta de vocês para que se possa
que engloba todos os outros” (auxiliar de enfer- exercer efetivamente o cuidado no PSF?”, obtive-
magem). “Amor,, porque tudo que se realiza na mos os seguintes depoimentos: “[...] nós passa-
vida deve ser com amor” (enfermeiro). “Amor, mos um ano e oito meses sem fazer atendimento
pois tudo que se faz com amor tem resultado odontológico na USF, por falta de caneta de alta
positivo” (médico). Há uma interface entre dis- rotação, amalgamador, fotopolimerizador e apa-
curso e as narrativas sobre o cuidado que circu- relho de ar condicionado para a sala”( dentista).
lam entre os profissionais do PSF e que são cons- “O dentista da minha unidade também está há
titutivas das teorias de senso comum, no afã de seis meses só fazendo atividades educativas por-
dar sentido à prática profissional. que não tem material” (auxiliar de consultório
Outro aspecto que merece destaque diz res- dentário). “A Secretaria Municipal de Saúde teve
peito ao discurso referente à categoria atenção. muita sorte de encontrar profissionais compro-
“Atenção, porque se você está atento, você pode metidos [...] porque se não [...] a coisa estava
curar e prevenir as doenças, e dessa forma está perdida. Ninguém ia estar nem aí [...] é porque a
cuidando” (médico). O sentido atribuído à pala- gente quer fazer [...] é comprometido” (auxiliar
vra atenção está fortemente relacionado à práti- de enfermagem). “Então, com esse descaso insti-
ca assistencial, ou seja, possui uma maior associ- tucional, como podemos exercer de forma satis-
ação com a prática curativa, sugerindo a aplica- fatória o cuidado no PSF?” (fala coletiva).
ção de um conjunto de medidas terapêuticas, Podemos dizer que, sustentados por razões
com predominância dos arsenais tecnológicos históricas e culturais, pela prática cotidiana insti-
mais complexos – próprios das tecnologias du- tuída e, de forma velada, por valores e normas
ras e leve-duras. institucionais, os profissionais investigados ab-
Durante a análise de conteúdo do grupo fo- sorvem parcialmente a proposta do PSF em rela-
cal, quando os sujeitos foram estimulados pela ção ao cuidado; ou seja, as tecnologias leves (aco-
frase indutora, “O que vocês pensam quando eu lhimento, vínculo, responsabilização) não são
falo a palavra ‘cuidado’ no PSF?”, obtivemos as ainda incorporadas de forma efetiva; há uma
seguintes evocações: “[...] acolher e ser acolhido/ dissociação entre o dizer e o fazer. Faz-se neces-
escutar/ responsabilidade/ compromisso/ zelo/ sária à associação dos conhecimentos técnicos,
carinho/ amor” (discurso coletivo). “Responsa- de novas configurações tecnológicas e novas mi-
bilidade [...] pela saúde das pessoas. No momen- cropolíticas no trabalho em saúde, inclusive no
to que você se responsabiliza pela saúde delas terreno ético. As tecnologias leves, quando apos-
você está demonstrando que tem cuidado com tam no diagnóstico sensível à subjetividade, nas
elas, zelo, carinho e amor” (enfermeira). “[...] Ser relações de poder e afeto, nos códigos familiares
cuidado, acolhido [...] eu diria que deve haver o subliminares, entre outros, induzem à amplia-
cuidado do cuidador, já que somos peças im- ção da pauta técnica para a pauta ética, baseada
portantes e estamos nesse dia-a-dia, nós temos em cidadania, solidariedade e humanização21.
que ter o cuidado conosco, já que essa popula- Para se pensar um novo desenho assistencial
ção depende da nossa atividade” (médico). em saúde centrado no usuário, é fundamental
Quando estimulados pela questão: “De que ressignificar-se o processo de trabalho. Essa res-
maneira vocês estão conseguindo cuidar dos pa- significação exige a mudança da finalidade desse
cientes?”, emergiram as seguintes falas: “Apesar processo, isto é, deve passar a ser a produção do
das dificuldades a gente está fazendo, está conse- cuidado, na perspectiva da autonomização do
guindo [...] dentro das dificuldades [...] ainda usuário, orientada pelo princípio da integralida-
conseguimos fazer algumas coisas. Só que o es- de e requerendo, como diretrizes, o trabalho em
forço e a iniciativa são mais dos profissionais, e equipe multiprofissional, a interdisciplinaridade,
não institucional” (dentista). “O primordial para a intersetorialidade, a humanização da assistên-
o cuidado é ter respeito pelo outro, compromis- cia, a participação social, a co-gestão dos servi-
so, amor pelo que faz, etc. etc. etc. [...]” (auxiliar ços, através da criação de vínculos usuário/pro-
de consultório dentário). “Mesmo que tenhamos fissional/equipe de saúde
todo o perfil, se não tiver uma estrutura mínima A questão da “acessibilidade” dos usuários às
[...],e isso está difícil” (enfermeiro).”Mas a nossa unidades de saúde do PSF foi outro aspecto des-
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Rodrigues, M. P. et al.

tacado com bastante relevância pelos sujeitos, ci- Sobre a questão de infra-estrutura das uni-
tado como um dos empecilhos para o desenvol- dades e das condições de trabalho no PSF, vale
vimento do processo do cuidado, visto que, da ressaltar que, embora já venham ocorrendo me-
forma como se apresenta, a acessibilidade dificul- lhorias, ainda há muito que fazer para viabili-
ta tanto a vida dos usuários quanto o desenvolvi- zar-se uma resposta mais concreta para a comu-
mento das ações de saúde (visitas domiciliares) nidade e os profissionais de saúde. Apesar da
por parte dos profissionais: “Eu trabalho numa aquisição de equipamentos e da abertura de al-
unidade onde as pessoas têm que se deslocar mais guns debates sobre o tema “PSF”, não se tem con-
de três quilômetros para chegar até a unidade ou seguido, de forma efetiva, viabilizar as condições
até a área” (auxiliar de consultório dentário).”Nós necessárias para as ações de saúde e a prática do
marcamos uma consulta com uma paciente de cuidado junto a usuários e profissionais. Isso
nossa área, só que para chegar na nossa área tem aponta para a necessidade de se colocar em pau-
que atravessar uma avenida muito movimentada ta o tema “Cuidado no PSF” e suscitar o debate
por carros. Então ela faltou à consulta. E quando junto aos sujeitos envolvidos.
fomos à casa da paciente, ela disse que voltou
para casa com medo de atravessar a avenida” (en-
fermeiro). “A territorialização ficou prejudicada. Considerações finais
Nós também temos que nos deslocar a pé, a equi-
pe toda, pois não tem ônibus e nós não vamos de Com base na teoria das representações sociais,
carro. Áreas próximas não são adscritas à unida- pudemos constatar que os profissionais de saú-
de, enquanto áreas bastante distantes pertencem de do PSF da cidade de Natal compartilham uma
à unidade, sendo o acesso da população dificulta- representação comum, cujo núcleo central é com-
do pelas barreiras geográficas. Atrapalha muito!” posto pelos campos semânticos acolhimento,
(auxiliar de enfermagem). atenção e amor. Concluímos que os sujeitos
Observamos que a falta de infra-estrutura nas apresentam diferentes entendimentos sobre o
unidades de saúde do PSF constitui-se num pon- processo do cuidado no PSF e que o conheci-
to de estrangulamento do Programa, visto que mento construído a respeito dessa questão está
tem dificultado de forma significativa a efetivação amparado numa visão aproximada do sentido
das ações de saúde e, conseqüentemente, a pro- do “cuidado”. Entretanto, esse entendimento
dução do cuidado durante o processo de traba- mantém elementos relacionados eminentemente
lho das equipes, e é muito ressaltada pelos sujei- a aspectos biomédicos e técnico-científicos.
tos. “Fica muito difícil o desenvolvimento do cui- Vale ressaltar que, nesse processo, apesar de
dado, pois as unidades, em sua maioria, não dis- manterem elementos que remetem a valores cul-
põem de local apropriado para uma escuta com turais e sociais estereotipados, alguns sujeitos co-
maior privacidade, e nem mesmo para uma escu- meçam a ressignificar esses elementos, incorpo-
ta coletiva ou acolhimento adequado” (enfermei- rando significações novas, como acolhimento,
ra). “Falta papel higiênico, café, açúcar, água, o humanização e responsabilidade, provavelmen-
mínimo de conforto, uma cadeira decente pra se te em função das experiências individuais, histó-
sentar que não tem, e eu [...] não digo nem ar ria de vida, inserção cultural, visão de mundo e
condicionado [...] mas o calor é grande [...]” (mé- do acesso a capacitações (sem o abandono dos
dico). “Água para beber, que é o mais simples, valores mais tradicionais). A partir do exposto,
não tem” (auxiliar de consultório dentário).”Eu podemos concluir que o cuidado não foi ainda
tenho um colega que de vez em quando vai ao incorporado como um elemento fundamental ao
supermercado Nordestão, porque lá no banhei- processo de trabalho no PSF. Nos conceitos, va-
ro do supermercado tem papel higiênico, mas na lores, imagens, símbolos, enfim, no conteúdo da
unidade não tem” (médico). “Tudo isso dificulta representação social do cuidado construído pe-
o desenvolvimento do cuidado: a falta de estrutu- los sujeitos, este é entendido de forma fragmen-
ra, as próprias unidades não possuírem salas para tada, na medida em que predominam apenas al-
reuniões [...]” (enfermeiro). guns elementos que compõem o cuidado em saú-
O discurso dos profissionais explicita as difi- de, isto é, acolhimento e atenção, ficando de fora
culdades existentes no cotidiano do trabalho nos todos os outros elementos fundamentais à pro-
serviços de saúde. Deixa claras as dificuldades dução do cuidado em saúde.
encontradas para o exercício do cuidado de for- O desvelamento dessa forma específica de
ma mais efetiva e a consolidação do processo de absorção da novidade representada pelo cuida-
humanização. do por um lado deve servir de alerta para a ne-
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cessidade de se definirem estratégias mais efici- Acreditamos que construir novos modelos
entes e eficazes, no plano local, que possibilitem de processo de trabalho em saúde em qualquer
aos profissionais do PSF ultrapassarem os limi- tipo de serviço, que possibilitem combinar a pro-
tes que ainda os mantêm presos a saberes tradi- dução de atos cuidadores de maneira eficaz e efi-
cionais e à racionalidade biomédica; por outro ciente com conquistas de resultados, cura, pro-
lado, serve para mostrar a força da naturaliza- teção e promoção, é tarefa urgente a ser realizada
ção do mundo, construída pelas representações pelo conjunto dos gestores, trabalhadores e usuá-
sociais e, ao mesmo tempo, indicar os elementos rios dos estabelecimentos de saúde22.
sobre os quais se pode atuar para modificá-las.

Colaboradores Referências

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