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I. É fato que várias Constituições ao redor do globo, assim como diversas normas
de direito internacional, não apenas positivam direitos civis e políticos, mas também
reconhecem expressamente a existência de direitos sociais, culturais e econômicos 2.
Sendo este um ponto pacífico, as questões que ora se põem são:
(a) existe algo que distinga, ontologicamente, os direitos sociais, culturais e
econômicos dos direitos civis e políticos?
(b) a concretização dos direitos sociais, culturais e econômicos é exigível, ou
trata-se de meras declarações de intenção, que isentam o estado de responsabilidade, no
plano fático-jurídico, quanto à implementação de ações garantidoras do gozo de tais
direitos?
(c) o que se encontra por detrás da visão cindida dos direitos humanos e quais as
conseqüências práticas daí advindas?
Nas linhas seguintes, buscaremos respostas adequadas a essas indagações.
II. Conforme aponta Christian Courtis3, não é raro nos depararmos com opiniões
que negam o valor jurídico dos direitos econômicos, sociais e culturais, atribuindo-lhes
caráter meramente político, a despeito da privilegiada posição hierárquica ocupada pelas
Constituições e pelos tratados internacionais que os consagram. Dessa forma, somente
os direitos civis e políticos obrigariam o Estado frente aos particulares - que poderiam,
unicamente em relação a tais direitos, buscar sua plena observância e estrito
cumprimento pela via judicial.
Alguns argumentos são levantados em defesa dessa tese. Por exemplo, aquele
segundo o qual os direitos civis e políticos importariam em obrigações negativas, de
abstenção, do Estado, enquanto os direitos econômicos, sociais e culturais estariam
atrelados a obrigações positivas. Associado a esse argumento, está o de que,
diferentemente do que ocorre com os direitos econômicos, sociais e políticos, a
observância dos direitos civis e políticos nada custaria ao erário; logo, a promoção
daqueles estaria subordinada à existência de recursos – não os havendo, as obrigações
jungidas a tais direitos seriam inexigíveis.
Não é difícil imaginar-se, porém, que para assegurar que particulares não
invadam a esfera de liberdade alheia, ou que, uma vez invadida, esta seja restabelecida
com a devida reparação de eventuais prejuízos, exige-se uma série de providências
ativas do Estado. Basta que se pense nas funções de segurança e de justiça, para que se
perceba que a promoção dos direitos civis e políticos implica a realização de prestações,
não só de abstenção, mas igualmente positivas por parte do poder público4.
Conseqüentemente, a concretização desses direitos também exige o dispêndio de
recursos.
Por outro lado, os direitos econômicos, sociais e culturais não estão totalmente
dissociados de obrigações estatais negativas. Afinal, como ressalta Christian Courtis, “el
derecho a la salud conlleva la obligación estatal de no danar la salud; el derecho a la
educación supone la obligación de no empeorar la educación; el derecho a la
preservación de um medio ambiente sano implica la obligación de no destruir el médio
ambiente”5.
Constata-se, pois, que tanto os direitos civis e políticos, quanto os direitos
econômicos, sociais e culturais impõem obrigações positivas e negativas ao Estado. A
diferença estaria em que estes últimos têm nas prestações positivas o seu núcleo, a sua
essência; daí a importância simbólica de tais prestações no processo de identificação
desses direitos. No entanto, essa diferença, a despeito de seu valor heurístico, não
justifica a separação dos direitos em classes incomunicáveis: na verdade, os direitos,
sejam sociais, econômicos e culturais, ou civis e políticos, dialogam constantemente.
Pode-se avançar ainda mais nessa linha de raciocínio, quando se constata que a
regulamentação de direitos tradicionalmente considerados civis e políticos assume
atualmente alguns contornos sociais. Pense-se, por exemplo, na relativização dos
direitos relativos à propriedade, ao contrato e à empresa, em razão da função social, da
proteção do consumidor, da preservação do meio ambiente e de outros interesses que
claramente excedem às liberdades civis6. E mais: há direitos cuja classificação não
encontra resposta na dicotomia obrigação positiva / obrigação negativa, como é o caso
dos direitos de sindicalização e de greve.
Como se percebe, os direitos humanos merecem tratamento holístico, integral,
indivisível, porquanto há espaços em que eles nítida e estreitamente se interligam,
combinando obrigações de caráter negativo e positivo7, que exigem ou não a utilização
de recursos públicos, revelando qualquer classificação como meramente convencional e
desprovida de força hierárquica8.
III. A despeito do que acaba de ser afirmado, é certo que ainda subsiste a idéia
de que os direitos econômicos, sociais e culturais estão unicamente relacionados a
prestações estatais positivas e, portanto, ao dispêndio de recursos financeiros. Desta
forma, haveria uma condicionante de ordem econômica, que, pondo de lado a
integralidade dos direitos, relegaria aqueles a uma segunda categoria, cuja concretização
seria inexigível em face do Estado.
Como visto, tal idéia parte de uma concepção simplista, que ignora o fato de que
os direitos – sejam eles de que categoria forem – envolvem um complexo de obrigações
negativas e positivas e, portanto, nem sempre o cumprimento de uma dada prestação
importará em gasto para os cofres públicos. Para além disto, desconsidera que a própria
atividade legislativa é uma forma de prestação positiva que não implica dispêndio extra
ao erário, podendo regular determinadas situações para que os direitos possam se
concretizar, criando conseqüências jurídicas relevantes desprendidas da permissão
original – como, por exemplo, o reconhecimento de entidades sindicais para assegurar
uma maior amplitude ao direito de associação – ou impondo restrições e obrigações às
pessoas privadas em prol de interesses da sociedade – como ocorre com os direitos
laborais, ambientais e consumeristas. Por fim, deixa de lado a noção de que a
concretização dos direitos pode ser alcançada com a prestação de serviços prestados
pelo Estado exclusivamente (v.g., jurisdição, redes de saúde e educação públicas) ou
com a repartição de obrigações com pessoas de direito privado (v.g., destinação de
recursos do FGTS para o sistema financeiro de habitação).
Percebe-se assim que, justamente por enfeixarem um amplo espectro de
obrigações, os direitos econômicos, sociais e culturais podem oferecer uma ampla gama
de opções de concretização, que vão desde o respeito até a promoção. Logo, é
evidentemente falsa a idéia de que trata-se de direitos que não podem ser opostos ao
Estado em razão de eventual falta de recursos previamente afetados à sua satisfação. E
mesmo o argumento da insuficiência econômica perde o sentido diante da autolimitação
que o Estado cria à sua discricionariedade quando assume obrigações no campo
nacional (notadamente por meio de cláusulas constitucionais) ou no campo
internacional.
VII. Como se vê, a corrente que prega a prevalência dos direitos civis e políticos
sobre os direitos econômicos, sociais e culturais não se sustenta. Assentada, porém, a
indivisibilidade, há de se admitir que a plenitude dos direitos é garantida, não apenas
pelo cumprimento espontâneo das obrigações pelo Estado, mas também pela “existencia
de algún poder jurídico de actuar del titular del derecho em caso de incumplimiento de
la obligación debida”, o que requer a existência de “acciones o garantias procesales
concretas que tutelen los derechos sociales”31.
A implementação de instrumentos adequados à correção de violações aos
direitos econômicos, sociais e culturais, decorrentes do descumprimento de obrigações
negativas e positivas, revela-se de capital importância quando se pensa que, de volta à
herança de John Locke, o liberalismo propõe a apropriação biopolítica dos direitos
humanos, ostentando a bandeira destes enquanto dispõe da vida de seus “inimigos”.
Consoante a observação de Rebeca Fernandes Dias,
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