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Este texto foi publicado em Com Ciência – Revista Eletrônica de Jornalismo Científico, no.

56, 10 de julho de 2004


http://www.comciencia.br/200407/reportagens/17.shtml

Arte, Ciência e Terrorismo:


a produção de conhecimento e o sagrado
Pedro Peixoto Ferreira
Doutorando em Ciências Sociais – IFCH/UNICAMP
Bolsista FAPESP
Integrante do grupo de pesquisa CTeMe
Campinas, 2004

CENA 1: 11 de setembro de 2001, dois aviões


são seqüestrados e jogados contra os prédios
do World Trade Center em Nova Iorque,
matando cerca de 3 mil pessoas. O mundo
O que faz com que um artista veja
como arte aquilo que todos viram
como terrorismo? O que faz com que
a polícia veja como terrorismo aquilo que
inteiro (ou pelo menos aquela parte dele todos viram como arte? Não estariam
conectada na rede de telecomunicações 1
Stockhausen e o CAE trabalhando
globais) assistiu às cenas dos choques, do justamente no limite entre arte e terrorismo,
desmoronamento dos prédios e de toda a questionando o que se entende por cada uma
comoção gerada. Enquanto o governo norte- destas palavras ao exacerbar as implicações
americano (e, na seqüência, a maior parte do mútuas entre estética e política? E não estaria
"mundo civilizado") definiu o acontecido o governo norte-americano (e a maior parte
como um ataque terrorista do grupo islâmico do "mundo civilizado") trabalhando
Al-Qaeda, instaurando oficialmente sua justamente na eliminação de qualquer
"guerra total contra o terrorismo", o músico questionamento acerca da natureza do
alemão contemporâneo Karlheinz terrorismo e da arte, como numa espécie de
Stockhausen afirmou polemicamente que se "juízo final" onde tudo deve ser dividido
tratava antes da "maior obra de arte de todos entre as "forças do mal" e as "forças da
os tempos". liberdade"?
Os impasses ético-estéticos
CENA 2: 11 de maio de 2004, Steven J. provocados pelas situações relatadas ganham
Kurtz, professor de Arte na Universidade ainda mais complexidade quando
Estadual de Buffalo (Nova Iorque) e membro percebemos que, se por um lado eles têm
fundador do coletivo de artistas como condição de possibilidade o
mundialmente reconhecido Critical Art desenvolvimento vertiginoso da ciência e da
Ensemble (CAE) acorda e encontra sua tecnologia na segunda metade do século XX,
esposa vitimada por um ataque cardíaco. Ele por outro todos eles evocam de alguma forma
tecla 911 no telefone e, quando a polícia a dimensão do sagrado. A neutralidade
chega, encontra diversos instrumentos de científica, consolidada no Iluminismo como a
laboratório, substâncias químicas e diferentes secularização do conhecimento, é
tipos de bactérias, sugerindo o planejamento necessariamente colocada em questão
de um atentado terrorista com armas quando a religião e o sagrado passam a se
químicas. De nada adianta Kurtz argumentar manifestar através do aparato tecnológico
que se tratava apenas da mais recente mobilizado pelos terroristas na organização e
performance do CAE. Ele é intimado a se coordenação de seus atentados, da variedade
explicar perante a justiça, seu material de de equipamentos empregados por artistas
trabalho é confiscado, o quarteirão onde fica para produzirem suas obras e da complexa
sua casa é isolado e declarado "área de risco"
e até mesmo o corpo de sua mulher é retido
para análise. 1
Cf.< http://www.critical-art.net/>

1
que já era visível em todas as suas outras
ações "anti-terroristas": aquilo que é
apresentado como uma luta do "bem"
contra o "mal" acaba sendo, de fato, uma
luta do atual contra o virtual, do provável
contra o possível, do ser contra o devir. A
intimação de Kurtz (além de cerca de 10
outros artistas e professores) comprova
mais uma vez que a "guerra total contra do
terrorismo" apenas esconde o fato de que
toda totalidade é, pela sua própria ambição
totalitária, fascista e em muitos casos
terrorista. O que se perde, na detenção de
Kurtz e no cerceamento das atividades do
CAE, é a possibilidade de questionar, de
colocar em debate público, de trazer para o
palco principal justamente os graus da
"máquina de guerra" mobilizada pelo
diferença (os tons de cinza) que o
governo norte-americano em sua "guerra
"apocalipse anti-terrorista" tenta eliminar
total contra o terror".
através de sua estética do contraste total, de
A defesa de Kurtz perante a justiça
sua divisão do mundo entre "bons" ou
vem enfatizando sempre, é claro, a legalidade
"maus" (preto-ou-branco). Mas o que se pode
e segurança de todas as ações do CAE,
ganhar com tudo isso?
ressaltando que eles sempre consultaram
Quando Stockhausen propôs que as
especialistas e nunca infringiram a lei –
colisões de 11 de setembro fossem vistas
tentando, enfim, provar que o CAE não é um
grupo terrorista. Mas não seria interessante, como "a maior obra de arte de todos os
tempos", ele se referia ao grau de
numa linha mais stockenhauseniana,
arrebatamento absolutamente único
enxergar o triste acontecimento como uma
espécie de performance per se? Se o objetivo provocado pelo acontecimento, inacessível a
qualquer obra de arte conhecida. Uma obra
do CAE é trazer à tona as implicações
mútuas entre tecnociência, capitalismo e de arte, desta perspectiva, deveria ser capaz
de transformar o mundo e as pessoas de tal
sociedade, então talvez este imbróglio seja
maneira que elas de fato morressem, junto
uma oportunidade e tanto para isso. Afinal,
2 com o mundo conhecido, para renascerem eu
se, como bem mostrou John Pilger , o uma "nova terra", criada a partir do contato
governo norte-americano encarou o 11 de com a obra. Este é o único verdadeiro
setembro como uma "oportunidade "acontecimento", onde a criação é possível
imperdível" a ser "capitalizada" na forma de pois vai além da previsibilidade causal do
legitimação da dominação de nações e dado (o depois não poderia ser explicado
controle de recursos energéticos globais, pelo antes), onde encontramos a "aura" de
então por que não fazer do 11 de maio uma uma obra de arte. O arrebatamento
oportunidade para questionar justamente esta verdadeiro nunca deixa as coisas como elas
capitalização do terrorismo? estavam, mas também nunca garante nada.
O fato é que a atitude do governo Tudo está em jogo e tudo pode acontecer. O
norte-americano neste caso exacerba aquilo acontecimento é o lugar do novo, mas
também o lugar do risco extremo.
2 Stockhausen foi obrigado a qualificar
PILGER, John. "Two years ago a project set up by
melhor seu argumento quando viu suas
the men who now surround George W Bush said what
America needed was 'a new Pearl Harbor'. Its palavras provocarem a ira da opinião pública
published aims have, alarmingly, come true", e motivarem o cancelamento de seus
<http://pilger.carlton.com/print/124759>, 2002

2
concertos. No entanto, a idéia central do capitalização tecnocientífica exponencial do
compositor é relevante para compreendermos acontecimento cuja data é, simultaneamente,
como o sagrado pode ser uma fonte de o telefone da polícia.
conhecimento, e portanto como a confusão Atentado terrorista "e" obra de arte,
entre arte, ciência e terrorismo pode ser artista "e" cientista, policial "e" terrorista,
muito mais reveladora de nossa atual telefone da polícia "e" data do
situação do que a sua separação paranóico- acontecimento. Diferentemente da lógica
fascista. digital do "apocalipse de Bush", que busca
Onde se situam os limites entre arte, expulsar toda sobreposição, toda confusão,
ciência e terrorismo? Quando a polícia isolou tudo aquilo, enfim, que não pode ser
o quarteirão da casa de Kurtz declarando-o codificado, em busca de um "controle total"
"área de risco", mais uma vez se fez presente da situação, declarações e iniciativas como as
a estética de alto-contraste da "guerra total de Stockhausen e do CAE trabalham contra
contra o terrorismo", isolando a vida toda redução ao controle e a favor da
cotidiana daquele foco de confusão de arte, multiplicação de conexões, da produção de
ciência e terrorismo. É preciso escolher: "ou" possibilidades e da criação. Se a ciência pôde
se é um cientista, utilizando biotecnologia ser vista muitas vezes como a "religião da
para produzir conhecimento neutro e modernidade", isto se deu geralmente através
benéfico para a humanidade; "ou" se é um do recrudescimento do aspecto excludente de
artista produzindo conhecimento inofensivo toda e qualquer análise, i.e., da valorização
sobre o espírito humano e suas emoções; desmesurada da "parte" e daquilo que pode
"ou" se é um terrorista ameaçando os valores ser "partido" em detrimento das totalidades
da liberdade e da democracia. A lógica da indivisíveis. Trata-se da religião em seus
digitalização (ou, ou, ou...) coloca nos aspectos negativos, apocalipse de ódio e
bastidores justamente aquelas dimensões que ruptura, pois que relega o "indivisível"/"não-
extrapolam a taxa de amostragem, aqueles analisável" às trevas, como se o único
elementos que não se excluem mas se conhecimento válido fosse aquele claramente
sobrepõe enquanto tendências e virtualidades analisável, quantificável e acessível ao
(e, e, e...). Quando Kurtz digitou 911 em seu controle instrumental.
telefone, ele estava disparando o código da Ora, a arte também é freqüentemente
digitalização apocalíptica norte-americana, apontada como sendo um dos últimos redutos

3
Como comprovam os
místicos, xamãs e mestres
religiosos de todo o mundo, toda
revelação cósmica e existencial
envolve algum tipo de sacrifício.
É pela provação, pela morte do
antigo homem e pelo
nascimento do novo que se dá a
transformação existencial. A
polêmica frase de Stockhausen
só seria compreendida se
considerássemos a possibilidade
de se interpretar o sacrifício
massivo de 11 de setembro como
da religião em tempos dessacralizados, como a criação de um axis mundi, um contato
se apenas nela o contato com o sagrado ainda vertical entre diferentes planos cósmicos
fosse possível. Mas neste caso, trata-se de um capaz de nos revelar dimensões virtuais de
outro aspecto da religião, não o que divide nossa própria realidade normalmente
tudo em "salvo ou condenado" mas aquele escondidas pelo cotidiano. Arte e terrorismo
que, pelo contrário, produz um contato entre se encontrando na hierofania do sacrifício e
o sagrado e o profano, uma comunhão que, produzindo um conhecimento existencial
justamente pela transdução entre planos, sobre nossa condição atual inacessível a
permite a transformação, a revelação direta qualquer análise científica ou a qualquer obra
do novo. de arte convencional.
O "apocalipse de Bush", alimentado A produção de conhecimento do tipo
por ódio e rancor, conta apenas metade da religioso foi há muito deslegitimada pelo
estória (aquilo que já sabemos, a racionalismo e pela ideologia da
recombinação dos dados), escondendo a objetividade. E não foi sem motivo pois,
melhor parte nos bastidores (o movimento, a como bem mostrou Max Weber, quando a
transformação, a criação). O que religião se torna uma instituição ao lado de
Stockhausen evidencia em sua frase polêmica outras, ela necessariamente substitui seu
é justamente o lado oculto do "apocalipse de caráter carismático, baseado na experiência
Bush", a verdadeira "revelação" que o direta, pela tradição e pela burocratização.
sacrifício trás para aqueles que por No entanto, o bebê foi jogado junto com a
intermédio dele entram em contato com o água do banho quando junto com a
sagrado. E o que propomos aqui é justamente deslegitimação do conhecimento produzido
motivar a interpretação de mais este pelas religiões institucionalizadas se jogou
desdobramento do "apocalipse de Bush" (o fora também aquele produzido pelas
processo contra o CAE) como mais uma experiências religiosas que são a própria
fonte de conhecimento sobre o nosso mundo origem de toda religião. O conhecimento
atual. Um conhecimento que não pode ser revelatório produzido por experiências
chamado de científico pois não é analítico e religiosas de comunhão, transe e êxtase pode
não permite o controle sobre a situação (o não ser analítico ou totalmente controlável e
risco é inerente ao processo), mas que previsível, mas é tão experimental quanto o
também não é inofensivo ou apenas conhecimento científico, e geralmente muito
subjetivo, como normalmente se interpreta o mais próximo da situação concreta de vida
conhecimento produzido pela arte, pois das pessoas do que ele.
trabalha no limite entre o velho e o novo, Stockhausen chega ao cerne da
entre o atual e o virtual, entre a morte e a questão quando diz que, quando comparados
vida. com o arrebatamento provocado pelas

4
colisões de 11 de setembro, "nós,
compositores, somos nada". Arte sem
sacrifício já não basta quando se é capaz de
ver o sacrifício como arte. E quando Denise
Muller, vice-reitora do Corcoran College of
Art and Design, justificou sua decisão por
abrigar uma exposição do CAE dizendo que,
mais do que trabalhos de ponta ("cutting
edge"), nós queremos trabalhos perfurantes
("bleeding edge"), ela de certa forma
evidencia o motivo pelo qual certos artistas
não passam pela malha do "apocalipse de
Bush": ao ir além do conhecido, ao usar a
ciência para produzir conhecimento sobre
aquilo que ela precisa excluir para se
constituir (seu exterior imanente), este tipo
de arte se torna potencialmente sacrificial,
pois que ameaça e coloca em risco os limites
do conhecido, sem oferecer nenhuma
garantia a não ser a mais crua evidência da
experiência.
Em um mundo acostumado a ver arte
como pano de fundo para relações sociais,
ciência como progresso neutro da razão e
terrorismo como uma ameaça mortífera que
vem de fora, é preciso ficar atento ao
conhecimento produzido pela confusão
momentânea destes três termos. O élan
apocalíptico do governo norte-americano de
eliminar qualquer confusão entre estes
termos não pode ser reduzido, como de
praxe, ao maniqueísmo de seu próprio
discurso. Quando a arte salta à frente e
transforma as relações sociais, quando a
ciência se revela implicada em um dos lados
do conflito, quando o terrorismo passa a ser
uma ameaça imanente ao próprio sistema que
o conjura, já não estamos mais em um mundo
totalmente dessacralizado e racional,
tampouco em um mundo de religiões
institucionalizadas, estamos então no próprio
campo da hierofania, experiência revelatória
que nos coloca em contato produtivo com a
heterogeneidade irredutível do real.

Grande parte de minhas idéias sobre os diferentes apocalipses foram


inspiradas no texto Apontamentos sobre o Apocalipse, de Laymert
Garcia dos Santos (in Tempo de Ensaio, Companhia das Letras,
São Paulo, 1989).

Agradeço Marta Kanashiro e o CTeMe pela ajuda na elaboração e


publicação deste texto.

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