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@ Copyleft 2010 por Malária Editorial

Permitida a reprodução total ou parcial desta obra,


de qualquer forma ou meio eletrônico e mecânico,
Inclusive através de processos xerográficos,
Sem permissão expressa do autor.
Dedico este livro a todos os loucos e injuriados com a falsidade da religião

Adryel, se um dia ler isso, saiba que seu pai te ama e te contarei todas
as histórias que quiser ouvir, sei que em muitas posso te decepcionar meu
filho, mas isso faz parte daquilo no que eu me tornei um dia, só podemos
pregar a liberdade sendo livres, todo o resto é um jugo desigual, a minha
intenção em escrever este livro é simplesmente para que eu nunca me
esqueça de onde eu vim e para onde eu vou, hoje continuo tendo
dificuldades na minha vida, o que mudou foi a maneira de como enfrentá-las.

Gisele, obrigado por me aceitar como eu sou,mesmo tendo todas as


minhas falhas você é uma mulher virtuosa, sou um homem muito feliz por ter
uma pessoa tão especial ao meu lado, saiba que te amo.

Também quero agradecer ao meu pai, a minha mãe e aos meus irmãos
e parentes por estarem sempre tão presentes nos momentos em que nunca
ficaram sabendo o que houve.
Capítulo I

Nunca gostei de ler, pelo menos é o que eu pensava até os meus 24


anos. Sempre tive boa leitura graças às revistas em quadrinhos e artigos do
gênero. O fato é que um dia eu li um livro e quando isso aconteceu houve
uma alteração sistemática na equação da minha vida. No mundo de Sofia, fui
obrigado a atravessar as sombras da caverna e os meus olhos que nunca
haviam visto nada e minha mente atrofiada começava a perceber que eu sou
uma anomalia em um mundo assimétrico e sem sentido. Minha busca por
entender o significado da vida passou para um plano mais elevado, comecei
então a devorar todo tipo de literatura, principalmente sobre filosofia, e
quanto mais eu lia, mais longe de um significado eu me encontrava.

Alguns anos de minha vida passaram tão rápido quanto o efeito das
drogas que eu usava. Só então descobri que o segredo não estava nas
respostas e sim nas perguntas, mas não é qualquer pergunta, tem que ser a
pergunta certa, porque é a pergunta que nos motiva.

Qual é a pergunta?

‘A mulher anula a existência do homem’, já dizia um grande amigo meu


e, na busca desesperada de anular a minha existência, as drogas como o
crack tiveram uma participação cinzenta na minha vida.

Finalmente cheguei ao ápice do desespero. Por não ter mais nenhuma


escolha tive que pedir ajuda clínica para amenizar os impactos de minhas
ações. Isso aconteceu quando pedi a minha mãe para me internar em algum
lugar e, logo após uma semana de espera, parti para uma clínica no centro
de Curitiba. Embora eu tenha tido uma estadia curta de 33 dias, tive tempo
suficiente para reconhecer que eu não estava louco, muito embora estivesse
dentro de uma clínica psiquiátrica e meus colegas de quarto me chamassem
de louco.

Isso foi um mero detalhe comparado com os eventos que se seguiram.

Após sair do internamento permaneci seis meses utilizando apenas


cigarro comum e nada mais. Nesta época bradava à todos o poder que eu
tinha sobre este mundo e sobre as drogas, me glorificava e me exaltava
como um herege dos mais profanos, um verdadeiro ímpio.

Algumas poucas pessoas por algum motivo me aguentavam.

Acho que a minha relutância em querer mudar este mundo fez com que
eu permanecesse doze anos para completar o 2º grau, acho que deve ter
sido um recorde para o bom e velho Szymansky. Mas isso foi de grande
ajuda, pois os poucos amigos que descobri ter, eram exatamente aqueles eu
não dava lá muita moral. Nesse tempo de 2° grau, conheci o Samuel, um
maluco cabeludo e barbudo que parecia um farrapo de gente e sempre
andava todo de preto e, ainda por cima, tinha uma ideia muito mais louca
que as minhas, coisa rara de se encontrar nos dias de hoje.

Diante dos acontecimentos vim a descobrir posteriormente que ele era


crente, e, meu Deus, como eu escarnecia com ele, acho que era o único que
me entendia.

Mas a história com o Samuel fica um pouco mais a frente. Antes disso,
nos meu seis meses de abstinência, estava às vésperas de completar 26
anos, mais exatamente no dia 22 de maio de 2003, quando meu psiquiatra
me chamou para uma consulta de emergência, e na maior tranquilidade ao ir
até o consultório, este me disse que os meus exames para HIV tinham dado
positivo. Bom, nem preciso mencionar que a minha vontade de morrer era
mais do que imediata e todas minhas forças foram usadas em momentos de
profunda internação com drogas.

Agora com a recaída tudo se tornou pior, e finalmente me dei conta de


que eu tinha mesmo que morrer. Só que tirar a própria vida não é algo fácil e
por isso esperava ansioso por uma overdose que nunca chegava, foi quando
minha amada mãezinha viajou e eu completamente sozinho acabei com tudo
o que tinha dentro de casa, quando ela voltou, ainda me perguntou: Filho, saí
você, ou saio eu? È claro que eu saí.

Como eu não tinha mais jeito mesmo, alguns membros da minha


família financiaram a minha passagem para Rondônia onde estavam meu pai
e meu irmão mais novo, o André, grande sujeito e alguém que eu admiro
muito. Estava ansioso por voltar ao lugar aonde tinha passado minha rica
infância, só que ao chegar não recebi nenhum caminhão de boas vindas,
apenas meu velho pai com a parte dele do acontecido.

Viajei por 44 horas dentro de um ônibus para chegar tão longe, a morte
que eu tanto procurava não estava lá, e foi uma questão de dias até me
incomodar de novo. Lá não tinha crack, mas tinha um pó nervoso que me
deixava mais nervoso, mas, pelo menos, eu conseguia me controlar.

Descobri que o meu irmão, embora fosse à Igreja, estava tão enfadado
quanto eu. Foi quando ele começou a planejar um roteiro para visitarmos um
tio nosso no Mato Grosso. Passei então três meses, em JI - Paraná, até que
eu e meu irmão cansamos de planejar e finalmente executamos o princípio
do fim da minha existência.

Escrevemos uma carta ao nosso pai e colocamos na geladeira. Fomos


com apenas R$ 50,00.

Eu com uma mochila e um tubão na mão e meu irmão com uma


mochila e alguns miojos nas costas começamos a caminhar.

Saímos por volta de umas 09h00min da noite e em pouco tempo


estávamos na BR. Você pode não acreditar, mas bastou por a mochila nas
costas e as pessoas que estavam ao nosso redor começaram a nos olhar
diferente, parecia que estávamos cagados, mas não era isso, era porque não
éramos mais pessoas deste mundo e sim andarilhos, maltrapilhos, ou
melhor, mendigos.

Na hora em que começamos a sair da cidade tudo escureceu ficando


para trás apenas a lembrança de um mundo vazio e obsoleto. Eu e o André
estávamos extasiados pela nossa coragem, finalmente estávamos fazendo
alguma coisa diferente nesta vida.

Estávamos agora andando na BR 364 no meio do que restou da


Floresta Amazônica naquela região. Caminhamos uns 8 km até começarmos
a pedir carona, e não é que um maluco com uma caminhonete parou no
meio da noite! Saímos correndo, mas ao chegarmos perto acho que o cara
se assustou e arrancou, e nós xingamos até a última geração dele.

Há muitos anos não via um céu tão estrelado como aquele que vi
quando chegamos ao único posto de gasolina daquela região. Não
pensamos duas vezes, é aqui que vamos dormir. Lembro-me que meu irmão
levou uma rede e eu apenas um lençol, lá a temperatura média é na casa
dos 30º C, mas à noite refresca e, pra nossa ‘sorte’, nessa noite o tempo
fechou e um verdadeiro dilúvio veio abaixo. Choveu à noite inteira, mas como
ainda estávamos no começo da viagem com o orgulho inflamado, jamais
voltaríamos. E como foi longa aquela noite fria num lugar tão quente!

Assim que clareou o dia, já estávamos de pé e com a barriga vazia. Foi


a primeira vez que nos deparamos com o olhar caridoso da humanidade para
aqueles que não tem tanta sorte assim na vida. Pegamos a minha garrafa
que outrora estivera cheia de pinga e a enchemos de água, nosso único
alimento e ainda com uma pequena garoa saímos do posto e continuamos a
caminhada. Na placa que indicava 500 m do posto, desabou água de novo e
agora não tínhamos para onde correr, tudo o que fizemos foi pôr um saco
plástico na cabeça e andar, andar e andar.

Alguns quilômetros à frente, a chuva finalmente parou e nós achamos o


café da manhã, um pé de caju do outro lado da rodovia e, como era longe
pra atravessar essa rodovia! Mas a fome era grande também e logo
estávamos nos servindo da natureza. Com a barriga cheia, como diz um
amigo meu, dá pra caminhar até o inferno, e como estávamos tendo uma
vida mais saudável, não parávamos de ver o quanto este mundo é grande.
Foi quando finalmente a nossa sorte mudou. Já cansados de pedir carona,
um louco parou e dessa vez ele esperou até que nós chegássemos ao
caminhão, aonde ele gentilmente nos levou até a cidade de Presidente
Médici que ficava há uns 20 km à frente.

Como foi rápido! E logo estávamos debaixo de um céu escuro às 8


horas da manhã com uma dúvida: será que continuamos ou paramos e
esperamos a chuva passar?

Como já estávamos ensopados, optamos por continuar e, ai sim, o


desespero bateu. Uma chuva torrencial nos acompanhou pelos próximos 30
km que caminhamos e detalhe, tudo isso só com os saborosos cajus que
tínhamos comido pela manhã.

Nada mais importava tudo o que nós queríamos era sair dali. Eu não
entendia porque aqueles bois ficavam me olhando tanto, como é que eles
podiam ficar prestando atenção em mim. Nossas forças estavam acabando
quando o André lembrou que iria passar um ônibus de linha naquele horário,
ele sabia disso porque ele trabalhava na empresa de ônibus como cobrador
e, num é que ele tava certo! De repente entramos no ônibus e tudo se
transformou novamente. Os olhares permaneciam os mesmos, mas poder
sentar numa poltrona reclinável em meio aos calos e a roupa molhada
parecia realmente ser algo muito bom.

Seguimos até a cidade de Cacoal pagando apenas R$6, 00, realmente


uma pechincha, tendo em vista tudo o que foi caminhado. Essa foi à primeira
vez em que voltamos à chamada civilização e ai o desjejum rolou com pão,
mortadela e uma tubaína para descer macio.

Saímos daquele mercadinho com alguns índios nativos daquela região


olhando curiosamente para nós. Descemos até um posto de gasolina na
beira da rodovia e lá tiramos tudo o que estava molhado. Por um milagre,
depois que pegamos o ônibus, a chuva parou e nesse posto descansamos e
também nos reabastecemos com ânimo para continuar.

Caia à tarde do primeiro dia e lá estávamos nós, completamente


exaustos em uma pequena aldeia que fica à margem da rodovia comprando
arroz e nos preparando para passar a noite. Sentamos próximos a uma
lombada e dali só ia sair para dormir. Eu já nem ficava mais de pé para pedir
carona, ficava sentando mesmo, só esticava o dedão e, num é que deu certo
de novo! Um cidadão num Fiat 147 parou e nos deu carona por mais 60 km,
nos levando até a cidade de Pimenta Bueno. Agora com certeza nós íamos
descansar. Paramos em um posto que tivesse um mínimo de infra-estrutura
e algumas churrasqueiras para os motoristas, também um belo pé de mamão
verde que serviu de mistura para o arroz que fizemos, na verdade foi um dos
melhores que eu comi até hoje.

Mas algo nos incomodava e, como estávamos perto da cidade,


decidimos continuar e logo que saímos do posto uma pampa, parou, e nos
ofereceu carona até a cidade. Entramos e logo estávamos vagando em mais
uma cidade, só que era noite e já estávamos com a barriga cheia, era só
dormir.

Atravessamos a cidade e fomos dormir em uma borracharia na saída


da cidade. A essas alturas, eu tinha pegado um papelão, e descobri que ele é
um isolante térmico e não deixa o chão tão duro. Já o André estava bem
acomodado, com uma rede de dormir trançada. Enquanto a gente tentava
dormir em meio aos pernilongos que estavam por ali, no meio da noite
apareceu outro cara mais bêbado que o normal pedindo pra gente sair fora
dali. Era só o que faltava! Mas a gente trocou uma ideia com ele e o
convencemos a sair fora. Ainda bem que ele se mandou.

Quando se dorme na rua você não vê a hora de clarear o dia, e


caminhar parece ser a única coisa importante na vida. Levantamos o
acampamento e, como comer é um luxo, ficamos somente com a caminhada,
andamos mais ou menos uns cinco quilômetros até acabar todo o tipo de
civilização. Já estava sentindo até medo de entrar estrada afora quando,
finalmente, a sorte muda mais uma vez e um gentil senhor em um possante
Mercedes 1313, nos levou até Vilhena que fica a 170 km de distância. Os
próximos quilômetros foram tão velozes dentro do caminhão que, apenas
duas horas nos bastaram para chegar lá, no meio do caminho ele ainda
insistiu em querer nos pagar um salgado e um café em um posto, mas como
ainda tínhamos muito orgulho dentro de nós, recusamos tolamente esta
oferta e, por termos ainda algum dinheiro, pagamos nosso desjejum. O
interessante de uma jornada como esta é saber que algumas pessoas
ainda têm interesse em ajudar o próximo.

Ao descermos do caminhão em Vilhena, estávamos mais uma vez


dentro de uma cidade e, aquele olhar acolhedor das pessoas que nos
circundavam nos motivava a sair dela. Para quem não conhece, esta cidade
é toda plana e tínhamos pela frente uma longa jornada.

Quando olhávamos pela estrada em linha reta só enxergávamos o


vapor saindo do asfalto. Pelo menos água ninguém nega e isso já era o
suficiente. A tarde caía e já estávamos próximos ao limite interestadual, ali
havia um posto fiscal e uma fome animal, como já conhecia o caminho,
sabíamos que não dava para continuar à noite. O jeito foi parar neste posto
e pedir uma ajudinha, um fiscal que nos observava atentamente me chama e
eu logo vou conversar com ele, e com a sua ajuda garantimos um fogão para
preparar um macarrão instantâneo. Nosso cansaço era tanto que queríamos
subir escondido em cima de um caminhão e acordar aonde parasse, mas
como faltou oportunidade passamos a noite ali mesmo.

No clarear do dia ainda tentamos pegar carona, mas o tal do


caminhoneiro é mesmo um tipo de pessoa que não se comove facilmente.
Resolvemos então caminhar, mas agora tínhamos um pequeno problema a
seguir, a divisa do Mato-Grosso com Rondônia estava a poucos quilômetros
com mata fechada dos dois lados da rodovia e, a próxima cidade ficava a
uns 200 km. Se ninguém desse carona para nós, teríamos que dormir na
mata. O problema é que nas matas de lá ainda existem animais nativos
como, por exemplo, as onças pintadas e umas cobrinhas tipo sucuris, que
chegam a medir alguns metros, mas não são venenosas; tem outros
menores, porém fatais, tipo as corais, surucucus e, não podemos nos
esquecer também das aranhas e formigas gigantes.

Mas como não tínhamos opção e, ficar naquele posto fiscal estava
entediante, começamos a caminhar rumo ao inexplorado, pelo menos pra
nós. Este dia era um domingo de sol muito reluzente e aquelas retas
pareciam não ter fim nunca, de repente ganhamos companhia, algumas
Araras Azuis começaram a nos seguir até chegar à divisa de Estado. A divisa
é apenas uma placa que demarca o limite. Eu comecei a pirar, pisava de um
lado e estava no Mato-Grosso, pisava do outro voltava para Rondônia e ali
fiquei viajando sozinho na maionese.

Por volta de umas 9 horas da manhã, já estávamos muito cansados e


não podíamos parar em meio à grande quantidade de mosquitos devido à
mata fechada. Ainda bem que tinha sombra, mas mesmo assim era
desesperador, nessa hora você acorda e percebe que não está sonhado, o
nada aparece e tudo o que importa é um minuto de misericórdia de alguém,
sempre que o desespero batia, adivinhe!! É... A Matrix responde.

Um casal que dirigia uma pampinha vermelha, jamais esquecerei da


cor, pára ao nosso pedido de carona, infelizmente ele não foi muito longe,
apenas uns 40 km à frente. Ele ainda se deu ao trabalho de nos limpar uma
parte da carroceria para que pudéssemos seguir com eles. Como era bom
poder descansar e, o que era melhor ainda, ele nos tirou da mata fechada
para o serrado que começava a aparecer lentamente.

O casal ainda nos fez um favor de nos deixar na frente de um posto de


gasolina abandonado e de um ponto de ônibus, agradecemos a carona e
eles seguiram para dentro da mata por uma estrada de chão. Nós ficamos
imaginando se conseguiríamos ganhar mais uma carona enquanto eu
enrolava um baseado, meu irmão ficava de cara, mas eu não me importava,
nós estávamos ferrados, não dava nada aliviar a mente um pouco.

Lembro que quando fui acender o baseadinho, o André pedia


insistentemente carona, era uma descida de uns 500 m e havia uma ponte
que passava sobre um rio, a gente já estava planejando pescar o nosso
almoço, quando um maluco num caminhão, passou fazendo uns sinais
estranhos. Eu não entendi, pois já estava chapadinho, mas o André
entendeu, e falou:

André: -Corre, corre, corre que o cara vai dá carona.

Adriano: -Vai nada, tu ta se alugando cara.

Eu falei que ele estava viajando porque o cara passou chutado, mas
logo depois da ponte o doido parou mesmo, e pernas pra que te quero! Eu
esperava que ele não arrancasse quando a gente chegasse perto. Minhas
pernas doíam, mas correr não era problema nessa hora. Já chegamos com
toda a nossa educação, perguntando ao bondoso caminhoneiro para aonde
ele iria e ele nos responde que vai até Comodoro, a próxima cidade naquela
estrada e para quem estava a pé, era muito, mas muito longe mesmo.

O cara nos deixou no trevo da cidade e já era hora do almoço, e uma


longa descida nos aguardava e como a gente tava jejuando, para que
comer? Continuamos caminhando e a fome nos acompanhando. Em um
momento, chegamos a uma casa na beira da estrada e ali aconteceu à
primeira falha daquilo que se pode chamar de anomalia. Naquela humilde
casa fomos pedir água, e eu olhava para dentro da casa e via sobre a mesa
um enorme prato de comida e ao fundo um canteiro de alface, como não tive
coragem de pedir um prato de comida, pedi um pouco de alface na
esperança de que me oferecessem a comida. Meu Deus, como eu era
orgulhoso, até hoje me pergunto por que não fiz tal pedido, mas o dono da
casa nos forneceu a água que pedimos e a alface.

Enquanto voltávamos para a estrada, eu ia comendo a alface pura, não


tinha gosto de nada, mas pelo menos estava comendo alguma coisa. O
André sempre me surpreende e puxa um saquinho de sal e disse que com
sal a alface era melhor, e era mesmo.

Nosso dia já não estava tão ruim, pois em apenas uma manhã já
tínhamos pegado duas caronas e agora estávamos a pelo menos 600 km de
Cuiabá e um cara que transportava adubo para e nos dá carona por mais
uns 50 km. Nós dois parecíamos crianças em cima da caminhonete. Mas foi
na hora em que a gente desceu dessa caminhonete que começou a cair à
ficha.

A gente estava à beira de descer a nossa primeira serra, a chamada serra


dos macacos, e ali foi que tudo começou a fazer sentido. A fome, quando
ataca deixa os sentidos mais apurados e caminhar na descida é pior do que
na subida. Meu estômago estava só com aquela alface e na descida dessa
serra não dava para sair do acostamento, para baixo só precipício.

Eu finalmente atingi o ápice da liberdade e comecei a gritar, e quando


gritava escutava ao longe o meu eco, meu irmão perguntou se eu estava
louco ao que eu lhe respondi que sim, e continuei a gritar e o grito aliviava a
dor da minha existência. Mas o André ainda não tinha entendido que não
importava gritar, já que não tinha ninguém ali para escutar e que eu podia
fazer o que eu queria.

Logo ele entendeu isso e também começou a berrar, foi muito massa
isso. Após muitos anos, começava a me sentir perto do meu irmão de
verdade e como eu não acreditava em milagres, pela primeira vez
comecei pensar que talvez isso pudesse acontecer, porque a princípio só eu
via uma das cenas mais loucas da minha vida. Dois pés de
mamão, e quase todos maduros, falei para o André ver, mas ele demorou até
enxergar e, quando viu, sorriu muito.

Quando a gente chegou próximo do pé, começamos balançar para


derrubar os mamões, e uma coisa muito estranha acontece, embora os
mamões estivessem maduros, só caia os verdes e os pés deviam ter uns 4
m de altura, não dava para subir e a fome nos aplacava. Foi quando nos
lembramos das faquinhas de serra, destas de mesa mesmo, e começamos a
empreitar para derrubar os pés.

Até que não foi difícil, porque os pés de mamão são ocos e seu caule
macio e ainda gritamos: madeiraaaaaaaaaaaaaaa, e depois
comidaaaaaaaaaaaaa.

Isso devia ser umas 3 horas da tarde e, finalmente comemos algo


neste dia, mas ainda tínhamos um grande problema pela frente, o próximo
ponto de civilização estava há uns 300 km de distância e em apenas 3 horas
o sol iria se pôr, a serra já estava ficando para trás e o firme propósito de
caminhar sem parar ou os ataques de mosquito. Confesso que estava
batendo um desespero em mim porque aqueles problemas com animais
peçonhentos nunca deixaram de existir.

Este foi um dia de minha vida em que tive a sensação de ter durado
alguns anos pelo tanto de coisas que fizemos e de como anulamos a nossa
existência, enquanto seres consumistas e capitalistas.

Nessas alturas da estrada, já começamos a imaginar como fazer para


passar a noite. Teríamos que encontrar um lugar que nos protegesse do
sereno e também para fazer uma fogueira; difícil encontrar tal lugar no
serrado brasileiro. A tarde já se findava e ao longo da rodovia avistávamos
uma das intermináveis retas na qual meu irmão em ato de fé e coragem
profere sua maior profecia.
- Antes de chegarmos ao fim desta reta, em nome de Jesus, vamos
pegar uma carona.

Eu já estava zoando com a cara dele e como só tínhamos os dedos de


garantia para tal ato, não parávamos de pedir carona, era como se
estivéssemos nadando na beira da praia, aquele pôr do sol está cravado na
minha mente como uma das paisagens mais lindas da minha vida.

O André como sempre ia à frente, meu estado de saúde deteriorado


não me permitia ir muito rápido e usava da malandragem de ficar no vácuo
do André, pois a resistência do ar nele aliviava o meu fardo. Eu me partia de
rir...

Nestas tantas, um anjo desce do céu e vem dirigindo um caminhão, um


truck para ser mais exato, e para a alguns metros à nossa frente e corremos
com toda a nossa força. Quem em sã consciência na boca da noite para e dá
carona para dois maltrapilhos? Eu não sabia, na verdade, nessa época
achava que era uma lei da física. Para toda ação existe uma reação, hoje
prefiro acreditar que foi uma intervenção do arquiteto modificando a realidade
da minha programação dentro da matrix. Não me lembro de onde o doido
estava vindo, mas nunca esqueci para aonde ele estava indo, ele ia para
Cuiabá, exatamente há uns 600 km a nossa frente e meu ânimo se redobrou
quando ele disse que não tinha problema em levar a gente até lá.

Nessas horas já havia anoitecido e fomos parar em uma cidade


chamada Cáceres e lá passamos a noite. O cara ainda foi gente boa e
deixou a gente dormir em cima do truck que estava vazio, e ainda tinha uma
lona. Não bastasse isso, o doido ainda parou em um estacionamento
coberto, visando o nosso bem estar. Nem vou contar sobre o nosso desjejum
em uma parada que fizemos antes em um restaurante. Na eternidade espero
poder rever essa cena.

De madrugada acordamos com o motorista nos chamando para irmos


para dentro da cabine que a viagem ia continuar, e assim acontece. Por
volta de umas 8 horas da manhã, ele nos deixa no trevo de Várzea Grande,
região metropolitana de Cuiabá e lá tomamos um chocolate quente e um
salgado. Agora faltam 600 km para chegarmos a Sinope e já havíamos
percorrido 1100 km em 4 dias, mas, a nossa maior emoção ainda estava por
vir. O caminho que agora íamos percorrer jamais havia sido explorado, e
tudo o que víamos era novidade.

Andamos poucos quilômetros e já conseguimos uma carona em um


caminhão de peões de obra que iam fazer uma manutenção na estrada
alguns km á frente, estes caras nos trataram com mais respeito do que
qualquer pessoa da sociedade moderna e demonstraram muito interesse na
nossa história. Sempre que alguém parava para nos dar carona, as
perguntas eram sempre as mesmas: De onde vocês estão vindo e para onde
vão? Depois da nossa resposta, ser chamado de louco era normal, mas isso
já quebrava o gelo para continuar a conversa.

Este caminhão, eu me lembro até da cor e da marca, um Mercedes


1313 vermelho. Eles pararam em lugar nenhum e de lá continuamos a nossa
caminhada, agora reabastecidos de ânimo, ao longe avistamos uma ponte
em uma descida e dessa vez íamos parar para descansar e também pescar.
Estávamos pegando milho e soja que tinha na beira do caminho, quando
chegamos neste rio, mais uma vez algo inusitado acontece, o rio estava
vazio. Isso acabou com a nossa pescaria, mas não com a caminhada e
agora tinha uma longa subida pela frente e como já estávamos acostumados
com essa rotina, o jeito era andar, enquanto andávamos encontrávamos
muitas porcas e parafusos na beira da estrada nos jogávamos no meio da
rodovia com a intenção de furar um pneu, daí poderíamos nos oferecer pra
ajudar e de repente ganhar uma carona.

Nos metros finais desta subida, um corsa 1.0 parou ao nosso


costumeiro pedido e lá fomos nós de novo. Eu só estou escrevendo esta
história, porque eu já a contei muitas vezes, e às vezes até eu acho que é
mentira, mas não tem como imaginar que um ex-piloto de stock car em
Curitiba ia parar para dar carona para dois andarilhos pela mera curiosidade
de saber o que nós estávamos fazendo ali.

Coincidentemente, o cara trabalhava em uma locadora de carro e


estava indo para Sinope para devolvê-lo, e nós vimos o terror de percorrer
600 km em 4,5 horas. O André sofreu mais porque ficou acordado o tempo
inteiro e eu desmaiei no banco traseiro. Esse cara era louco de verdade, ele
corria a 180 km/h só para dizer que o carro não agüentava. E como ele era
piloto, aquelas retas do Mato Grosso deviam ser umas ‘pistas de brinquedo’.
Brincadeiras à parte, o fato é que estávamos em Sinope e agora para chegar
a Matão faltavam 180 km e não sabíamos como chegar lá, agora a coisa
ficava feia de verdade, porque estes 180 km eram em estrada de chão, e a
gente estava na época da seca, e o que era pior, não tínhamos a menor idéia
para onde ir.

Nesse momento, começamos a perguntar como fazer para irmos para


a cidade de Cláudia, uma cidadezinha a 120 km e, naquela BR, conseguimos
a nossa única carona com uma carreta que durou pouquíssimos quilômetros.
Quando subimos no caminhão, já tinha um andarilho por lá, era um cara que
vinha do Maranhão depois de não ter tido muita sorte por lá, estava indo para
o Pará. Não deu tempo de conversar muito e o motorista nos mostrou o
caminho da roça.

Imagine que você esteja vendo o mar, mas no lugar deste você só vê
terra vermelha e muito pó até a sua vista se perder no horizonte. A única
coisa diferente era um ponto de ônibus e foi ali que inteligentemente ficamos
esperando uma carona.

Quando a gente viu, tinha um caminhão vindo do Ceasa local e não


precisamos nem pedir carona, o motorista só falou para gente subir na
carroceria e se ajeitar. Só que a carroceria era aberta e tinha mais uma
galera em cima, me senti num pau de arara, conheci uma mina também que
por algum motivo se identificou comigo. Depois de tomarmos algumas
cervejas e comermos muito pó, ela me pediu para que eu a levasse daquela
cidade quando eu fosse embora, ela queria fugir dali, mas como levar
alguém para fugir se você está fugindo? Para não piorar a situação, falei
para ela me esperar quando acabasse as boas vindas da minha família, é
claro que eu nunca vi ela de novo, mas o motivo de eu me lembrar dela é
porque ela não se importava com minha fétida aparência e isso me deu lá no
fundo uma perspectiva de que eu não estava assim tão mal.

Ao chegarmos a Cláudia, vislumbrei uma cidade tipicamente deserta,


quase que uma cidade fantasma no meio da selva, ela só não se tornou um
cidade fantasma porque aos poucos os cidadãos apareciam curiosos para
fora de suas casas para observar dois viajantes ilustres que se assentavam
na praça da cidade. Dali ainda faltavam mais 40 km para chegarmos em
Matão, foi quando a gente percebeu que, devido ao nosso cansaço,
devíamos pegar um ônibus e assim o fizemos. Logo que chegamos à
fazenda, fomos recebidos por nossos parentes: tio Jango e tia Zeni, que
fizeram um banquete e nos devolveram ao aconchego de um lar e ao
repouso de quem anda por caminhos inexploráveis. Nossa estadia foi de uns
15 dias e éramos a atração principal do vilarejo, poderíamos ter montado
uma vida lá, mas é de lá que, pelo menos a minha, começou por algum
motivo a fazer algum sentido, e assim que minha saúde melhorou um pouco,
eu e o André decidimos pegar a estrada e voltar. Agora tínhamos adquirido
certa experiência em viajar em situações adversas, escolhemos um caminho
que nos levou de volta a Cuiabá e de lá nos separamos. Eu voltei para
Curitiba e ele para Ji-paraná.

Esse foi o fim do início da minha vida e a primeira viagem pelo deserto
do real que me levou às fronteiras da existência e aos limites da
programação que me permitiram reinstalar e reconfigurar os programas da
minha vida. Muitas outras histórias serão contadas, mas esta é especial ao
meu irmão André, que me ajudou a escolher a pílula vermelha e a ver a
profundidade da toca do coelho.

Obrigado meu amado irmão por ter enfrentado junto comigo os agentes
da matrix.
Capítulo II

Quando chegamos a Cuiabá, nosso velho e amado pai, havia


providenciado duas passagens de ônibus, e com alguns trocados ainda no
bolso embarquei em Várzea Grande e dali só fui acordar quando cheguei no
Paraná, passei quase 20 horas dormindo e agora tinha vivido uma grande
aventura e esperava que alguma coisa diferente acontecesse quando eu
chegasse, mas tudo estava do jeito que eu havia abandonado e a solidão era
ainda maior e mais angustiante. Reconciliei-me com minha mãe e ela por
algum motivo permitiu que eu voltasse pra casa, meus olhos doíam, porque
pela primeira vez eu estava usando eles e conseguia ver o quanto as
pessoas são vazias e sem graça, simplesmente porque elas não sabem qual
é o seu propósito neste mundo. Não demorou muito e eu já estava me
internando com o crack de volta e tudo o que eu fazia era só fumar, fumar,
fumar e fumar.

Mais uma vez eu estava desiludido por causa de mais uma vagabunda
neste mundo e na verdade era isso que me motiva a me matar, tentar
esquecer a dor de ter sido rejeitado e enganado por alguém que dizia me
amar, esse era um dos principais motivos de eu falar pra todo mundo que o
amor não existe e de que Deus era só uma história para enganar a massa
alienada e conter a revolução dos ignorantes, muita gente me odiava e eu
comecei a sentir prazer em ser odiado, pois se não podia sentir o amor, pelo
menos o ódio eu podia demonstrar sem fingir.

Quanto mais eu fumava, mais vazio eu ficava e esperava pela


overdose nunca chegava, vagueando pelos bares do mundo, encontrei
alguém que se importava com o que eu tinha a dizer e embora fossem
palavras duras, ele percebia a compreensão dos fatos. Na porta do Emídio
apareceu um dia, meu amigo Samuel, e lá estava eu feliz da vida por estar
contando minha história e ele realmente estava interessado em me ouvir,
mas como eu ainda não estava lapidado precisei mais uma vez cometer um
ato desesperado.

Meu skate tinha ficado na casa do meu pai e como eu estava já com a
sensação de não pertencer a este mundo e afundado com as drogas, decidi
voltar para a estrada.

Desta vez eu já tinha experiência e já sabia como fazer, peguei um


ônibus de linha e fui até o terminal do campo comprido e dali fui a pé até a
BR 277, comprei uma garrafa de vinho e fui amortizando meus pensamentos,
logo estava na auto estrada para o inferno e desta vez eu achava que estava
pronto para o que desse e viesse, só que após caminhar 30 km debaixo de
um sol escaldante, os ânimos se esfriam e de repente desistir de tudo não
era má idéia. Nessa hora você acorda e a sua vida intocável é preenchida
pela existência do nada, no meio do nada faço um sinal de carona e
finalmente alguém se atenta para a minha existência, um corajoso senhor de
idade para o seu monza preto há alguns metros a frente e eu me pergunto
para onde ele vai, e ele me leva até cidade de Apucarana, no meio do
caminho ele fez uma parada aonde recheou o meu estômago vazio. Após
algumas agradáveis horas a bordo de um carro, a realidade sempre volta e
em Apucarana desci na frente de uma praça, aonde tinha muitos doidos na
rua, mas o mais doido ali era sem dúvida eu, o gentil senhor que não me
lembro o nome, ainda se comoveu com minha triste história e me deu R$
10,00 para alguma eventualidade, essa foi a primeira noite em que amarguei
até encontrar um lugar para dormir e quando consegui encontrar após algum
tempo, um guardinha veio me perturbar e interromper o meu sagrado
descanso, convidando a me retirar do local, eu estava muito cansado e tive
que voltar um bom pedaço do caminho que havia percorrido porque eu
simplesmente não sabia aonde estava e nem para aonde eu estava indo,
precisava clarear o dia para que o meu senso de direção e informação não
me desviasse do meu destino, voltei para a praça e de lá também fui
convidado a me retirar dos bancos iluminados da vil cidadezinha acolhedora
do interior, não tive como dormir nem mesmo na rua e o R$ 10 reais que eu
tinha ganho foram investidos em um hotel de beira de estrada após mais
alguns kilometros ali eu simulei uma realidade nova e agora tinha até tomado
banho e uma cama para dormir.

Ao cair do amanhecer renovando todas as minhas forças comecei a


procurar o caminho para Rondônia, e logo estava em cima de um caminhão
que me levou até os limites da divisa do Paraná com São Paulo, não me
lembro do nome das cidades, mas foi nesse trecho em que o programador
começou a desconfigurar a minha programação. Tudo aconteceu quando
após descer da minha última carona me deparei com um vasto campo de
plantação devia ser umas 10:00 da manhã e ali começou a pior caminhada
que eu já fizera. No principio, antes de passar na divisa de Estado, fluíam
pés de goiaba e de manga eu nem precisava estocar, comia uma manga e
logo que terminava já tinha outro pé logo a frente e com as goiabas eram o
mesmo, hoje eu sei que era Deus que estava lá junto comigo, pois apesar da
solidão eu me sentia consolado, mas isso fazia parte do que estava por vir.
Assim que atravessei a divisa eu já havia caminhado uns 20 km e meus pés
já estavam calejados, de repente a paisagem mudou, não tinha mais tráfego
na estrada e nem uma única sombra em dezenas de quilômetros, eu já não
tinha mais água, não tinha mais saliva, não tinha mais força e meu dinheiro
não podia comprar a minha necessidade básica mais primordial naquele
momento, um copo de água, eu via ao longe as fazendas com lagos para os
bois muito distantes da rodovia e quando pensava em sair dela, não tinha
forças, nessa angustia de fome e sede, Deus realizou a sua obra prima em
minha vida, blasfemava contra Deus e amaldiçoava o dia em que eu tinha
nascido, quando em um ato de desespero ao passar um carro naquela
rodovia abandonada eu finalmente dobrei os meu joelhos e implorei por
ajuda em nome de Deus, nem assim meu pedido foi atendido mas quando eu
já não tinha mais esperança um outro carro parou ao meu sinal e me levou
até a cidade de Presidente Prudente, ele não tinha água no carro e eu viajei
quase 120 km até chegar a uma torneira.

Neste dia, assim que desci do carro, me senti como um camelo que
passa trinta dias no deserto sem tomar água, e tomei toda á água que pude,
mas meu cansaço físico era demais e então com algum dinheiro que tinha,
tomei duas cervejas num boteco de beira de estrada, foram o suficiente para
me alucinar e logo que saí dali, um céu tão negro como a noite se
aproximava e eu via uma tempestade se formar, andava a passos largos
procurando um abrigo, quando finalmente cheguei debaixo de um viaduto e
lá misteriosamente havia um sofá, no qual eu deitei sem nem tirar a mochila
das costas e dormi acompanhado da sinfonia de uma estrondosa chuva
torrencial.

Ao acordar de madrugada naquele lugar tão obscuro tive medo e logo


sai dali, fiquei andando até encontrar um posto de gasolina aonde fui pedir
para usar um fogão e fazer um macarrão que eu tinha na mochila, os
frentistas não foram indiferentes ao meu pedido e até uma melancia eles me
deram, neste posto pude usufruir de um banheiro e quando eu entrei neste
me deparei com o meu pior pesadelo, o meu reflexo no espelho me mostrava
no que eu havia me transformado, meu rosto estava todo queimado do sol e
meu olhar era o de um miserável mendigo, foi com este pensamento em que
eu fui para um banco nos fundos do posto e dormi o resto da noite.

Quando sai de manhã catei um papelão que me serviu de guarda sol


por longos kilometros sem fim na estrada do deserto do real, parecia uma
tortura as queimaduras do meu rosto ardiam e meus pés já não obedeciam
ao meu corpo, quando cheguei em um barzinho á beira da estrada meu
estado era tão deplorável que as pessoas que me viam já me ofereciam o
que comer tamanha a desgraça que me seguia. Fui pedir um pouco de água
e o cara logo me perguntou se eu não estava com fome, não podia nem
mesmo mentir mais e tive que aceitar dois cachorros quentes e meio litro de
refrigerante, nesse lugar fiquei pensando sobre a minha condição física e
começava a pensar em desistir, mas eu não podia, não tinha como desistir
eu tinha que seguir em frente e sem muitas opções, eu voltei para a estrada
e misteriosamente um fiat 147 vermelho parou e me ofereceu uma carona
até a divisa de São Paulo com o Mato-Grosso e comida que era bom mesmo
eu já não via há uns dois ou três dias, o tempo na estrada parece ser eterno
e cada minuto lá era como se fosse uma vida inteira e sempre que eu descia
de uma carona me deparava comigo mesmo e começava a perceber o
quanto eu sou insuportável, ainda hoje acho que nessas cruzadas eu estava
sonhando, mas este sonho era real e eu não tinha como acordar.

Logo que passei a divisa sobre o rio Paraná tive que descer e lá estava
eu de novo, a pé na auto estrada para o inferno e como já não tinha mais
forças sentei próximo a uma lombada e nem força pra ficar de pé eu tinha
lembro que esticava o dedo e pedia carona até que um crentão com sua
família inteira para e compadecido da minha desgraça resolve pregar pra
mim o evangelho figurado, mas eu ainda fiquei feliz porque ele me levou
mais 75 km a frente e me deixou em um cruzamento próximo a uma
cidadezinha, tive que caminhar mais alguns quilômetros até chegar lá e o por
do sol era tão vermelho que me lembrava os meus olhos chapados de tanto
viajar na realidade e na minha mente.

Neste vilarejo aconteceu algo digno de ser descrito, na porta do único


restaurante da vila eu estava me arrumando para passar a noite e meus
últimos trocados foram investidos em uma cerveja, aonde sentei como gente
a mesa e depois de tomá-la perguntei ao dono se podia dormir embaixo da
cobertura, ele concordou e misteriosamente começou a conversar comigo,
logo ele me perguntou porque eu tinha tomado cerveja ao invés de comprar
comida, eu lhe expliquei que pra dormir na rua era preciso anestesiar a
mente, ele se compadeceu de mim perguntou se eu não ficaria ofendido se
ele me oferecesse comida, eu quase chorei de emoção, há dias que eu não
comia nada nutritivo, enquanto eu comia, o dono do restaurante conversava
comigo e eu lhe contava minha triste história e para aonde eu estava indo,
quando terminei de jantar agradeci aquele senhor como se estivesse
agradecendo ao próprio Deus, e as suas palavras seguintes foram dignas de
um verdadeiro cristão, ele chamou o dono do hotel ao lado e gritou: -ô fulano
vem aqui, arruma um quarto pra esse cara passar a noite, eu não acreditava
no que via e ouvia e tão logo ele falou isso, só pude lhe agradecer e fui para
um quartinho e depois de tomar um banho revigorante, algo tomou conta de
mim e pela primeira vez em muitos anos, eu conversava com Deus e ali
naquele quarto, de joelhos eu agradecia ao Deus que não pode ser visto e
nem representado por qualquer mão humana, não era o Deus da religião
nem o Deus da mentira, era o próprio Jesus, o verdadeiro salvador que não
me cobrou nada por aceitá-lo sem eu nem saber quem estava ali comigo
naquele momento.

Dormi profundamente e ao clarear do dia tomei um café e peguei a


estrada novamente, no Mato-Grosso pra quem nunca esteve lá, as estradas
possuem retas, retas, retas e muitas retas ladeadas de imensos pastos
verdejantes cheios de inumeráveis cabeças de gado, com um calor
escaldante e muito raramente uma sombra, baseado neste quadro eu
desbravei o cerrado brasileiro por vários quilômetros e em alguns momentos
de solidão conversava ora com os bois e ora comigo mesmo e tentava
entender porque eu estava ali, quando eu gritava com a boiada eles se
assustavam corriam para o fundo do pasto como uma onda eu rachava o
bico de tanto dar risada, de repente me lembrei que esse dia era um dia de
domingo e eu já estava com fome, porque eu tinha caminhado das 6:00 até
as 12:00 sem parar, não que eu não quisesse, mas porque eu estava sem
água e nas muitas retas que via não havia um único sinal de água e muito
menos de qualquer pessoa além dos carros velozes e furiosos que
passavam sem nem perceber a minha existência.

A falta de água leva qualquer um à beira da loucura e a única coisa que


podia fazer era pedir carona, o problema é que eu estava numa reta em
declive de 9km, os carros mais lentos passavam há uns 120 km/h, quem
nesse mundo iria me ver ali, minha esperança era acabar a descida e
quando estivesse em uma subida alguém pudesse me ver e foi quase no
final dessa descida que um cara muito mais louco do que eu, atende ao meu
sinal conhecido e parou há uns 500 metros a minha frente, não sei da onde
tive forças pra correr, mas lembro que enquanto eu corria aquele Santana
Quantum alado, quase bateu com um caminhão só para me prestar uma
carona, comecei a pensar enquanto corria que ao chegar perto, ele pudesse
sair, graças ao bom Deus ele ficou lá e milagrosamente ele tinha uma garrafa
térmica com 5 litros de água incrivelmente gelada para saciar a minha sede.

Não me lembro do nome daquele senhor, mas lembro que estávamos


há 250 km de Campo Grande e ele disse que me levava até lá sem
problema, no decorrer do percurso fui conversando com ele, mas a
impressão que eu tinha era que não era um homem que estava ali e sim um
ser enviado por Deus para me socorrer, só saberei a verdade quando me
encontrar com o criador, mas até lá vale a pena lembrar que quando
chegamos em Campo Grande ele parou em uma churrascaria e ali houve o
meu desjejum por completo, comovido com a minha triste história e após
sentir uma certa confiança em mim ele praticamente acabou com a minha
viagem, pois quando eu já ia me despedindo dele e agradecendo pela
comida e pela carona ele me fala que vai até Cuiabá e que pode me levar até
lá sem nenhum problema, nos próximos 1000 km de viagem que viriam a
seguir, a viagem acabou porque quando chegamos em Cuiabá ele me deu
50 reais para pegar um ônibus e chegar o mais próximo que pudesse da
casa de meu pai, aceitei a sua oferta e ao invés de pegar o dinheiro e usar
para outros fins, realmente comprei uma passagem até a cidade de Vilhena e
enquanto esperava pelo ônibus sob o forte olhar da policia dentro da
rodoviária liguei para o meu irmão e contei a ele a história toda e ele
conseguiu uma passagem pra mim de Vilhena até Ji-Paraná e ao chegar
agora, eu tinha nos olhos o brilho de alguém que volta pra casa depois de ter
descoberto que ainda não tinha morrido e meu velho pai estava lá pronto pra
me receber, agora como o filho pródigo, e muita coisa fazia sentido, mas a
minha libertação ainda não estava na hora e ali houve o inicio da mutação
que eu estava pra receber, após me recuperar e tentar arrumar um emprego
e aperfeiçoar o meu condicionamento no meu skate, resolvi atravessar o
Brasil de volta, só que agora armado com meu fiel e escudeiro skate de
guerra.
Capitulo III

Uma vez que você escolha a realidade em que quer viver, por mais que
você se esforce para voltar atrás, isso não é possível, e toda a dor que você
sente pode no máximo ,anestesiá-la com substâncias que entorpecem o seu
estado real, você pode até simular a realidade mas vai ter que encarar você
mesmo mais cedo ou mais tarde e quando essa hora chegar você vai
perceber que não pode entortar a colher porque isso é impossível; você tem
que entender que a colher não existe e quem fica torto é você, e quando tudo
na vida está no fim é porque um novo começo está por vir, basta você ter
paciência para esperar, ver o que acontece, vim a descobrir que o nome
disso se chama fé e ter fé é ter lembranças do futuro.

Mais uma vez eu estava me afundando com uma química boliviana e


muito boa por sinal, mas agora tinha um problema, não importava mais o que
eu usava e nem quanto vinho, tubão, vodka ou três campos eu tomava, a dor
do meu passado de tudo o que eu tinha feito não passava e agora quando eu
ia pra estrada fazia sentido eu viver, cheguei a achar que meu destino seria
morrer atropelado por um caminhão, mas como eu não acredito no destino
resolvi pagar pra ver o que aconteceria se eu voltasse para Araucária, só que
dessa vez, de skate e disposto a saber até aonde vai a toca do coelho.

Numa tarde qualquer da minha vida, muito injuriado com este mundo,
catei minha mochila e meu skate e cai na estrada, ainda bem que lá tinha um
acostamento bom, que foi o que garantiu os primeiros 30 km até Presidente
Médici, só que desta vez eu não era visto mais como uma vagabundo
qualquer, não tinha carro que passasse por mim e não me visse, todo mundo
buzinava e alguns botavam a cara pra fora gritando uhuuuuuuuuuuu, e eu
olhava perplexo, não entendia porque eles estavam tão animados se quem
estava se divertindo era somente eu, mas tudo bem, logo eu estava tão
envolvido com a loucura em que eu estava que nem percebia direito da
chuva que vinha atrás de mim e o que me obrigou a encontrar um abrigo e
por sorte logo encontrei um ponto de ônibus aonde tive que permanecer
algum tempo sem poder sair dali. Assim que passou a chuva voltei para a
estrada, agora eu nem precisava mais pedir carona a minha loucura era tão
grande que agora diminuíam a velocidade só para conversar comigo e me
oferecer carona até aonde era possível e misteriosamente nesse dia parei
novamente em Pimenta Bueno para passar a noite, só que dessa vez passei
em um restaurante de um posto e lá tomei duas cervejas e fumei um
baseado que me ajudaram a encarar os pernilongos já conhecidos daquele
lugar.

Passado a noite, cedo já estava na estrada e ali tive a impressão de ter


vivenciado um DEJAVU, pois no exato lugar aonde eu e meu irmão tínhamos
pegado carona eu agora sozinho, havia conseguido novamente, só que
desta vez andei apenas uns 50 km e fui largado no meio do nada de novo,
catei minha prancha do asfalto e me dediquei a sair dali, pois a mata ao
redor da estrada era fechada e não havia sombra pra descansar e quando eu
encontrava uma, o meu suor atraia todos os tipos de mosquitos da área,
mais uma vez estava sem água e com muito cansaço devido ao esforço
físico e ao sol q uenão dava trégua, já estava desanimado quando um ônibus
de linha aparece e me oferece carona até um vilarejo há alguns kilometros à
frente, lá tomei um banho e tentava me abrigar do sol próximo a uma
lombada na BR, aonde eu sentei e sem forças pedia carona com o sinal
costumeiro, fiquei algumas horas sentado ali, e a próxima cidade ficava ainda
há uns 80 km, não dava pra sair dali sem um carona, nessas de desistir
sempre acontece o impossível.

Uma pampa branca pára logo a frente da lombada e um cowboi do


asfalto se aventura a me dar carona e logo estava dentro da charanga, o
cara ainda foi gente boa e deixou a minha mochila e o meu skate atráz o que
me deu um bom espaço na frente. Logo que começamos a andar o cara me
pergunta pra onde eu estava indo, ao que lhe respondi que ia pra Curitiba ele
ficou pasmado com a minha audácia e achou que eu estava brincando, mas
logo ele viu que era sério e no decorrer da viagem fomos conversando e ele
disse que ia só até Comodoro e que lá ia pegar um amigo dele para
continuar a sua viagem e se ele não estivesse lá ele me daria carona até
Cuiabá, nessa hora comecei a clamar a Deus para que o amigo dele não
estivesse lá, quando chegássemos isso devia ser umas 5 horas da tarde e o
cara voava baixo na estrada, tão baixo que em apenas 4 horas fizemos
quase 500 km até Comodoro e adivinhem o que aconteceu quando
chegamos lá? Sim, o amigo dele não respondia o celular ele me intimou a ir
até Cuiabá e assim fomos a toda velocidade possível atravessamos a noite
viajando e por volta das 4 da manhã chegamos em Cuiabá, agradeci a ele a
carona e quando me despedia dele e retirava meus pertences do carro ele
me fala algo quase inaudível. O cara, põe as tuas coisas ai dentro de volta
eu ia pegar uma mina aqui, mas como ta muito tarde e você ta indo pra
Curitiba vou aproveitar a tua companhia e te levar até Maringá, ta afim de
ir ????

Não pensei duas vezes e dali atravessamos o Mato-Grosso, o único


medo dele era de que eu tivesse alguma droga, eu tinha, mas lhe disse que
não, estava escondida na minha mochila, só que a minha aparência não
ajudava muito, e quando chegamos na policia rodoviária de Campo Grande,
assim que os pica pau me viram mandaram encostar a pampa e logo
começou o interrogatório, por um milagre eles não encontraram os baseados
que eu tinha guardado dentro de um buraco na mochila, nessa hora achei
que o motorista do carro ia desistir, mas ele não desistiu e prosseguiu
conforme o combinado em apenas 30 horas atravessei 4 estados brasileiros,
considerei isto um recorde, porque de Maringá até Curitiba eu levei quase
uma semana, perambulando por todas as vias que me eram licitas.

Eu havia descido a Serra do Cadeado em Londrina, essa foi a minha


primeira experiência em descer uma ladeira de 9 km oscilando 30 e 40 km
por hora para eu não me esborrachar. Com um cajado na mão conseguia
reduzir a velocidade sem precisar usar o tênis o que me economizou esforço
físico também, só que depois que desci a serra tinha que subir uma outra e
ali fiquei andando algumas horas até pegar uma carona com um tiozinho
num mercedão, ele ficou cabreiro e mandou que eu ficasse na carroceria e
para lá eu fui. Quando me deitei eu acho que desmaiei porque quando
acordei meu rosto estava completamente queimado do sol, eu não tinha
espelho pra me ver, mas sentia a dor das queimaduras, o senhor que me deu
carona me deixou em Ponta Grossa e dali até em casa eram apenas 100 km,
mas esses 100 km foram muito educativos para libertar algumas partes do
meu egoísmo.

Cheguei em um posto de gasolina logo abaixo de Vila Velha e ali com


apenas alguns reais no bolso fiz o que eu achava ser a minha ultima
refeição, os funcionários do posto me olhavam com desconfiança e eu logo
queria sair, mas já era tarde da noite tinha que encontrar um lugar pra dormir,
na saída do posto tinha três andarilhos que se conheceram na estrada e
estavam indo para a praia, foi fácil de se enturmar com eles e logo que
clareou o dia um deles me pergunta se eu estava com fome, eu disse que
sim e ele me intimou para uma das minhas maiores aulas da vida. Ele disse,
vem comigo que eu vou mostrar como que a gente consegue arrumar um
café pra quatro.

O cara chegou na maior caradura pro atendente do restaurante e pediu


pão e café pra 4, fiquei meio cabreiro, mas o atendente disse pra esperarmos
lá fora que ele já levava, e ele trouxe mesmo, quatro pães e ainda encheu a
garrafa descartável de café. Fiquei chocado com a facilidade de conseguir
comida grátis, mas como estava com fome logo comemos e partimos para os
100 km mais alucinados da minha vida. Os andarilhos tinham arrumado um
carrinho de supermercado aonde eles colocavam todas as mochilas e iam
revezando para empurra-lo, juntamente com uma placa com um aviso
dizendo NÃO FUME... rssss.

Seguimos estrada a fora e como eu já estava calejado nos pés não


conseguia acompanhar o ritmo deles na subida o que me rendeu o apelido
de marcha lenta, já nas descidas não tinha problema porque eu com o
embalo do meu skate, isso dava a impressão para eles de que eu era mais
louco do que eles. Esses caras eram a minha família naquele momento e
pude aprender um pouco sobre humildade com as ricas histórias que com
partilhávamos naquela caminhada.

Na parte da manhã caminhamos uns 30 km até chegarmos na próxima


rodoviária de maluco ou posto de gasolina como costuma dizer o tal do
Ventania, lá não foi diferente o tratamento que recebemos na hora de pedir
comida, primeiro foram em dois e pediram comida pra quatro e logo voltaram
com um baldinho forrado com carne assada e outros tipos de comida, no
qual dividimos entre os quatro, fiquei me perguntando se aquela quantia de
comida iria matar a nossa fome, e logo fui convidado para revezar no pedido
de comida, pela primeira vez na minha vida cheguei na porta do restaurante
com o baldinho na mão e perguntei, quebrando todo o resto de orgulho que
ainda existia em mim: -Será que o senhor pode me arrumar mais um pouco
de comida? Ele só pediu o balde e foi pra dentro do restaurante aonde nos
esperávamos como uns cachorrinhos rodeando uma churrasqueira, o
garçom logo nos serviu e retornamos para debaixo das árvores.

Logo após terminarmos o almoço, apareceu mais um andarilho e com


uma grande lição, eu ainda tinha R$ 7,00 e ninguém sabia, esse cara chegou
conversando como se fossemos velhos conhecidos e logo fumamos um
baseado e ninguém mais tinha cigarros, o que gerava uma certa fissura em
todos, após termos fumado, esse cara foi pedir comida também e quando ele
voltava, veio bradando feliz da vida que tinha achado R$10,00 e ele
perguntou se nós queríamos alguma coisa e todo mundo concordou em
comprar uma carteira de cigarro, ele assim o fez e retornando também trouxe
alguns doces e nos alegrou de uma maneira única. Passando o momento de
confraternização, rumamos a caminho de Curitiba e o cara que havia
chegado ficou por lá mesmo.

Caminhamos mais 30 km até chegarmos no próximo posto e no findar


da tarde uma nuvem de chuva nos seguia era uma imagem linda pintada no
céu e ao mesmo tempo fria e assustadora porque não tínhamos aonde nos
esconder, caiu a noite e finalmente chegamos no posto, eu estava acabado,
só me lembro que quando cheguei no posto, sentamos no estacionamento e
quando eu acordei tinha uma marmita com um garfo na minha frente, mesmo
sem eu ter participado para pedir a comida eles me trouxeram aquela
marmita como se eu fosse o cara mais importante do mundo. Daquele posto
só atravessamos a BR e passamos a noite embaixo de um ponto de ônibus,
não tinha outro lugar, ainda bem que tínhamos papelão pra forrar o chão
gélido. Ao acordarmos fui em mais uma busca bem sucedida para saciar a
fome da manhã e tão logo comemos já estávamos andando de novo,
caminhamos 12km até chegarmos no Rio dos Papagaios, ali eles decidiram
lavar as roupas e eu me despedi e segui minha viagem, pois estava perto de
acabar, mais alguns kilometros e cheguei no ultimo posto antes de chegar
em Campo Largo e com uma chuva nas costas ao chegar no posto, aonde
sozinho, pela primeira vez pedi comida só pra mim, esse posto ficou muito
conhecido e muitas outras histórias de pessoas “normais” que um dia
caminharam junto comigo também pediram comida lá. Lembro do prato de
papelão com muito arroz, feijão, frango assado, polenta frita e salada, como
estava boa aquela comida, enquanto eu comia, uma criança dentro de um
carro me observava atentamente quase que horrorizada, naquele momento
senti muita pena de mim mesmo, mas eu já estava a uma serra de chegar
em casa.

Desci a serra com chuva e ali com o meu freio especial para o meu
skate, um pedaço de galho como se fosse um cajado apoiando ele no chão
para não pegar muita velocidade, finalmente vi uma placa dizendo o sentido
de Araucária, mas como eu tinha pelo menos o dinheiro pra passagem decidi
que o meu sofrimento estava na hora de acabar assim que avistei um ponto
de ônibus, que com uma só passagem me levaria para a casa de minha mãe
embarquei na rodoviária de Campo Largo e a bordo do ligeirinho aquele cara
que tinha comprado cigarro pra nós e nos dado doces estava do meu lado e
era o único que não se importava com a minha aparência de mendigo, dentro
do ônibus passei pelo processo de libertação de egoísmo e vaidade, aos
olhos daquelas pessoas eu não tinha nenhum valor. Foi ali em que eu
percebi que a minha existência nesse mundo não era por acaso e sim aceitar
o fato de que eu sou uma anomalia sistêmica, uma aberração da natureza,
um vírus altamente contagioso, uma carta fora do baralho ou um peixe fora
da água, não importa a definição o fato é que quando cheguei nada havia
mudado, tudo permanecia no mesmo lugar isso me levou a beira da loucura
e logo eu estava lá no bar do Emídio tentando contar para alguém o que
havia se passado comigo. Na porta do bar estava o Samuel, lembram? Pois
é, ali eu contei a minha história e pela primeira vez agradecia a Deus em
público para alguém que já havia me visto blasfemar contra a existência de
Deus, e conversando com ele entendi que era Deus que estava presente na
minha morte como uma pessoa normal e também era ele que estava no meu
nascimento como um louco livre em Cristo sem o poder da religião na minha
mente e com o mais puro, elevado e criativo do evangelho de Jesus Cristo.

Nunca vi Deus e nem sequer cheguei próximo de um anjo, mas entendi


que ele colocou pessoas que entendiam Ele, próximas de mim, e com muito
amor ele se revelou de uma forma que talvez eu nunca possa explicar, mas
ele sempre esteve comigo embora eu não soubesse. Obrigado Senhor, por
todas as pessoas que colocaste no meu caminho elas me levaram a loucura
do entendimento da palavra de Deus.

Dias após contar a minha história para o Samuel, novamente estava


partindo por problemas sérios com o crack e essa talvez fosse minha ultima
viagem e foi, mas não como eu pensava, tudo o que fiz foi ligar para o
Samuel e sentados na rodoviária ele me mostrou o que era ser um discípulo
de Cristo, quando lhe contei iria voltar para Rondônia sozinho, ele, em um
dos maiores atos de amor em Cristo, me perguntou se poderia ir junto
comigo e que se ele não fizesse tal coisa toda Bíblia não faria sentido para a
sua existência, concordei, mas essa história ele já contou e deixo nas
palavras dele caso queiram saber o resto.

Agradeço a todas as pessoas que de alguma forma me ajudaram no


processo de transformação do meu caráter, um carinho especial ao Rosmil e
a Eliane que me acolheram como um filho, nunca esquecerei este ato de
amor. Agradeço ao Samuel por ter esperanças em mim quando nem eu
mesmo tinha, e principalmente a Deus por saber o que faz quando nem eu
mesmo sabia.
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(continuação...)

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