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Scientiarum Historia – UFRJ / HCTE

Por uma Historiografia Realista e Objetiva: uma abordagem a partir das


contribuições de Martin Bunzl e Chris Lorenz.
José Ernesto Moura Knust
In: Scientiarum Historia. 1º Congresso de História das Ciências e das técnicas e Epistemologia.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008. p.741-752

Palavras Chave: Epistemologia da História, Realismo, Objetividade Científica.

Epistemologia da História, houve um deslocamento


Introdução do debate nesta área do conjunto da Epistemologia
das ciências em geral para as discussões dentro
Nas últimas décadas do século passado, tornou-se dos círculos da Teoria Literária.
hegemônica na Epistemologia da História a Muitos teóricos da história passaram, então, a
perspectiva pós-moderna. Autores como Hayden tentar mostrar como a construção dos textos pelos
White, Frank Ankersmit e Michel Foucault historiadores depende muito mais das estratégias
promoveram uma reviravolta nos princípios que discursivas, dos tropos do discurso, do que da
norteavam a produção do conhecimento histórico. pretensa pesquisa histórica. A argumentação neste
A concepção de Verdade como constituída a partir sentido se baseia na premissa de que a linguagem
das relações de poder, formulada por Focault, não é um meio satisfatório de descrição da
tornou-se muito influente. A verdade seria de fato o realidade, existe um abismo intransponível entre
"conjunto das regras segundo as quais se distingue realidade e linguagem2.
o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro A partir da associação destas duas linhas de
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efeitos específicos de poder" . Isto significou, para argumentação, de um lado Foucault, de outro White
os teóricos da História que reivindicam Foucault, a e Ankersmit, surgiu o que poderíamos chamar de
“denúncia” do caráter instrumental da historiografia, historiografia pós-moderna. Na defesa deste novo
isto é, o conhecimento histórico não seria construído paradigma chegou-se ao limite de afirmar que a
meramente no interesse de análise imparcial do História simplesmente nada tem a nos dizer sobre o
passado, mas sim com objetivos políticos, passado e deve ser vista apenas como um artefato
econômicos e ideológicos específicos. Tal afirmação literário que pretende substituir tal passado, que é
não é uma novidade na Teoria da História, sendo irrecuperável3.
recorrente desde Marx. Porém o argumento é
radicalizado. Antes se afirmava que os historiadores Este paradigma, por seu aspecto relativista,
possuíam interesses e que estes eram refletidos na acabou criando o que ainda se percebe como uma
escolha de temas e argumentos; agora se afirmaria crise da Epistemologia da História. Se o que se
que tais interesses são completamente necessita para explicar a produção dos textos pelos
determinantes na reconstrução do passado e, historiadores é a análise de suas estratégias
principalmente, que são relações de poder que discursivas, e não a sua pesquisa histórica, a
determinam a aceitação de uma interpretação como Epistemologia passaria a ser, como aponta
verdadeira ou não, sendo sua relação com a Ankersmit, a posteriori e não a priori. Isto é, a
realidade do fato estudado em si peso algum. Epistemologia estaria na análise dos trabalhos
Porém, como apontamos, as idéias foucaultianas (discursos) produzidos, e não mais como base da
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trazidas para a Epistemologia da História não eram produção de tais trabalhos . Disto resulta o que o
estranhas a esta. Por isso, a influência mais próprio Ankersmit chama de desepistemologização
drástica, que levou as bases da Epistemologia da da História, pois uma Epistemologia a posteriori é
História para mais longe de seus pressupostos tudo, menos uma verdadeira Epistemologia.
tradicionais, foi a influência da teoria literária. Durante todo o período de hegemonia do
Teóricos da Literatura como White e Ankersmit paradigma pós-moderno surgiam vozes de
passaram a se interessar em como os historiadores confrontação (sendo um dos focos mais importantes
produziam seus textos. Obviamente, por se tratarem de resistência o marxismo). Porém, o
de autores oriundos dos estudos literários, muita estabelecimento do pós-modernismo na Teoria da
ênfase foi dada a questão formal dos textos – isto é, História parecia irreversível. Apenas a partir de
estes autores tinham interesse na produção das meados da década de 90 uma substancial crítica ao
explicações historiográficas enquanto produto pós-modernismo passou a fazer eco em toda a
discursivo, argumentativo, e não como pesquisa comunidade acadêmica. Atualmente não podemos
metodologicamente embasada. Desta forma, com a mais falar em uma hegemonia pós-moderna,
influência destes autores nas discussões acerca da mesmo com toda a importante influência que
1º Congresso de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia – UFRJ / HCTE – 22 e 23 de setembro de 2008
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autores desta linha ainda possuem, devido à força e meramente resultado de o nosso conhecimento
à ressonância que ganharam as críticas a sobre ele ser indireto e parcial. Na verdade, o que
pressupostos fundamentais de tal paradigma. impede a compreensão do passado é o fato de a
Porém, um novo paradigma ainda não foi construído História ser essencialmente narrativa, e uma
na História. A crítica ao pós-modernismo não narrativa significa necessariamente inclusão e
pretende que a Epistemologia da História exclusão de elementos. Além disso, o passado, para
simplesmente volte ao estado anterior ao “giro Danto, não é fixo. O conhecimento do passado
crítico”. Muitas das questões colocadas pelo pós- depende das relações entre os fatos do passado e
modernismo são fundamentais (por mais que os fatos posteriores, e como não temos
critiquemos as respostas que tal paradigma conhecimento do futuro, o passado torna-se fluido,
pretendeu dar a tais questões). Pode-se dizer que com o acontecimento de novos fatos que
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se perdeu a ingenuidade perante o texto. A estabelecem novos fatos no passado .
ingenuidade sobre a imparcialidade do produtor do Bunzl critica Danto em diversos níveis. Primeiro,
conhecimento também foi combatida (sendo que afirma que nem toda história é necessariamente
este ponto já era alvo de críticas muito antes do narrativa (e este é um ponto de debate comum entre
surgimento do pós-modernismo). pós-modernistas e seus críticos). Além disso, a
Nosso objetivo neste artigo é apontar algumas estranha concepção de passado fluído é
das possíveis contribuições de dois importantes desnecessária, sendo mutável nosso conhecimento,
estudiosos da Epistemologia da História para a nossa percepção sobre tal passado, e não o
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construção de um futuro novo paradigma para a passado em si .
História. São eles o filósofo Martin Bunzl e o Porém, ainda resta abordar a problemática da
historiador Chris Lorenz. seletividade, que Bunzl reconhece como
Analisaremos como estes dois autores se desafiadora. Porém, ele acredita que os
colocam frente às questões levantadas pela historiadores possuem uma estratégia válida de
epistemologia da História e como eles reconfiguram superação desta problemática: o estudo do
conceitos fundamentais para a construção de um “horizonte de possibilidades” dos atores históricos.
paradigma realista e objetivista da História – Isto é, o objeto de estudos dos historiadores passa a
reconfiguração essa necessária justamente pelas ser fixo e a seletividade é a dos próprios atores
questões pertinentes levantadas pela crítica pós- históricos. Desta forma, a experiência dos atores
moderna. históricos precisa ser entendida como um dos focos
Ambos os autores tem como ponto comum a centrais da abordagem historiográfica. Esta posição
defesa de uma abordagem da Epistemologia que vai de encontro a posições basilares pós-modernas
leve em consideração a prática da construção do que acreditam que a abordagem historiográfica não
conhecimento histórico. Nenhum dos dois se consegue, não pode e nem deve partir de outro
pretende pragmatista ao extremo de pensar a teoria enfoque que não seja a “experiência” do próprio
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como mera descrição de como a prática se dá. produtor do conhecimento historiográfico .
Ambos sabem que a teoria coloca problemas além Não deixa de ser interessante o fato de Bunzl, para
daqueles postos pela prática. Porém, ambos polemizar com o pós-modernismo, buscar o
concordam que a prática permite insights conceito de “experiência” proposto pelo historiador
fundamentais para a resolução de questões chaves marxista Edward Thompson em sua crítica aos
da teoria. setores marxista que pretendiam uma total
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supremacia da teoria frente à empiria .
O problema desta estratégia, como o próprio Bunzl
reconhece, é o fato de os historiadores lidarem com
Martin Bunzl: a epistemologia sob a objetos que vão além de tais “horizontes de
luz da prática historiográfica possibilidades”.
Analisando a obra de Joan Scott, Bunzl mostra
Martin Bunzl acredita que na prática é muito difícil como as preocupações teóricas em mostrar a
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não ser um objetivista . Porém, isso não faz da linguagem como agente histórico em si são
prática historiográfica necessariamente positivista – deturpadas pela prática historiográfica da própria
é necessário separar o joio do trigo dentro das autora. Isto ocorre pelo fato de a teoria de Scott
posturas objetivistas. A partir disto, Bunzl pretende preconizar uma abordagem “localista” da
mostrar como a prática historiográfica pós-moderna referencialidade lingüística. Isto é, para Scott, um
reestrutura os princípios teóricos da epistemologia conceito só possui validade dentro de sua própria
pós-moderna. historicidade e contextualização. Qualquer tentativa
A partir da crítica à teoria da história do pós- de generalização deturparia seu uso. Porém, Joan
moderno Arthur Danto, Bunzl pretende reavaliar a Scott é das mais importantes historiadoras
questão da seletividade do conhecimento feministas. Como conciliar tal posição prática com
historiográfico. Danto acredita que a compreensão aquela posição teórica? A categoria “Mulher”, dentro
total do passado é impossível e isto não é da lógica pós-estruturalista de Derrida, é nada mais

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que uma categoria social construída sem qualquer uma interpretação “forte”, que, como se apontou, é
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referencialidade natural, sendo seu conceito problemática .
completamente dependente do contexto na qual ele O problema maior surge quando passamos para a
surge. A reivindicação de bandeiras determinadas questão da causalidade histórica. A metodologia
aparece como incompatível com a própria proposta por Foucault, a “arqueologia”, é contrária à
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epistemologia pós-moderna . concepção de causalidade. Porém, ao fazer
Isto nos leva à abordagem da teoria pós-moderna trabalhos históricos, Foucault não consegue fugir
do conhecimento proposta por Foucault. Bunzl inicia desta concepção. A prática historiográfica é
sua argumentação mostrando como um historiador incompatível com a negação da causalidade
que reivindica os pressupostos teóricos histórica. Bunzl acredita que não há
foucaultianos, no caso Jeffrey Weeks, pode na incompatibilidade necessária no estudo
verdade utilizar-se de elementos da teoria de (preconizado por Foucault) dos discursos históricos
Foucault, mas continuar partilhando de uma com o estudo (tradicional na historiografia) das
concepção tradicional da escrita da História, pois causalidades históricas. A conjunção destas duas
continua partilhando preocupações com a preocupações não era exatamente a intenção de
causalidade, noção rejeitada por Foucault. Tal Foucault, porém é a prática historiográfica possível a
modus operandi é bastante criticável, pois aos partir dos insights de Foucault. Por fim, isto significa
manter certas concepções tradicionais da prática que uma historiografia influenciada pelas teorias de
historiográfica, ignoram-se elementos fundamentais Foucault não precisa ser necessariamente anti-
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da teoria foucaultiana . E são estes que realista .
pretendemos analisar agora. O mesmo não acontece, segundo Bunzl, com a
Bunzl afirma que a noção de regimes de verdade, influência de Derrida. De maneira geral, os
e as concepções foucaultianas de conhecimento e historiadores que trabalham com tal referência
linguagem colocam um sério desafio ao discurso teórica selecionam elementos de tal filosofia
intelectual. Foucault identifica duas “tradições compatíveis com a prática historiográfica e ignoram
filosóficas”, uma tradicional, a Filosofia Analítica, o sistema filosófico desconstrucionista em sua
que pretende construir bases para o conhecimento; plenitude pois este é totalmente incompatível com a
a outra, uma postura filosófica cuja preocupação prática historiográfica. Por exemplo, o uso da “leitura
central é o que ele identifica como “ontologia do das margens”, metodologia desenvolvida pelo
presente” ou “ontologia de nós mesmos”. Desconstrucionismo, para o estudo de grupos
Frente a tais posturas de Foucault, Bunzl identifica subalternos a partir de textos produzidos pelas elites
duas possibilidades de interpretação. A primeira, possui uma potencialidade enorme, mas é utilizada
mais comum, é a interpretação “forte”, que a partir de princípios historiográficos tradicionais,
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interpretaria as afirmações de Foucault no sentido como a concepção de causalidade histórica .
deste acreditar que a Filosofia Analítica tradicional é Por fim, Bunzl aborda a contribuição teórica do
uma quimera. A outra interpretação, “fraca”, seria a antropólogo cultural Clifford Geertz. A interpretação
de que Foucault, apesar de uma desconfiança das culturas segundo Geertz deve ser feita partir da
acentuada, vê a Filosofia Analítica tradicional como noção de rede de significados e a partir de uma
uma possibilidade séria. O grande problema da “descrição densa”. Os comportamentos humanos
interpretação “forte”, amplamente apontado pelos seriam completamente dependentes dos
críticos de Foucault, seria o risco de auto-refutação. significados que possuem cada uma de suas
Se todo o conhecimento produzido é relativo às atitudes. Tudo na sociedade, cada pequena ação,
estruturas lingüísticas, práticas discursivas e teria significado cultural. Desta forma, a análise
políticas de verdade, a própria afirmação disto por social deixa o nível dos indivíduos e se coloca na
Foucault estaria submetida aos mesmos instância dos significados socioculturais. Como
condicionantes, tornando-a tão relativa e circunscrita demonstra Bunzl, esta percepção é completamente
como qualquer outra. Bunzl acredita que todas as dependente da noção de regras sociais. Porém,
tentativas de interpretes favoráveis à Foucault que para situações sociais nas quais não há regras
optam pela interpretação “forte” de contornar esta explícitas, apenas implícitas – e estas são a maioria
auto-refutação são falhas. E isto ocorre, para Bunzl, dos casos – a abordagem geertziana perde poder
justamente por que o próprio Foucault trabalha com explicativo. E isto ocorre justamente por tal
conceitos tradicionais da Filosofia Analítica de abordagem não dar a atenção necessária aos
verdade e referencialidade em suas obras. Ou seja, processos de construção e reconstrução de
Foucault estava consciente das limitações de seu significados, que só podem ser entendidos no nível
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projeto epistemológico. Desta forma, a interpretação de ação dos indivíduos .
“fraca” deve ser a privilegiada na abordagem e Com tudo isto percebemos quais são as três
utilização da teoria de Foucault. De maneira geral, preocupações fundamentais de Martin Bunzl. Ele
os historiadores trabalham com esta interpretação acredita que uma historiografia realista (que é,
“fraca” quando estão em suas pesquisas. Porém, grosso modo, a única possível, sendo, pelo menos,
quando passam à reflexão sobre teoria, adotam o sentido que todas as tentativas de construção do

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conhecimento histórico têm tomado) precisa deter- afirmar ser impossível a distinção entre todas as
se fundamentalmente na análise das experiências representações corretas ou incorretas da realidade,
ou dos “horizontes de possibilidades” dos atores e teriam que explicar a existência da distinção entre
históricos, a partir da concepção de causalidade tentativas de representação da realidade bem-
histórica, em um nível de análise que contemple os sucedidas e mal-sucedidas sem usar como
indivíduos enquanto agentes históricos. referência a noção de realidade (já que o acesso a
esta pela linguagem é deturpadora e
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“ficcionalizante”) .
Chris Lorenz não leva em consideração, porém,
Chris Lorenz: Realismo e que alguns estudiosos poderiam utilizar como
Intersubjetividade referencial para tal distinção entre empreendimentos
de representação da realidade bem-sucedidos ou
Chris Lorenz identifica como fundamentais três não o conceito foucaultiano de “regimes de
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posições críticas à História do pós-modernismo : verdade”. Seriam as relações de poder na qual a
produção e consumo de tais representações estão
1. Ceticismo quanto à possibilidade de os inseridas que definiria sua avaliação. Porém, será
Historiadores dizerem verdades sobre o esta uma possibilidade realmente razoável? Apenas
passado; as relações de poder definiriam o sucesso ou não de
2. Ceticismo quanto à possibilidade de os uma representação da realidade? A realidade em si
Historiadores serem objetivos nas suas não serve como parâmetro em nenhum grau? Como
análises do passado; vimos acima, Martin Bunzl acredita que nem mesmo
3. Visão de que a História é um instrumento o próprio Foucault pretendia ir tão longe.
subserviente a interesses específicos. Como se daria, então, a avaliação social de
validade das tentativas de representação da
A primeira postura crítica se baseia na tal premissa realidade? Lorenz aponta que uma representação
do abismo cognitivo entre linguagem e realidade, já da realidade se dá através de argumentos que se
apontada acima. Os autores que defendem tal pretendem realistas. Como são argumentativas, tais
premissa dão ênfase ao fato de o conhecimento do representações precisam ser defendidas, o que
passado ser realizável apenas pela construção significa que em um debate entre representações
lingüística, por que os conceitos com que distintas da realidade, um contra-argumento poderá
analisamos o passado não existem na realidade em transformar aspectos ou mesmo toda a
si, precisam ser primeiramente construídos. Porém, argumentação na qual se baseia a representação.
a partir desta afirmação importante e válida, já Isto é, para Lorenz, o que garante o realismo das
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desenvolvida na moderna epistemologia, os pós- representações é a intersubjetividade .
modernos derivam uma afirmação radical: ao usar Porém, este ponto abre o flanco de outra
construções lingüísticas externas à realidade, o discussão, por que Lorenz afirma que tal
analista “ficcionaliza” a realidade, ou seja: uma intersubjetividade não é determinada culturalmente
representação realista do passado é impossível. ou ideologicamente, mas sim pela razão. O pós-
Esta é uma postura extremamente criticável, modernismo irá argumentar em outra direção, e aqui
segundo Lorenz. Primeiro, por se tratar de uma entramos no que Lorenz identificou como a segunda
mera inversão da postura epistemológica dicotômica posição crítica fundamental do pós-modernismo.
do positivismo, o que significa que a pretensamente O relativismo pós-modernista se baseia em dois
inovadora e iconoclasta postura pós-moderna argumentos fundamentais. O primeiro deriva do
partilha premissas epistemológicas com o antiquado multiculturalismo e afirma que todas as formas de
e criticado positivismo. Ambas as posturas representação – incluindo a ciência e a
acreditam que apenas existe conhecimento quando epistemologia – são condicionadas pelas culturas
este é totalmente fundamentado nos dados particulares, o que acabaria com a idéia de
empíricos – qualquer argumentação que parta conhecimentos universalmente válidos – restando-
externamente à empiria é mera imaginação, nos apenas saberes locais.
invenção. A diferença está no fato de o positivismo O segundo argumento, muito próximo ao primeiro,
apostar na possibilidade de tal conhecimento vem da filosofia foucaultiana: todas as formas de
enquanto o pós-modernismo se rende à conhecimento derivam de “regimes de verdade”
impossibilidade do conhecimento positivo real do específicos de cada sociedade. Desta forma,
passado e acredita que a produção do afirmando que o conhecimento depende, por um
conhecimento histórico é totalmente baseada na lado, das estruturas culturais, e por outro, das
imaginação, na ficção17. estruturas de poder das diversas sociedades, o pós-
Lorenz ainda argumenta que toda linguagem é modernismo afirma que é impossível a produção de
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metafórica, o que não nos impede de ter acesso a um conhecimento objetivo e universal .
realidade através dela. Para assumirem posição O relativismo epistemológico não é uma invenção
epistemológica tão radical, estes autores teriam que pós-moderna, mas ganhou novos ares com este.

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Enquanto o relativismo tradicional focava como enquanto disciplina para a busca do conhecimento
causa da impossibilidade do conhecimento objetivo verdadeiro e objetivo. Certamente o passado em si
a pessoa do historiador, necessariamente seletivo, o não determina a forma como ela será utilizada por
pós-modernismo foca o problema da linguagem que aqueles que a abordam, isto é, as evidências em si
o historiador se utiliza para abordar o passado – não determinam a escrita da história (e sabe-se
condenada a uma posição inevitavelmente relativa disso desde a superação do positivismo na
devido ao seu condicionamento cultural e ideológico. historiografia), mas essas evidências, e os métodos
Analisando o primeiro dos elementos do da disciplina historiográfica, restringem as
relativismo pós-moderno, Lorenz percebe que tal possibilidades de interpretações e servem de
perspectiva nada mais é do que uma radicalização parâmetro para a comparação entre interpretações
dos princípios da moderna hermenêutica. Esta concorrentes (E.P. Thompson já afirmara isto há
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preconizava que toda interpretação parte de uma décadas, em sua crítica à Filosofia Althusseriana) .
projeção de significado do interpretante sobre o A partir da contra-argumentação de Lorenz às
interpretado. Para Lorenz, o passo em falso dado críticas pós-modernas sobre a construção do
pelo pós-modernismo é transformar as dificuldades conhecimento histórico podemos perceber alguns
de interpretação das diferentes culturas em princípios epistemológicos básicos defendidos por
impossibilidade de interpretação destas. A ele. Os dois principais são a noção de
comprovação de que tal passo é equivocado seria o interpretações da realidade concorrentes entre si –
fato de que as diferentes interpretações não se isto é, existem realmente diversas formas de
transformavam arbitrariamente, como o argumento interpretação da realidade, mas isso não nos leva ao
pós-moderno poderia nos fazer pensar. Lorenz relativismo, pois essas interpretações são
afirma que o surgimento e a seleção de melhores necessariamente melhores ou piores do que as
interpretações ao longo dos anos significam outras – e a defesa da intersubjetividade como a
progresso nas interpretações, e não arbitrariedade. objetividade possível e, até certo ponto, satisfatória.
Seguindo Karl Popper, ele defende que tal Ambos os princípios são fundamentados pela
progresso na qualidade relativa do conhecimento é a epistemologia realista de Hilary Putnam, auto-
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objetividade que podemos ter no conhecimento . intitulada “Internal Realism”. Tal postura defende
Percebemos, novamente, como o pós-modernismo que o consenso não pode ser visto como o resultado
constrói proposições radicais devido a premissas esperado da ciência – já que a ciência em muitos
epistemologicamente pobres. As dificuldades de casos não constrói consensos. Este fato, que
interpretação impostas pela pluralidade cultural são poderia ser vistos como uma falha ou fraqueza é
transformadas em impossibilidade de conhecimento visto como inerente à natureza do processo de
objetivo devido àquela premissa dicotomizante produção de conhecimento. A produção de
partilhada com o positivismo apontada acima. conhecimento, e sua referencialidade e
Já na análise do segundo elemento, a questão dos correspondência dependem, para Putnam e Lorenz,
regimes de poder, Lorenz partilha de uma de estruturas conceituais específicas. Esta é uma
interpretação do argumento de Foucault diferente premissa similar à concepção de conhecimento
daquele que vimos em Bunzl (a interpretação de dependente da linguagem, do pós-modernismo.
Lorenz poderia ser classificada no que Bunzl Porém, para Putnam e Lorenz, não se pode derivar
classifica como a “interpretação forte” dos de tal premissa a tese pós-moderna de inexistência
argumentos de Foucault). E a partir de tal de correspondência e referencialidade entre
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interpretação, Lorenz critica a idéia foucaultiana de conhecimento e realidade .
que as circunstâncias na qual o conhecimento é Mas como se dá tal referencialidade, então? Um
produzido determinam completamente tal produção. mesmo evento pode ser descrito e interpretado de
A validade de um conhecimento não pode ser maneiras diferentes, e isto é resultado da existência
restringida as circunstâncias de sua produção, pois de diferentes estruturas conceituais. A realidade em
do contrário se reduz a filosofia do conhecimento à si não pode ser vista como princípio veridictório para
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sociologia do conhecimento . cada interpretação, mas se mantém como elemento
Resta a abordagem do problema da geral e fundamental. O que serve de elemento de
instrumentalização da História. O pós-modernismo verificação é a “verdade aceitável”, isto é, aquilo que
apontou os usos feitos pelos diversos interesses ao os “horizontes de expectativa” (seguindo a
longo da História do passado como uma prova de expressão de Gadamer) da audiência estão
que a História nunca é objetiva. Lorenz acredita que dispostos a aceitar como verdade. E nestas
mais uma dicotomia ultrapassada precisa ser expectativas pesam não apenas questões
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rebatida: seguindo Thomas Haskell, ele afirma que a cognitivas, mas também questões normativas .
objetividade científica não exige do pesquisador Tudo isto, porém, não significa que os
neutralidade, mas sim respeito às regras do jogo. historiadores escrevem sobre o passado
Isto é, pode-se produzir conhecimento histórico com arbitrariamente, como sugere o pós-modernismo. A
objetivos específicos muito claros, desde que não se noção de que a ciência precisa reprimir todo e
sacrifique os instrumentos construídos pela História qualquer aspecto normativo – fundamental para o

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positivismo e ecoado anacronicamente pelo pós- Porém, esta abordagem possui problemas. Um dos
modernismo – é que permite tal sugestão principais, como aponta Bunzl, é a negligência
equivocada. A linguagem de uma maneira geral ontológica de tal abordagem pragmatista. Mas
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funciona normativa e representativamente ao existem duas objeções mais frontais a ela :
mesmo tempo, o mesmo ocorrendo com as 1. A idéia de usar os dados históricos, as fontes
representações históricas. O fato de uma primárias no jargão historiográfico, como
interpretação do passado possuir juízos de valores critério de competição entre diferentes
sobre o passado – no nível que for – não a impede interpretações se baseia numa concepção
automaticamente de representar satisfatoriamente a equivocada de distinção entre
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realidade daquele passado . teoria/interpretação e observação dos dados.
Dito isto, podemos passar para os critérios que, 2. A prática historiográfica mostra que duas
para Lorenz, servem de critérios de “competição” teorias incompatíveis entre si podem estar
entre as diferentes interpretações da realidade: respaldadas pelo mesmo corpus documental.
adequação aos dados factuais, coerência interna, Bunzl reconhece as dificuldades impostas por tais
quantidade de hipóteses geradas e a originalidade objeções, mas acredita que a posição defendida por
dessas hipóteses. Esta competição entre ele, assim como por Lorenz, de um realismo
interpretações é fundamental por ser o que garante pragmatista como terceira via entre relativismo e
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a objetividade histórica através da positivismo é defensável .
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intersubjetividade . Frente à primeira crítica, Bunzl afirma que só
A prova de que tal mecanismo funciona na poderíamos afirmar que diferenças teóricas tornam
produção do conhecimento histórico é o fato de que as percepções empíricas diversas entre si a ponto
os historiadores não se renderam ao argumento de impedir o diálogo se acreditarmos que qualquer
pós-moderno de ficcionalização das interpretações. mera diferença entre as teorias resultem em
A aceitação de tal argumento tornaria a pesquisa diferenciações de abordagem da empiria
historiográfica simplesmente dispensável. Mas por completamente divergentes. Bunzl afirma que a
que a pesquisa histórica não foi então dispensada? história prática científica e historiográfica refuta tal
Por que ela é fundamental na argumentação e hipótese. Desta forma, mesmo com diferentes
contra-argumentação das interpretações em pressupostos teóricos resultando em diferentes
competição. Percebemos desta forma, que o abordagens empíricas as evidências empíricas
conhecimento em História, segundo Lorenz, não é continuam possuindo valor no debate argumentativo
baseado em princípios fundamentais, mas sim na entre as diferentes interpretações da realidade.
argumentação e competição entre argumentações. Quanto à segunda objeção, Bunzl argumenta no
sentido de que nossas falhas epistemológicas não
podem basear falácias ontológicas. Desta forma, se
duas interpretações incompatíveis entre si são
Conclusões possíveis a partir de um mesmo material empírico,
isto significa que nossa empiria é falha, não que
Acreditamos que os trabalhos de Martin Bunzl e devemos nos render a uma ontologia anti-realista.
Chris Lorenz aqui abordados, assim como o de Desta forma, o realismo deve continuar sendo a
outros autores diversos, demonstraram a referência ontológica para a prática historiográfica,
inadequação das respostas pós-modernas aos mesmo que não consigamos sempre construir
problemas colocados por eles próprios à conhecimentos epistemologicamente absolutos.
Epistemologia da História. Da mesma forma,
acreditamos que a abordagem destes autores A Epistemologia da História, em seu estado atual,
mostra a necessidade de reflexão sobre tais ainda não nos permite a visualização de paradigmas
questões, e mesmo a urgência em buscar novas holísticos. A crise desencadeada pela crítica pós-
respostas reformulações certas questões. Apenas moderna ainda não foi completamente superada.
isto poderá reconstruir um paradigma Porém, a superação de certas encruzilhadas que há
epistemológico para a historiografia. Outra uma década pareciam colocar em risco a
contribuição fundamental da abordagem destes historiografia enquanto disciplina parece realizada, e
autores é a demonstração da importância da as idéias destes dois autores aqui discutidos foram
reflexão epistemológica sob a luz da prática importantes para isso. O projeto de reavaliação
historiográfica. epistemológica da História, que se impôs com
Porém, é justamente neste ponto que podem urgência no final do século passado, está sendo
surgir problemas. Uma abordagem realista realizado – e em muitos pontos, de forma muito
pragmática tem sido reivindica com certa bem-sucedida, como pretendemos mostrar aqui –
reincidência na historiografia americana em resposta mas ainda não pode se considerar amadurecido.
ao desafio pós-moderno. Tal abordagem preconiza Muitas críticas ainda precisam ser respondidas
uma prática historiográfica baseada na satisfatoriamente até que possamos afirmar que a
intersubjetividade e no “respeito às regras do jogo”. Epistemologia da História reencontrou um

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paradigma que sustente a produção do


conhecimento histórico.

Referências e Notas
1
Foucault, M. A microfísca do Poder, Rio de
Janeiro: Graal Editora, 2005.
2
White, H. Metahistória, São Paulo: Edusp, 1995;
Idem, Trópicos do Discurso, São Paulo: Edusp,
2001.
3
Ankersmit, F.R. “Historicismo, Pós-modernismo e
Historiografia”. Em A História Escrita. Malerba, J.
(org.), São Paulo: Contexto, 2006.
4
Ibidem, p.111.
5
Bunzl, M. Real History. New York: Routledge,
1997, p.2.
6
Ibidem, p.28-29.
7
Ibidem, p.32, p.38.
8
Ibidem, p.40.
9
Thompson, E.P. A miséria da Teoria ou um
Planetário de Erros. Zahar Editores, 1981.
10
Bunzl, op.cit. p.49-56.
11
Ibidem, p.57-61.
12
Ibidem, p.65-74.
13
Ibidem, p.75-77.
14
Ibidem, p.78.
15
Ibidem, p.86-89.
16
Lorenz, C. “You got your History, I got mine”. ÖZG,
10, 1999, p.564-565.
17
Idem, “Can Histories be true? Narrativism,
positivism and the “Metaphorical turn”. History &
Theory, 37, 1998, p.312-317.
18
Idem, “You got your History...”, op.cit. p.568.
19
Ibidem, p.569.
20
Ibidem, p.570.
21
Ibidem, p.573-574.
22
Ibidem, p.578.
23
Ibidem, p.581-583; Thompson, op.cit. p.27.
24
Idem, “Historical Knowledge and Historical Reality:
a plea for ‘Internal Realism’”. Em History and
Theory. Contemporary readings. Fay, B. & Pom, P.
(Eds.) Blackwell, 1998, p.351-352.
25
Ibidem, p.364-365.
26
Ibidem, p.358-362.
27
Anchor, R. “The quarrel between historians and
postmodernists.” History and Theory, 38, 1999,
p.116.
28
Bunzl, op.cit., p.108.
29
Ibidem, p.109-110.

Agradecimentos
Agradeço à FAPERJ por concessão de bolsa de
Iniciação Científica. Agradeço também à minha
orientadora, professora Dra. Sônia Regina Rebel de
Araújo, e ao professor Ciro Flamarion Cardoso, sem
a ajuda dos quais este trabalho não seria possível.

UFRJ – Scientiarum Historia – 1º Congresso de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia – RJ / 2008 7

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