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www.revista365.com
#29
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

PINTO
EDUARDO
ELMANO MADAÍL
FERNANDO RIBEIRO
JOÃO PEREIRA COUT
INHO
JOSÉ LUÍS PEIXOTO
PASTOR
MÁRIO BRUNO
NUNO CASIMIRO
PEDRO SENA-LINO
VALTER HUGO MÃE
VASCO BARRETO

ON-OFF
fotografia Rockie Nolan

EDITORIAL
De todas as mudanças por que a
365 passou ao longo da sua existência,
a que o presente número protagoniza é,
provavelmente, a mais extrema. E não
falamos de conteúdos, desta vez, mas
do caminho que a menina dos nossos
olhos passará a tomar até ao leitor: debalde as silvas e os tojos
corrompendo a alvura das suas castas pernas, irá agora pelo atalho mais
curto; passará a ser de distribuição gratuita.

Sabemos que aquele macaco mecânico que fala castelhano e dá


brindes, a máquina das latinhas de pistácios e de amendoins picantes e a
geringonça dos peluches devem estar a dar vivas e a gritar vitória,
pensando que, assim, a moeda de dois euros, por falta de préstimo, lhes
acabará nas respectivas ranhuras, mas não nos importamos: o ressaibo não
mora aqui. Tudo o que queremos é levar os autores que generosamente
nos confiam os seus trabalhos ao público mais vasto que nos for possível.

Portanto, este número estará à disposição sobretudo em livrarias


e alguns bares – sendo apenas necessário, para ficar com ele, pegar nele,
sem senhas, abre-te-sésamos ou ósculos em código nas bochechas rosadas
e expectantes de quem quer que seja.

E para comemorar a mudança, decidimos revisitar alguns


números idos e recolher deles trabalhos que, de uma forma ou de outra,
nos marcaram: eis-vos, pois, perante uma espécie de best of . E digo
espécie e não best of sem rodeios porque esta é apenas uma das selecções
possíveis, dada a quantidade e o interesse do material que fomos
acumulando.

A acrescentar ao lote, um inédito – pelo menos nestas páginas –:


o conto «Márcia Fúnebre», de Pedro Sena-Lino, publicado originalmente
no volume «Museu de História Sobrenatural» (Autoria, 2007), mas revisto
para a presente edição.


António Gregório

365
01
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Rockie Nolan, Vasco Barreto
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Cego, surdo e mudo
— produções multimedia
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Robin Hood
CAPA
Rockie Nolan

365
02
01 Editorial 04 Biografias 06 Eduardo Pinto Porque não gosto de
maestros 10 Elmano Madaíl Ad aeternum... 14 João Pereira
Coutinho As palavras propriamente ditas 22 Micael Póvoa
The effects of indie music 24 Mário Bruno Pastor Os cães de Olenka
30 365 Serviço público 32 valter hugo mãe sexta carta 34 José
Luís Peixoto O grande amor do mudo 38 Nuno Casimiro
C.S.I. Coisas sem importância 45 365 Brinde 48 Vasco Barreto
O Soldado, crónica de um colecionador 54 Fernando Ribeiro Visita
sobre o bairro das pessoas 58 Pedro Sena-Lino [Márcia Fúnebre]

fotografia Joanna Kudzbalska

365
03
Eduardo Pinto é o pseudónimo de um Eduardo cujo apelido
FOTOGRAFIA FELICIA SIMION

BIOGRAFIAS real é parecidíssimo com Pinto. «Porque Não Gosto de Maes-


tros» foi publicado no número 20, em Maio de 2005.
Elmano Madail nasceu em Águeda há 38 anos. É jornalista do
JN. O conto «Ad Aeternum...» foi publicado no número 26,
em Maio de 2008.
Fernando Pinto do Amaral nasceu em Lisboa, em 1960. É
poeta, professor, crítico literário e ensaísta. O seu livro mais
recente é um romance, chama-se «O Segredo de Leonardo
Volpi» (Dom Quixote, 2009). O conto «Oceano Pacífico» foi
publicado no número 23, em Abril de 2006.
Fernando Ribeiro é músico dos Moonspell e poeta. O seu
mais recente livro de poemas chama-se «Diálogo de Vultos»
(Quasi, 2007). O conto «Visita Sobre o Bairro das Pessoas» foi
publicado no número 19, em Fevereiro de 2005.
João Pereira Coutinho nasceu no Porto, em 1976. É formado
em História, na variante de História da Arte e pós-graduado em
Ciência Política e Relações Internacionais. O seu livro mais re-
cente, «Avenida Paulista» (Quasi, 2008), reúne algumas das
crónicas que publicou na imprensa, nos últimos anos. É autor
do sítio www.jpcoutinho.com. O conto «As Palavras Propria-
mente Ditas» saiu no número 7, no Outono de 2002.
José Luís Peixoto nasceu em Galveias, distrito de Portalegre,
em 1974. É poeta e romancista. A sua mais recente recolha de
poemas chama-se «Gaveta de Papeis» (Quasi, 2008), e o seu
mais recente romance «Cemitério de Pianos» (Bertrand, 2006)
– estando anunciado um novo para o fim do ano. Mas é sobre-
tudo por ter sido editor da 365 que José Luís Peixoto é conhe-
cido. O conto «O Grande Amor do Mudo» foi publicado no
número 14, em Abril de 2004.
Mário Bruno Pastor nasceu no Porto em 1976. Padece de
bissextismo e custa-lhe a aceitar que existam calendários para
os anos vindouros. A par disso tem publicado poesia em edi-
ções literárias colectivas. O conto «Os Cães de Olenka» foi pu-
blicado no número 24, em Março de 2007.
Nuno Casimiro nasceu em 1977, em Coimbra, viveu no Porto
e agora vive em Santander. É autor de «Histórias de embalar»
(Quasi, 2000). O conto «CSI – Coisas Sem Importância» foi
publicado no número 24, em Março de 2007.

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Pedro Sena-Lino nasceu em Lisboa, em 1977. É poeta, crítico e formador
de escrita criativa. O seu primeiro romance, «333», será publicado em Julho,
pela Porto Editora. O conto «Márcia Fúnebre» é inédito nas páginas da
365.
valter hugo mãe nasceu em Angola, em 1971. Com o romance «o remor-
so de baltazar serapião» (Quidnovi, 2006), venceu o Prémio José Saramago,
tendo publicado, depois desse, «o apocalipse dos trabalhadores» (Quidnovi
2008). Como poeta, tem parte da sua obra reunida no volume «folclore ín-
timo» (Cosmorama, 2008). «sexta carta» foi publicado no número 14, em
Abril de 2004.
Vasco Barreto foi um dos editores que passou pela 365. O conto «O Solda-
do» foi publicado no número 22, em Novembro de 2005.

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empenham um
Muitos são os ofícios que des
nço da humani-
papel fulcral no progresso e ava
ximos a medici-
dade. Temos como exemplos má
os, a biologia
na, a afinação de carros quitad
Contudo, outros
molecular e o coleccionismo.
ncia prática é al-
métiers existem cuja sua importâ
pior do que isso
tamente diminuta, senão nula. E
em amplamente
é o facto de tais profissões ser
ade , considerada
respeitadas em toda a socied
os, obviamente,
esta num eixo transversal. Falam
os – porém,
de um dos mais inúteis trabalh
humanidade já
dos mais prestigiantes – que a
conheceu: ser maestro.
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a oportunidade de me des-
No passado mês de Dezembro, tive ,
ornos pouco claros, cujo conteúdo
locar a Veneza, numa viagem de cont nto, sim, que
não vou aqui reve lar. Adia
por razões de segurança pessoal, s,
a minh a estad ia na Avei ro italiana peripatetiquei-me por viela
durante Rele mbrei as
judia rias e logg ias sinis tras.
ruas obscuras, cafés famosos, re-
ch e o seu quase amor por Tadzio,
passadas de Gustav von Aschenba Malt ese, Hem in-
Woody Allen e Cort o
lembrei Visconti e Dirk Bogarde, com pree nder
pend ente men te de não
gway e o bom leão. Tudo isto inde os
bonita que Aveiro, onde, ao menos,
em que é que esta cidade é mais o O Sole Mio ao
ceiros não cantam
proto-gondoleiros que guiam os moli
berros.
ntrava-me sentado na es-
Numa determinada terça-feira, enco do e
do pelo Sirocco, a beber um traça
planada do café Florian, hipnotiza um velho cana -
a San Marco, quando
a observar a luminosidade da Piazz De imed iato, su -
a ir ver Don Giov anni .
lha e amigo italiano me desafiou sobr e as virtu des
prof erir uma pale stra
pus que o conhecido allenatore iria
prontamente fui instruído que o dito
quase melódicas do catenaccio, mas
que uma ópera do gigante Wolfgang
Don Giovanni mais não se tratava -
undo admirador e conhecedor. Acei
Amadeus Mozart, de quem sou prof lica dos meu s fins
a mon oton ia alcoó
tei o convite como forma de quebrar
reconstruído La Fenice.
de tarde venezianos e lá rumei ao -
escusados detalhes a minha chega
Serve este intróito para descrever com , efus ivam ente
como habi tualm ente
da triunfal ao La Fenice, onde fui,
pelo port eiro e por mais duas ou três pessoas que devo conhecer
saudado
obsc uro.
de algum lado mais ou menos ,
ópera foi, como sempre, supina. Aliás
Posto isto, cumpre-me dizer que a já tinha visto o
lembrei-me logo que
ao soarem os primeiros acordes, -
em Alva lade , tend o-lhe até pedido, aos berros, para tocar o Papa
Mozart
geno.

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ver-
Falemos, então, do que me faz tergi
e assu nto: a funç ão do mae stro.
sar em redor dest
mano convicto,
Sinceramente, e sendo eu um meló
ebo- a tão bem
nunca a percebi. Ou melhor, perc
e do burr inho no presé-
como a presença da vaca
mero cont exto aces sório . Ora,
pio, ou seja, num
tem de revo ltant e quan do se cumpre o
isto nada
g in its right pla-
desígnio de Thom Yorke: everythin
é intui tivo, não se verifica
ce. E tal desígnio, como
vez que o mae stro é o tipo que
nestes casos uma
louro s todo s, quan do pouc o ou nada fez
colhe os
para isso. Senão vejamos.
ele, só
A primeira ovação é sempre para
de entra r em cena . Aind a não
pelo simples facto
de dign o e já está a com er com palmas e
fez nada
adeiro sentido
mais palmas. A única coisa com verd
a sua activ idade – seja
que um maestro faz em toda
perfo rman ces ao vivo – é aquele
em ensaios ou em
subida de bra-
inspirar profundo, seguido de uma
a música come-
ços, em um e dois e três e zás, que
ão, uma coordenação
ce. Aí sim, há alguma funç
que deze nas de instr umentistas
útil que permite
nte ao mes-
comecem a tocar uma obra exactame
o que, como se
mo tempo, sem falsas partidas,
que o perc ussio nista ou o
sabe, é algo difícil. Claro
– elem ento s que nas orqu estra s
tipo dos pratos
a pont a de um
também não fazem praticamente
r exactamente
chavelho e são pagos – podiam faze
de ser o tipo com ar mais
o mesmo. Mas não. Tem
o, para conf erir uma certa soleni-
velho e respeitad
a mexer a batuta
dade ao certame. Depois, anda ali
r da melodia –
de um lado para o outro, ao sabo
com o míni mo de sentido
coisa que qualquer tipo
faze r sem ter de dizer que passou
rítmico poderia
School of Music
pelo conservatório, pela Guildhall
Acad emia de Mú-
and Drama em Londres ou pela
ajud ante que lhe muda as
sica da PSP –, tem um
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páginas da partitura – o que indicia que até pode
não saber ler uma pauta – e, por regra, usa um ar
grave e sério para as partes pesadas da estrutura
musical e um ar aborboletado para as partes mais
aligeiradas. Durante a obra que rege, deve, prova-
velmente, ir pensando nas compras que tem que
fazer, no fraque que veste e que lhe fica a matar,
vai olhando lascivamente para a segunda violinista
– um clássico – e tudo isto sob a veste disfarçante
da mais absorvente compenetração. Algumas ho-
ras mais tarde arrisca-se a ser ovacionado de pé.
Nada de mais, quando comparado com o que vem
a seguir: flores, mais aplausos, calorosos amplexos
acompanhados de frases do género “brilhante”,
“magistral”, “dotou esta ópera de uma nova
vida”, entre muitos outros elogios absolutamente
imerecidos, quando o que o batutas fez é quase
igual a zero. Honrosa excepção nesta absorção de
méritos é apenas o reencaminhamento de parte
das estrondosas ovações mencionadas há pouco
para os verdadeiros executores que são os instru-
mentistas. Depois, chegam as regalias, os salários
principescos, o nome que no disco se sobrepõe ao
do próprio compositor e aquela aura quase mística
que se traduz muito bem na frase que se diz a um
próximo: “devias ir ver esta sinfonia, o maestro é
fulano”. Como toda a gente sabe, isto é verdadei-
ramente revoltante e ultrajante: insulta os compo-
sitores e a sua memória, insulta os instrumentistas
e o seu virtuosismo. Glorifica-se o intermediário,
esquece-se o produtor da matéria prima e o com-
prador final. Jean Baptiste Say – que esteve para
ser maestro – e Karl Marx, esse melómano, por cer-
to que dão voltas na tumba com isto. Eu próprio
não escondo o meu incómodo. Maestro, caros lei-
tores, só há um: o Rui Costa. k

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ELMANO MADAIL

Ad Aeternum…
ilustração ALEX GOZBLAU

Militar medíocre inflamado


por sonhos imperiais nunca cumpridos,
num fracasso atribuído a difusa conspi-
ração judaico-maçónica ordenada pelo
Kremlin, simpatizante professo da disci-
plina teutónica e tão obsessivo como
Kant pela pontualidade, o pai de Arle-
quim tornara-se, com a viuvez súbita e a
gota inclemente, obstinado no controlo
do tempo.

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Austero, permitia-se um único prazer: coleccionar máquinas
para aferir o tempo gasto. Com muito método e maior investimento, o
cronófilo castrense acumulou centenas, senão milhares, de relógios. De
toda a sorte e feitio, com origem e sofisticação diversas, no intuito do ri-
gor absoluto na medição dos instantes. Adquiriu, até, como corolário da
sua excentricidade, uma réplica do Astrário de Giovanni Dondi, mais per-
feita ainda do que a exposta no relicário suíço de La Chaux-de-Fonds,
empenhando no desvairado negócio todas as jóias legadas pela esposa
suicida.
A vetusta residência, partilhada com o filho único, Arlequim –
suportado com menos complacência do que as dores nas articulações –,
foi enchendo, até à saturação do espaço disponível, de cronómetros sem
conta. Neles se dedicava o velho coronel, atirado para a reforma compul-
siva na sequência do saneamento político que o tomara por fascista, a
regular o compasso dos engenhos visando a sincronia total. Com o mo-
nóculo de ourives rente ao globo ocular e um funil cravado no ouvido,
vigiava-lhes a rotação dos ponteiros, auscultava-lhes o evoluir das engre-
nagens, saltitando de um para outro relógio e percorrendo todos numa
urgência de estafeta, até os declarar afinados.
Depois, sentado na penumbra da sala, aguardava, imerso num
tiquetaque colossal e tomado de expectativa febril, pela hora certa, que
faria soar um escarcéu de badalos e campainhas, anunciando aos gritos o
dobrar do derradeiro segundo. Nunca conseguiu, porém, dominar a re-
beldia dos mecanismos. E, no meio da cacofonia que assolava a casa vinte
e quatro vezes por dia, o duro coronel, que degolara pretos nas savanas
ultramarinas, entregava-se ao choro convulso da suprema frustração, an-
tes de volver à zelosa tarefa do acerto radical. Debalde.
Tamanha obstinação acabou por lhe consumir as energias
e roubar as atenções ao herdeiro que, de qualquer modo, já pouco as
recebia. E sempre por via da reprimenda colérica ou do tabefe impositivo.
De modo que, internado aos 12 anos num seminário recôndito, a cargo

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de cenobitas dados à contemplação, Arlequim preferia a cruel praxe dos
noviços à indiferença do pai e à sinfonia atonal da sucessão dos minu-
tos.
E, quanto mais obsessivo se tornava o velho oficial pela mira-
gem da pontualidade extrema, desgastando-se em fúrias vãs com a inso-
lência arrítmica dos relógios, menos ensejo tinha Arlequim de tornar a
casa. No seminário, as tarefas sucediam-se no suave silêncio de uma vi-
vência serena, consoante a rotação do sol e não das rodas dentadas.
Se as houvesse, jaziam no único relógio do maciço prédio conventual,
cuja construção orçaria quatro centúrias, talvez mais. Fora congelado, po-
rém, numa hora indiferente por uma tempestade de raios e trovões, que
lhe desarranjou o mecanismo de escape de cilindro e roda. Demasiado
antigo para ter conserto. Mudo e quedo, pregado no torreão da bibliote-
ca monástica, na paralisia de tal relógio reconhecia Arlequim o símbolo da
sua liberdade. Provisória, todavia.
Até que, no dia segundo de Agosto, deixou de haver relógios e
pai, varridos todos por uma deflagração poderosíssima. Embora chegado
na véspera, para gozo das primeiras férias estivais, Arlequim não estava
em casa. Saíra pouco antes, para um passeio solitário nas ruas vaporosas
dissolvidas pela canícula, escapando ao horror das chamas, à fragmenta-
ção do corpo explodido. Eludindo o destino do pai. O coronel obtuso fora
vítima de uma fuga de gás, conforme garantia o relatório dos bombeiros
locais, algo surpreendidos pelos estragos de uma só bilha de propano.
Extinta a última faúlha, Arlequim deitou fora os fósforos e ador-
meceu. Com um sorriso estranho, atribuído, pelo bando que o adoptou,
ao desnorte da orfandade recentíssima e à privação das primeiras férias
em família. Puro engano, pois semelhante sorrir só acomete os virtuosos,
esses poucos que logram descobrir a felicidade plena nas coisas mais sim-
ples e fundamentais. Como o silêncio. E a doce alforria de um amor filial
improvável.k

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JOÃO
PEREIRA
COUTINHO
as palavras
propriamente
ditas

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– Quando reparo na forma como olhas para mim, quando olhas e sabes
que não olho, quando vês e reparas o que faço, quando faço o que faço,
e então dizes as palavras que só tu sabes, e são sempre palavras de amor,
e eu penso: então eu penso que tens medo de um silêncio, um silêncio
qualquer a alastrar, e que o preenches como deves, ou achas que deves.
Só então tu falas.
– Como agora?
– Sim, como agora. E quando não falas, são os teus pensamentos.
– Mas tu não ouves os meus pensamentos.
– Talvez por isso. Ouço o que não ouço. É o silêncio que eles fazem. O
silêncio das tuas palavras perturba-me mais do que as palavras ditas, as
palavras propriamente ditas. E então peço-te que fales, o que é a mesma
coisa, porque não consigo suportar a ausência das tuas palavras. Ou a
presença delas. Não sei.
– Então o que queres que faça?
– Apenas que faças. Que nunca digas o que fazes ou não fazes. Não me
interessa o que pensas de mim, o que dizes ou consentes. É-me indiferen-
te.
– Talvez não gostes da minha voz. Talvez seja só isso.
– Talvez seja só isso. Mas já é muito, para ser alguma coisa, não é?
– É.
– Mas gosto das tuas mãos. Acho que gosto apenas das tuas mãos. Vive-
ria com elas o resto dos meus dias, mesmo sabendo que «o resto dos
meus dias» é a pior expressão que existe, para além de ser muito tempo
para existir, ou muitos dias, o que é a mesma coisa.
– Talvez as faça em gesso e então serão só tuas.
– A cópia das tuas mãos não será nunca as tuas mãos. Gosto de as sentir
quentes ou frias, normalmente frias, e gosto quando me tocas o rosto, o
que é uma intromissão, mas é bom na mesma e eu não me importo.
– E gostas dos meus pés?
– Acho os teus pés horríveis. Mas sou capaz de simpatizar com a tua boca.
Talvez nem seja a tua boca toda, apenas o teu lábio inferior, quando o
sinto entre os meus lábios, quando te beijo, ou melhor, quando não te
beijo, sinto apenas os meus lábios sobre os teus, muito quietos que não
parece nunca um beijo.
– Gostas da minha coninha?
– Não se diz isso. É feio.
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– E a coninha: achas a minha coninha feia?
– Já vi coninhas melhores, se queres que te diga. Mas não é uma coninha
feia.
– Parvo.
– Já vi coninhas vaidosas, alegres, simpáticas, arrogantes, cerebrais, intui-
tivas, cordiais, virtuosas, prazenteiras, românticas, bondosas, medonhas,
infantis, ciumentas, vulgares, incompreendidas, entusiastas. A tua coni-
nha só tem pouca personalidade. Não é grave.
– O que queres dizer com isso? Olha para ela com atenção.
– Estou a olhar.
– Achas que lhe falta assim tanta personalidade? Olha bem.
– Acho.
– O que queres dizer com isso?
– Personalidade. Atitude. É uma coninha passiva. Parece-me lenta. Nunca
ouviste a história da coninha adormecida? Não sei se me entendes. É uma
coninha mandriona, é o que é.
– Uma coninha mandriona?
– Não te rias. Não é motivo para risos.
– Não me estou a rir.
– Então é ela. Olha para ela. Ri-se de quê, esta puta interesseirona?
– Ri-se de ti e da tua pichota ridícula.
– Qual é o mal da minha pichota? É uma pichota elegante, dir-se-ia até
distinta, helénica, vigorosa, apessoada, tranquila, apolínea, marmórea e
culta.
– É uma pichota pequena, meu amor. Sempre disse que era muito peque-
na, parece meio atarracada. O teu pai é asiático?
– Não.
– A tua mãe?
– Não.
– A tua pichota?
– Já lá esteve e não gostou.
– Só dizes disparates. Além disso gosto dela. Não fiques assim. É uma pi-
chota gorda, gosto de a sentir entre os dedos, dura e quente, apertá-la
quando te beijo, quando te vens nas minhas mãos.
– A tua conversa dá-me nojo. És uma nojenta. Uma putinha nojenta. De-
vias ter tento na língua. Afinal, sou teu tio.
– Que mania tu tens de dizer isso. Que és meu tio.
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– Sou. O teu pai é meu irmão. É um segredo muito bem guardado, nin-
guém sabe de nada. Mas o meu pai fodeu a tua família inteira, incluindo
a tua avó, que era um anjo muito belo e muito triste, mas levemente dis-
tante. Normalmente, estava sempre a dois ou três metros daqueles que
lhe saltavam em cima. O que foi? Não me batas na cabeça, merda.
– Quero que te cales imediatamente com isso. És um mentiroso. Claro que
és um mentiroso. Excitas-te com isso, tarado?
– Naturalmente que sim. É para compensar.
– Para compensar o quê?
– A frieza da sobrinha.
– Quero-te fora desta cama.
– Não se fala assim com um tio. Respeitinho. Já andei contigo ao colo
muitas vezes. Mudei-te fraldas e limpei-te o cuzinho. Já na altura tinhas
um cuzinho bonito.
– Gostas do meu cuzinho?
– Não é assim. É: gostas do meu cuzinho, tio?
– Gostas do meu cuzinho, tio?
– Gosto. E agora perguntas: é o cuzinho mais lindo que já viste, tio?
– É o cuzinho mais lindo que já viste, tio?
– É. É o cuzinho mais lindo que o tio já viu.
– Posso perguntar mais coisas?
– Não.
– Estás a ser infantil.
– Não perguntas nada. Para isso era preciso alguma inteligência, coisa que
não tens e que dificilmente terás. Compreendeste?
– Porque é que me bateste na cara?
– Porque és estúpida como uma porta.
– Pára de me bateres.
– Paro se me contares uma anedota. Mas não pode ser uma anedota
porca. Se vieres com porcarias, arreio-te com o cinto.
– O quê?
– Estás a rir, putinha?
– Arreio-te com o quê?
– Pára de rir.
– Falas como um campónio. Se calhar és um. Onde é que nasceste?
– Nasci na cidade. Mas falo como os homens do campo porque acredito
que a proximidade com a terra nos faz melhores. Lê Thomas Wolfe e
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compreendes que é à terra que devemos a vida e a eternidade. Acabare-
mos todos por adormecer no frio onde repousam os corpos.
– Eu não. Quero ser cremada, as cinzas sobre as ondas, e talvez o vento
me leve em procissão pelo mar.
– És tão ridícula e previsível. Agora toda a gente quer ser lançada ao mar.
Não há respeito pelo corpo. Se Deus quisesse que fôssemos cremados,
tinha-nos feito troncos de madeira. Mas não: somos feitos de pele, esta
pequena variação da terra negra e escura que nos espera. Além disso,
achas higiénico que se lancem pessoas ao mar? Se calhar até achas. Falar
de higiene contigo é uma conversa de doidos. Conta lá como lavas a co-
ninha, conta. É a melhor anedota que sabes.
– Mas tu disseste que não querias coisas porcas.
– É verdade. É melhor não contares nada. Agora só quero que me beijes.
– Não me apetece.
– Não é uma questão de vontade. A vontade tem pouco a ver com isto.
– Podes beijar-me, se quiseres. Eu fico onde estou.
– Quero.
– Gostaste?
– Gostei.
– Mas eu não te beijei a ti. Os meus lábios estão parados. Parados.
– Melhor assim.
– Sou um corpo parado e é assim que devo ser?
– Sim. Não gosto que me beijem. Gosto de te beijar prolongadamente.
Mas só eu. Não é nada contigo. Mas é tudo para ti. A ideia de partilhar só
se aplica a coisas visíveis e inúteis – um livro, uma laranja, um par de peú-
gas. Para tudo o resto, as partilhas são imperfeitas, para não dizer anedó-
ticas. As pessoas não se beijam. Há sempre uma que beija mais do que a
outra. Que ama mais do que outra. Que sente ou sofre mais do que a
outra.
– Posso dizer que te amo?
– Não. Só eu posso dizer que te amo. E amo-te muito. Mais do que pen-
sas.
– Talvez queiras casar comigo. És doido o suficiente para isso.
– Quero, quero muito casar contigo. Aceitas ser a minha legítima esposa,
na saúde e na doença, até que a morte nos separe? É assim que se diz,
não é?
– Porque é que estás nessa figura, de joelhos? Ficas ridículo de joelhos, aí
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na alcatifa, a tua pequena pichota como um enfeite de Natal pendurado
no teu corpo. Levanta-te e caminha.
– Ainda não quero ir para a caminha. Isto agora é a sério. Não te rias.
Ouve o que te digo: casa comigo e faz de mim um homem feliz.
– Quero fazer amor outra vez.
– Primeiro, casamos. Nunca concordei com sexo antes do casamento. Te-
mos a minha pequena pichota como padrinho e a tua coninha mandriona
como madrinha. E chega. Agora enfia isto no dedo e diz as palavras.
– Um preservativo?
– Enfia-o no dedo. Não é nesse dedo. É no anelar. Isso. Agora: aceitas ser
minha esposa, na saúde e na doença, até que a morte nos separe?
– Espera. Que espécie de doenças? Todas as doenças ou só algumas?
– Todas. Mesmo as mais graves e as que dão mais trabalho a limpar.
– Incluindo o tifo e a escarlatina?
– Não te rias. Sim, incluindo o tifo e a escarlatina. As doenças medievais,
as viroses, a cegueira, as embolias cerebrais, aguentas tudo. Mesmo que
a fatalidade meta fraldas, e não pudermos foder mais, os nossos corpos
definitivamente apagados, e que do nosso amor só reste a memória.
Compreendes o que te peço? Chama-se sacrifício. E nunca saberás o que
é amar alguém se não amares também o sacrifício. Porque é que estás a
chorar?
– Nunca pensei que quisesses casar comigo. É só isso. E é bonito o que
dizes.
– Não consigo ver-te chorar, meu amor. Partes-me o coração.
– Não digas isso. São apenas frases feitas.
– Precisamente. São frases feitas, porque feitas para momentos como
este. Caso contrário, não saberíamos nunca o que dizer. Pára de chorar.
Cobre o teu cabelo com o lençol para eu te poder beijar sob o véu. Limpa
as lágrimas com os meus dedos.
– Amo-te muito. Já to disse várias vezes, mas nunca numa cerimónia
como esta.
– Também te amo muito.
– Diz: amo-te muito, querida.
– Nunca te chamei «querida».
– Mas gostava que o dissesses uma vez. Como nos romances do Hemin-
gway.
– Não gosto do Hemingway. Tu sabes disso. Além disso, detesto histórias
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de amor. Na vida nada acaba como se começa. Tudo permanece, perma-
nece ao menos na memória, ou nas memórias de tantas outras memórias,
mas nada termina em nada. Os escritores são os últimos resistentes de
uma hipocrisia muito deles, que escrevem apenas o que não sentem, e se
sentissem não escreviam como escreviam. Chorei quando li O Adeus às
Armas, mas chorei pela tristeza de personagens tão condenadas ao fra-
casso, e tudo pela vontade mesquinha de um homem mesquinho que as
fez viver, e sentir, e amar, e lhes roubou tanto e tudo a duas páginas do
fim. Não havia alegria ou prazer no meu choro. Apenas ódio, e mágoa, e
talvez mesmo desencanto, meu amor.
– Compreendo. «Meu amor» serve.
– Então diz apenas que «sim» para passarmos ao banquete.
– Que banquete?
– Aquecemos qualquer coisa, abrimos uma garrafa de vinho e dançamos
o que restar da noite. Quero que sejas minha mulher. E que eu possa dizer
que és a minha mulher, porque te sinto próxima, e minha, e sentir-te mi-
nha não só porque dormimos ou conversamos, mas porque prometemos
amar tanto, e se calhar nem devíamos por não se poder jurar uma coisa
dessas, e não se pode, de certeza que não se pode. Mas casa comigo e
acaba comigo, por te amar muito e tanto mais que quero ficar contigo,
não direi para sempre, para sempre é muito tempo, mas o tempo suficien-
te para envelhecer e morrer contigo, e não me importo com a tua coninha
porque é tua, e minha, disse o que disse, e disse o que disse a brincar. São
apenas palavras, palavras que nada valem e muito pouco te merecem.
Aceitas casar comigo?
– Caso.
– Não é «caso». É aceito.
– Aceito.
– Aceitas o quê?
– Aceito casar contigo. E aceito a tua pichota pequenina, meu amor. Es-
tou a brincar. Não chores. Não gosto que chores. Os homens não deviam
chorar. Olha para mim: aceito casar contigo e fazer-te o homem mais feliz.
Não direi o mais feliz entre os homens, mas o mais feliz entre os homens
de pichotas pequeninas. Agora ris?
– Rio.
– Estamos casados?
– Estamos, meu amor. Aos olhos de Deus somos duas almas gémeas que
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se encontraram no firmamento. Pára de rir.
– De Deus e do firmamento? Foi isso que disseste?
– Putinha. Minha grande, adorada, e casada putinha. Nunca nos devemos
rir de Deus. Só do firmamento, porque ele é grande e não se importa.
Deus olha-nos, onde quer que esteja, e está sempre onde menos espera-
mos, que é em toda a parte. E aí estamos nós também.
– Amas Deus?
– Amo muito. Quero que O respeites.
– Respeito-O por ti.
– Não. Por ti.
– Está bem.
– Está mal. Se não abrires o coração para Deus, não o podes abrir para
mim.
– Mas eu abro o coração para Deus. Juro. É só isso que queres que eu
abra?
– Não me faças rir, merda. Isto é uma coisa solene.
– Enfia a aliança. Deixa-me enfiar-ta onde eu quiser.
– Pára com isso. Estou a ficar com tesão e Deus a ver.
– Não está nada. Ele fecha os olhos nestas partes.
– Está a ver. Pára. Pousa a aliança. Porta-te como uma mulher casada.
– Amanhã vou ligar às minhas amigas a contar a novidade.
– Diz só que me amas muito.
– Vou dizer, não te preocupes.
– Não é às tuas amigas. É a mim. Agora. Diz: tio, eu amo-o muito.
– Eu amo-te muito.
– Não te esqueças do tio.
– Eu não me esqueço.
– Então repete o que eu disse.
– O que eu disse.
– Isso. Isso mesmo, querida. k

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21
THE E
IN
BLAH BLAH BLAH BLAH BLA
H

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22
EFFECTS OF
NDIE MUSIC
fotografia MICAEL PÓVOA

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Os Cães deMárioOlenka
Bruno Pastor

Era quase noite, o pároco Ivanich regressava das caçadas, vinha um pou-
co tocado pela bebida, mas mantinha a postura ascética, a barba espes-
sa, o hábito muito coçado e a espingarda a tiracolo a balouçar, junta-
mente com um crucifixo de madeira, onde o cristo ortodoxo, de olhar
piedoso, vertia o sangue de um ganso bravo que o santo homem trazia
pendurado à cintura. Olenka, a afilhada loira, tinha voltado à cabana
mais cedo para prender a matilha, era muito nova, mas fizera sucesso
nas caçadas, tinha sido ela a atiçar os cães contra as presas. Uma chaci-
na! toda a aldeia celebrou. Até os mais conservadores, como o feitor
Nicalai, que por princípio não gostava de ver mulheres na arte da caça,
tinha ido felicitar e beijar a catraia.
Ivanich atravessou o portão da quinta. Enquanto passava pelo
celeiro ouviu um choro de criança, entrou, acendeu a candeia e viu um
bebé largado em cima de um dos poucos fardos que armazenava, pe-
gou na criança e levantou-a nos braços, era um rapaz. Doze anos depois
de Olenka ter sido encontrada nas imediações da floresta, Ivanich en-
contrava outro órfão, um órfão ainda vivo.
Os outros abandonados que foram aparecendo ao longo dos anos ti-
nham sido encontrados mortos, os gelos do outono e do inverno não
permitiam que as pequenas vidas resistissem. Foram tantos, que o páro-
co cavara um cemitério na sua propriedade.

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24
O cemitério ficava ao lado do quinhão onde se cultivavam
umas pobres hastes de centeio, as camponesas chamavam-lhe o cemi-
tério dos anjos. Iam lá muito amiúde depositar uma ou outra flor silves-
tre, picada pelas suas consciências inquietas que procuravam alguma
reconciliação com aqueles bocadinhos subterrados de carne. Ivanich ob-
servava-as da cabana, balouçando a cadeira, com as galochas no para-
peito da janela, nem ele sabia a que túmulo correspondia cada mãe.
Tendo resistido mais de três dias, o pároco preparou-se para
baptizar o menino, seria Amadeo Ravesky, foi ungido conforme o rito e
recebeu dos braços de Olenka o primeiro conforto da sua vida, seria ela
a responsável maternal pelo seu crescimento. Alimentava-o com leite de
vaca ou de égua, mas deixava-o mamar sempre que Ivanich estivesse
por perto. O velho sentava-se, acendia o cachimbo e apreciava o quadro
da afilhada loira amamentando o novo orfãozinho.
Pouco antes do sétimo aniversário de Amadeo, Ivanich sofreu
uma congestão torácica. Estava na cabana a preparar a arma para a
caçada quando sentiu uma dor forte no coração e ajoelhou-se, tentou
chamar por Olenka, mas não teve forças para gritar. O rapaz viu-o na-
quela posição, com as duas mãos agarradas ao peito, primeiro pensou
que estivesse a rezar, depois percebeu que era algo de grave e correu a
avisar Olenka, que alimentava os cães na jaula. Quando os dois chega-
ram à cabana já Ivanich tinha morrido.
A cerimónia foi discreta, arranjou-se um monge qualquer de
Vladivostok para viabilizar o funeral e o feitor disse umas palavras lauda-
tórias sobre o exemplo que Ivanich dera a todos os camponeses. Depois
a urna foi depositada debaixo do soalho da igreja, Nicalai beijou Olenka
e Amadeo e disse-lhes que regressassem à quinta para continuarem a
boa obra do pároco.
Nunca chegou à aldeia um novo substituto de Ivanich, os in-
vernos passavam e as dificuldades de Olenka e Amadeo agravavam-se.
O rapazinho crescera pouco, era fraco e ia diariamente pedir maçãs e
outras frutas às portas dos caseiros para se nutrir convenientemente,
mas não havia muita comida em toda a aldeia. Valia por vezes a carne

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25
salgada que Olenka preparava depois das caçadas e guardava numa
arca junto à porta da cabana.
A rapariga desenvolveu-se, era fértil e continuava a tratar da quinta,
mas tal como os molhos de centeio, os rendimentos eram escassos,
faltavam-lhe os meios para criar apropriadamente o miúdo; o pouco
dinheiro que entrava em casa provinha dos cães que criava na jaula e
que vendia nas aldeias vizinhas. O feitor Nicalai oferecia-se às vezes para
disponibilizar alguns kopecs, Olenka não gostava de ganhar essas moe-
das, mas serviam para conseguir uma alimentação um pouco melhor
para o pequeno. À noite continuava a oferecer os seios ao rapaz, era
uma forma de lenitivo para o frio e para a solidão.
Os enjeitados também foram aparecendo menos, sem Ivanich
não haveria ninguém para cuidar deles. Nos primeiros tempos logo após
a morte do pároco, Olenka ainda encontrou dois cadaverzinhos na flo-
resta, recolheu-os e sepultou-os no cemitério dos anjos, os raros que
apareceram nos anos seguintes já não eram sepultados. A rapariga não
achava que tivesse mais obrigações com os mortos do que as mães de-
les; essas também já não traziam flores silvestres para as campas, cada
vez mais integradas no mundo natural e cobertas pelo centeio que, ain-
da assim, medrava.
Um dia Amadeo viu Olenka trazer um dos corpos da floresta, embrulha-
do em burel, e atirá-lo aos cães. O rapaz sempre tivera medo deles, dos
seus uivos e rosnares (nunca latiam), mas depois de ver os animais des-
pedaçarem os membrozitos roxos e devorarem entre si o espólio, deci-
diu não se aproximar mais da jaula.
Sempre que chegava a época das caçadas, Amadeo fugia, es-
condia-se no celeiro e esperava que Olenka regressasse. Ela ganhara
fama de grande caçadora e acompanhava os camponeses pela floresta,
continuava a atiçar os cães de forma exemplar, as outras mulheres da
aldeia não gostavam dela. Chegava sempre exausta, precedida pela ma-
tilha silenciosa, mas trazia sempre carne e algum dinheiro. Era penoso
dormir com Olenka nessas noites.
Depois das caçadas vinha o tempo das colheitas. Amadeo re-

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vigorava, saía da cabana e deixava-se perder pela floresta. Passava os
dias inteiros a explorar caminhos, a visitar as árvores. Às vezes descia até
ao rio e nadava, brincava com as pedras, observava os pássaros. Nessa
altura chegava sempre tarde, gostava da solidão da floresta, não havia
camponeses nem caçadores, apenas o silêncio do arvoredo e o murmú-
rio do rio. Um dia encontrou alguém na floresta, era uma mulher, fita-
ram-se, mas não se reconheceram; quando já estava a chegar a casa
encontrou um bebé morto. Não contou nada a Olenka.
Outra vez, ainda na época das colheitas, Amadeo decidiu atravessar a
floresta inteira. Antes de se deitar, preparou a sua jornada apenas com
um pedaço de pão e um pouco de carne que guardou no casaco. Quan-
do Olenka foi ter com ele não deu por nada, Amadeo estava tão entu-
siasmado com a viagem que nem se importou que as mãos da rapariga
recomeçassem o outro percurso de todas as noites.
Na manhã seguinte levantou-se muito cedo para se fazer ao
caminho. Andou várias milhas até ao ponto em que a floresta ainda lhe
era familiar, depois deixou de reconhecer o terreno, mas continuou. Ho-
ras mais tarde deparou-se com um imenso vale e viu pela primeira vez a
linha férrea, muito longa e brilhante, cruzando o horizonte. Amadeo já
sabia, através das gravuras dos jornais que o feitor Nicalai deixava na
cabana, que era ali que passavam os comboios. Os olhos brilharam-lhe
de contentamento, ia ver um comboio! Sentou-se junto à linha e espe-
rou. O comboio não chegou, mas a noite foi descendo. Era tarde e esta-
va muito longe de casa, para voltar teria que entrar de novo na floresta
e atravessá-la ao relento, entre os lobos e as outras criaturas. Achou que
seria mais seguro pernoitar no vale. Apanhou uns ramos do chão, im-
provisou um colchão sob um abeto e deitou-se para adormecer. A noite
estava bonita, via-se todo o vale, a lua fazia com que os carris continu-
assem a brilhar, era a primeira vez que dormia sozinho, mas não teve
medo. Tinha onze anos e estava tão feliz na sua autonomia que até se
esqueceu da fome e dos cuidados de Olenka, a desesperarem do outro
lado da floresta.
Ainda não tinha amanhecido quando Amadeo acordou sur-

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27
preendido com o ritmo majestoso do transiberiano: era uma máquina
magnífica, ejectando no céu baforadas densas de fumo negro, as jane-
las das carruagens vinham quase todas iluminadas e viam-se as sombras
dos perfis dos viajantes. Ah! embarcar naquele monstro e cruzar o mun-
do inteiro, ver Moscovo, São Petersburgo, os portos de mar ou até os
países longínquos que ficavam depois da Polónia! O comboio manteve
a sua cadência afinada até se sumir totalmente na curva do horizonte,
mas Amadeo não desviou mais olhos do caminho-de-ferro, deixou-se
sonhar e viajar também, rememorizava as imagens dos jornais: os velei-
ros, as caleches, os palácios, uma fotografia do czar, até o poderia visitar
e lanchar com ele, com o czar. Para isso precisaria de uma farda, então
reconstruiu mentalmente um uniforme que também vira estampado al-
gures, agora já nem precisava do comboio, via-se a cavalo a combater
os inimigos... ia já a meio da batalha quando se lembrou de Olenka e
voltou a deitar-se no seu leito improvisado.
Aos bocadinhos o vale foi-se enchendo de uma luz rosada. Era
altura de regressar a casa. O percurso de regresso foi menos emocionan-
te, sabia o caminho bem, mas estava cansado e não tinha comido nada.
Quando chegou à cabana, já quase no fim do dia, vinha cabisbaixo.
Durante a caminhada percebeu que o mundo que o esperava era o de
sempre, os mesmos cães a rosnar o dia todo, a mesma fome, os mesmos
afagos do feitor Nicalai, a mesma janela para o que restava do cemitério
dos anjos, a mesma opressão nocturna entre o corpo de Olenka.
A rapariga viu-o chegar ao longe, estava a ceifar quando o
miúdo atravessou o portão, limpou o suor da testa, desapertou o lenço
da cabeça e foi abraçá-lo, levantou-o nos braços e beijou-lhe a boca,
quis saber por onde tinha andado, o que acontecera. Disse-lhe que per-
correu a floresta toda a noite com os cães à sua procura, mas não o re-
preendeu, levou-o para dentro de casa e preparou um prato de pão es-
curo com vegetais, depois amarrou-o à cama e no dia seguinte apenas
o visitou ao quarto para lhe levar uma malga de leite.
Foi só em dezembro que o miúdo conseguiu organizar os
meios e a coragem para a fuga. Olenka deixava-o mais livre dentro da

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cabana, mas não o deixava sair por causa da neve, Amadeo planeou
fugir durante a noite, escondeu o velho sobretudo, o gorro e as galo-
chas de Ivanich dentro da arca da carne salgada e depois deitou-se.
Olenka juntou-se a ele logo a seguir, acariciou-o, abriu o decote e aca-
bou por adormecer.
Lá fora a noite estava gelada, o frio fizera com que o fecho da
cancela da jaula dos cães estalasse. Ainda na cama, Amadeo afastou o
braço de Olenka e esgueirou-se, gatinhou até à porta do quarto e pas-
sou para a cozinha. Lentamente, tacteando o espaço, encontrou a arca
e retirou os agasalhos e as galochas para se proteger, enfiou nos bolsos
umas tiras de carne e saiu.
Não estava muito vento, mas o ar frio não se podia respirar directamen-
te, Amadeo enrolou o cachecol à volta da cara e caminhou em direcção
à floresta, sabia o percurso de cor, era só atravessar o quintal, passar o
cemitério e sairia para a rua, a lua quase árctica serviria de candeia, an-
tes do amanhecer estaria no vale, seguiria a linha na direcção do poen-
te. Acreditava que em alguns dias encontraria uma estação de com-
boio.
Entretanto ouviu-se o uivo de um dos cães, era o Cossaco, o
maior de todos, líder da matilha. Amadeo reconheceu o som de imedia-
to, mas ficou com a impressão que não vinha das traseiras, onde estava
a jaula, mas da direcção do cemitério dos anjos, ainda assim avançou,
ao passar pela velha janela de Ivanich curvou-se, não quis arriscar ser
visto do interior. Quando se ergueu estava já em frente ao cemitério, os
cães de Olenka remexiam a terra das pequenas sepulturas.
O Cossaco fitou-o, arreganhou os dentes, quase sem rosnar.
Num segundo toda a matilha caiu sobre o pequeno, primeiro agarra-
ram-se-lhe aos bolsos do sobretudo, depois às mãos, até o derrubarem.
O medo, o frio e o cachecol em torno da cara impediram-no de gritar.
Em poucos instantes desfizeram e devoraram Amadeo Ravesky. k

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AVISTÁMOS
BELEZA RARA NO
METROPOLITANO DE
LISBOA.
QUEREMOS UMA
SEGUNDA DOSE.
AJUDE-NOS A
CONSEGUI-LO.
TODAS AS
INFORMAÇÕES QUE
POSSAM SER ÚTEIS
NESSE SENTIDO,
DEVERÃO SER
ENDEREÇADAS A
INFO@REVISTA365.COM
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FOTOGRAFIA MICAEL PÓVOA

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tanto desamor te tenho, tão fora do meu coração
ficaste, que em verdade nada te tenho. nunca foste
meu e já não sou tua, já não me tens.
pouco sei por que te dou conta deste resultado, que
me importará a notícia de mim que recebas?, faço-o
talvez por fidalguia ou superioridade de ser, que
vontade minha nem é que sofras ao sabê-lo, ou que
sintas alegria, mas tão só anunciar-te, como ao
mundo, que nada mais se espera de ti no meu peito
tão amadurecido agora. agora, posta entre as minhas
amigas em sossego, só te lembro como matéria que
em mim se deixou apodrecer. saberás tão bem como
florescem belas rosas sobre matérias mortas, e as
minhas matérias mortas, meu antigo e tolo amante,
alimentaram uma sabedoria que me eleva. estou onde
nem tu imaginas que se possa chegar.
quanto nos rendemos aos prazeres sem interesse, fico
entretanto a pensar. por que doce e fútil alegria corri
iludida com teus sermões, suja de alma a vender-me
corpo e cabeça enganada. sei que estarás ainda hoje
nos braços de quantas te satisfaçam o mesmo
capricho, usando a mesma crueldade para com elas,
convicto talvez de que lhes pagas com a aventura o
preço da revelação que virá mais tarde. enganas-te.
pousado o corpo, lavado o espírito, nem a volúpia
nem o prazer, nada se impõe e a vida recompõe-se e
até a vontade de recato e dignidade se reforça, tens
de o saber. nada, mesmo nada do que pudeste
destruir-me se deixou destruído. não existes, meu
antigo e tolo amante, agora já não existes.
esqueci tanto amor e tanto sofrimento. nem sei por
que me terás levado à loucura, tão lúcida me
sexta
encontro, nem por que ganhei afeição ao sofrimento,
que era o único amor que me deixaste, apartado de
mim eternamente nesta vida e na vida em frente.
carta
sofrimento nenhum se justifica por quem não o
merece, aprendi-o bem. e se meus votos sentidos
valter hugo mãe
perante deus me obrigam a um amor universal,
passarei meu coração por cima de teu nome como se
de mais um pássaro, um seixo ou um curso de água ilustração alex gozblau
mais vivo fosses. rezarei por ti entre estas coisas mais
naturais, deixarei para os homens um coração maior,
importada com eles acima do cão que temos no
para lisa santos silva
convento, do carvalho que nos dá sombra no verão e
nos uiva no inverno, ou da água que nos mata a sede, e maria joão seixas
e que deus me perdoe k

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O GRANDE AMOR DO MUDO
JOSÉ LUÍS PEIXOTO
fotografia Aslisu Turkmen
A cadela não pôde fazer nada quando ele começou a espetar a
navalha no mudo. Foi uma tragédia muito grande. A cadela estava longe
e levantou as orelhas quando ele começou a espetar a navalha no corpo
do mudo: acertava-lhe por onde o apanhava: no peito, nos ombros, no
pescoço. A cadela correu depressa. As unhas das patas cravavam-se na
terra. O instante das patas sobre a terra e, cada vez mais perto, ele a bater
com a mão direita no mudo e, dentro da mão, a navalha. A cadela a cor-
rer e a lâmina da navalha, com raiva, a espetar-se entre as costelas, ou a
bater nas costelas duras, ou espetar-se no pescoço de veias. E, cada vez
mais perto, os gemidos que o mudo asfixiava e que eram sons da gargan-
ta. A cadela parou de correr. Aproximou-se devagar porque o mudo esta-
va deitado no chão. Estava morto. Do seu corpo estendido, escorria san-
gue grosso, como uma garrafa entornada sobre a mesa, como uma
nascente. As navalhadas atravessavam-lhe a camisa. Havia pedaços do
tecido da camisa que entravam dentro desses buracos de sangue grosso.
A cadela aproximou-se mais devagar quando já não podia fazer nada.
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O mudo estava morto. A cadela parou-se aos seus pés. Tinha os olhos
pesados. Pousou o focinho sobre as botas do mudo. E levantou a cabeça
quando quis olhar para o seu rosto morto.
Ouvi tanto esta história que, de cada vez que a conto, tenho
sempre a sensação de que repito cada uma das palavras que a velha Es-
trudes me contava. A velha Estrudes chamava-se Gertrudes. Vivia perto
da minha casa e as pessoas diziam que já não tinha o juízo todo. Mas não
fazia mal a ninguém. Lembro-me de quando ela ia à venda. Eu e os outros
rapazes estávamos a jogar à bola e parávamos quando ela passava. Quan-
do regressava, parávamos de novo. Não foram poucas as vezes em que
ela, depois de passar por nós, pousou a alcofa que tilintava de garrafas
sob um pano da loiça, abriu as pernas um bocado, subiu a saia até ao
joelho e urinou na rua. Nesses fins de tarde, ficávamos com a bola debai-
xo do braço a ver a urina que descia pela regadeira. Esperávamos que
passasse pela baliza do fundo, duas pedras, e continuávamos a jogar à
bola. Lembro-me também de quando ia a casa dela. A porta estava sem-
pre aberta. Eu entrava e ela não se assustava. Parecia que estava à minha
espera. Começava a falar com conversas a meio, como se já estivesse a
falar para mim antes de eu chegar. Eu tinha doze anos. Ela contava histó-
rias. Uma que ela gostava de contar, enquanto fazia o comer, enquanto
misturava feijões e couves na panela, era a história de como o mudo se
transformou numa flor sobre o seu próprio caixão.
Eu cheguei a conhecer o mudo. Ainda não andava na escola.
Não sei se já tinha cinco anos. Subia e descia o muro do quintal. As mi-
nhas mãos cabiam nos buracos pequenos do muro. Os meus pés cabiam
nas curvas ténues da cal. Quando o mudo passava, todo vestido de preto,
com a barba muito comprida, seguido pela cadela, eu tinha medo e não
trepava o muro de volta. Abria a porta e fugia para dentro de casa. Quan-
do estava na rua com a minha mãe, escondia-me atrás das suas pernas.
Tinha medo do mudo. Todas as crianças da minha idade tinham medo
dele. Nessa altura, eu não sabia que a história do mudo começava aí.
Quando subia a minha rua, vestido de preto, com a barba muito compri-
da, seguido pela cadela, o mudo ia para a casa de uma mulher casada. A
velha Estrudes, na sombra da sua cozinha, contava-me que o mudo e a
mulher eram felizes no seu segredo. Algumas semanas. Como todos os
segredos que existiam na minha vila, também esse não durou muito tem-
po. Quando alguém suspeitou, quando alguém imaginou que podia ser
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possível, quando alguém se lembrou que podia ser algo que acontecia, as
pessoas falaram disso durante dois dias seguidos. Depois, sem que nunca
ninguém tivesse visto o mudo entrar na casa da mulher, sem que nunca
ninguém os tivesse visto juntos, toda a gente deu por assente que o mudo
e a mulher eram amigos. Quando o marido se aproximava, as pessoas
mudavam de conversa. Depois de toda a gente saber, depois dos pastores
que só tornavam à vila uma vez por semana saberem, também o marido
soube. Ninguém lhe disse. Soube, porque alguém lhe falou que havia um
homem que tinha uma mulher que tinha um amigo. Soube porque os
outros homens olharam para ele e houve um que disse pois é, há por aí
um homem que tem uma mulher que tem um amigo. Esse homem não
sabia que a mulher tinha um amigo. Esse amigo era o mudo. Nessa noite,
o marido estava a jogar às cartas e perdeu. Saiu da taberna e foi para casa
devagar. Foi pelas ruas mais escuras.
Não passaram muitos dias, mas passaram tranquilamente. O
marido marcou um encontro com o mudo na herdade onde trabalhava. O
mudo, seguido pela cadela, fez o caminho sempre convencido de que lhe
queria oferecer trabalho. Foi disso que falaram, debaixo de uma azinheira
fina e torta. A cadela estava longe porque, sob a voz calma e distante do
marido, perseguia gafanhotos pequenos que saltavam entre as ervas e os
cardos. Foi de repente que o homem tirou uma navalha aberta do bolso e
começou a espetá-la no mudo. A cadela correu, correu e o mudo, morto,
ficou deitado no chão. A cadela não pôde fazer nada. Ficou triste. O ho-
mem abriu uma cova no chão e enterrou o mudo. Era Novembro e, nessa
tarde, choveu sobre a terra.
Quando o mudo desapareceu, as pessoas da vila falaram sobre
isso durante dois dias seguidos. Depois, tomou-se por assente que o
mudo tinha desaparecido. A mulher encontrou uma angústia. O marido
via-a sem ânimo e não dizia nada. Houve homens que procuraram o
mudo. Mas ninguém o procurou com vontade, porque chovia muito e
porque o mudo já não tinha família. A única pessoa que sentiu mesmo
a sua falta, a mulher, não podia ir procurá-lo. Às vezes, à tarde, sentava-se
ao lume e julgava ouvir a porta a abrir-se. Crescia dentro de si a esperan-
ça, voltava-se para ver, e era o vento ou era os barulhos que a madeira
faz sozinha quando é velha. Houve homens que desconfiaram que podia
ter sido o marido. Alguns perguntaram-lhe se tinha visto o mudo. Ele
nunca respondia.
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Quando chegou Março, nasceram flores nos campos. Debaixo
da azinheira nasceu uma única flor. Era uma flor bravia. As raízes dessa
flor entravam dentro do corpo do mudo. Aquilo que tinha sido a vida do
mudo entrava por essas raízes e corria dentro dessa flor. Ninguém sabia,
mas o mudo era essa flor. Continuava mudo. As suas roupas pretas, apo-
drecidas debaixo da terra, eram pétalas brancas. Os fios da sua barba,
misturados com a terra, eram pétalas brancas. A cadela, sem saber que
ele era uma flor, continuava perdida pelas ruas da vila. Foi a cadela, num
dos dias em que se deitou debaixo da azinheira, ao lado da flor, que fez
com que um pastor descobrisse o corpo do mudo. Três homens revolve-
ram a terra e descobriu-se o mistério do seu desaparecimento. Andaram
duas mulheres a pedir de porta em porta para o enterro do mudo. Quan-
do chegaram à porta da mulher, quando disseram andamos a pedir para
o enterro do mudo, os olhos da mulher tornaram-se mais escuros. Era
impossível distinguir o fundo na água daqueles poços negros. Na venda,
houve três homens que perguntaram ao marido se sabia do mudo. Quan-
do virou a cara, os homens agarraram-no e entregaram-no aos guardas.
Foi preso no forte de uma cidade e nunca mais voltou à vila. Na madruga-
da do enterro, a mulher saiu de casa, vestida de preto. E fez o caminho
até à herdade. Ficou em silêncio. As suas mãos, os seus dedos, aproxima-
ram-se do monte de terra que estava ao lado da cova. As suas mãos, os
seus dedos, agarraram o caule fino da flor e foi-se embora. As poucas
pessoas que estavam no enterro do mudo, ficaram admiradas quando
viram a mulher entrar no cemitério. As pessoas murmuraram palavras por
cima dos ombros. A mulher, sozinha, estendeu a mão, os dedos, e pousou
a flor sobre o caixão.
Neste ponto, a velha Estrudes não contava mais. Ficava em si-
lêncio e, com um garfo, esmagava as batatas cozidas dentro da panela.
Era também neste ponto que eu, muitas vezes, saía para a rua e ia jogar
à bola. Só muito mais tarde, passados muitos anos, soube que a mulher
que amara tanto o mudo era a velha Estrudes, quando ainda não era tão
velha, quando as pessoas não diziam ainda que tinha perdido o juízo. k

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CSI
Coisas Sem Importância

Nuno Casimiro
fotografia Ângela Berlinde

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Choveu sempre. Choveu muito. Uma cortina riscada em per-
manente movimento: foi a primeira impressão que tive ao sair do avião e
receber a chuva entre a escada e o autocarro no meio da pista. Durante
dez dias um sereno dilúvio ocupou todo aquele bocado de geografia sem
exaltações abruptas, sem vento nem aguaceiros fortes, mantendo um rit-
mo constante que regulava o langor dos relógios e escurecia ligeiramente
os contornos da paisagem embaciada. O céu unido ao chão em perma-
nência por uma faixa húmida e quente que, da janela aberta do quarto,
parecia agradar tanto a autóctones como a turistas. Da poltrona voltada
para o exterior, aquelas figuras apareciam como peixes esguios movendo-
se satisfeitos na vertical, quase sem se agitarem.
Foi ao décimo dia, horas antes de regressar, que matei Ingrid
com o mesmo lentor do aquário que partilhámos por uns dias. Não me
deu qualquer especial prazer nem me excitou. Apenas me senti mais rela-
xado, como se tivesse executado uma tarefa de forma competente e sem
deixar trabalho para casa. Ela não gritou, comportou-se até com gentile-
za, como se tivéssemos ensaiado o momento nos mais ínfimos pormeno-
res. Ofereceu-se ao sacrifício e deixou-se a olhar-me como se para sempre
eu continuasse à sua frente, como se se preparasse para falar, com a boca
entreaberta a meio caminho entre o sorriso e o grito.
O panfleto que o Carlos me entregara e que eu provavelmente
esqueci no avião falava das águas mornas de rara beleza e do ritmo quen-
te sempre no ar. Exultavam as inesquecíveis dunas e um mar sem fim a
encenarem as praias como pedaço de éden. Não recordo referências aos
peixes verticais ou a pluviosidades de qualquer tipo mas suspeito que seria
natural na época baixa, aquela em que me mandaram para lá. Para mim,
aquela chuva persistente era apenas um elemento decorativo cuja teimo-
sia me despertava algum interesse, uma certa curiosidade técnica, como
quem levanta o capot de um carro ignorando por completo os enigmas
da mecânica automóvel.
Dois meses antes, tinha saído do quarto convencido de que ela
continuaria estarrecida a olhar a janela defronte, com a realidade a che-
gar-lhe ligeiramente atrasada depois da minha partida. Imaginei-a a ten-
tar perceber o desfasamento entre som, imagem e pensamentos, a procu-
rar suprir os hiatos, sobrepondo os bocados que gradualmente
apreendesse. Provavelmente só quando passei a entrada do prédio terá
ouvido com precisão definitiva as minhas derradeiras palavras e percebido
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que o meu perfume se rarefazia já em pouco mais que um rasto ténue.
Quando abri a porta do carro imaginei-a a repetir entre dentes “és um
verme!” e a desatar num choro educado, num desespero contido, com
medo que alguém a pudesse ouvir.
Mesmo com mais de um avião de distância, os olhos pousados
nos coqueiros a perder de vista que o panfleto do Carlos prometia, a In-
grid lânguida e ainda viva, eu não conseguia deixar de me convencer da
justeza da violência verbal. Lá no íntimo tentava justificar-me perante uma
putativa plateia de desconhecidos que visivelmente suspendia a reprova-
ção sobre mim, o gajo que a deixou com um “és um verme!”.
Foi uma batota inocente. Aliás, foi apenas uma forma de repor
a justiça, ou melhor, de evitar a injustiça. O objectivo não foi puni-la mas
sim provocar um sofrimento que se abeirasse do meu. Nestas coisas, a
única preocupação é a repartição paritária das dores. É isso que determina
que eu leve o candeeiro para minha casa: não porque goste mais dele do
que tu, não porque me incomode particularmente deixar de o ter perto
mas apenas porque, ao levá-lo, te deixo a ti mais vazia.
Apesar de tudo, já fiz coisas bem piores, obras bem mais rastei-
ras. Se mesmo com um atlas inteiro a separar-nos me atormentava a frase
e o gesto é porque a minha educação foi esmerada. Ou então, se calhar,
é para justificar as outras falhas, ou talvez para as menosprezar.

Quando o Carlos e a minha irmã se sentaram à minha frente e


pousaram o envelope em cima da mesa do café, pensei que me iam con-
vidar para padrinho de casamento e a ideia assustou-me. A minha irmã
começou por dizer-me que tinha falado com a Teresa e que estava tudo
bem, que ela também achava que era boa ideia eu arejar um bocado e de
bom grado me concedia uns dias de férias.
Fiquei baralhado mas tentei disfarçar. Certamente contribuí
para alimentar a ideia generalizada de que me sentia abalado pela sepa-
ração. A minha irmã a olhar-me com maternal doçura, o Carlos a afagar
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as próprias mãos, concentrado num ponto indefinido do tampo metálico
da mesa, a sofrer solidário os horrores por que eu passava. Os outros
acham sempre que é a separação enquanto ruptura o que nos agasta mas
não é. O que incomoda são as circunstâncias: eu andava ensimesmado
com aquele verme que me saíra desabrido. Não fora essa a palavra que eu
queria dizer mas, ao mesmo tempo, consolava-me a convicção de a ter
deixado desconcertada. Muito mais do que esperara conseguir. Ainda as-
sim, moía-me esse desconforto do argumento, uma fífia incontornável, a
pincelada suplementar que arruinou a pintura e nenhuma memória inven-
tada supriria a falha.
As despedidas e os rompimentos amorosos deviam ser ciclica-
mente ensaiados como os planos de emergência com os simulacros de
incêndio e de atentados terroristas. De quando em vez lá disparavam as
luzes vermelhas e ligava-se o alarme, soava a campainha e começávamos
o exercício da separação. No fim, discutíamos as falhas, revia-se os planos
e cimentava-se a segurança que valida os improvisos. Para rematar, toma-
va-se uma bela refeição, jantar romântico ou similar para premiar o esfor-
ço.
Poupar-se-ia uma dose considerável de comiseração optando-
se pela educação para a catástrofe. Em todo o caso, não valia o esforço
argumentar com eles.
Não discuti, portanto. Disse que estava bem, iria de férias com
certeza mas era um disparate estarem assim com essas coisas, que eviden-
temente pagaria a viagem e que, indo sozinho, até teria agora um invejá-
vel fundo de maneio para gastar no ócio. Isso depois vê-se, responderam,
e lá me enfiaram no avião três dias passados, com a mala e dois compri-
midos para superar a claustrofobia por uma dúzia de horas.

Apregoava o desdobrável da agência que, aos atributos natu-


rais se somavam a alegria, o calor e a hospitalidade do povo daquelas
terras, a sua gastronomia, o seu artesanato e um folclore rico e variado.
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Eu via-os em manchas verticais, moles, movendo-se sem pressas por den-
tro da chuva, e quedava-me pelo quarto, entre a poltrona e o colchão,
numa pacatez de eremitério de luxo.
As interrupções na planura das horas ficavam-se por uma certa
agitação nos corredores quando algum grupo de excursionistas entrava
ou saía do hotel, rumores de recém-casados e a movimentação reptilária
de um ou outro alcaiote de praia. Havia, como sempre há nestes depósi-
tos de turistas, um bar e festas nocturnas para o engate mas eu nunca fui
hábil nas estratégias de sedução de estrangeiras em férias e o meu feitio
não é dado a grandes aventuras sexuais. Tenho a consciência de que as
minhas veleidades de amante ficaram sempre pela literatura erótica e
nem como gabarola de balneário alguma vez me destaquei.
Quero com isto dizer que não foi premeditado, antes pelo con-
trário, fiquei até surpreso quando, a partir do segundo dia de hotel, passei
a acordar com o sotaque escandinavo carregadíssimo de Ingrid.
Ingrid era uma mulher bonita. Desembarcara a norte uns meses
antes e estava por ali a desfazer-se do dinheiro do pai. Dinheiro sebento,
disse ela e, durante os nove dias da nossa relação, as confidências biográ-
ficas praticamente se confinaram a esse comentário sobre a higiene do
capital paternal da minha companheira. As conversas que tivemos eram
muito mais fechadas em comidas e bebidas e traduções para português.
Ingrid de tudo perguntava “como se diz na tua língua?” e, no universo
limitado de um quarto de hotel acrescido das possibilidades oferecidas
pela janela aberta, nada terá escapado à nomeação em português.
De resto, entretivemo-nos partilhando citações de livros e mo-
dorras, num verter lento de álcool e algum sexo. O mundo era apenas
aquele bocado de hotel, posto de vigia do aquário lá fora e tudo o mais
existia apenas a espaços, quando entrava no nosso campo visual ou quan-
do nos socavam a porta para entregar a comida.

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Ocorreu-me o verme umas quantas vezes enquanto ali estive-
mos mas não foi essa particular embirração a mover-me. Não foi sequer
uma extemporânea manifestação de distúrbios mentais. Terá sido tão-só
um alívio de muitas dores. Nunca antes perspectivara uma morte. Não
imaginava a facilidade com que se podia subtrair a vida a alguém. Na
moleza em que nos preservámos por aqueles dias, foi quase sem esforço
que atravessei com a lâmina do cutelo a roupa e as camadas sucessivas de
tecidos e órgãos de Ingrid. Nenhum de nós despendeu no gesto demasia-
da energia. Cada um cumpriu o seu papel de forma cordata, sem grandes
estremecimentos nem rumores, deixando a vida escoar-se sem urgência.
Não sei quanto tempo durou o processo. Diria que, mais do que lento foi
indolente, como uma morna doce.
O cabelo enleou-se-lhe num nimbo loiro sobre os lençóis de li-
nho rosado e a túnica branca acabou por colar-se ao corpo com o sangue.
Vendo-a da poltrona, com os braços abandonados sobre a cama e as
pernas pendendo para o chão, pensava numa das mulheres do «Banho
Turco» de Ingres. Tive vontade de fotografá-la naquele abandono de fim
de cópula.
Fiquei no quarto mais umas horas, entre cigarros e contempla-
ção. Limpei as impressões digitais da faca e pousei-a na mesinha de cabe-
ceira antes de sair. Fi-lo mais por alguma esconsa reminiscência cinemato-
gráfica do que por uma vontade deliberada de esconder algum indício.
Até porque, e Ingrid concordara comigo nesse ponto, a realidade em si
mesma é apenas um indício da visão que cada um tem dela.
Depois, sobrou-me apenas o tempo de fazer a mala e entrar no
autocarro de ligação para o aeroporto. Ainda hoje, não percebo como me
deixaram entrar no avião de regresso. k

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O SOLDADO
crónica de um coleccionista

Vasco Barreto
fotografia Micael Póvoa
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Chamam-me vadio. Mas julgo que estão longe de saber quan-
to se aproximam da verdade. Um homem que faz uma colecção é um
terreno armadilhado. Pode tropeçar-se nele. Em noites como a de hoje,
enquanto vou circulando pelos becos, por estes lugares escuros das
adjacências da cidade, lembro-me de como era um tipo normal antes de
ir à tropa. São poucas, mas felizes, as memórias dessa época.

Era um bom rapaz. Estudei até ao nono ano sem negativas,


tinha uma namorada fixa e só chegava tarde a casa ao fim de semana.
Ao contrário do meu primo, que se embebedava todas as noites desde
os quinze anos e que eu sempre vira ser ameaçado de despejamento, eu
nunca bebia. Muito novo, arranjei emprego num restaurante, e ia quase
em chefe de cozinha quando fui chamado à inspecção.

Os meus pais eram pessoas simples. Casaram novos e come-


çaram a esgravatar. O seu único objectivo era ter uma família grande,
cheia de filhos capazes de virem a olhar por eles na velhice. Depois de
eu nascer, a minha mãe foi operada à barriga e não pôde voltar a engra-
vidar. Quando soube disto, percebi que era eu o culpado da sua infelici-
dade. Decidi então ter um rancho de filhos o mais cedo possível. Quem
me ensinou como isso se fazia foi a Tânia. Não sei porque me lembro
disto agora.

Ela já tinha ensinado o meu primo e outros rapazes lá do bair-


ro. Um dia, foi a minha vez. Vínhamos juntos do liceu. Eu trazia fato de
treino por causa de uma aula de ginástica. Tinha rasgado as cuecas a
saltar o plinto. Era uma boa sensação, ter tudo à solta. Ela era maior do
que eu. Usava saia rodada, soquetes de renda e tranças no cabelo, como
se viesse de jogar ao elástico no recreio. Mas a verdade é que já tinha
sido encontrada atrás do pavilhão uma meia dúzia de vezes, debruçada
para a cerca, com a saia atirada para cima das costas e alguém encosta-
do atrás. Nesse dia, era a primeira vez que estávamos sozinhos. Já en-
tão, eu não gostava de sexo. Ou da ideia de sexo. No entanto, pensar
em tudo o que tinham contado acerca dela fez-me crescer um tumor
dentro das calças. Quando dei por mim, estávamos atrás do milho a
fornicar.

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É frequente perder-me nestas divagações. Às vezes um animal
chia no escuro, atrás das árvores. É o suficiente para quebrar a cadeia
dos pensamentos. Paro e viro a cabeça. Cruzo o olhar com um mocho,
um cão. Sento-me num banco e quase adormeço.

Fui para a inspecção convencido de que ia encontrar uma es-


pécie de selecção nacional de atletismo mas de farda, uns tipos simpáti-
cos a quererem saber se eu corria muito ou pouco, se eu sabia fazer
contas e falar inglês, gritar alto, partir pedra, dar tiros aos pássaros. Fi-
quei surpreendido quando, ao chegar, me empurraram contra a parede,
para uma fila de rapazes assustados, a praguejarem sem que nos conhe-
cessem de lado nenhum. Passei um dia atarefado. Questionários para
preencher, filas indianas para mostrar os testículos, tipos a porem letras
para eu ler e desenhos esquisitos, berros para ir almoçar ou para outra
coisa qualquer. No fim, fiquei apto. Ainda hoje não estou certo sobre a
que se referiam. Apto para quê? Talvez tivessem razão, no fim de con-
tas.

Seis meses depois, nas vésperas de casar, recebi um postal que


me mandava apresentar na Escola Prática de Artilharia, em Vendas No-
vas, a fim de ser incorporado. Despedi-me do restaurante, adiei o casa-
mento e fui apanhar o comboio. Os primeiros dias deram-me a sensação
de estar numa colónia de férias onde havia um grande jogo de estraté-
gia. Eu e os outros vinte do meu pelotão. Os berros, as mariquices na
parada, a graxa nas botas, a barba verificada à lupa, as camas passadas
a ferro, os cinco minutos para tomar banho... enfim, só podiam estar a
brincar. Mas quando começou a porrada e os castigos, e toda a gente
continuava muito séria a dizer as mesmas coisas todos os dias, aí perce-
bemos que estávamos fodidos. Tínhamos sido postos nas mãos de uma
cambada de terroristas autorizados a fazerem o que fosse preciso para
nós ficarmos iguaizinhos a eles. A recruta durou cinco semanas. Foi um
pesadelo. Mas o pior ainda estava para vir.

Ontem, ao sair do museu, tive uma tontura. Pareceu-me ouvir


alguém atrás do frigorífico. Voltei-me. Não era nada. Apaguei a luz e
saí.
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Fui colocado em Évora. Trabalhava na cozinha do refeitório e
dormia numa camarata pestilenta, onde apanhávamos pulgas duas ve-
zes por semana. Felizmente, os oficiais, de quem tínhamos um medo de
morte, iam comer à messe. À noite, ficávamos poucos. As praças, o
graduado de dia e um certo civil. O civil jantava sozinho e era o primeiro
a sair para o claustro. Era um tipo gordo, melífluo, sempre de camisa
branca transpirada. Comportava-se como pessoa importante, e todos
pareciam prestar-lhe reverência, mas nós não percebíamos de onde lhe
vinha esse estatuto. O único com quem falava era o Marreiros, um sol-
dado alto e voluptuoso como uma fêmea. A um sinal, o Marreiros apres-
sava-se para a sua mesa e ficava um quarto de hora a ronronar frivolida-
des inaudíveis, intercaladas por gargalhadinhas. O civil mantinha-se
sério e calado. Uma vez por outra, fazia uma pergunta entredentes e
espraiava o olhar pela sala. No fim da noite, quando eu saía a fechar a
cozinha, quase sempre o surpreendia numa sombra, encostado à pare-
de, a fumar. Eu ainda não sabia quem ele era nem o que fazia no meio
dos militares.

A uma semana de sair da tropa, o comandante chamou-me.


Em cinco meses, nunca se me dirigira. Entrei no gabinete em sentido.
Com um sorriso solto, verdadeiro, mandou-me estar à vontade e sentar.
Sabia que eu me ia embora, e por isso queria convidar-me, e aos outros
rapazes, para uma festa de despedida na sua casa de campo em Mar-
vão. A princípio, não soube o que dizer. Um tenente-coronel a convidar-
me fosse para o que fosse parecia de tal maneira insólito que não me
saía nada. Fiquei de pensar. No entanto, mal saí do gabinete, soube que
iria.

Lembro-me com sórdida nitidez de todos os pormenores. A


saída de Évora, o civil e o comandante no carro da frente, eu e um con-
dutor no de trás (os outros iriam lá ter), as bermas da estrada a muda-
rem em direcção ao norte (mais pedra, mais relevo, mais ocre nas sea-
ras), as curvas de Marvão e a paisagem a perder de vista atrás de nós, o
largo em que estacionámos e eu vomitei, a ruela estreita que subimos
entre muros de granito até à portinha de madeira da casa, dentro da
casa uma abundância de gatos, dez ou vinte, de todas as cores, lisos,
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elegantes, encostados a poltronas, com olhares snobes, altivos, indife-
rentes, lembro-me do cheiro de mijo de gato nos tapetes, nas almofa-
das, debaixo do sofá, dentro da sanita, na terra cá fora, nas calças do
civil, nas do comandante, o cheiro de mijo de gato em todos os lugares
onde me enfiaram a cabeça enquanto o comandante e o civil se reveza-
vam a espancar-me as costas, a morder-me as nádegas, a sodomizar-me
horas a fio até eu fazer um barulho oco, do fundo da garganta, ou da
tripa, ou da alma, e cair desmaiado.

Apanho-os pequenos. De noite. Há-os por todo o lado. Nas


lixeiras, na orla do rio, debaixo dos carros, por trás de qualquer arbusto,
nas soleiras das portas. Afago-lhes o pêlo. Pego-lhes por baixo, aos pa-
res. Tomo a pressão dos ventres sedosos, entre o esterno e o púbis. Em
casa, dou-lhes banho. Rapo-lhes o pêlo. Deito-os na lousa e ato as pati-
nhas duas a duas. Arranco os bigodes um por um, com esta pinça.
Miam, a resmungar. É insuportável. Rio-me para eles, estalo a língua,
assobio. Dou-lhes cocaína a cheirar. Lambem-se e espirram como crian-
ças. Baixo as luzes. Calço luvas de látex. Besunto as meninas com Beta-
dine. Agitam-se, arreganham os dentes. Detestam. Então, pego no bis-
turi, faço uma incisão longitudinal e exponho as entranhas. A cocaína
fá-las sangrar em esguichos imparáveis. Introduzo compressas no abdó-
men, para absorver o pequeno lago que se vai formando. As tripas re-
bolam como cobras. Afasto-as gentilmente para fora da cavidade. Furo
a bexiga, que se esvazia como um balão, e afasto-a. Com a mão esquer-
da, apanho o útero. Com a mão direita, destaco-o do resto. Útero, o
princípio da vida. Ai, mãe. Não te mereço. Mais tarde, catalogá-lo-ei.
Terá o seu lugar no museu. Oh, os úteros brilhantes deste mundo, lado
a lado na galeria. Inúteis e orgulhosos. Depois, a gatinha vai desistindo.
Acelera e desacelera a respiração, cada vez mais superficial, com os olhi-
nhos revirados e pingados de sangue. Viro-me então para o menino. O
gatinho maroto. Esfrego-lhe o ânus com óleo de linhaça. Alguém ima-
gina como é pequeno o ânus de um gatinho? k

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Visita
Sobre o Bairro
das Pessoas
Fernando Ribeiro
fotografia Micael Póvoa

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Pessoas velhas que descolam das paredes e que
têm línguas nas mãos. Jovens em início de fim de vida,
invisíveis, a escaparem rapidamente e a recolherem aos
ninhos. Mãos que lambem e línguas que tocam. Perguntas
sobre nós, para saber e esquecer no próprio momento.
Jovens a aparecerem aos poucos. Varandas sem ninguém
mesmo quando lá está alguém. A luz é fosca, amarela e
branca, está morta pelo pior que há nestas duas cores. O
sol que nos calhou é doente e cospe sangue. A noite nada
nos traz porque os nossos olhos se habituaram à escuri-
dão do dia. O suor dos velhos é um lago de veneno. O
suor dos jovens é um copo de veneno. Contam-se os
pedaços da mulher que saltou do quinto andar. Metem-
se as crianças na cama. O suor de uma família escorre
para a roupa de outra. Os pedaços da mulher bóiam num
copo de suor. No último andar, na cave ou no rés-do-
chão, não se percebe. Todos somos iguais. O homem que
parou a dormir e não sabe que dorme. O vapor do ál-
cool, cinzento e espesso, a sair porta sim, porta não.
Fruta em árvores que não existem, tocadas. Árvores
verdes como seringas gastas. Veias verdes. Veias verme-
lhas. Veias sujas. Baldios com carros estacionados. Vege-
tação da cor do nosso sol por baixo do negro dos pneus
que nos ajudam a fugir daqui. Ruas nunca limpas porque
são feitas de sujo. Um único azulejo azul morto, a tapar
um buraco de calçada imunda. Amor nas ondas da cal-
çada destroçada pelos passos apressados dos jovens.
Princesas magras e lindas a copularem com sapos nascidos
príncipes. O choro dos animais dia e noite, sem parar.
A visita diária da ambulância a descolar os velhos das
paredes. Não deixes os meus textos voarem com o
vento. Amo-te. Compro isto ou compro aquilo. Não sei
o que comprar, não sei o que fazer. Deixa-me estar

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escondido na cama. Sofro a andar por aqui com o sor-
riso do nosso sol. Uma fila gigantesca de madrugada. Foi
lá que te vi a última vez que te vi. Pretos, brancos,
cinzentos, matadores, e sem cores. Voltam a noite e
ouvem música alta. Lixo que se acumula, depositado nos
corações. Um homem de branco com uma pistola na
mão. Aperto a mão forte e calejada de um assassino.
Varandas com mantas e luzes e um megafone a amplifi-
car a voz destruída de um cântico à padroeira do bairro.
Passos lentos como batidas fúnebres nas têmporas. Casa-
mentos ao Domingo. Nascimentos na parte nova. Passa
um sapo nascido príncipe numa motorizada transformada
em rápida, rente a uma carrinha para lhe fazer soar o
grito, sónico, irritante, ensurdecedor na noite. Repete o
círculo quatro, cinco vezes. A pausa entre os alarmes da
carrinha, um silêncio que nos espera, opressor. Está dado
o sinal. Os barulhos da noite acordam para o seu dia que
é a noite. Alguém grita na televisão. No azulado do ecrã
que sai pelas cortinas gastas e feias, alguém grita mais
alto que a pessoa que lhe gritou primeiro. Alguém come-
ça a limpar a casa com um aspirador potente quando a
meia noite chega. O barulho das portas que batem com
violência planeada tem algo de vítreo. Por dentro das
próprias portas ouve-se um viver de um outro mundo
sem resguardo. Uma circulação sanguínea e microscópica.
Dois irmãos de doçura vivendo no espaço de um só. O
rumor de fundo esconde rumores que entram e saem
como líquidos das bocas das paredes. Circulação ao ritmo
da nossa. Sobe, desce, sai, torna a entrar em gotas de
suor e ar. A brisa regressa, expirada de volta para o
círculo maior. Os candeeiros de sol, amarelos como os
dedos nos copos e nas curtas luzes, abrigam os vultos e
choram a chuva. Cada gota circula sanguínea, microscó-

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pica, largada na vida. Vultos desabrigados que pedem
dinheiro para uma recusa, de dia e de noite desapareci-
dos. Olha-se a miséria que aqui é a vulgar pedra em que
se pisa, em que se escorrega e se cospe, a que os animais
enchem dos restos da sua vida. Os vultos saem da luz.
E finalmente vemos quem eles são, projectados contra o
negro da aura solar. Os seus passos marcados na rua.
Vozes que se levantam da calçada, que saem da parede,
que entram pela espessura falsa do vidro. Setas letais de
direcção convicta: a nossa. Muitas vozes agora multipli-
cadas por cem em cada grito. Há crianças acordadas que
fingem dormir ao colo do vapor do álcool. Existem pais
que os abraçam numa mão. A outra leva o copo à boca.
Os lábios descolam. Cheira a fruta de vidro. Um ho-
mem tenta sair sem pagar a conta. O dono do café
toma-lhe a vida como garantia. O homem regateia e
perde de propósito. A mulher chora cá fora com o filho
a dormir a fingir aninhado na mão. A mulher diz-lhe
para ele não a procurar mais. O homem é um copo que
enche devagar de sangue e os seus olhos vermelhos res-
pondem que nunca soube onde a encontrar. A camione-
ta do lixo é um monstro rodado de verde de dor e de
cheiro. Descem dois homens das suas costas, prestáveis
e simpáticos a recolher os despojos. Fica lixo espalhado
na estrada como sementes. Como uma pista a seguir para
nos encontrarmos naquilo que deitamos fora. O condu-
tor faz brilhar a ponta do seu cigarro curto e pensa que
um dia alguém escreverá as histórias que ele sabe de
verdade. Dentro de casa alguém sente medo. Num
quarto pequeno, os carinhos possíveis mais altos que os
ruídos. Por cima de tudo um céu que desce cada vez
mais e se cola aos tectos das casas fazendo de todos nós
reféns. k

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PEDRO SENA LINO
[MÁRCIA FÚNEBRE]
para Josiane Guiraud
fotografia Ângela Berlinde
como todas as manhãs, aí pelas onze horas, quando o sol era
quase o meio do céu e a rua se perturbava com a inumeragem dos passa-
geiros de diferentes origens e destinos, Horácio Ressurgita abria o longo,
odoroso estojo de pele, afastava os protectores panos púrpura puídos do
tempo, com as cabeças ansiosas dos dedos tocava saboreando o frio do
metal, e com duas mãos ansiosas e másculas de posse, maritalmente
agarrava a sua tuba. maritalmente, possessivamente, mas com um cora-
ção infante, quase virgem de excitação e entrega, assim o fazia, todos os
dias. os dedos sonhavam com os botões metálicos (“os lábios, os lábios da
tuba!”) sons que nenhuma pauta continha, e era branco de oiro e sonho
metálico o espaço plano onde a sua alma caminhava – tudo isto, milisse-
gundamente, antes sequer de aproximar a tuba da sua boca, e misturan-
do os lábios no bocal, se envolverem ambos num beijo sonoro.
todas as manhãs, pelas onze horas, Horácio Ressurgita, navegava em pla-
nícies de luz metálica, nova, rasgava solenes e crepusculares entradas,

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odores de palma e de vitória. da sua sala de quatro rectangularmente al-
tas janelas para a Rua do Mundo, Horácio Ressurgita abraçava o instru-
mento que criava o espaço da sua interioridade. se Horácio Ressurgita era
alguém, seria aquele som de luz e triunfo que escoava, caminho, pelo
mundo.
e todos os dias Horácio Ressurgita ensaiava escalas, suadamente, com os
braços grossos como pernas de valquíria, até se preparar para o grande
momento, a chegada, o clímax: a “Marcia Funebre” da Sinfonia “Eroica”
de Beethoven.
homem, mas a Eroica não precisa de tuba
dizia-lhe o sargento Rodrigues, chefe de banda e ensaiador-mor. desde
que tinha entrado para a banda – já lá iam uns bons vinte aninhos desde
aquele dia da procissão do Senhor Morto em que o Paiva dos Charutos
tinha tido o enfarte e Horácio Ressurgita tinha salvo a honra da banda,
entrando como substituto – que Horácio tinha procurado fazer o esforço
de não confidenciar a Rodrigues o prazer que teria em tocar a Eroica.
triste dia, esse, em que com duas cervejas tomadas, não tinha resistido a
contar-lhe…
homem, mas a Eroica não precisa de tuba
e ainda hoje ecoava na sua cabeça, sempre às onze horas, quando toma-
va a tuba nos braços e se atubava às suas curvas de ouro físico e sonhado,
primeiro quase chorando, comovido da impossibilidade, e depois tocando
convictamente, som a som, ar a ar, como se com isso conseguisse calar
não só o eco da voz de Rodrigues, mas inserir, de pleno direito, uma tuba
na partitura da Eroica... que bem que lhe soava toda aquela marcha, len-
ta, sepulcral, perdida, nos sons que eram a sua voz... e que pena se o
mestre Beethoven se tinha esquecido daquilo... uma falta, uma falta. Ho-
rácio Ressurgita ouvia, na cabeça onde se cruzavam todos os sons, o início
daquele tema a aparecer, nítido, límpido, na voz da sua tuba.
estás louco, homem... não te posso pôr a tocar isso: não está na pauta...
tinha sido a última resposta de Rodrigues. contrafeito, numa segunda-
feira fria de Inverno em que tinha folga no talho, Horácio Ressurgita tinha
apanhado o comboio até à capital, onde à tarde havia um ensaio público
da Eroica com maior orquestra do país. dois beijos à mulher, Firmina, que
lhe pareceu mais calada e inchada que o costume, e ali estava ele a cami-
nho pela cidade, com o estojo de pele a tiracolo. as botas cardadas escon-
diam dois pés imensos, largos, triunfais, e as calças de uma sarja suja pa-
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reciam rebentar a cada movimento vitorioso de pernas. caminhava com a
barriga larga a descrever uma leve sensação de compasso binário, e de-
pois os pés bem para cada lado, e uma agitação sincopada de cabeça.
assim, feliz, cumprimentando tudo o que passava, com o leve batucar do
estojo a apagar o esticar dos tecidos, Horácio tinha chegado à grande
Gare, pedido dois lugares, claro está («um para mim e outro aqui para a
minha loira», disse ao funcionário da bilheteira, apontando para o estojo
da tuba), sentado os seus cento e dez quilos e os muito menos da tuba, e
tinha feito todo o caminho com a Eroica na cabeça a estruturar-lhe o
propósito «eu hei-de convencer o maestro a pôr-me na orquestra a tocar
a Eroica». tinha sido rápido o caminho (quase três Marchas Fúnebres,
pelas suas contas), rápida a chegada ao Auditório, onde uma orquestra
em conversa e afinação esperava a chegada do Maestro. era novo por
aquelas paragens: tinha vindo da Alemanha, de pais nórdicos. a mistura
parecia prometer a Horácio a melhor das compreensões. foi directo e livre
em direcção ao homem, assim que curvado e baixo chegava ao estrado de
onde devia dirigir o ensaio, mas logo um funcionário se interpôs
não pode interromper o ensaio... agora só no final, e Horácio bem pensou
em disparar-lhe um balázio de punhos na cara de diarreico medieval, mas
tentou o seu melhor sorriso ao funcionário e foi-se sentar.
o maestro era muito, muito incómodo, e fazia mais pausas que o Rodri-
gues mesmo antes de resolver o problema da flatulência (aquilo eram
pausas a toda a hora, da banda e dele); fazia uns gritinhos quando aquilo
não ia como ele queria, e tinham passado bem trinta minutos e ainda não
tinham saído do primeiro andamento. quando finalmente ele se deu por
satisfeito, e passou para o segundo andamento – a Marcia -, Horácio
Ressurgita sentiu o coração cavalgar, os dedos mover-se contra a sua von-
tade, os olhos dispararem faíscas de lágrimas incontroláveis pela emoção.
grande, ele, e maior o sentimento, um relâmpago de pranto cruzou o
espaço acústico, e foi aterrar directamente nos ouvidos cuidados e mal-
humorados do maestro.
tudo acompanhou aquele seco mover de ombros, a música caiu no chão
e só se ouviu o grito de Horácio a suplantar o anterior. com o fim da mú-
sica e tantos olhos dispostos nele, Horácio Ressurgita viu chegada a sua
oportunidade. encheu o peito de ar para acabar com os soluços, levan-
tou-se (com a sua menina debaixo do braço) e caminhou directamente
para o assunto, sem pausas nem hesitações, como um grande solo de
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tuba:
- desculpe o senhor maestro... Horácio Ressurgita, tubista… eu não con-
sigo aguentar a emoção que a Marcia Funebre da Eroica me provoca... eu
toco tuba, sabe... e vim cá assistir para falar consigo. eu tenho uma gran-
de dor... é que eu queria tocar tuba na Marcia Funebre, mas o Beethoven
não quer... o senhor, que é uma autoridade, podia-me dizer se não há
maneira de resolver isto...
orquestra, funcionários, audiência, tudo franzia o sobrolho esperando
uma das célebres reacções do maestro que fariam Horácio Ressurgita es-
conder-se para a eternidade e subsequentes debaixo das costuras do Uni-
verso. mas não. o homem levantou-se da cadeira, aproximou-se (quase se
baixou!) do fim do palco e olhou para Horácio Ressurgita com simpatia,
tranquilidade e muita, muita curiosidade: Horácio, é um prazer. suba ali
por aquelas escadas e venha-me mostrar o que quer dizer...
Horácio, com o coração a cavalgar o corpo e os sonhos impossíveis, senta-
se no meio da orquestra, e ao sinal do maestro, começa a tocar a Funebre
onde considerava bem. e o maestro não mandou parar, mas fazia-lhe sinal
para prosseguir. a orquestra acompanhava, com risos escondidos entre os
arcos dos primeiros violinos. o coração de Horácio saía-lhe da boca direc-
tamente para a tuba, fundia-se na voz, dilatava os espaços e as modula-
ções. Horácio tocava – planava, sangrava – e uma dor física nascia dos
seus movimentos; parecia nascer dos sons, formar-se deles, e lançar-se
sobre a terra toda. os sons levavam-no a sua casa, tingida de vermelho.
nas paredes corriam grossas e fundas gotas de sangue, como pinceladas,
enquanto as notas iniciais da Marcha Fúnebre se soltavam dos seus lábios
e do coração. o tema começava nos clarinetes, e a sua tuba superava-o,
mais alto e mais brilhante, pelo chão do som. a sua mulher deitada, com
as pernas altas e abertas, suada, e uma cabeça de criança surgia, enquan-
to a tuba de Horácio dialogava com os violoncelos em zonas negras que
a parede caía de sombra
Márcia,
e subia no som, enquanto a orquestra respondia numa voz só, num choro
do Universo, enquanto ele, no som, via a filha nascer, nas paredes sonoras
de vermelho
Márcia Fúnebre. vou chamar-lhe Márcia Fúnebre,
disse, quando agarrou a filha inesperada nos braços.
não tinha voltado ao convívio com o maestro. a sua saída disparada do
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ensaio, até casa, tinha-o deixado envergonhado, e ao sonho ainda mais
impossível porque possível.
todos os dias, agora, às onze horas da manhã, Márcia sorria, andava,
brincava, enquanto o pai enchia a sala com os sons metálicos e suspensos
da Marcha. passaram assim muitos dias, e um destes, estando assim os
dois, tocaram à porta. Firmina foi abrir
mora aqui o senhor Horácio Ressurgita, tocador de tuba?
Horácio desceu as íngremes escadas com Márcia num braço e a tuba
noutro. ter visitas era mais estranho do que ter quem o ouvisse tocar. com
o mesmo espanto reconheceu o maestro.
demorei a encontrá-lo... quero que venha tocar a sua improvisação em
público
e passou o tempo previsto para os ensaios, o tempo de preparação, todo
o tempo necessário ao sonho, que é sempre demasiado e pouco. Márcia
crescia aos sons da Marcia. no dia do concerto, num engalanado Auditó-
rio, Horácio Ressurgita sentou a mulher e a filha no melhor lugar, enquan-
to olhava triunfante para o Rodrigues, metido dentro do fato na última
fila, entre a vergonha e a vergonha. foi, binário triunfante, para a entrada
de artistas. com palmas e estrépito – a que a voz profunda de Márcia se
juntou – Horácio entrou com o experimental maestro, sentou-se diante
dele e da orquestra, e começou a tocar a sua improvisação sobre a Marcia
Funebre. via o espaço do seu coração alargar-se, enquanto beijava os lá-
bios da tuba, e a sua mão entrava na concavidade enorme. tocava como
se o seu o próprio coração comandasse o sopro, e o sopro todo se aban-
donasse dele para cair dentro da substância da música. via o seu ser intei-
ro cair para dentro da pauta, enchê-la de um som de tuba incendiado e
luminoso, e o seu próprio sangue encher de comoção e luz o universo
inteiro. viu luzes aquáticas, imersas, caírem dentro do coração da sua fi-
lha, enquanto o seu coração se dilatava pelo sopro. Horácio tocava – pla-
nava, sangrava – e uma dor física nascia dos seus movimentos; parecia
nascer dos sons, formar-se deles, e lançar-se sobre a terra toda. quando as
cordas e os tímbales preparavam o final, Horácio respondeu com todo o
seu coração àquele último convocar do tema, chamando todas as forças
e todos os sons e todas as manhãs às onze horas onde sonhava contra o
mundo, e ao pousar dos braços do maestro, caiu.

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Márcia não deixou que tocassem a Marcia Fúnebre no funeral
do pai
foi essa música que o matou
dizia nos seus cinco anos roucos. a morte do pai parecia tê-la estranha-
mente envelhecido. uma madeixa de cabelo branco dividia-lhe a cabeça,
e os olhos pareciam molhados em duas pequenas poças de sangue. nin-
guém parecia estranhar a autoridade daquela criança, e só o silêncio le-
vou o cadáver pesado e feliz de Horácio Ressurgita para a terra. foi de fato
de gala, a barba de uma luz metálica e definitiva, bonito como nunca,
agarrado à tuba que ninguém conseguiu desprender dele.
Márcia cresceu encostada ao silêncio. como a mãe punha um luto pesa-
do, Márcia cresceu envolvida em panos pretos. silêncio escuro, andava
pela cidade, na escola, cosida com a morte. as outras crianças evitavam o
preto das vestes e da voz rouca. pouco depois de entrar para a escola,
começou o pior na vida de Márcia Fúnebre: os gritos, altos e assustadores,

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que lançava sem controlar do coração para as ruas, pouco antes de al-
guém morrer. mais que os sinos da Igreja, as pessoas benziam-se, e enca-
minhavam-se para o adro, até a família do morto o vir chorar publicamen-
te.
os anos passavam, e Márcia anunciava mortes fora da aldeia, na província,
no país. os anos cresciam e o coração alargava-se. distendia-se, como um
som que viesse das profundezas do mundo. mesmo vidente, Márcia Fúne-
bre e a mãe eram estranhas, vistas de lado, mal queridas pelo povo. dez
invernos depois do pai, Márcia perdeu a mãe. mas desta vez não gritou.
ela anda feita com a morte
, dizia dela a aldeia, calada na morte da mãe, quando os gritos de Márcia
aumentavam de morte para morte, e o povo deixava lentamente de os
ouvir como anúncio, mas como convocação da morte
ela anda feita com a morte para nos levar a todos
numa noite de Agosto, quando o povo todo se preparava e ensaiava para
a festa do Senhor Morto, com o sacristão em frente, um bando de mulhe-
res avançou para a “bruxa” com dois archotes na mão. deitando o fogo
e rezas e água benta sobre a casa de paredes altas que dava para a frente
da Rua do Mundo, quiseram matar Márcia.
o fogo apanhou-a a dormir, colou-se aos cabelos quase todos brancos ao
descer a escada, misturou-se com as longas saias do vestido negro. Márcia
Fúnebre corria pela povoação, corria, aos gritos, os cabelos de fogo, a
morte ardendo. correu até ao largo. ao fundo, perto do coreto, Rodrigues
e a banda ensaiavam a Marcia Funebre para tocar na festa, «em honra do
Horácio». assim que ela se aproximou da música, o fogo suspendeu-se, e
num som metálico e luminoso, Márcia Fúnebre voou, os cabelos em fogo,
o corpo rubro, a voz silêncio gritante, e desapareceu inteira para dentro
da música k

este conto foi originalmente publicado em


Museu de História Sobrenatural (Autoria, 2007)
e aqui republicado revisto em Abril de 2009, em Paris,
ao som da mesma “Marcia Funebre” da Terceira Sinfonia de Beethoven,
interpretada pela Orquestra da Rádio de Berlim dirigida por Ferenc Fricsay

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Seja responsável. Beba com moderação.

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