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Para uma arqueologia dos valores

Por Mário Vieira de Carvalho

http://jornal.publico.clix.pt/noticia/25-01-2010/para-uma-arqueologia-dos-valores-18637187.htm

Ocorre-me, a este respeito, o que escreviam, por volta de 1926, alguns dos
coveiros da República

Basta recuar algumas décadas, nem cem anos, para começarmos a pisar o terreno da
arqueologia dos " valores". Escavamos um pouco e parece que recuámos séculos ou milénios.
A arqueologia começa lá onde a voz de antanho emudece e as crenç as de que s e reclamava
nos chegam soment e em estado fóssil.
Ocorre-me, a este respeito, o que escreviam, por volt a de 1926, alguns dos coveiros da
República. Refiro-me, em conc reto, à jovem elite aguerrida da Ordem Nova, uma revista
integralista, neotomista, onde campeavam nomes que mantiveram grande poder e influência
até ao colapso do Estado Novo. Não vale a pena "fulanizar" - eram sinais dos tempos...

Os alvos eram simultaneamente políticos, morais e estéticos. Ao mesmo tempo que se


exaltava a violência como " virtude", difamava-se a razão, "débil e impotente" quando não se
erguia "sobre a colunata sólida e eterna do E vangelho". Havia que erradicar a "tara romântica",
"patologia sentimental" que era acolhida sobretudo pelo "homem primitivo, o selvagem, a
criança e a mulher", pelo próprio homem, mas na sua "adolescência", isto é, em "certos
estados de infância física e moral ou de natureza afectiva". Era preciso conter a "inversão
brutal da hierarquia", "o regresso à barbárie, ao primitivismo, à infância mental", "a feminização
do masculino", "o império dos elementos femininos sobre os elementos viris do espírito". O mal
não vinha só da "erupção violent a do século XV III" e de Rousseau. O mal já vinha de muito
mais longe, do Renascimento e da Reforma.
A música era especialment e visada. "O diabo feito música" - assim se intitulava um dos artigos
- surgira no Renascimento, com a separação desta do quadrivium (onde acompanhava a
aritmética, a geometria e a astronomia) para se juntar à gramática, à retórica e à dialéctica
(trivium), agora como "linguagem das paixões" (musica poetica). "Separada da razão", a
música erguia "paraísos artificiais", "todo um universo rubro de pecado", produzia "uma emoção
toda carnal", tornara-se "a voz do tentador". O "problema musical" não era mais do que "um
aspecto da grande insurreição feminina". Música (profana) e mulher eram, enfim, coisas do
demónio - tal a doutrina da Ordem Nova.

A ideia da mulher como ser fraco e primitivo tinha, porém, os seus "fundamentos biológicos".
Num trat ado publicado em 1775, um médico francês (Pierre Roussel) "demonstrava" a
"debilidade" do "cérebro da mulher", que não lhe permitia atingir "o pleno desenvolviment o
intelectual", apenas reservado ao homem. As mulheres eram, decerto, capazes de
desempenhar tarefas físicas pesadas (bastava observar as camponesas e as serviçais...), mas
devia ser-lhes vedado o "trabalho int electual intensivo", por constituir grave ameaça para a sua
saúde.
O "ser social" destes tempos idos tornava aparentemente "óbvios" , para quem os formulava,
tais juízos científicos, políticos, estéticos e morais. Juízos que subsistem hoje apenas em
alguns fundamentalismos religiosos. Mais generalizado é o princ ípio que exclui a mulher do
sacerdócio. A Igreja luterana alemã - cujo quinto cent enário se avizinha - abandonou-o há
cinquenta anos, reagindo positivamente à lei da igualdade de géneros que acabara de entrar
em vigor. De outras bandas, porém, não nos chegam sinais de mudança, nem nessa, nem
noutras questões que remet em exactamente para a mesma origem: os " valores" da ordem
patriarcal, alegadamente com "fundamento biológico". Outrora agora.

Professor universitário

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