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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS


ESCOLA DE MÚSICA E ARTES CÊNICAS

MÚSICA “ERUDITA” NO BRASIL1

1. INTRODUÇÃO:

Para Paulo Castagna2, “a maior dificuldade com a qual nos deparamos ao


tentarmos compreender a música do Brasil é a não exata correspondência entre o nosso
passado sonoro e os fenômenos normalmente descritos na história oficial da música
européia. Como fatores dessa diferenciação podemos ressaltar o pequeno destaque que
o país ocupou na economia mundial (à exceção de períodos marcados pela intensa
exploração da cana de açúcar, do ouro, da borracha e do café), a diversidade étnica que
sempre constituiu a população brasileira, a produção musical raramente vinculada à
mesma quantidade de recursos que movimentaram a música européia e a assimilação
de bases estéticas de origem diversa, inicialmente de Portugal, país no qual a música
evoluiu de forma bem diferente daqueles cuja produção hoje tomamos por modelos
históricos: Itália, França, Áustria e Alemanha.”
“Essa dificuldade na abordagem do repertório brasileiro, ainda não superada
pelos musicólogos que se dedicam a estudá-lo, criou uma tendência em analisar a nossa
música sob o olhar europeu, acarretando ou a depreciação da produção nacional ou a
supervalorização de fenômenos que tiveram pequeno significado em sua época. No
tocante à definição de estilos, portanto, termos como “renascentista”, “barroco”,
“clássico” e “romântico” serão utilizados somente como uma aproximação.”
“Tudo isso, somado à precariedade das pesquisas musicológicas, ao estado
semicaótico dos acervos e centros de documentação musical, à escassez de material
bibliográfico e de gravações de obras antigas em nosso país, torna complexa a tarefa de
oferecer uma visão panorâmica que abarque cinco séculos de atividade musical no
Brasil. Mas é possível, ao menos, desmistificar a idéia de que não existiu uma produção
musical brasileira digna de ter sua própria história.”

1
Material didático organizado por Ana Guiomar Rêgo Souza.
2
Cf. Castagna, Paulo. Introdução ao Estudo da Música (Erudita) no Brasil. Disponibilizado no
endereço www.ia.unesp.br/area_aluno/musica/download.php Acesso 14/05/2009
2

2. CRONOLOGIA:3

POLÍTICA / ECONOMIA ARTES E LETRAS MÚSICA

1500: Descobrimento do Brasil 1500: Pero Vaz de Caminha 1500: descrições da música
Carta a D. Manuel indígena (viajantes).
1532: Início da Colonização 1549-1759: Jesuítas utilizam a
música como instrumento de
catequese: cantochão e cantigas
1549: Fundação de Salvador; em latim e tupi; encenação de
chegada do primeiro Governador autos; música polifônica co
Geral; início da colonização e das vozes e instrumentos para as
missões jesuíticas. procissões e liturgia. Música
1578: Jean de Léry propriamente indígena proibida
Viagem à Terra do Brasil pela Igreja e pela Coroa em todo
período colonial.
1534-1597: vida do poeta jesuíta
José de Anchieta 1580: proliferação das “capelas”
particulares – grupos de músicos,
talvez indígenas, que aprenderam
música com os jesuítas.

1600 em diante: difusão do uso


de música nas festas oficiais,
custeadas pelas câmaras
municipais e por cidadãos de
1600: Bento Teixeira posse.
Prosopopéia
1610: primeiro conjunto
conhecido de escravos músicos,
na Bahia.
1623-1696: vida do poeta e
1630: Tomada de Pernambuco cantor Gregório de Matos 1650: registro da primeira
pelos holandeses. Guerra. composição musical no Brasil.

A alcunha boca do inferno foi 1650 em diante: cantochão com
dada a Gregório por sua ousadia acompanhamento de órgão
em criticar a Igreja Católica, convivendo com a polifonia
Década 1690: Descoberta das muitas vezes ofendendo padres e romana (estilo antigo) nas
3
Cf. Castagna. Op. Cit.
3

minas de ouro nas Gerais. freiras. Criticava também a igrejas urbanas.


"cidade da Bahia", ou seja, ↓
Salvador. . Agostinho de Santa Mônica
(compositor português que
morou em Salvador por 20 anos)
. Antônio de Lima
. Eusébio de Matos
(irmão de Gregório de Matos)

1700 a 1750:
►Introdução no país (através das
Irmandades) dos primeiros
instrumentos de cordas para
atuarem nas festas.
1726: Descoberta das minas de ►Coexistência do estilo antigo
ouro em Goiás. com estilo moderno.
► Primeiros manuscritos
musicais brasileiros conhecidos
1725-1735: Implantação do (1730): Grupo de Mogi das
sistema da Derrama.i 1724-1759: fase áurea do Cruzes.
Arcadismo.
↓ 1705-1739: Antônio José da
Escola literária surgida na Silva – “o Judeu”. Grande
Europa no século XVIII. O nome sucesso em Lisboa. Teatro
dessa escola é uma referência à cênico musical satírico encenado
Arcádia, região bucólica do em Lisboa e em várias cidades
Peloponeso, na Grécia, tida brasileiras, inclusive
como ideal de inspiração Pirenópolis/GO
poética. No Brasil, o ↓
movimento árcade toma forma . Anfitrião
a partir da segunda metade do . Os Encantos de Medeia
século XVIII. . Labirinto de Creta
1759: Expulsão dos jesuítas e
. Guerras do Alecrim e
extinção das missões. • Introdução de paisagens Manjerona
tropicais - Caramuru . As Variedades de Proteu etc.
(criação de Frei José de
Santa Rita Durão) 1729 em diante: surgimento de
• História colonial muito Casas de Óperas, dentre outras,
valorizada em Salvador, Rio de Janeiro,
• Início da luta pela Recife, Belém, Porto Alegre,
independência - Tomás Minas Gerais, Goiás
Antônio Gonzaga
("primeira cabeça da 1750-1800: Música Profana
inconfidência" segundo ● Cantatas
Joaquim Silvério, delator ● Óperas:
1762-1763: Aplicação da da Inconfidência (Dramas/Tragédias/Comédias
primeira Derrama nas Minas. Mineira) etc.)

● Danças luso-brasileiras:
4

Fandango, cana-verde, chula,


ii
1777: Início da “Viradeira” fado etc.
● Modinhas e Lundus com
1738-1814: vida do escultor e acompanhamento de violas e
arquiteto Aleijadinho: Antônio guitarras.
Francisco Lisboa, (Vila Rica) 1750 - 1800: Salvador:
foi um escultor, entalhador, ► Estilo mais próximo do
desenhista e arquiteto no Brasil Barroco que do classicismo.
colonial. ● Anônimo: Cantata acadêmica
(1759)
● Padre Caetano de Mello
Jesus

“O maior teórico das Américas”
(Curt Lange)
1785: Dívida brasileira com a Recitativo e Ária
Coroa atingia 585 arrobas de ouro (soprano, dois violinos e baixo
contínuo; escrito em estilo
1789: Prisão dos inconfidentes italiano do século XVIII)

1760 em diante em Minas


Gerais:
► Assimilação das primeiras
manifestações do estilo clássico
italiano que dominava em
Cristo carregando a cruz, Congonhas Portugal.
do Campo ► Proliferação da orquestra com
1762-1830: vida do pintor cordas, trompas e baixo-
Manoel da Costa Ataíde contínuo (órgão) e,
(Mestre Ataíde). Pintor, eventualmente, madeiras.
dourador, encarnador, entalhador ► Música Religiosa: coral
e professor brasileiro. homofônico; solos e duos
vocais, normalmente em terças
e sextas paralelas.

. Prevalece o estilo pré-
clássico homofônico (exaltação
do texto)
. Tipos mais comuns de
música: coros mistos a quatro
vozes, com acompanhamento de
dois violinos, violas (essas mais
para o final do XVIII), baixo,
trompa (ou clarins), oboés
(boés) e, mais raramente, fagotes
(clarinetes somente no século
Nossa Senhora cercada de anjos músicos, XIX substituindo oboés e
no teto da Igreja de São Francisco de fagotes)
Assis, Ouro Preto
5

●José E. Lobo de Mesquita


● Manoel Dias de Oliveira
● Francisco Gomes da Rocha
● Marcos Coelho Neto
● Inácio Parreiras Neves

1719-1789: Recife
► Luís Álvares Pinto:
1768: Cláudio Manoel da . Tratado Arte de Solfejar
Costa . Te Deum: para quatro vozes
Obras poéticas mistas e baixo contínuo. Estilo
mais próximo do Barroco que do
classicismo.
. Salve Regina: para três vozes
mistas, dois violinos e baixo.
. Divertimentos Harmônicos

Até 1774: São Paulo


► Música anônima em Estilo
Antigo.

1774: São Paulo


Chegada do compositor lisboeta
André da Silva Gomes:
composições em um estilo que
transitava do barroco
português ao classicismo
italiano.
. Tratado do Contraponto e
Composição
1792: Tomás Antônio Gonzaga 1783: Rio de Janeiro
Marília de Dirceu ► José Maurício Nunes Garcia
inicia suas atividades em
composição, tendo como base a
estética do classicismo luso-
italiano e elementos de origem
1798: Domingos Caldas Barbosa
austríaca (Haydn; Mozart)
Viola de Lereno

1808: Chegada do Príncipe 1808 em diante: Rio de Janeiro


Regente D. João VI ao Brasil. ► Nova fase na música
brasileira: a prática musical
1815: Brasil é elevado a Reino tornou-se algo mais
Unido de Portugal e Algarves cosmopolita, recebendo
novidades alemãs e francesas.
► Influência da ópera clássica
italiana: de Cimarosa e
1822: Independência e criação Paisiello; depois de Rossini,
do Império Brasileiro Bellini e Donizetti.
6

► Música Religiosa:
. Manteve a homofonia, mas a
orquestra tornou-se maior e
mais brilhante e os solos vocais
adquiriram um caráter
virtuosístico e teatral.
. Nesse estilo compuseram:
. José Maurício Nunes Garcia
e Marcos Portugal no Rio de
Janeiro
. João de Deus de Castro Lobo,
Antônio dos Santos Cunha e
outros em Minas Gerais.

► Primeiras décadas do século


XIX: início do interesse pela
música de câmara e pelo piano;
difusão da dança, da música
vocal de salão e da ópera.

1814: Gabriel Fernandes da


Trindade
Duetos concertantes

1816: Chegada da Missão 1816: José Maurício Nunes


Artística Francesa no Rio de Garcia
Janeiro Réquiem

1826: José Maurício Nunes


1826: inauguração do Imperial Garcia
Teatro de São Pedro de Missa de Santa Cecília
Alcântara no Rio de Janeiro

1831: Abdicação de Pedro I 1831: F. Manuel da Silva


Hino à Abdicação (futuro Hino
Nacional)

1831-1840: Regências

► Dificuldades para a execução


e composição de música
orquestral, no teatro e na igreja.
►Música doméstica:
Basicamente constituída de
canções acompanhadas ao piano
7

ou ao violão.
► Publicação de árias,
modinhas e lundus em
português (1837) no Rio, a
Publicação de árias, modinhas e
lundus. Estilo: hibridação da
tradição luso-brasileira com as
novidades italianas e francesas.
Autores: Cândido Inácio da
Silva e Gabriel Fernandes da
Trindade.

1870: Carlos Gomes


Il Guarany

1890: Alexandre Levy


1836: Gonçalves de Magalhães Tango Brasileiro
Suspiros poéticos e saudades
1888-1896: Alberto Nepomuceno
Série brasileira

1917: Villa-Lobos
1831 -1840: Período das Uirapuru
Regências marcando, no Brasil,
uma fase de instabilidade política e 1920-1929: Villa-Lobos
econômica Choros

1931: Camargo Guarnieri


1840: Início do reinado de Pedro Sonata para cello e piano
II

1931-1959: Camargo Guarnieri


Ponteios

1958: Primeiras composições


eletroacústicas brasileiras

1857: José de Alencar


O Guarani 1964: Marlos Nobre
Ukrinmakrinkrin

1967: Gilberto Mendes


Beba coca-cola

1974: Almeida Prado


1889: Início da República 1881: Machado de Assis Exoflora (déc. 1980)
8

Memórias póstumas de Brás Influência do minimalismo no


Cubas Brasil
1904: Revolta da Vacina

1914-1918: Primeira Guerra


Mundial
1890: Aluízio de Azevedo
O cortiço
1930: Crise do Café. Getúlio
Vargas assume a Presidência
por golpe de estado

1939-1945: Segunda Guerra


Mundial 1922: Semana de Arte
Moderna
1937-1945: Estado Novo 1928: Mário de Andrade
Macunaíma
1956-1960: Plano de crescimento
de JK 1938: Graciliano Ramos
Vidas Secas
1961-1964: Movimentos pelas
reformas de base

1964-1984: Ditadura militar


1960: Inauguração de Brasília

1961-1964: filmes e espetáculos


de protesto produzidos pelos
CPCs

1989-2002: Neoliberalismo

1980: Brasil entra na era do


CD
9

3. MÚSICA RELIGIOSA NO BRASIL: até metade do século XIX

3.1. ESTILO ANTIGO E ESTILO MODERNO 4

O estilo antigo baseava-se em normas composicionais derivadas da


música romana contra-reformista especialmente aquelas compostas
por Giovanni Pierluigi da Palestrina (c.1525-1594) e seus
contemporâneos: “polifonia vocal com uso restrito de instrumentos
musicais”.
Já o estilo moderno utilizava técnicas composicionais derivadas da
ópera e da música instrumental, sobretudo italianas.
O estilo antigo e o estilo moderno, conforme Castagna, não
representam categorias estritas, mas sim dois grandes grupos
estilísticos que foram simultaneamente cultivados no mundo católico
até pelo menos o final do século XIX, podendo ser reconhecidos vários
subgrupos para cada um deles

3.1.2. ESTILO ANTIGO (Minas Gerais, São Paulo, Goiás)



CARACTERÍSTICAS

1. Predomínio da formação coral a quatro vozes, com alguns exemplos a


três e outros a oito vozes.

2. Emprego opcional de um instrumento grave dobrando o baixo vocal


(podem ocorrer instrumentos dobrando outras partes vocais em cópias
do século XIX), mas inexistência de partes instrumentais independentes
das partes vocais.

3. Predomínio do sistema modal.

4. Extensão (registro ou âmbito) reduzida das partes vocais (geralmente,


de uma quinta a uma oitava), à exceção do baixo (vocal e/ou instrumental)
que, muitas vezes, excede uma oitava.

4
Cf. texto completo em CASTAGNA, Paulo. O ‘estilo antigo’ no Brasil, nos séculos XVIII e XIX. I
COLÓQUIO INTERNACIONAL A MÚSICA NO BRASIL COLONIAL, Lisboa, 9-11 out. 2000.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p.171-215.
10

5. Utilização de valores largos (a base está nas semibreves e mínimas;


semínimas são menos freqüentes e colcheias muito raras).

6. Pouca variedade rítmica.

7. Estilo predominantemente silábico escrito em partes separadas


(cavadas);

8. Sujeição do ritmo musical ao ritmo do texto latino.

9. Movimento melódico normalmente por graus conjuntos.

10. Superposição frequente de melodias em terças ou sextas paralelas.

11. Raras passagens a solo, duo ou trio por movimentos paralelos.

12. Utilização de cantus firmus baseado em cantochão pré-existente, na


música destinada a algumas unidades funcionais ou cerimoniais.

13. Utilização de quatro texturas musicais, não mutuamente exclusivas:


a) textura homofônica ou acordal
b) textura de fabordão
c) textura contrapontística
d) imitação ou sequenciação motívica

14. Utilização de três sistemas de claves diferentes: claves altas, claves


baixas e claves modernas.

15. Utilização da notação mensural ou proporcional e da musica ficta na


primeira metade do século XVIII.

16. Utilização da notação moderna e da notação moderna com arcaísmos a


partir da segunda metade do século XVIII.

17. Especificidade cerimonial restrita. As obras destinam-se a cerimônias do


Advento e Quaresma (incluindo a Semana Santa), ao Ordinário da
Missa sem
especificação de tempo litúrgico, à Liturgia dos Defuntos, aos Ofícios de
Sepultura, às Vésperas solenes e às Vésperas de Horas Canônicas.

18. Predomínio de cópias sem indicação de autoria.

19. Associação pouco frequente a composições em estilo moderno, na


11

mesma unidade cerimonial.

► Exemplo 1: Heu! Heu! Domine! → Procissão do Enterro. Localizado


nos manuscritos de Mogi das Cruzes. Copiada por Timóteo Lemes. Utiliza
o fabordão para a seção Heu! Heu! Domine! e homofonia para o Sepulto
Domino. A obra foi escrita em "compassinho" (C), sem a utilização de
barras de compasso.5

► Exemplo 2: Heu! Heu! Domine! → Procissão do Enterro. Localizado


na cidade de Goiás. Sem data, sem indicação de autoria e de copista.6

5
Cf. Castagna, Paul; Trindade, Jaelson. Música pré-barroca luso-americana: o grupo de Mogi das
Cruzes. Departamento de Artes da UFPR. Revista Eletrônica de Musicologia. Vol. 1.2/Dezembro de
1996.
6
Souza, Ana Guiomar Rêgo. Op. Cit.
12

► Exemplo 2: Moteto dos Passos, 1. Pater. Localizado na cidade de


Goiás. Sem data, sem indicação de autoria e de copista. Atribuição de
autoria duvidosa: tradicionalmente remetida a Basílio Martins Braga
Serradourada (1809-1874.7

7
Ibidem
13

► Exemplo 3: Moteto dos Passos → 1. Pater: parte do “Suprano”.


Localizado no Arquivo Balthazar de Castro na cidade de Jaraguá. Datado
de 1879. Copiado por Silvério Ribeiro Freitas.8

3.1.3. ESTILO MODERNO

A música religiosa realizada em partes do Brasil, entre o período


compreendido de 1760 a cerca de 1820, não tem uma classificação
unânime em termos estilísticos. Uma das denominações correntes é pré-
clássico. Nesse sentido, parece haver um consenso entre os musicólogos,
na atualidade, que o termo “barroco” é inadequado, e muito mais o termo
“colonial”.

CARACTERÍSTICAS GERAIS 9

1. Formações predominantes: a) coro; b) coro + contínuo; c) coro +


orquestra + contínuo;

8
Ibidem.
9
Castagna, Paulo.
14

2. Utilização do sistema tonal;

3. Escrita em partes vocais e instrumentais;

4. Partes do coro e da orquestra normalmente destinadas a um único


cantor ou instrumentista;

5. Coro era normalmente constituído por quatro pessoas: três homens para
as vozes de “baixa”, tenor e contralto (este último falsetista) e uma
criança para o “tiple” (soprano);

6. Cordas normalmente constituídas de dois violinos e um baixo, portanto,


sem violas;

7. Presença freqüente de um par de trompas e pares de flautas e/ou


oboés;

8. Música predominantemente homofônica, com raras passagens


polifônicas ou fugadas;

9. Obras divididas em seções curtas;

10. Simplicidade nas partes vocais. Passagens mais elaboradas são


destinadas aos instrumentos;

11. Coexistência dos estilos silábico e melismático;

12. Alternância de passagens a quatro vozes (coro), a duas (duo vocal) e


a uma (solo vocal), com o acompanhamento da orquestra ou do contínuo;

13. Passagens corais normalmente homofônicas; as três vozes superiores


normalmente são comprimidas e o baixo possui desenho melódico mais
livre;

14. Duos vocais normalmente homorrítmicos, em terças ou sextas


paralelas;

15. Solos vocais não virtuosísticos;

16. Raras passagens orquestrais (sem o coro), normalmente destinadas a


reforçar o caráter do texto;
15

17. Base estética filiada ao estilo pré-clássico italiano do meio do século


XVIII, com a manutenção de técnicas melódicas e harmônicas
tipicamente barrocas;

18. Manutenção dos “afetos barrocos”: “clichês” melódicos e


harmônicos destinados a explorar os apelos sentimentais do texto;

19. Utilização esporádica da técnica do recitativo e ária “da capo”, mas


de estilo protobarrroco;

20. Exploração da música enquanto espetáculo, com utilização de


elementos extraídos da ópera;

21. Utilização esporádica do canto gregoriano composto com valores


rítmicos definidos.


Resultado da utilização do estilo pré-clássico italiano, tal como
assimilado pela música religiosa portuguesa, porém com o emprego de
reminiscências barrocas e mesmo pré-barrocas.

► Exemplo 4: Moteto das Dores → 4. Dilectus Meus. Localizado na cidade de Goiás.


Sem data, sem indicação de autoria e de copista. Atribuição de autoria duvidosa:
tradicionalmente remetida a Basílio Martins Braga Serradourada (1809-1874.
16
17

3.2. MÚSICA RELIGIOSA NO BRASIL: Livros Litúrgicos

O conhecimento dos livros litúrgicos do cerimonial romano ou


tridentino (o qual vigorou até metade do século XX) é fundamental para o
entendimento da música sacra. Deve-se ter sempre em mente o caráter
funcional dessa música, o que pressupõe o conhecimento da sua situação
ritual. Fato que não só interfere na performance como facilita o
entendimento da sua organização nos manuscritos, os quais, muitas vezes,
juntam em um mesmo conjunto, músicas de autoria diversa e pertencentes
a rituais distintos.

Kirial: Contém as partes cantadas do ordinário da missa.


Gradual: Contém as partes cantadas do próprio da missa.
Antifonário: Contém as partes cantadas dos ofícios divinos de todos os dias do
ano.
Missal Romano: Utilizado para a celebração da missa. Contém as rubricas e o texto
completo do ordinário, próprio e cânon das missas de todos os
dias do ano
Breviário Romano: Contém o texto e as rubricas dos ofícios divinos de todos os dias
do ano
Pontifical Romano: Contém as cerimônias episcopais, ou seja, celebradas pelos
bispos
Ritual Romano: Descreve a administração dos sacramentos, funerais, bênçãos,
procissões e demais funções de responsabilidade do sacerdote,
não reservadas ao bispo.
Processional: Contém o texto e a música das procissões
Cerimonial dos Bispos: Contém instruções sobre as cerimônias episcopais.

3.3. MÚSICA RELIGIOSA NO BRASIL: TIPOLOGIA

DOIS TIPOS DE MÚSICA RELIGIOSA (de acordo com o texto):


► Litúrgica. Texto oficializado pela Igreja e presente nos livros litúrgicos. Idioma:
Latim.

► Para-litúrgica (ou não litúrgica): Texto ausente nos livros litúrgicos ou presente em
versões ou funções diferentes. Idiomas: latim e/ou idiomas locais.
18

3.4. TIPOS DE COMPOSIÇÃO (Terminologia Portuguesa Antiga)


► Cantochão (canto gregoriano): cultivado no interior dos mosteiros, sobretudo
beneditinos. Nas catedrais e igrejas paroquiais era usado nas entoações litúrgicas e em
alternância com o canto de órgão.
► Canto de órgão ou canto figurado (polifonia): polifonia homofônica no
geral, ou seja, sem a utilização em grande escala de contraponto imitativo
► Solfa
3.5. MÚSICA RELIGIOSA NO BRASIL: Instituições, Templos e Clero Católico

3.5.1. Igrejas diocesanas: clero diocesano


► Arquidiocese (ou arcebispado): Catedral (ou Sé) Metropolitana. Maior
autoridade eclesiástica: Arcebispo
► Diocese (ou bispado): Catedral (ou Sé). Maior autoridade eclesiástica: Bispo

► Paróquia: Igreja paroquial ou Matriz. Maior autoridade eclesiástica: Pároco


(ou Vigário).
► Outras instituições diocesanas: capelas coladas, seminários, Santas Casas
de Misericórdia

3.5.2. Conventos e mosteiros: clero regular


►Ordens primeiras: frades e monges.
►Ordens segundas: freiras e monjas.
►Outras instituições monásticas e conventuais: casas, colégios,
seminários.

3.5.3. Capelas particulares: clero secular


►Irmandades, Ordens terceiras, Confrarias: 10
“Deve-se em muito à ação de irmandades e confrarias a persistência
no Brasil de um catolicismo de viés barroco, com sua liturgia pomposa,
formas tradicionais de devoção e festas que hibridavam o sacro e o
profano. Tais organizações eram formadas por fiéis que, sem ter um papel
específico na hierarquia eclesiástica, participavam ativamente da
construção de igrejas, dos atos de culto e se encarregavam das práticas
devocionais. Desenvolveram, simultaneamente, um papel social de grande
relevância, se constituindo em verdadeiras argamassas sociais, para usar
termos de Paulo Bertran, ao contribuírem para a acomodação dos
aglomerados caóticos surgidos a partir da corrida do ouro. Ocupando
espaços deixados vazios pela Igreja e pelo Estado, essas associações
10
Cf. Souza, Ana Guiomar Rêgo. Paixões em Cena: a Semana Santa na Cidade de Goiás (Século
XIX). Brasília, UnB/ Instituto de Ciências Humanas, Departamento de História, 2007.
19

asseguravam aos seus membros certa proteção durante a vida assistindo-os


nas necessidades, bem como garantindo decência após a morte.”
Muito embora, na prática, não se distinguisse claramente as
fronteiras que separavam as várias formas de associações leigas, o
Código Canônico denominava de pias uniões aos grupos de fiéis que se
uniam para exercer alguma obra de piedade ou caridade. Caso se
estabelecesse uma relação hierárquica entre os membros, as pias
uniões passaram a ser denominadas de irmandades; se estas
irmandades fossem eretas para incrementar o culto público recebiam o
nome de confrarias. As pias uniões não se fizeram presentes no Brasil até
finais do século XIX, sendo substituídas por um tipo de instituição
voltada para a caridade e o cuidado de pessoas desamparadas, física e
espiritualmente, conhecida como as Misericórdias ou Ordens Terceiras.
Essas últimas associações de leigos estavam diretamente vinculadas às
grandes congregações religiosas, dentre as quais se destacavam os
Franciscanos, Carmelitas e mais tardiamente os Dominicanos.

MAIOR AUTORIDADE ECLESIÁSTICA: CAPELÃO

3.6. MÚSICA RELIGIOSA NO BRASIL: organização musical em catedrais

► Arcebispo, bispo, vigário, diáconos e outros: sempre clérigos e permanentes.


Cantam trechos litúrgicos específicos, sempre em cantochão.

► Chantre: sempre clérigo e permanente. Entre outras funções (é um alto posto na


hierarquia catedralícia), administra a estrutura musical. Requeria conhecimento
litúrgico, mas não necessariamente musical.

►Capelães: sempre clérigos e permanentes. Cantavam somente em cantochão.

►Moços do Coro: estudantes (deixam a função após a puberdade). Cantam


principalmente em cantochão, às vezes em canto de órgão.

►Organista. Clérigo ou leigo. Contratado por tempo limitado, mas renovável.

►Cantores e músicos: sempre leigos de fora da catedral, contratados somente para


cerimônias específicas. Cantam e tocam solfa ou canto de órgão.

► Mestre da capela: normalmente leigo. Contratado por tempo limitado, mas


renovável Ensina os moços do coro; compõe, canta e dirige a música na catedral ou
outra igreja, quando necessário; convida cantores e músicos de fora da catedral e dirige
sua solfa, quando necessário
20

3.7. MÚSICA RELIGIOSA NO BRASIL: organização musical em Igrejas


Paróquias (Matrizes)

► Mestre da Capela: normalmente leigo. Existia somente na principal paróquia de


uma comarca ou distrito. Contratado por tempo limitado, mas renovável. Compõe,
canta e dirige a música na matriz ou outra igreja, quando necessário, executada por seus
discípulos ou por cantores e músicos convidados, sempre de fora da matriz e pagos
pelo próprio Mestre da Capela. Até meados do séc. XVIII vigorava o sistema do
estanco

3.8. MÚSICA RELIGIOSA NO BRASIL: organização musical em Conventos ou


Mosteiros.

Normalmente executada pelos próprios frades ou monges (freiras ou monjas), em


cantochão. Em casos excepcionais, poderiam existir Mestre da capela e Organista
contratados por tempo limitado e cantores e músicos contratados para cerimônias
específicas.

3.9. MÚSICA RELIGIOSA NO BRASIL: organização musical em Capelas


de Irmandades, Confrarias e Ordens Terceiras.

Na maioria dos casos contratavam-se músicos e cantores (muitas vezes de


conjuntos musicais com atuação regular e diretor próprio) por períodos específicos.

3.10. MÚSICA RELIGIOSA NO BRASIL: música promovida por


Câmaras Municipais (em catedrais ou matrizes)

► Festas Reais: Corpo de Deus (Corpus Christi), Santa Isabel, Anjo Custódio e São
Sebastião
► Diretor de conjunto musical “arrematava” a música das festas reais
de todo o ano em sistema de concorrência pública.
► Comemorações especiais: executava-se Te Deum laudamus. Diretor de conjunto
musical era contratado por “arrematação” somente para a ocasião

4. ESTRUTURA DO ENSINO MUSICAL


4.1. Catedrais: Mestre da capela ensinava música teórica e música prática aos moços
do coro. Eventualmente o mestre escrevia um tratado para o ensino de uma ou outra
categoria, geralmente intitulados arte, compêndio ou escola.

4.2. Igrejas paroquiais (matrizes): Mestre da capela ensinava música prática aos
seus discípulos, que retribuíam pelo ensino cantando nas cerimônias religiosas
4.3. Colégios e Seminários: Mestre de canto ensinava música prática (quase somente
o cantochão) para os futuros clérigos
4.4. Fora dos templos:
21

►Mestre particular ou professor da arte da música ensinava música prática aos


discípulos, que retribuíam pelo ensino cantando nas cerimônias religiosas. Nesse
ambiente, existiam três tipos de músicos:
● Mestres (professores da arte da música): ensinavam e lideravam grupo
musical que oferecia serviços a igrejas e capelas.
● Oficiais (cantores e músicos): ao terminar os estudos com um mestre, passavam a
cantar ou tocar em grupos musicais, recebendo por apresentação.
● Discípulos: estudavam com um mestre, auxiliando-o e cantando gratuitamente.

5. TIPOS DE MÚSICA PRATICADA EM TEMPLOS RELIGIOSOS


(de acordo com o texto)
►Igrejas Diocesanas (catedrais, matrizes, paróquias): música litúrgica (missas,
ofícios, próprio dos tempos, ciclo santoral, liturgia dos defuntos e outros) e para-
litúrgica (terços, ladainhas, procissões, vilancicos, cantadas e oratórias). Livros
litúrgicos utilizados: a maioria.

►Mosteiros e conventos: litúrgica e proprium de ordines (próprio das ordens).


Livros litúrgicos utilizados: a maioria, incluindo os monásticos.

►Capelas: principalmente para-litúrgica (septenários, novenas, trezenas, procissões),


mas também litúrgica em ocasiões indispensáveis (missas, ofícios fúnebres,
cerimônias menores do próprio dos tempos, principalmente Semana Santa). Livros
litúrgicos utilizados: somente o missal (para o cantochão do
celebrante)

2.1. JOSÉ JOAQUIM EMERICO LOBO DE MESQUITA11


(Vila do Príncipe atual Serro, Sec. XVIII --- Rio de Janeiro, 1805)

Foi um organista, regente e compositor. É patrono da cadeira número 04 da Academia


Brasileira de Música. Estudou música com o padre Manuel da Costa Dantas, Mestre-
de-Capela da matriz de Nossa Senhora da Conceição do Serro. Mudou-se em 1776 para
o Arraial do Tijuco, onde instalou na Matriz de Santo Antônio de um órgão fabricado
pelo Padre Manuel de Almeida e Silva. Nessa localidade desenvolveu sua carreira
como organista e compositor. Em 1789 entrou para a Ordem Terceira de Nossa
Senhora do Carmo.

Existem apenas dois manuscritos autógrafos do compositor, a Antífona de Nossa


Senhora (1787) —que se encontra no Museu da Inconfidência— e a Dominica in

11
Cf. Vasco Mariz: História da Música no Brasil, 6ª edição ampliada e atualizada; Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 2005. Cf. pt.wikipedia.org/.../Lobo_de_Mesquita
22

Palmis (1782), mas há muitas cópias manuscritas do restante de sua obra, como
ladainhas missas, ofícios e novenas.

2.1.1. OBRA
a) Música Sacra
• Missa para Quarta-Feira de Cinzas, para solistas, coro misto, violoncelo e
órgão (1778)
• Regina caeli laetare (1779)
• Missa em fá nº 2, para 4 vozes e cordas (1780)
• Missa em mi bemol nº 1, para solistas, coro misto e cordas (1782)
1. Kyrie eleison
2. Christe eleison
3. Et in terra pax
4. Laudamus te
5. Gratias
6. Domine Deus
7. Qui tollis
8. Suscipe
9. Qui sedes
10. Quoniam
11. Cum Sancto Spiritu
• Dominica in Palmis (1782)
• Ofício e Missa para Domingo de Ramos (1782)
• Tercio, para 4 vozes e cordas (1783)
• Tractus para o Sábado Santo (1783)
1. Cantemus Domino
2. Vinea facta est
3. Attende cælum
4. Sicut cervus
• Vésperas de Sábado Santo (1783)
• Antiphona de Nossa Senhora (1787)
• Salve Regina (1787)
• Antífonas para Quarta e Quinta-feira Santas
• Antífonas para Quarta, Quinta e Sexta-feira Santas
• Ária ao Pregador - Ave Regina
• Ave Regina coelorum
• Beata Mater
• Credo em dó, para 4 vozes e cordas
• Credo em fá
• Christus factus est e Ofertório
• Diffusa est gratia, concerto para solistas, coro misto e cordas
• Domingo da Ressurreição
• Heu Domine, para a procissão do Enterro do Senhor
• Heus, para a Procissão do Enterro do Senhor
• In honorem Beatae Mariae (Ladainha)
• In pacem in idipsum
• Ladainha alternada
• Ladainha de Nossa Senhora do Carmo
• Ladainha do Senhor Bom Jesus de Matosinhos
• Laudate Dominum, para o Sábado de Aleluia
23

• Matinas de Natal
• Magnificat
• Magnificat alternado
• Memento a quatro, em sol menor
• Missa concertada e Credo
• Missa de Sábado Santo e Magnificat
• Missa de Santa Cecília
• Missa de Réquiem
• Novena das Mercês
• Novena de Nossa Senhora da Conceição
• Novena de Nossa Senhora do Rosário
• Novena de São Francisco de Assis
• Novena de São José
• Ofício das violetas
• Officium defunctorum
• Ofício e Missa de Defuntos
• Ofício de Semana Santa, para 4 vozes e cordas
• Ofício de defuntos ("Ofício das violetas"), para 4 vozes e cordas
• Ofício de defuntos nº 2, para solistas, coro misto, violoncelo e órgão
• Paixão, Bradados e Adoração da Cruz, para Sexta-feira Santa
• Procissão de Ramos - Cum appropinquaret
• Responsório de Santo Antônio - Si quaeris miracula
• Salmo nº 112 - Laudate Pueri
• Setenário de Nossa Senhora das Dores
• Sequência Stabat Mater
• Te Deum, para 4 vozes e cordas
• Te Deum, em lá menor
• Te Deum em ré

b) Música para órgão

• Difusa est Gratia Tércio


• Domine, tu mihi lavas pedes
24

Partitura autógrafa do Salve Regina (1787)


Lobo de Mesquita
25

No tocante à produção musical, foi na Capitania de Minas Gerais que se desenvolveu o


movimento mais rico e mais coeso do período colonial. No entanto, a vasta produção
colonial mineira exibe uma evolução estilística semelhante à que se observa na
produção arquitetônica: encontramos obras musicais de uma simplicidade pós-
barroca, como as de Manuel Dias de Oliveira (Tiradentes, c.1735-1813) e de autores
anônimos mineiros, distintas da produção pré-classica que floresceu entre c.1760-
c.1820, de autores como J.J. Emerico Lobo de Mesquita (1746?-1805), Marcos
Coelho Neto (1763-1823), Inácio Parreiras Neves (c.1730 - 1793/4) e Francisco
Gomes da Rocha (c.1754-1808), que já lograram uma produção de caráter dramático
mais acentuado, porém plenamente integradas à função religiosa. A última fase da
música colonial mineira, manifesta na produção de J.D. Castro Lobo (1794- 1832), já
exibe uma forte ligação com o classicismo musical italiano, totalmente regida pelas
inovações operísticas, segundo modelos de Giovanni Paisiello, Domenico Cimarosa e
Luigi Cherubini, fazendo surgir obras voltadas em primeiro lugar ao espetáculo - por
meio do virtuosismo vocal e instrumental - e em segundo a religião.

O estilo encontrado na música do Rio de Janeiro colonial, assim como na arquitetura, é


tardio, mais complexo e cosmopolita. José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), apesar
de sua base estética portuguesa e italiana, utiliza também modelos importados de outras
nacionalidades, sendo a riqueza de meios a característica principal de sua produção e de
outros autores do início do séc. XIX. A música instrumental foi mais utilizada no Rio,
em função da presença da corte portuguesa, com obras do próprio Garcia, mas também
de Marcos Portugal (Lisboa, 1762-1830), Sigismond Neukomm (1778-1858), Gabriel
Fernandes da Trindade (c.1790-1854) e outros.
26

Uma certa semelhança pode ser observada entre a produção carioca e paulista colonial.
A cidade de São Paulo, sede do Bispado desde 1745, procurou instalar uma prática
musical que simbolizasse a Igreja triunfante e o poder colonial, sobretudo no período de
atuação, como mestre de capela da catedral, do compositor português André da Silva
Gomes (1752-1844), desde 1774.

Finalmente, a produção colonial nordestina, cujos maiores centros foram Salvador


(Bahia), Recife e Olinda (Pernambuco), foi quase totalmente perdida, impossibilitando
análises mais acuradas. Os raros exemplos sobreviventes, como o Recitativo e Ária de
autor anônimo Baiano, de 1759 (possivelmente escrito por Caetano de Melo Jesus) e
algumas poucas peças de Luís Álvares Pinto (c.1719- c.1789) já manifestam
divergência estilística. O Recitativo e Ária utiliza uma forma plenamente barroca, mas
já exibe características estilísticas mais avançadas, que poderiam ser denominadas pós-
barrocas ou pré-classicas. Luís Álvares Pinto, ao contrário, apresenta uma produção
estilisticamente mais arcaica. Seus modelos são os do barroco português da primeira
metade do séc. XVIII, com uma curiosa aliança entre a manutenção da polifonia antiga
e a economia de recursos composicionais.

Essa prática iniciou-se com uma música no chamado


estilo antigo, ou seja, música ainda de caráter renascentista, que durante o séc. XVIII
foi se renovando de acordo com o crescimento econômico da capitania e com o próprio
desenvolvimento da música européia do período. A música que se praticou em Minas
Gerais nas primeiras décadas utilizou somente vozes e, quando muito, um ou dois
instrumentos musicais graves para o acompanhamento, como ocorrera em São Paulo:
harpa e baixão (antecessores dos fagotes) foram os principais. (Apostila 6)

Entre os representantes dessas primeiras décadas de prática musical em Minas


Gerais, que provavelmente transitou da mera utilização de obras alheias até a
composição de música em estilo renascentista e barroco, estiveram grupos musicais da
região de Ouro Preto, dirigidos por músicos como os padres Manoel de Oliveira (1723),
Manoel Luís de Araújo d’Costa (1725), Antônio de Souza Lobo (1725-1756) e Antônio
Alves Nogueira (1728-1730), além dos músicos leigos Bernardo Antônio (1721-1723),
Francisco Xavier da Silva (1729), Bernardino de Sene da Silveira (1737-1744), Inácio
da Silva Lemos (1737-1762), Antônio Ferreira do Carmo (1738-1747), Caetano
Rodrigues da Silva (1739-1783) e Marcelino Almeida Machado (1740-1752), entre
outros.2

era denominado ajuste. Um desses ajustes - entre a Irmandade de Nossa


Senhora das Mercês de Vila Rica e o mestre Miguel Dionísio Vale em 1793- foi
publicado
por Francisco Curt Lange:
“Condições do novo ajuste da música anual e seus reforços, que
se fez com o ajustante Miguel Dionísio Vale, tudo na forma que abaixo
se declara em 23 de novembro de 1793.
3 LANGE, Francisco Curt. A música no período colonial em Minas Gerais. In: CONSELHO ESTADUAL
DE CULTURA EM MINAS GERAIS. [I] Semimário sobre a cultura mineira no período colonial. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial, 1979. p. 38.
5
Será obrigado o ajustante da música a ter pronto um coro, que
27

constará de quatro vozes boas, um rabecão, quatro rabecas e duas


trompas, e com este dito coro fazer os atos dos jubileus desta irmandade
e as mais funções abaixo declaradas, tudo na forma do costume
Será obrigado a fazer a Novena e Festa de Nossa Senhora das
Mercês, reforçando ou aumentando o dito coro com dois clarins, mais
uma clarineta, um buê, tudo [o] melhor que puder ser.
Será obrigado a fazer a Novena e Festa de Nossa Senhora da
Saúde, reforçando e observando inteiramente o que fica dito da Novena
e Festa da Senhora das Mercês.
Será obrigado a cantar uma missa ao Senhor Bom Jesus dos
Perdões em o dia três de maio, como é de costume, e não será obrigado
a reforçar o coro, como nas duas festas acima declaradas.
Será obrigado a cantar uma Missa em Quinta-feira Santa,
havendo de se expor nesta capela o Santíssimo Sacramento.
Será obrigado a cantar o Memento nos enterros de alguns irmãos
que nesta irmandade tenham algum merecimento, ou nela servido de
oficial, etc.
O ajustante terá o cuidado em que não falte alguma voz ou
instrumento do partido.4 Em semelhante caso, o ajustante [a] suprirá
logo, admitindo uns em falta de outros, e não fazendo assim, [a] suprirá
a Irmandade, por conta do ajuste anual, ou descontará na ocasião do
pagamento que a Irmandade será obrigada a fazê-lo, logo prontamente
depois da festividade da Senhora das Mercês.”

As irmandades exerciam forte competição entre si, visando obter mais adesões e,
com isso, maior arrecadação em anuidades. Por outro lado, as irmandades não tinham
licença da Igreja para a execução de música em quaisquer cerimônias. Pelo contrário,
cada irmandade recebia autorização para celebrar apenas algumas cerimônias do
calendário litúrgico.

Foi esse mecanismo de concorrência entre as irmandades que forçou os músicos


mineiros, em primeiro lugar à criação musical e, em segundo, a uma constante
atualização em relação aos estilos religiosos vigentes na Europa, para garantir a própria
sobrevivência enquanto compositores.

O segundo foi a necessidade que esses compositores tiveram de dominar mais um estilo,
agora o pré-clássico, só que desta vez com uma perícia nunca antes observada no país.
Esse estilo, originário da Itália, mas difundido em Portugal a partir do centro do séc.
XVIII, foi rapidamente assimilado em Minas Gerais. Com isso, Portugal passava a ser,
para os músicos mineiros, apenas um intermediário inevitável entre a Itália e a América.
Entre os principais representantes dessa fase da música mineira estiveram os
compositores de Vila Rica (atual Ouro Preto) Inácio Parreiras Neves (c.1730-c.1794),
Francisco Gomes da Rocha (c.1754-1808), Marcos Coelho Neto (1763-1823) e
Jerônimo de Souza Lobo (que floresceu entre c.1780-1810), entre outros. Destacaram-se
28

também, de outras cidades mineiras, José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, da


Vila do Príncipe, atual Serro (1746?-1805) e Manoel Dias de Oliveira (c.1735-1813),
de São José Del Rei, atual Tiradentes.

O estilo predominante da música religiosa mineira entre cerca de 1760 e cerca de 1820
não tem recebido nenhuma denominação unânime até o momento, devido a várias
controvérsias estilísticas, mas principalmente a uma falta do conhecimento desse
repertório, ligado à falta de edições ou gravações e à dificuldade de acesso a
determinados acervos de manuscritos musicais. Uma das denominações correntes, no
momento, é pré-clássico, mas jamais se poderá definir esse estilo enquanto “barroco”
ou, o que é pior, “colonial”. Suas principais características são as seguintes:

1. Formações predominantes: 1) coro 2) coro + contínuo; 3) coro + orquestra +


contínuo;
2. Utilização do sistema tonal;
3. Música normalmente composta por músicos mulatos semi-profissionais;
4. Escrita em partes vocais e instrumentais;
5. Partes do coro e da orquestra normalmente destinadas a um único cantor ou
instrumentista;
6. Coro era normalmente constituído por quatro pessoas: três homens para as
vozes de “baixa”, tenor e contralto (este último falsetista) e uma criança para
o “tiple” (soprano);
7. Cordas normalmente constituídas de dois violinos e um baixo e, portanto,
sem violas;
8. Presença freqüente de um par de trompas e pares de flautas e/ou oboés;
9. Música predominantemente homofônica, com raras passagens polifônicas ou
fugadas;
10. Obras divididas em seções curtas;
11. Simplicidade nas partes vocais. Passagens mais elaboradas são destinadas aos
instrumentos;
12. Coexistência dos estilos silábico e melismático;
10
13. Alternância de passagens a quatro vozes (coro), a duas (duo vocal) e a uma
(solo vocal), com o acompanhamento da orquestra ou do contínuo;
14. Passagens corais normalmente homofônicas; as três vozes superiores
normalmente são comprimidas e o baixo possui desenho melódico mais livre;
15. Duos vocais normalmente homorrítmicos, em terças ou sextas paralelas;
16. Solos vocais não virtuosísticos
17. Raras passagens orquestrais (sem o coro), normalmente destinadas a reforçar
o caráter do texto;
18. Base estética filiada ao estilo pré-clássico italiano do centro do século XVIII,
com a manutenção de técnicas melódicas e harmônicas tipicamente barrocas;
19. Manutenção dos “afetos barrocos”, “clichês” melódicos e harmônicos
destinados a explorar os apelos sentimentais do texto;
20. Utilização esporádica da técnica do recitativo e ária “da capo”, mas de estilo
pós-barrroco;
21. Exploração da música enquanto espetáculo, com utilização de elementos
extraídos da ópera;
22. Utilização esporádica do canto gregoriano composto com valores rítmicos
definidos;
29

23. Resultado da utilização do estilo pré-clássico italiano, tal como assimilado


pela música religiosa portuguesa, porém com o emprego de reminiscências
barrocas e mesmo pré-barrocas.
i
“Derrama” tem dois significados no dicionário Aurélio. O primeiro significado, original, português, define derrama
como o “tributo local, repartido em proporção com os rendimentos de cada contribuinte”, significado que ainda
hoje lá prevalece. Um imposto, no antigo Direito português, lançado sobre todos para suprir gastos extraordinários,
“derramado” sobre todos. As características principais da derrama portuguesa são o caráter local do tributo e seu
uso para cobrir gastos extraordinários – por oposição a resolverem-se desequilíbrios fiscais transitórios pela via do
corte nos gastos. Como um simples exemplo do noticiário econômico português atual ilustra, o caráter “extraordinário”
da derrama portuguesa muitas vezes é ignorado. O segundo sentido do Aurélio é o do falar brasileiro do século XVIII,
“na região das minas”: a “cobrança dos quintos em atraso ou de um imposto extraordinário”. O que há de comum nas
duas acepções é o caráter extraordinário do tributo. Cf. http://www.institutoliberal.org.br/conteudo/download.asp?
cdc=516

ii
O Governo de D. Maria I, a louca, fica conhecido como A Viradeira, em função do veto a certas medidas adotadas
pelo Marquês de Pombal (demitido do cargo). Vetou certas medidas contrárias à Inglaterra. Só não vetou a mudança de
capital e nem a expulsão dos jesuítas.

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