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Uma notícia inesperada

Euclides (setembro de 2002)

Sempre me encantou a imensidão deste nosso país. Não se trata, garanto, de patriotismo
megalômano metido a besta. A extensão das nossas mazelas é suficientemente grande para
refrear qualquer arroubo ufanista desproporcionado. Gosto de imensidões. Mesmo coisas
que parecem pequenas à primeira vista podem revelar-se imensas. Veja-se por exemplo, o
cromossomo. Microscópico em dimensões. Mas quando se trata de revelar-lhe o sequenci-
amento de genes torna-se gigantesco, ascendendo suas helicóides romanticamente entrela-
çadas às alturas numa infinitude de degraus feitos de bases nitrogenadas. Confesso que vi a
imagem num comercial de televisão, mas que diferença faz?

Foi também a TV que me mostrou um sujeito, morador de uma comunidade de interior, que
não sabia dizer quem era o presidente do país. Perguntaram-lhe se sabia que estávamos
perto de outra eleição presidencial e ele respondeu que tinha ouvido falar. Não sabia o no-
me de nenhum candidato. Deu a entrevista cotovelos apoiados no batente da janela da casa
emoldurado pelo “sopapo” de barro lançado do adobe das paredes. Semblante tranqüilo.
Não parecia estranhar o repórter, o microfone ou a câmera. Imensa imensidão...

Quando ainda muito pequeno, passei algumas férias no sítio de um tio-avô. Fazíamos uma
viagem de ônibus até algum lugar de onde numa estaçãozinha ferroviária pegávamos a Ma-
ria-Fumaça que depois nos deixaria em outra, ainda menor, num lugar em que, após a ida
do trem, podia-se mesmo ouvir um silêncio enorme cuja impressão guardo até hoje. Depois
seguíamos, se bem me lembro, por mais quatro quilômetros acompanhando os trilhos até
uma porteira que anunciava a chegada. Provavelmente a região hoje já está urbanizada e é
possível que se chegue lá de carro em menos de uma hora. Mas garanto que já foi imenso.

O lugar
Há um rio chamado Poti que nasce no Estado do
Ceará, atravessa o Piauí passando por Teresina
de onde prossegue descendo pelo Maranhão até
despejar todas essas águas acumuladas no mar,
na Baía de São José. Nasce perto da localidade
de mesmo nome, Poti, não muito longe de Cra-
teús, imbica em direção a Oiticica, já na divisa,
e no sopé da serra faz uma curva pronunciada
para o norte. Depois encontrando o contraforte
da Cangalha a acompanha rumo ao sul até Prata
do Piauí de onde se apressa no sentido de Tere-
sina.

Parnaso da Conceição fica na margem direita


desses meandros orogeneticamente forçados ao

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Poti a uns trinta quilômetros de Oiticica e não mais de cento e oitenta de Crateús. Teresina,
como se vê, está bem mais distante. Foi assim batizada em 1919 por Augusto Meirelles da
Fonseca, jornalista e poeta mineiro que, sabe-se lá Deus por quê, deu com os costados na
região pouco depois da Grande Guerra. A visão dos vales encimados pelas montanhas fê-lo
evocar uma paisagem da Grécia antiga pelo que os chamou Parnaso. Como se aproximasse
o dia de Nossa Senhora da Conceição ficou sendo Parnaso da Conceição. Era, à época, só
uma meia-dúzia de casas de famílias que viviam do extrativismo, um ermo isolado.

Pouco mais tarde, na década de vinte, uma notícia de ouro na serra da Cangalha trouxe mui-
ta gente para o local que conheceu dias movimentados. Se houve ouro, o que nunca soube,
definhou, mas ainda assim muita gente ficou e o lugar cresceu, tomando ares de vila. Como
em 1948 já houvesse gente suficiente para, votando, encher uma urna, uma manobra políti-
ca de alguns coronéis e latifundiários locais resultou no município de Parnaso da Concei-
ção, categoria a que se elevou formalmente em 12 de outubro daquele ano.

Vive-se lá um “viver bem vivido” de gente ocupada com o dia-a-dia e a cidade só não é
totalmente alheia ao que se passa no mundo graças a um punhado de cidadãos esclarecidos
e por isso mesmo respeitados que fazem essa ponte cultural de que todos usufruem com
proveito. Não há evento social, festa municipal, sessão de cinema, procissão, casamento ou
batizado em que não estejam Juvenal da Serraria, Perilo da Mezinha e padre Fininho. Cada
um é especialista numa área cujos limites são em geral cavalheirescamente respeitados pe-
los outros.

O empresário
Juvenal é um empreendedor. É dessas pessoas que não sabem folgar, que estão sempre en-
contrando oportunidades até mesmo onde não existem. Um “uorquiarrólique”, no dizer de
Perilo. É o dono da Serraria Futuro, um dos seus negócios mais antigos e também mais ren-
táveis. A Casa Chic, loja de tecidos e mimos para senhoras, o Bar Ventura, a JS Materiais e
o Cine Epopéia, este na verdade uma sala de projeção ao ar livre que funciona nas noites de
sábado e domingo no páteo da serraria, fazem parte do crescente conglomerado de interes-
ses econômicos de Juvenal. Esta é a quarta legislatura em que é também o prefeito. De fato
antes da possibilidade da reeleição alternou ora como prefeito, ora como vice, ficando sem-
pre à frente do executivo, já que nesses casos o prefeito eleito apenas figurava de maneira a
dar-lhe oportunidade de prosseguir a tarefa visionária e modernizadora. A ninguém tais
manobras pareceram fraudulentas ou impróprias. Juvenal era simplesmente o homem certo.

Cumpre dizer-lhe do caráter honrado e trabalhador. Cumpridor da palavra empenhada,


mantenedor de corretíssimos orçamentos municipais que, se magros, eram em boa parte
fornidos pelos impostos que suas empresas rendiam ao erário, religiosamente recolhidos.
Igualmente é verdadeiro que em boa parte os recursos das obras municipais de calçamentos
de algumas ruas e da reforma da praça da Matriz saíram-lhe do próprio bolso. Juvenal tem
com muita sinceridade um forte sentimento comunitário. Quando, há dez anos passados,
casou-se com dona Nenê não foram poucas as moçoilas de Parnaso que ficaram com os
olhos vermelhos de copiosas lágrimas.

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O farmacêutico
Foi do ventre de dona Maria das Graças do Couto e Sá, dona “Mezinha”, que nasceu Perilo.
Mezinha, como se sabe, é o nome popular dado a chás e beberagens caseiras dessas que
curam e muito bem curado toda sorte de males que afligem os mais pobres. Constipado,
vento encanado, bucho-virado, tosse-comprida, espinhela caída, agastura, prisão de ventre,
agonia, um sem-número de dores e até mesmo malária encontraram cura nas receitas de
dona Maria das Graças, na voz do povo, dona Mezinha.

Perilo cresceu por aquelas ruas e campos e recebeu as primeiras letras na escolinha da pa-
róquia. Como para quase todo mundo, isso teria sido o bastante não fosse a enorme curiosi-
dade que o menino tinha por tudo o que era de se aprender. E foi por isso mesmo que, aos
dezesseis anos, o pai ainda vivo, o saudoso “seu” Tatá, mandou-o para estudar em Sobral,
no Ceará, de onde, por sinal, é que vem o acento forasteiro que ficou para sempre na manei-
ra de falar.

Lá Perilo cumpriu os anos de Ginásio e Colégio enquanto colhia, como ajudante no balcão
de uma farmácia, não só os tostões que complementavam a ajuda paterna, mas principal-
mente uma grande familiaridade com o mundo dos remédios e bulas, que lia desejoso de
aprender sempre. Cedo aprendeu que havia três classes de padecimentos. Havia os doentes
de mezinha, cujos males com elas se curavam, os doentes de farmácia, que se aconselha-
vam no balcão da botica e para eles havia prescrição específica que abarcava uns dez ou
doze fármacos e finalmente os doentes de médico, portadores de sérios males que já vi-
nham com a receita pronta, cumprindo apenas decifrar as garatujas em que vinham redigi-
das. Foi ficando por Sobral até que a morte prematura do pai o chamou de volta a Parnaso
da Conceição.

Com o pouco que “seu” Tatá deixou abriu a farmácia, já por vocação e como meio de sus-
tentar-se e à mãe.

O desejo de aprender nunca cessou ou mesmo arrefeceu. Foi juntando tudo o que podia ler.
Almanaques, dicionários, folhetins de toda sorte e mesmo uma boa quantidade de livros,
alguns comprados em Crateús, outros trazidos de Sobral ou Teresina por Juvenal quando
viajava e alguns dados de coração pelo padre Fininho.

Lá por 1978 ou 1979 apareceram na região uns jovens gringos, americanos do Peace Corps,
oficialmente um órgão do governo americano que treina jovens voluntários para trabalha-
rem com pessoas dos países não-desenvolvidos no melhoramento de áreas como tecnologi-
a, agricultura e educação. Traziam na bagagem uma quantidade de medicamentos cedidos
pela Cruz Vermelha Internacional que foram parar na farmácia, não para serem vendidos,
mas numa prateleira à parte, destinados gratuitamente aos mais pobres, gente a quem afinal
Perilo conhecia muito bem e a quem inúmeras vezes já fornecera graciosamente.

Junto com eles, jovens e remédios, veio um mundo novo. Uma nova língua: o inglês! Des-
de a chegada da rapaziada, dois dos quais falavam um português inteligível, Perilo ficou
excitadíssimo ao ouví-los falar entre si. Maravilhava-se. Tinha ouvido gente falando inglês

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nos filmes de cinema, em Sobral (o Cine Epopéia foi inaugurado só em 1987), mas agora
estavam ali, dois falavam português e havia as bulas para traduzir a fim de que pudessem
ser compreendidas e os remédios usados com acerto. Ia aprender inglês!

O rapaz empenhou-se em ajudar, temeroso de que se perdesse a utilidade dos medicamen-


tos e embora não conhecesse termos técnicos que nomeavam as drogas ou doenças, pala-
vras como penicillin, streptomycin, allergy, pneumonia, vascularization e tantas outras
rapidamente eram identificadas pelo sagaz Perilo que ia, ao mesmo tempo em que era en-
sinado, registrando um vocabulário num caderno de estudos que constituiu seu primeiro
dicionário antes do LEP de bolso, presente de Juvenal.

Foi assim que Perilo da Mezinha se tornou o primeiro e único cidadão de Parnaso da Con-
ceição que falava inglês, segundo muitos fluentemente, feito gringo mesmo.Esse conheci-
mento de uma língua adicional elevou ainda mais a fama de “grande sabedor das coisas”
de que já gozava o farmacêutico. Havia mesmo um certo orgulho pela existência de tal
pessoa na comunidade.

O padre
Padre Fininho, magro, alto, sobrancelhas estreitas e fartas era o pároco há uns vinte e tantos
anos desde que assumiu os ofícios de cuidar das almas de Parnaso, a princípio em meio a
uma zelosa desconfiança que lhe votaram algumas das senhoras muito habituadas ao conví-
vio do antecessor aposentado.

Os modos assentados, a rápida amizade de Perilo e principalmente uma postura canônica


conservadora e ortodoxa facilitaram a superação dos senões iniciais e sua perfeita integra-
ção na vida daquela gente. Bom conhecedor do Velho Testamento, sabia muito bem de on-
de emanava e como lidar com o poder que lhe era conferido.

“Os que contendem com o Senhor serão quebrantados; desde os


céus trovejará contra eles. O Senhor julgará as extremidades da ter-
ra; dará força ao seu rei, e exaltará o poder do seu ungido.”
(Samuel 2:10)

Nunca se meteu em política apesar da amizade que igualmente o uniu a Juvenal. César
ficava com o que era de César. A seara de Deus era sua messe. Rezava missas, casava, bati-
zava, visitava os doentes, conferia em bonito latim as extremas-unções e, de há muito, ter-
minava as tardes invariavelmente na farmácia, sentado no vime que já era seu cativo, pro-
seando com os amigos que lá se reuniam. Depois era a janta na pensão de Rita de Cássia e o
catre, a menos que fosse sábado quando havia sessão de cinema. Aliás o padre, tanto por
sua proeminência quanto pela pobreza era o único cidadão que possuía uma “permanente”,
ingresso que lhe facultava graciosamente a presença na platéia. As “fitas”, como dizia, e-
ram a sua única fraqueza da carne.

Na verdade Fininho era possuidor de um certo refinamento estético que o fazia apreciar
igualmente as belas árias, os clássicos como Don Quixote e A Divina Comédia, a Filosofia,
o bom vinho e a elevação dos temas conversados na farmácia. Com alguma formação mu-

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sical obtida nos tempos do seminário, tocava um pouco no órgão da igreja e regia um coral
que se apresentava nas ocasiões festivas com galhardia.

Assim Juvenal provia as coisa da matéria, o progresso e a vida organizada. Perilo tinha a
seu cargo a cultura e a saúde dos corpos enquanto Fininho apascentava as almas no bom
pasto da Fé. Quem pode querer mais?

O Cine Epopéia
Perilo conheceu o cinema em Sobral naqueles anos de juventude e guardou dele o encanta-
mento nos anos que se seguiram ao seu retorno ao Parnaso. Foi também em Sobral que Ju-
venal igualmente conheceu a sétima arte. Bem lá ao seu modo como lhe era típico. Antes da
metade do filme o que o intrigava mais era o facho de luz que saía do orifício na parede de
trás da sala de sessão. Os diversos feixes que o constituíam moviam-se parecendo acompa-
nhar os movimentos que ocorriam na tela. Era dali que vinha o filme.

Voltou no dia seguinte para, com habilidade e uma propina, aboletar-se na sala de projeção.
Viu tudo. O rolo de filme com os picotes laterais, as pequenas imagens imóveis quadro a
quadro, perguntou de onde vinha o som e conheceu a trilha sonora. Viu os carretéis, a lente,
a luz potente. Entendeu como funcionava. E os filmes? Como se obtinham os filmes? Ficou
sabendo da distribuidora e muitas outras coisas.

Saiu dali decidido que ia ter um cinema.

“Knémos, do grego, quer dizer movimento. Daí palavras como cinema e cinemática, que
como sabem é o capítulo da física (aliás, outra palavra grega) que estuda os movimentos.
Uma inestimável herança grega que permeia e enriquece nosso vernáculo. Parnaso mesmo
é o nome de um monte na Grécia onde os pagãos acreditavam ser a morada de Apolo.”
Explicava padre Fininho que também já havia visto “A Paixão de Cristo” e projeções inspi-
radoras que eram feitas no seminário. Sala de cinema mesmo, nunca havia freqüentado,
mesmo porque em circunstâncias normais não ficava bem a um padre que prezava a tonsura
e a batina.

O primeiro projetor foi um dezesseis milímetros de segunda mão que com a ajuda de uma
lente cinemascope abria um retângulo na tela que nada devia aos melhores. A primeira pro-
jeção, ainda em caráter experimental, foi feita num lençol estendido no páteo da serraria, a
máquina posicionada pela janela do escritório. E como cinema só precisasse de escuridão, o
que não faltava nas noites mornas de Parnaso, ficou por ali mesmo com a conveniência que
ninguém passava calor ao ar livre. Um ordenamento no páteo e as toras e tábuas empilhadas
se transformaram em acomodação satisfatória. Por lá está até hoje.

Mais uma vez era Juvenal o responsável por outra inovação. Ninguém faz idéia do “fris-
son” com que a notícia correu a cidade. A primeira sessão oficial do Cine Epopéia foi aber-
ta ao público gratuitamente. Só não vieram os mortos, inválidos e os muito ignorantes. De
resto todo mundo abancou-se no madeirame e assistiu pungido a “Marcelino Pão e Vinho”

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que provocou uma enxurrada de lágrimas, foi tema de inspirado sermão na missa do do-
mingo e das conversas em todo lugar pelo resto da semana.

Daí para frente foi um desfilar de “O Gordo e o Magro”, “Os Três Patetas”, Mazzaropi, “Os
Cangaceiros”, de Lima Duarte, Mickey Mouse, “Cinderela” e tantos outros na medida em
que Juvenal ia descobrindo fornecedores. Na Semana Santa “A Paixão de Cristo” era reco-
mendada do púlpito.

Dois anos depois Juvenal negociou um projetor trinta e cinco milímetros e a platéia foi co-
nhecendo os grandes clássicos, os grandes atores e atrizes. O negócio ia muitíssimo bem. O
espaço abrigava folgadamente duzentas pessoas. Havia uma sessão no sábado e outra no
domingo ambas lotadas. Juvenal amealhava capital e distribuía cultura, lazer e diversão.

Foi por essa época que Perilo começou a traduzir as “bulas” dos filmes. As latas dos rolos
traziam colada uma etiqueta larga datilografada. Uma tarde na serraria Juvenal mostrou-lhe
uma.

- O quê é isso? Você consegue ler o que está escrito aí?

Perilo ajeitou os óculos, tomou a lata nas mãos e meditou uns segundos.

- É inglês, sem dúvida nenhuma. É como se fosse uma bula. Parece que traz
informações sobre o filme...
- Dá para traduzir?
- Posso tentar...

Na verdade Perilo mal se continha ansioso por correr ao LEP e às suas anotações. Caram-
ba! Uma oportunidade de mostrar seus conhecimentos do idioma. O que estaria escrito ali?
Algumas palavras podia reconhecer de pronto, ali mesmo, mas não era o suficiente para
compreender o texto. Pediu uma folha de papel e ciosamente tomou nota de tudo em letras
de fôrma, bem legíveis. Dobrou com cuidado, enfiou no bolso do paletó, apanhou o chapéu
e quase ia saindo sem se despedir, a cabeça já fervendo.

Trabalhou naquele dia até tarde da noite debruçado no pedaço de papel, manuseando o ca-
derninho de notas e o LEP, anotando, fazendo conjeturas, tentando obter sentidos. De vez
em quando chegava à janela e olhava o céu onde Órion já ia alto e acendia um cigarro so-
prando a fumaça devagar em direção as estrelas que tremiam no espaço gelado. Depois
voltava à carga, obstinado, quase febril.

Terminou antes que o galo cantasse três vezes e, não fora madrugada alta, teria saído cor-
rendo para a serraria de pijamas.

Adormeceu num misto de cansaço e deleite, prêmio do trabalho bem sucedido, repetindo
mentalmente o texto traduzido. Quando Escorpião passou no céu Perilo roncava em inglês.

Acordou pouco depois do sol. Agitado, enfiou-se rapidamente nas roupas sem cuidar do
chuveiro matinal que era hábito velho, nem foi à cozinha fazer o café, nem abriu a farmácia

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e despencou em quase correria direto para a serraria, onde Juvenal, madrugador, já traba-
lhava. Foi entrando e, afastando com a mão alguns objetos na mesa, arranjou espaço para
abrir orgulhosamente uma folha de papel manuscrita em bonita caligrafia.

- Está aqui: a “bula” traduzida!

The Teacher’s pet

Gable is a hard-boiled newspaperman who thinks that those who learned the
business in a college don't know what they are writing about. A professor at
a local college has asked him to guest-lecture at an evening session, and he
writes a scathing letter in response. When his boss orders him to comply with
the professor's wish, he reluctantly drags himself to the class and walks in
late, just in time to hear the teacher, Day, commenting on the letter he's
written. Gable figures he'd better just sit there and pretend to be a student.
Day's late father was a Pulitzer Prize-winning journalist, and she uses his
work as an example for the class. She is dating psychologist Young, but Ga-
ble, who is rapidly falling for Day, gets the rival out of the way adroitly. He
also helps Day to see the work of her father, whom she idolizes, more realis-
tically. Gable continues to pose as a student throughout all this, and his
work is so good that Day tries to get him a job at the local paper. When the
publisher whom she visits calls in his editor, who, of course, turns out to be
Gable, she is miffed. Then Gable learns that one of his own reporters is, in
fact, a former student of Day; Gable and Day make up and love rears its
head for good. The film is filled with delightful moments.

O Bichinho de estimação da professora

Gable é um jornaleiro cozido que pensa que esses que aprenderam o negócio
em um colégio não sabem sobre o que estão escrevendo. A professora de um
colégio local lhe perguntou sobre o convite de uma palestra na sessão da tar-
de, e ele escreveu uma carta severa em resposta. Quando seu chefe ordena que
ele obedeça ao desejo da professora, ele se arrasta atrasado à classe e entra só
a tempo de ouvir a professora, Dia, que faz um comentário sobre a carta que
ele escreveu. Gable figura que ele justamente melhoraria se sentando lá e pre-
tender ser um estudante. O recente pai de Dia era um Pulitzer o jornalista
prêmio-vencedor, e ela usa o trabalho dele como um exemplo para a classe.
Ela está datando o psicólogo Young, mas Gable que está caindo rapidamente
por Dia obtém o rival fora do caminho com hábil uso das mãos. Ele também
ajuda Dia para ver o trabalho do pai dela quem ela idolatra, mais realistica-
mente. Gable continua posando como um estudante ao longo de tudo isso e o
trabalho dele é tão bom que Dia tenta obter-lhe um trabalho no papel local.

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Quando o publicador a quem ela visita chama o editor dele quem, é claro, vol-
ta para fora é Gable, ela é petulante. Então Gable aprende aquilo que um dos
próprios repórteres dele é, na realidade, um estudante formador de Dia; Gable
e Dia fazem para cima e amam atrás das cabeças por bom. O filme está cheio
de momentos deliciosos.

Essa foi a primeira “bula” de filme traduzida por Perilo. Pediu a Juvenal permissão para
afixá-la no quadro de avisos da farmácia de maneira que todos pudessem tomar conheci-
mento do tema do filme da semana.. Foi sem dúvida uma sensação. Estava ali, aos olhos de
todos, mais um testemunho do saber de Perilo. Era impressionante que ele pudesse enten-
der o que estava escrito e tornar possível que todos lessem. A leitura da “bula” do quadro
de avisos da farmácia tornou-se hábito obrigatório dos cinéfilos de Parnaso da Conceição,
que não eram poucos. Formavam-se rodinhas diante da caixa de porta de vidro e fundo de
feltro verde, enquanto Perilo, em pé na porta, sorria...

- “ ...jornaleiro cozido...”, porque “cozido”, seu Perilo?


- Gíria... modo de falar...

Danado o seu Perilo da Mezinha... danado. Depois do filme às vezes acontecia:

- seu Perilo, o homem era jornalista.


- Pois é, trabalhava com jornal, deve ser como dizem lá...

Uma sucessão de “bulas” e Perilo foi “pegando jeito” e ficava mais fácil traduzir embora
muitas vezes as frases não fizessem muito sentido apesar da correta tradução palavra por
palavra. Uma vez , em Sobral, tinha conhecido um paulista que quando queria dizer que as
coisas estavam de cabeça para baixo, usava a expressão “de ponta-cabêça”. Havia de ser
coisa do gênero, jeito de falar dos lugares que não fazia muito sentido para os outros.

A Teologia de padre Fininho


Pode-se dizer que o padre era um homem solitário. Não que lhe faltassem amigos ou mes-
mo admiradores. O padre era querido. Vinha do seu mister a solidão. Praticava uma vida
quase ascética, digo quase porque os pequenos prazeres a que suas parcas carnes sucumbi-
am, ainda que existissem eram de pouca monta. Gostava da comida de Rita de Cássia, de
fato saborosa, feita com asseio e a exata proporção dos condimentos e às vezes, mesmo
sem se dar conta, uma pontinha de gula o fazia salivar perto da hora do almoço. Do russo
Pavlov o padre nunca ouviu falar. Apreciava o vinho que era pouco encontradiço por lá,
uns docinhos caseiros que lhe davam de vez em quando, um cálice de licor de jenipapo e
era o que bastava à carne despretensiosa.

“Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; o espírito, na verdade,


está pronto, mas a carne é fraca.” (Mateus, 26:41)

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Filho de família humilde, menino quieto e sonhador, o seminário foi a única escola que
conheceu, na verdade mais que escola, a casa onde cresceu ao abrigo das vicissitudes e so-
frimentos que vergastavam os filhos do interior do Ceará. Amou sinceramente a Cristo e
Seu sagrado padecimento, temeu o Deus irado que falava a Abraão

“Então o Senhor, da sua parte, fez chover do céu enxofre e fogo so-
bre Sodoma e Gomorra.” (Gênesis, 13:24)

enterneceu-se com a vida edificante dos santos e mais moço rejubilou-se com o brilho inte-
lectual de Agostinho, Tomas de Aquino, Tereza D’Ávila, João da Cruz. e Vieira. A boa
biblioteca do Seminário lhe deu portas para Cervantes, Dante Alighieri, Camões, Ovídio e
Homero.

Formou-se piedoso e imbuído do papel de pastor e pregador da Palavra “ porque assim nos
ordenou o Senhor: Eu te pus para luz dos gentios, a fim de que sejas para salvação até
os confins da terra.”(Atos, 4:47)

Muitos de seus contemporâneos de seminário estavam em paróquias de Fortaleza ou So-


bral vivendo nessas cidades grandes, privando de encontros com o bispo, mas levando, no
seu entender vidas comuns quase distanciadas do seu verdadeiro sentido pastoral. Rejubi-
lou-se quando foi designado para Parnaso da Conceição e, quando pela primeira vez botou
os olhos na Matriz baixou a mala ao chão, tomou o capelo contra o peito e murmurou:

“És tu melhor do que Tebas, que se sentava à beira do Nilo, cercada de


águas, tendo por baluarte o mar, e as águas por muralha,” (Naum, 3:8)

Tinha perfeita consciência de seu papel perante aquelas mil e quinhentas almas. Perilo à
vezes brincava com ele chamando-o de “nosso querido Núncio Apostólico” ao que ele
sempre retrucava com humildade:

- Por favor mestre Perilo, o Núncio é o embaixador de Sua Santidade perante os go-
vernos temporais...
- E Vossa Reverendíssima é o quê entre nós, caríssimo amigo?
- A mim, humildemente, me cabe o trabalho do pastor, mestre Perilo.

“ Ai de vós, quando todos os homens vos louvarem! porque assim fazi-


am os seus pais aos falsos profetas.” (Lucas, 7:26)

E quedava pensativo no seu dever. Era o único entre as almas dos seus paroquianos e a ga-
nância sanguessuga do demônio. O guardião da sagrada pedra:

“Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei


a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela;”
(Mateus, 16:18)

E não estavam ali por perto os falsos profetas? Rondando as localidades vizinhas, até mes-
mo em Oiticica, estabelecendo seus falsos templos e ludibriando a fé dos homens desenca-
minhando aquelas almas incautas para as garras do cão?

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“Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados em ove-
lhas, mas interiormente são lobos devoradores.” (Mateus, 7:15)

“porque hão de surgir falsos cristos e falsos profetas, e farão grandes


sinais e prodígios; de modo que, se possível fora, enganariam até os
escolhidos.” (Mateus, 7:24)

Fininho não se enganava e nem deixava enganar ao seu rebanho. Pois ainda ano passado
um desses arautos do Tinhoso não tinha ousado pisar o chão de Parnaso consagrado que era
à Divina Conceição? Não conseguiu ficar nem trinta minutos. Mal abriu seu falso livro na
praça e arriscou a pregação e topou com padre Fininho brandindo o guarda-sol descorado
como se fora a espada flamejante de São Miguel. E com a providencial ajuda de um mago-
te de senhoras muito pias e dois ou três cães que estranharam o forasteiro, botou-o para
correr até que o visse desaparecer na estrada.

“Pois os visitarei com quatro gêneros de destruidores, diz o Senhor:


com espada para matar, e com cães, para os dilacerarem ...”(Jeremias,
22:3)

“ Vigiai pois, porque não sabeis nem o dia nem a hora.”(Mateus, 21:13)

Era daí que advinha a solidão. Aquela era uma responsabilidade indivisível e indelegável.

“Porque o Senhor consolará a Sião; consolará a todos os seus lugares


assolados, e fará o seu deserto como o Éden e a sua solidão como o
jardim do Senhor; gozo e alegria se acharão nela, ação de graças, e
voz de cântico.” (Isaías, 32:3)

Além de homem de fé, Fininho era um profissional muito sério. Não se pode dizer que fos-
se propriamente feliz. Era antes um estóico de poucos prazeres entre os quais a presença
dos amigos.

- Guardião da Fé, Muralha de Jerusalém, matador do bezerro de ouro, parco de carnes


pleno de espírito, amigo dedicado e constante...

Discursou Perilo uma vez por ocasião do aniversário do padre. Bom padre Fininho! Aque-
las mãos compridas, ossudas, de couro mole curtido que os meninos beijavam na praça

- “bença” padre
- Deus abençoe... Deus abençoe...

Eram também as mãos que benziam os ramos, os bichos, os enfermos, que acenavam desa-
jeitadas do outro lado da rua, que ficavam cruzadas no peito enquanto os polegares se agi-
tavam, um rondando o outro, sentado no vime da farmácia proseando enquanto não vinha a
hora da janta.

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A ferrovia
Ler jornais não era um hábito costumeiro dos habitantes de Parnaso da Conceição. Anos
atrás o próprio Juvenal havia desistido do projeto da “Voz Parnasiana”, jornal que chegou a
pretender editar muito motivado por Perilo e padre Fininho. Mas negócios são negócios e o
povo não tinha interesse. Ao invés, montou o serviço de alto-falante na praça, esse sim bas-
tante apreciado, que aceitava por uns centavos pedidos de músicas que podiam ser ofereci-
das a alguém. Render dinheiro o negócio não rendia, mas como tampouco gerasse despesas
significativas e de fato alegrasse muito as noites da cidade durante o “footing” ficou. Jor-
nais de fora não vinham, exceto quando eram trazidos por alguém que viajasse a Crateús.
As notícias mais importantes sempre arranjavam um jeito de chegar, fosse pelo pessoal que
trabalhava na ferrovia, algum viajante de passagem ou entre os zumbidos altissonantes com
que chegavam as ondas da Voz do Brasil captada por Perilo em ondas curtas. Televisão era
impossível. Nenhum sinal chegava forte o suficiente para gerar uma imagem que se distin-
guisse dos ruídos de fundo e das interferências nas escarpas da serra. As notícias que inte-
ressavam mesmo eram as do lugar que, essas sim, corriam com fartura de boca em boca.

- A vaca de Alírio pariu inda ontem...


- Dizem que o admirador secreto de Rita de Cássia é Libório.
- Juvenal convidou a banda de Oiticica pra tocar na festa do Sagrado...

Às vezes alguma notícia bombástica chegava e causava espécie. O atentado de setembro de


2001 contra as torres do World Trade Center foi muito debatido na farmácia embora nessas
conversas as motivações e alcance político do ocorrido tivessem sua compreensão muito
prejudicada. Espantava, e muito, a quase inacreditável altura dos edifícios e parecia absurdo
que alguém se dispusesse a arremeter um avião contra um prédio. A palavra terrorismo que
aparecia na bem posta leitura que Perilo ia fazendo em voz alta, era algo quase sem sentido.
Por que alguém ia querer aterrorizar os habitantes de uma cidade? O que se ganhava com
isso? Inda mais morrendo na prática do ato. Mais tarde souberem que os americanos foram
à forra e atacaram um país onde morava o mandante do crime. Essas notícias chegavam
com um ar quase inverossímil, coisa sem pé nem cabeça. Duvidar, porém, quase ninguém
duvidava. Estava estampado no jornal.

E saiu outro cavalo, um cavalo vermelho; e ao que


estava montado nele foi dado que tirasse a paz da terra, de
modo que os homens se matassem uns aos outros; e foi-lhe
dada uma grande espada. (Apocalipse, 6:4)

Só podia ser sinal do fim do mundo. Outros sinais assustadores viriam...Naquela noite Fini-
nho teve pesadelos com cavaleiros que surgiam dentre as nuvens negras de tempestade
brandindo espadas, espalhando morte e terror. A guerra, a peste, a fome e a miséria.

Notícia demais atrai notícias e tira a tranqüilidade das pessoas. Pois começou a correr que o
governo do estado pretendia vender a ferrovia. Os trilhos atravessam o Piauí ligando Tere-
sina a Crateús na serventia de inúmeras cidades, entre as quais Parnaso. A estação local
despachava e recebia cargas, era a porta de entrada de quase toda mercadoria consumida na

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cidade, era por onde saíam os produtos locais, chegava e saía gente e abrigava uma agência
dos correios.

- Mas sim, senhor prefeito, que história é essa que vão vender a ferrovia?

Padre Fininho era geralmente formal.

- Privatização, padre, é isso que o governo do Estado quer fazer. Muita coisa já foi
privatizada no Brasil, empresas, estradas, ferrovias, bancos, de tudo.
- Mas o quê da ferrovia querem vender?
- Tudo Perilo. Trens, locomotivas, estações, trilhos, dormentes e até o cascalho.

Os três quedaram pensativos por um momento.

- Será isso bom? Indagou por fim o padre.


- Hum, sei não... resmungou Perilo olhando para Juvenal como se a ele, como políti-
co e empresário, coubesse a resposta.
- Tem gente contra e tem gente a favor. A situação, é claro, está a favor e a oposição
contra.
- E o senhor, que pensa? Voltou o padre.
- Veja, a serraria é minha e não do governo e isso não faz mal a ninguém. Por outro
lado...
- Por outro lado...
- Por outro lado a serraria serve a quem precisa de madeira, isto é, parte das pessoas
que ocasionalmente vão construir alguma coisa, fazer uma cerca e coisas assim. A
serraria facilita a vida de quem vive aqui e não precisa ir a Oiticica ou Crateús para
isso. Já a ferrovia tem uma grande importância para a cidade toda e não só Parnaso,
mas todas as cidades pequenas que são servidas por ela. Possuir a ferrovia é possuir
muito poder.
- Então que fique na mão do governo. Por pior que seja, num regime democrático
como é o nosso, o governo é escolhido para representar o povo e de certa forma a
ferrovia é como se fosse nossa. Opinou Perilo.
- Também sempre pensei nela assim. Como se fosse coisa de todo mundo. Acrescen-
tou o padre.
- O governo diz que tem de governar, manter as escolas públicas, postos de saúde e
coisas da infraestrutura e não ser dono de ferrovias ou empresas. Que isso cabe à i-
niciativa privada.
- Sei não...
- Sei não...
- Pois é...

E ficaram de novo em silêncio cismando.

De um modo geral a notícia não foi bem recebida na cidade. Ninguém gostou da idéia de
alguém ser dono da ferrovia. Sendo do governo era como se fosse de ninguém, ou de todo
mundo, o que vem a dar no mesmo. Todo mundo ali nasceu e se criou ouvindo o apito do
trem de uma ferrovia que não tinha dono. Tinha chefe de estação, tinha despachante, bilhe-

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teiro, carregador, engenheiro que vinha de vez em quando, mas não tinha dono. O próprio
governador do Estado era outro a cada quatro anos. Era assim que se manifestava o senti-
mento pelo patrimônio público. Além do mais havia aquele argumento levantado por Juve-
nal. Ser dono da ferrovia era muito poder. Assustava a idéia de alguém poder mandar e
desmandar, aumentar o preço dos bilhetes impor regras e sabe Deus o que. E se o novo do-
no decidisse que Parnaso não valia uma estação?

Um certo desassossego ficou no ar. As pessoas têm uma resistência natural à mudanças, um
certo conservadorismo que prefere as coisas do jeito em que estão, um sentimento de que
mudar é arriscado. O próprio padre Fininho foi recebido com reservas quando chegou.. Há
muito tempo, mesmo a chegada da eletrificação encontrou receios confusos.

“Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai
das luzes, em quem não há mudança nem sombra de variação.”
(Tiago, 12:17)

Perilo ia lendo para o grupo reunido na farmácia.

- “Os grupos interessados devem fazer o credenciamento preliminar, após o que terão
sessenta dias de prazo para avaliar os ativos da ferrovia. O governo então fixará o
prazo final para entrega dos envelopes contendo as propostas.” Tem um grupo in-
glês interessado... disse Perilo olhando por cima dos óculos.
- Ainda por cima estrangeiros! Bradou Libório com desaprovação.
- “Bode” ser que é bom.. O ingleis é bovo muito organizado... foi arriscando Elias, no
sotaque árabe que herdara do pai, porque era brasileiro nascido no sertão do Estado.
- Bode uma ova, que bode! Gritou Alírio dando um tapa no balcão.
- Senhores, a compostura! Advertiu o padre.
- Um grupo inglês? Desta vez foi Juvenal.
- Uma associação anglo-canadense, segundo o jornal.
- Que é que eles querem aqui afinal, longe de casa?
- Dinheiro, seu Libório, dinheiro não tem pátria...
- “Pecúnia non olet...”
- Pois o meu dinheiro não hão de ver.
- Mestre Perilo, o que quer dizer exatamente “avaliar os ativos...”?

Foi Juvenal quem respondeu:

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- É a verificação do patrimônio. Ver tudo o que a ferrovia tem e em que estado estão
as coisas. O que tem e o que deve.
- Como, “em que estado”? Ta tudo no Piauí. Aqui mesmo. Disse Libório.
- Me refiro ao estado de conservação. Como todo mundo faz quando quer comprar
alguma coisa. Vai lá ver primeiro.
- Então vem um monte de gente fuçar por aí...
- Parece que vem.
- Guem sabe é bom brá negócio... Elias era dono do armarinho.

O evento mais marcante daquele fim de ano em Parnaso acabou sendo o filme “A Noviça
Rebelde” exibido no cine Epopéia em duas semanas consecutivas a pedido do público. A-
pesar disso se alguém um dia perguntar na cidade por um filme chamado “A Noviça Rebel-
de” , não encontrará quem o tenha visto. Essa culpa não cabe a Perilo, o tradutor das “bu-
las” cinematográficas. Os filmes do cine Epopéia eram apresentados com os seus títulos
originais traduzidos para o português.

Como se sabe, Perilo era praticamente autodidata em inglês e fora alguns pecadilhos aqui e
ali, que aliás estavam fora das possibilidades de julgamento de qualquer um, suas traduções
eram muito apreciadas. Para ele mesmo eram de enorme importância. Eram enfim seu úni-
co contato com a língua, o que felizmente se renovava toda semana. As “bulas” eram agora
datilografadas para afixação no quadro da farmácia.

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O inglês chegou logo depois do carnaval. Desceu na estação usando um casaco cáqui sem
mangas, um chapéu australiano e um cachimbo na boca. Na bagagem uma máquina foto-
gráfica e equipamentos de topografia. Falava um português recheado de palavras em espa-
nhol, aparentava uns quarenta anos apesar do rosto marcado por fortes sulcos na testa e
logo abaixo das bochechas, tinha um sorriso simpático e gostava de prosear. Ficou na pen-
são de Rita de Cássia.

Por dois dias andou fotografando tudo, caminhou vários quilômetros pelos trilhos, contra-
tou dois moleques para carregar as coisas e segurar a estádia de topógrafo, armou o apare-
lho umas tantas vezes, mediu aqui, mediu ali e foi embora.

O que ficou do inglês foi um exemplar do Herald Tribune esquecido no criado-mudo do


quarto da pensão.

“ E espalhou-se a notícia disso por toda aquela terra.” (Mateus, 9:26)


Mesmo Rita de Cássia se deu conta de que aquilo era inglês, acostumada a olhar as “bulas”
do quadro da farmácia. Seu Perilo podia querer ler, pensou logo. E o jornal foi parar na
farmácia. Manuseando o tablóide durante a tarde calorenta Perilo ia passando os olhos pelas
manchetes procurando alguma coisa inteligível. Seu forte era mesmo a tradução, apoiado
no material que dispunha. Numa das notícias duas palavras lhe chamaram a atenção: Terro-
rismo e Papa.

A notícia vinha de Roma. Havia de interessar ao padre Fininho e deixava a ele mesmo curi-
oso devido à palavra terrorismo que também aparecia na manchete. Lembrou-se do atenta-
do aos edifícios de Nova Iorque. O que teria o papa a ver com aquilo?

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- Então quer dizer que “Pope” é o mesmo que Papa? Perguntou o padre.

Perilo mostrou o jornal e a notícia no final da tarde durante a prosa costumeira anunciando
que traduziria a matéria para que todos, e em particular o padre, se atualizassem com as
novas vindas do Vaticano.

- Lembra que a notícia dizia que aquele ataque terrorista ia mudar o mundo?
- E daí? Não mudou nada... pelo menos por aqui.
- Quem sabe mudou em algum lugar e é disso que o Papa está falando...
- Se não estou enganado a palavra “f-a-i-t-h” quer dizer fé. Ajuntou Perilo.
- Mais que tem o fé brá ver com terorismo? Esse era Elias.
- Coisa nenhuma!
- Então Sua Santidade está colhendo na roça alheia...
- Não diga blasfêmias Libório. Em matéria de fé o Papa é infalível. Já lhes expliquei
que nesses assuntos o Santo Padre é inspirado diretamente pelo Espírito Santo e
portanto não pode errar. Interferiu padre Fininho.
- Pois aguardemos então a tradução.

Todos concordaram e mudou-se de assunto. Mais tarde Perilo e o padre jantaram juntos na
Rita de Cássia.

- Tava bom o picadinho padre? Gostou do jornal seu Perilo?

Muito gentil a Rita.

- Uma delícia como sempre dona Rita!


- Obrigado Rita, sim, tem lá uma notícia que parece do interesse de todos e vou tra-
duzir.

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- Vai pregar no quadro da farmácia também?
- Por que não? Por que não? falou quase através do guardanapo à boca.

Caminharam juntos até a praça. O alto-falante anunciava um oferecimento musical para a


moça de vestido azul. Era sábado e a noite estava alegre. Caminharam entre o povaréu
cumprimentando um e outro com um toque elegante à aba do chapéu, comeram pipoca
quentinha feita na hora, sentaram-se um pouco afastados do alto-falante para poder conver-
sar. A digestão foi soprando o sono entre bocejos. Uma hora mais tarde despediram-se.

Perilo nunca se casou. Desde a morte de dona Mezinha morava num pequeno apartamento
edificado sobre a laje da farmácia. Abriu a janela do quarto e deixou que a música entrasse,
depois vestiu o pijama e sentou-se à escrivaninha onde fazia a contabilidade e as traduções.

Dobrou o jornal na notícia que interessava, tirou da gaveta o LEP e os vocabulários manus-
critos e principiou:

“Ataques terroristas podem aproximar o Papa e a Fé Islâmica”

Pensou em Elias. Segundo ele próprio o pai não era católico mas islâmico e costumava orar
cinco vezes ao dia sobre um pequeno tapete. Elias, até que o pai morresse quando ainda não
passava de um menino, havia recebido esses ensinamentos mas hoje não parecia ter qual-
quer religião e não freqüentava a missa. Podia ser apenas cisma sua, mas acreditava ter per-
cebido uma ponta de simpatia pelos terroristas muçulmanos por parte de Elias. Bobagem,
bobagem! Elias era um manso, boa alma.

Afundou-se na tradução e, à medida que a coisa ia tomando forma, apavorou-se que lhe
tremiam as mãos e os suores do nervosismo juntaram-se aos da noite quente. Não acredita-
va no que lia. Voltava atrás, traduzia de novo, enfiava as mãos pelos cabelos, relia cuidado-
samente o jornal, dava voltas pelo quarto, fumava nervoso. Veio a madrugada e as estrelas
todas desfilaram pelo céu até que o leste empalideceu anunciando o dia que se aproximava.

Padre Fininho rezou a primeira missa do dia, como sempre, às sete horas. Do púlpito não
lhe escapou o nervosismo de Perilo, inquieto, mãos nervosas, o paletó vestido sobre a cami-
sa do pijama, cabelos em desalinho.

Depois, na sacristia, mal podia esperar que os outros se retirassem e quando se viram a sós
foi o padre quem falou primeiro:

- Por Deus mestre Perilo! Que se passa?


- Precisamos conversar. Um assunto da maior gravidade.
- Diga homem que já me assusta!
- Aqui não. Pode chegar alguém...
- Agora não posso sair, em trinta minutos tenho a outra missa.
- Reze sua missa e me encontre na farmácia. Deixo aberta a porta do lado.

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E saiu atarantado. Nunca em sua vida padre Fininho rezou uma missa com tão pouca con-
centração. Depois livrou-se rapidamente das beatas e foi ter à farmácia apressado para o
misterioso encontro solicitado tão nervosamente por Perilo. Ficava do outro lado da praça.
Procurou a porta lateral pelo corredor estreito, abaixo da escada que conduzia ao segundo
andar e encontrou-a aberta. Não bateu e foi entrando.

- Deus meu! O que há meu filho?

“Ao ouvirmos a notícia disso, afrouxam-se as nossas mãos; apoderam-se


de nós angústia e dores, como as de parturiente.” (Jeremias, 33:24)
Tremendo, Perilo estendeu-lhe uma folha de papel:

- Eis a tradução da notícia do jornal inglês. Veja com seus próprios olhos.

ROMA – Os recentes ataques terroristas têm dado causa para alarme para as autoridades
eclesiásticas católicas, que têm medo de que os fundamentalistas islâmicos possam fazer
pontaria nos templos e santuários cristãos, como tem ocorrido de tarde no Paquistão e em
outros países. O papa se apresentou com os sacerdotes islâmicos na última terça-feira para
discutir a corrente de tensão, alternando sua usual atitude de reserva observando os casos
amorosos do intestino das outras religiões, com algumas opiniões para a ameaça que os
terroristas islâmicos podem representar para a cristandade. “Não houve argumento”, disse
um líder religioso muçulmano, “nossos sacerdotes acordaram com o papa hoje de manhã,
porque nós todos devemos chegar juntos na cara de um terrorista azarado”. O papa tam-
bém expressou o seu desejo de se converter para o Islamismo, simpático ao antagonis-
mo que alguns comunistas muçulmanos formalmente mostraram para com a igreja católi-
ca, a qual, de acordo com Sua Santidade, agora pertence ao passado. “O fundamenta-
lismo islâmico concerne muito ao papa”, explicou um porta-voz do Vaticano. E ele
aderiu: “Todas as fés merecem respeito, mas as pessoas têm que entender que é hora
de adotar o Islamismo para o terceiro milênio”.

O padre lívido quase desfaleceu. Perilo repetia quase em demência:

- O Papa não pode errar em matéria de fé!

O domingo foi amanhecendo preguiçoso, o alto-falante começou a tocar...

“E eles guardaram o caso em segredo, indagando entre si o que


seria o ressurgir dentre os mortos.” (Marcos, 13:10)

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