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Eduardo Goes Neves Arqueologia da Amazonia Jorge ZAHAR Editor Rio de Janeiro A memé6ria de James B. Petersen Copyright © 2006, Eduardo Gées Neves Copyright desta edigio © 2006: ‘Jorge Zahar Editor Leda. rua México 31 sobsclojz 20031-144 Rio de Janeiro, RT tel: (21) 2240-0226 / fix: (21) 2262-5123 ‘emt: je@zahar.com.br site: www-zahar.com.br ‘Todos os ditetos reservados. A reprodusie nio-aurorizada desta publicagio, no todo fou em parte, constitu violagio de direitos autorais (Lei 9.610/98) Preparagio de originals: Michel Teixeira Revisio tipogrifica: Eduardo Monteiro e Eduardo Faria ‘Composigio: TopTextos Edigbes Graficas Lida Impress: Cromosete ‘Capa: Sérgio Campane Tstragéo da capa: Estatuera tapajénica da regito de Santarém, com cerca de mil anos, endo colocada em exposigio na Bienal do Mercosul (Porto Alegte, out. 2003). Foto do autor CAP-Brasil. Catlogagio-na-fonte wicato Nacional dos Editors de Li Neves, Eduardo Gées, 1966- 423 Arqucologia da Amaudnia / Eduardo Gées Neves. — Ri de Janene Jorge Zahar Ed, 2006 i -(Descobrindo o Brasil) ISBN 85.7110-919.2 1 AmazBnia—Antiguidades, 2, Cerfmica ~Amazinia. 3, Arqueo- logia— Amazénia. I. Titulo, I. Sete ‘DD 981.1 06-1396 Du 94611) Sumario Introdugio 7 O meio fisico 12 O inicio da ocupagéo humana 22 ‘A transigao para a agricultura e 0 inicio da produgao ceramica 31 “Ascenso ¢ queda das sociedades complexas da Amazénia 48 ; Perspectivas futuras e temas de investigagao 77 Cronologia 79 Sugestoes de leitura 81 Agradecimentos 84 Sobre o autor 86 Créditos das ilustracdes p.17: Fotografia de Gustavo Politis. p.28: Acervo do Museu de Arqueologia ¢ Etnologia da Univer- sidade de Sao Paulo/fotografia de Wagner Souza e Silva p-34: Ilustragio de Robert Schomburgk, Watu Tieaba, a Wa- pisiana Village, 1841. p.54: Fotografia do autor. p.57-8: Acervo do Museu de Arqueologia ¢ Exologia da Univer- sidade de Sa0 Paulo/fotografias de Wagner Souza e Silva .60: Adaptado de Howells, William. Back of History. Nova York: Doubleday, 1954, p.298, p.63a: Acetvo do Instituto Histérico e Geografico do Amazo- nas/ fotografia de Fernando Chaves; p.63b: Acervo do Museu de Arqueologia ¢ Etnologia da Universidade de Sao Paulo/fo- tografia de Wagner Souza e Silva. p.65: Desenho de Marcos Brito. p.67: Acervo do Museu das Culturasdo Mundo, Gotemburgo, Suscia .68: Acervo do Museu de Arqueologia ¢ Etnologia da Univer- sidade de Séo Paulo/fotografia de Fernando Chaves. 1.69: llustragio de Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem filo- séfica pelas capitanias do Grito Pard, Rio Negro, Mato Groso e Cutiabd, 1783-1792. 70: Acetvo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Univer- sidade de Séo Paulo/fotografias de Fernando Chaves. p-71: Acervo do Museu das Culturas do Mundo, Gotemburgo, Suécia, Introdugéio AAmardnia é para muitos, uma das iltimas fronteiras inexploradas do planeta, um exemplo de natureza pri- mordial, intocada pela agao humana desde o inicio dos tempos. Durante 0 governo militar, no in{cio do mais recente processo de colonizaco da regio, cunhou-se até um slogan para representar essa idéia: a de que a Amaz6nia seria uma terra sem gente para uma gente sem terra. A arqueologia mostra que essa é uma falsa premissa. Ao examinar mapas de distribuigio das terras indigenas na Amaz6nia contemporinea e comparé-los com mapas de distribuiggo de sitios arqueolégicos, nota-se que a ocorréncia destes € mais ampla que a daquelas. Atualmente, a maior parte das terras indige- nas de grandes dimensées est localizada longe da calha principal dos rios Amazonas e Solimées, em éreas como as bacias do alto rio Negro ¢ do alto rio Xingu. Junto 0s rios Amazonas e Solimées ha, por exemplo, apenas duas grandes extensdes de terras indigenas, respectiva- mente as dos indios Sater’-Maué e as dos indios ‘T kuna. Fora delas, porém, em locais atualmente deso- EDUARDO GOES NEVES. cupados ou ocupados por populagées caboclas e mes- mo por cidades, € comum nas margens desses rios a presenga de sitios arqueolégicos, muitos deles de gran- de porte. Isso indica que, no pasado, essas reas eram ocupadas por povos indigenas, embora nao 0 sejam no presente. De meados do século XVI a0 inicio do XVII, quan- do os primeiros europeus visitaram ou se estabeleceram na Amazénia, era comum a referéncia & presenga de grandes aldeias, algumas ocupadas por milhares de pes- s0as, integradas em amplas redes regionais de comércio € em federagdes politicas regionais. Jé no inicio do século XVIII, tais referéncias desaparecem dos registros histéricos. Isso esté diretamente ligado ao processo de diminuigao populacional resultante do inicio da colo- nizagdo européia da Amaz6nia, conseqiiéncia da trans- missio de doengas, da guerra e da escravidéo. Assim, a aparente baixa densidade demogréfica verificada entre 08 povos indigenas da Amazénia contemporinea pro- vavelmente resulta mais das vicissitudes da histéria colonial e do ciclo da borracha na regiéo do que pro- priamente de alguma inaptidio ecoldgica inerente. Atualmente, 0 contexto politico e ecolégico da Ama- zénia é complexo: 0 desmatamento aumenta a niveis nunca vistos, os conflitos pela posse dos recursos natu- rais sfo cada vez maiores e cidades como Manaus ¢ Belém crescem a um ritmo vertiginoso, com as tipicas conseqiiéncias da urbanizagao descontrolada. Proje- +8. ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA g6es — otimistas, se ages concretas nfo forem imple- mentadas — feitas por cientistas especializados apre~ sentam um quadro de reducéo drdstica da cobercura florestal no nem tao longinquo ano 2030. Todos esses problemas mostram que o Estado brasileiro nao sabe direito 0 que fazer com a Amaz6nia, embora a neces- sidade de ages seja premente. Neste livro, procurarei mostrar que parte dos pro- blemas sensfveis no que se refere 4 condugio e & dis- cussio — por parte de cidadéos organizados, agentes governamentais, cientistas, politicos e intelectuais — de estratégias voltadas para a ocupacio 0 desenvoly’ mento sustentavel da Amazbnia esté diretamente liga- da ao completo desconhecimento, ou até mesmo de- sinteresse, com relagéo & milenar histéria de ocupagio humana da regio. Proponho aqui que um olhar vol- tado para o passado remoto pode, no minimo, nos trazer parimetros que possam orientar, de maneira ampl, alguns principios de ago no presente. Em primeiro lugar, é importante reconhecer que a bacia amaz6nica era densamente ocupada por diferen- tes povos indigenas no final do século XV, época do inicio da colonizagao européia nas Américas. Confor- me veremos adiante, essa ocupacao nao era uniforme, variando no tempo e no espaco. Os modos de vida desses povos eram também diversificados: alguns gru- [pos estavam organizados em sociedades hierarquizadas que viviam em assentamentos que hoje chamarfamos +9. EDUARDO GOES NEVES de cidades, como pode ter sido 0 caso dos indios ‘Tapajé, enquanto outros eram némades que tinham suas economias baseadas na caca, na pesca ¢ na coleta. Em segundo lugar, ¢ também fundamental perceber que 0s povos que viviam na Amazénia antes do inicio da colonizagao européia eam ancestrais dos povos indigenas que ainda ocupam a regido, apesar do grande processo de redugao demogréfica, deslocamento geo- grifico e mudanga cultural ocorrido nos tiltimos 500 anos. Nesse sentido, a arqueologia da Amazénia é, antes de tudo, uma espécie de Histéria Antiga dos povos indigenas da regio. Em terceiro lugar, é neces- sdrio reconhecer que a ocupacéo humana pré-colonial, de certo modo, guia alguns dos processos de ocupacio no presente. Freqiientemente, cidades contempori- neas esto localizadas sobre sitios arqueolégicos, como 60 caso de Santarém, Manaus, Manacapuru e Tefé. Nas reas rurais, ocorre o mesmo fenémeno. Finalmente, as hipéteses aqui enunciadas levam a que se reconsiderem as idéias de ““leima fronteira” ou “natureza intocada”. A Amaz6nia € ocupada ha mais de 10,000 anos, em alguns casos por populagdes de milhares de pessoas. E de se esperar, portanto, que a floresta que hoje recobre muitos sitios arqucolégicos tenha, além de uma histéria natural, também uma histéria cultural. Assim sendo, é impossivel entender aspectos da histéria natural da Amazénia sem conside- rar a influéncia das populagdes humanas, do mesmo +105 ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA modo que nao se pode entender a histéria dos povos amazénicos sem considerar também as relagées que esses povos estabeleceram com a natureza. As pesquisas arqueolégicas na Amazénia tém uma tradigao centenétia, iniciada por pioneiros brasileiros € estrangeiros na segunda metade do século XIX onganizada inicialmente a partir de dois centros princi- pais: 0 Museu Nacional, no Rio de Janeiro, eo Museu Paraense Emilio Goeldi, em Belém. Paradoxalmente, apesar dessa tradigao, existem ainda grandes lacunas de conhecimento. Com excegio do Pard e do Amapé, estados ou regides inteiras, como Acre, Roraima, Ma- ranhéo e norte do Mato Grosso, sio virtualmente desconhecidos, Em outros estados, como Rondénia, Amazonas e Tocantins, ha mais informagées dispon veis, mas mesmo assim insuficientes ante as suas gran- des dimens6es. © mesmo vale para os outros patses amazdnicos, 4 que a pesquisa nesses locais € ainda bastante incipiente. Sendo assim, as informages aqui apresentadas terao necessariamente carter hipotético, e€ provavel que sejam modificadas com o avango das pesquisas na regio. Este livro é baseado em minha prépria experiéncia de pesquisa no estado do Amazonas ¢ também em informagées produzidas pelos poucos arquedlogos que trabalham na regio. Por Amaz6nia, entende-se aqui a chamada Amaz6nia Legal — os estados de Rondénia, ‘Acre, Amazonas, Roraima, Amapi, Pard ¢ partes do ais EDUARDO GOES NEVES Maranhao, Tocantins ¢ Mato Grosso —, as pores amazénicas de paises como Bolivia, Peru, Equador, Colémbia, Venezuela ¢, finalmente, os patses ou terri- trios fronteitigos com o Brasil, mas que tecnicamente nfo pertencem & bacia amazénica, tais como Guiana, Suriname e Guiana Francesa. 0 meio fisico Qualquer descrigio do meio fisico na Amazénia seré cheia de superlativos, No Brasil, a bacia amazénica ocupa mais de 40% do territério nacional. Na América do Sul, tem uma érea de sete milh6es de quilémetros quadrados, quase igual & de todo o continente curopeu. O rio Amazonas despeja, em média, 200.000m?/seg de Agua ¢ sedimentos no oceano Atlantico, 0 que repre- senta quase 1/5 do total de agua doce despejada nos ‘oceanos e mares por todos os rios da Terra. As nascen- tes do Amazonas ¢ de seus afluentes estao localizadas em trés dreas principais: a cordilheira dos Andes, a este, 0 planalto das Guianas, ao norte, ¢ o planalto Central, ao sul. No caso do rio Amazonas, as nascentes estdo nos Andes centrais, hoje territério peruano. Os Andes so uma formagio geolégica recente, cujo processo de soerguimento se encerrou ha “apenas” seis milhdes de anos, muito pouco quando se considera a a iim ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA historia de mais de quatro bilhdes de anos do planeta. ‘As montanhas da cordilheira sofrem um processo ero- sivo intenso, causado pelo regime de chuvas e pelas variagSes anuais de temperatura, que levam ao der. mento das geleiras no vero e a0 desbarrancamento dos terrenos adjacentes as areas de cabeceiras dos rios que ali se originam. Por outro lado, como conseqiiéncia de sua juventude geolégica, os sedimentos transportados pela erosao sio bastante ricos em nutrientes. Seu trans- porte pelos rios e conseqiiente deposic&o em areas mais baixas leva a fertilizagao destas a cada cheia anual, em. um processo semelhante ao verificado, por exemplo, no rio Nilo. Em uma clissica tipologia, proposta ainda no século XIX, os rios amazénicos que nascem nos Andes s40 conhecidos como “de Agua branca”, devido A coloragio barrenta de suas Aguas. Jé 0s rios que tém suas nascentes no planalto das Guianas ou no planalto Central, como por exemplo os rios Negro e Xingu, respectivamente, tém suas dreas de cabeceiras em re- gives geologicamente mais antigas. Como consequién- cia, nao trazem carga sedimentar rica em nutrientes, 0 que faz com que nao fertilizem suas planicies de inun- dagio, Na mesma tipologia, tais trios si0 conhecidos como “de Aguas claras” ¢ “de éguas pretas”, dependen- do da sua coloracao. Rios de 4guas pretas, como o rio Negro, sao normalmente os mais pobresem auttientes, apesar de apresentarem alta biodiversidade. ata: EDUARDO GOES NEVES, Hé na Amaz6nia grande variagao anual no regime de chuvas e nos niveis dos rios, visivel em pelo menos duas estagdes bem marcadas — uma época de cheia e outra de seca — que mudam de regio a regido. Na Amazdnia central, por exemplo, 0 tempo de seca vai de julho a setembro, quando a quantidade de chuva é significativamente menor. Nessa época, 0 nivel das Aguas diminui, até atingir seu minimo no més de novembro. Jé no alto Amazonas, o pico da seca ocorre antes, no més de maio. As variagGes nos niveis de dgua dos rios tém conseqiténcias importantes para as socie- dades da Amaz6nia. E na vazante, quando o nivel é mais baixo, que a pesca é mais produtiva, uma vez que © menor volume de 4gua reduz o espago de circulagao dos peixes. £ também na época da seca que as rocas sto derrubadas, queimadas e preparadas para o cultivo. Na época das cheias, por outro lado, a pesca é prejudicada: além de ser 0 periodo de desova e de engorda, 0 alaga- mento das varzeas € da floresta, formando igapés, cria amplas dreas inundadas por onde se espalham os pei- xes, 0 que torna sua captura mais dificil. Quem tem a oportunidade de sobrevoar a floresta amaz6nica deve imaginar que os solos da regio so bastante férteis, j4 que sustentam uma floresta densa e alta. Essa imipressfo é, no entanto, enganosa. Os solos. amarzénicos s40 normalmente bastante pobres, com excego de algumas dreas como as planicies dos rios de Aguas brancas ou outros locais especificos onde ocor- “hs ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA, +15» além de ocupar ‘A regido amaz6nica se espalha por paises como Equador, Bolivia, Peru, Colombia e Venezuel lente & do continente europeu, io brasileiro, Sua area total é quase eq EDUARDO GOES NEVES rem manchas de solos mais férteis, como ao longo da rodovia Transamaz6nica, préximo A cidade de Altami ra, no Pard, Essa baixa fertilidade ¢ explicada pela his- t6ria geol6gica da regio. Com excesio dos Andes, que sio uma formagao recente, a bacia amazénica esté implantada sobre dreas geologicamente antigas, sujei- tas 4s condigdes extremas dos limas tropicais. Sob esas. condigées, os solos so expostos anualmente a chuvas torrenciais, bem como & evaporagio causada pelo sol equatorial. Em conseqiiéncia, tornam-se cidos e inca- pazes de manter seus nutrientes, em um processo co- nhecido como lixiviagéo. Como explicar, entao, 0 de- senvolvimento da floresta? Isso ocorre por causa de uma ficiente reciclagem, permitindo que boa parte dos nutrientes que compdem a biomassa, produzida pela floresta e depositada sobre seu leito — folhas e troncos caidos, por exemplo —, seja decomposta e reabsorvida ‘com a ajuda de micortizas, fungos que vive nas rafzes das plantas. A reciclagem eficiente faz com que apenas uma pequena quantidade dos nutrientes seja absorvida pelo solo e, mesmo assim, s6 em suas camadas mais superficiais. Por isso, ¢ comum que, em Areas desma- radas, a floresta demore muito a se recompor: 0 des- ‘matamento interrompe a ciclagem de nutrientes, em- pobrecendo os soles, além de tornd-los expostos& chuva, ‘o que favorece a erosio ea perda adicional dos eventuais nutrientes que ainda restavam. +166 ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA Em uma tipica floresta madura, isto é sem desma- tamento recente, seja por agentes nacurais ou humanos, comum que a maior parte da biomassa esteja locali- zada na copa das Arvores e nao no chao. Tal padrio € importante para 0 entendimento da ocupacéo huma- na: na Amazénia, ao contrario das savanas africanas, é incomum a ocorréncia de espécies de animais cagéveis que andem em bando e vivam na superficie do chao. ‘A maior parte dos animais preferidos por grupos que vvivem de caca, pesca e coleta habita a copa das drvores. Veados, antas, pacas, capivaras cotias sao presas valiosas, mas também animais solitérios ¢ com comportamento territorial relativamente imprevisivel, 0 que dificulta a caga, As excecées sio 0s porcos-do-mato, que an- dam em grandes bandos em al- gazarra pela mata, mas também com grande ¢ imprevisivel mo- bilidade, O padrao de distsibui- ‘go dos animais terrestres, soli- térios ou de comportamento « " ms Os indios Nukak da Amazénia imprevisivel explica por que ae colombiana tém alta mobiida- macacos sio presas privilegia- de, permanecendo poucos dias das porcacadoresdaAmazénia, "0 mesmo local. Atualmente, Ree Pt seu modo de vida encontra-se pois so animais barulhentos, ameacado pela guerra civil no que vive em bandos nas copas pais: “17s EDUARDO GOES NEVES. das érvores ¢ com comportamento territorial marcado, © que facilita sua identificagao e caga em quantidades mais produtivas. E também por tal razo que a zara- batana é, por exceléncia, a arma preferida de muitos grupos cacadores e coletores. Suas grandes dimensdes 0 fato de ser silenciosa permitem a captura de animais que vivem no alto das drvores. Em contraste com 0 incerto ¢ imprevisivel padrio de distribuigao de animais terrestres, os animais aqué- ticos so uma fonte mais previsfvel e abundante de recursos alimentares. Dentre eles hd, além da imensa variedade de peixes, mamiferos aquaticos — como o peixe-boi —, répteis e aves. As dreas ribeirinhas sao, portanto, mais ricas e previsiveis em recursos para populagées humanas do que as de terra firme. Tal fator pode explicar padtao pelo qual sitios localizados junto aos grandes rios tendem a ser maiores e mais densos do que os outros. Para efeito de estudo da ocupagio humana, a bacia amar6nica pode ser dividida em quatro grandes com- partimentos de diferentes tamanhos, distribuidos, gros- so modo, de oeste para leste. O primeito comparti- mento é formado por uma longa faixa, orientada do sul para o norte, que segue paralela & cordilhcira dos Andes, na Bolivia, Peru, Equador e Colémbia, ¢ inclui freas de cabeceiras do préprio rio Amazonas ¢ de alguns de seus principais afluentes. O segundo com- partimento ¢ formado pelas éreas ribeirinhas e alagadas 18 ARQUEOLOGIA DA ANAZONIA, localizadas junto aos intimeros trios, lagos ¢ igarapés da regio. O terceiro compartimento, de maiores dimen- s6es, porém menos conhecido, inclui as imensas éreas de interfliivio, ou “de terra firme”, distribuidas por toda a bacia. Trata-se de dreas nao alagéveis, distantes dos grandes rios e, portanto, sem acesso a recursos ribeirinhos em larga escala. Essas so também as areas que vém softendo o maior desmatamento desde a década de 1970. O tiltimo compartimento inclui as zonas de estuétio ¢ litoral, incluindo, no Brasil, partes dos estados do Amapé, Par e Maranhao. Trata-se de uma regio onde hé forte influéncia das variagbes didrias das marés, com vérios metros de amplitude, além da prépria variaggo anual dos niveis fluviais. Nese compartimento foram identificados s{tios com algumas das cerdimicas mais antigas de que se vem noticia na América do Sul. Foi ali também que flores- cou uma das civilizagbes pré-coloniais mais conhecidas na Amaz6nia: a marajoara. Da breve discussio aqui apresentada, depreende-se que existe uma caracteristica subjacente ao processo de ocupagéo humana da Amazénia: a imensa biodiversi- dade ali verificada, Isso se manifesta no grande ntimero de espécies de plantas ¢ animais que ocupam a floresta, representando, para as populag6es humanas, um imen- so banco de recursos utilizado 20 longo de milénios. Ao mesmo tempo, a natureza sempre proveu referén- cias para as sociedades indfgenas — que podem ser ais EDUARDO GOES NEVES, verificadas, por exemplo, nos ricos padrdes de decora- fo das ceramicas produzidas por diferentes grupos da Amaz6nia pré-colonial, em que é freqiiente a repre- sentagio de seres fantésticos compostos por formas humanas ¢ animais. Curiosamente, entre as socieda- des indigenas contemporaneas, é também comum en- contrar processos similares, através dos quais seres humanos estariam constantemente envolvidos em. transformagées nas quais assumem identidades de ou- tros animais. Como exemplo, hé as narrativas de pajés que se transformam em ongas ou péssaros durante 0 transe xaménico. Assim sendo, o mundo da natureza, para as populacées indigenas da Amazénia, representa no somente um grande estoque de recursos materiais: a ser utilizado de diferentes formas — para alimenta- Zo, construsio de habitagées, transporte, divertimen- to —, mas também uma verdadeita biblioteca de re- feréncias, a partir da qual individuos e sociedades constroem narrativas sobre si mesmos e seus papéis no universo. A marcante biodiversidade da Amazénia correspon- de também uma grande sociodiversidade, que pode, por exemplo, ser aferida pela notével quantidade de Iinguas indigenas, de diferentes familias, ali faladas. Em termos de comparagio, todas as Iinguas modernas da Europa — com excegio do basco, do estoniano, do huingaro, do finlandés e das linguas trazidas recente- mente pelos imigrantes da Asia e da Africa — perten- + 20+ ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA com a uma tinica familia lingiistica, a indo-européia, Nela incluem-se Iinguas to diferentes como, por exemplo, o portugués ¢ o polonés ou o alemio e o italiano. Uma familia lingiifstica ¢, como 0 préprio nome indica, 0 agrupamento, no presente, de varias Iinguas diferentes que tém origem comum, Isso fica claro no caso das Iinguas neolatinas como o francés, © romeno, 0 castelhano, o catalao, 0 portugues € 0 italia- no. A ébvia semelhanga entre elas deriva do fato de terem se desenvolvido a partir do latim, a lingua oficial do Império Romano, As linguas neolatinas, por sua yer, compéem um ramo de um agrupamento mais amplo e inclusivo, o da familia indo-européia. O mes- mo ocorte, nessa familia, por exemplo, com as linguas eslavas ou as germinicas. Na bacia amazénica, por sua vez, sao faladas linguas de pelo menos quatro grandes familias distintas — tupi-guarani, arawak, carib e gé—, sem contar indme- ras outras familias menores e linguas isoladas. As razbes para tamanha diversidade lingiifstica, ja reconhecida no século XIX, sto certamente histéricas e devem ser entendidas através do estudo do processo de ocupagao pré-colonial, conforme se verd adiante. A diversidade cultural e social amazénica tem também outras ma- nifestagées: alguns grupos tém uma ideologia voltada para.a guerra, outros néo; ha sociedades ndmades com economia voltada para caga, pesca e coleta vivendo lado a lado com grupos agriculrores sedentérios. Tal varia- 21s EDUARDO GOES NEVES bilidade, verificada no presente, também ocortia no pasado, conforme indicado pela arqueologia. Sendo assim, € incorreto projetar um nico padrao de orga- nizagao social e politica para as populagies pré-colo- niais, como se elas vivessem todas do mesmo modo. ‘Ao contririo, & medida que as pesquisas arqueolégicas avangam na regio, percebe-se que a variabilidade de formas de vida no passado tenha talver sido ainda maior quea do presente. Finalmente, ha também que considerar a grande variabilidade geogréfica dentro da bacia amaznica— na cobertura vegetal, na distribuicao de espécies ani- ‘ais, na precipitagao, na fertilidade do solo, na quimi- ca das dguas ¢ na temperatura —, que tem implicagdes importantes para 0 processo de ocupacdo humana da regigo. Concluindo, percebe-se que a diversidade é a chave para o entendimento da arqueologia amazbnica. Nada mais distante, portanto, de uma certa visio tra- dicional que enxerga a Amazénia como um grande ecossistema homogéneo — seja ele um inferno verde ou um paraiso perdido — ocupado por grupos essen- cialmente iguais entre si. O inicio da ocupacao humana A ocupacéo humana da Amazénia se iniciou ha pelo menos 11,000 anos, mas é possivel que seja ainda mais “22s ‘ARQUEOLOSIA DA AMAZONIA, antiga. Datas ao redor de 9200 a.C foram obtidas na escavagao da caverna da Pedra Pintada, uma gruta Jocalizada no atual municipio de Monte Alegre, no Pard. Os achados mostram que esses habitantes antigos tinham uma economia baseada em caga, pesca e tam- bém coleta de frutas, com destaque para algumas pal- meiras até hoje consumidas na Amazénia. O fato de as descoherras em Monte Alegre terem sido feitasem uma gruta no quer dizer que os primeiros habitantes da Amazénia fossem “homens das cavernas”. O que ocor- re € que grutase cavernas, pela propria protecao natural que oferecem, tém melhores condigdes de preservacéo de materiais, a0 contrdrio de sftios a céu aberto, geral- mente expostos & ago da chuva, & crosio ¢ a outras intempéries. No extremo oposto da Amaz6nia, na bacia do alto rio Guaporé, arual estado do Mato Grosso, outra gruta, conhecida como Lapa do Sol, forneceu datas ainda mais antigas, de cerca de 12000 anos a.C. A escavagao foi feita na década de 1970 por um arquedlogo brasi- leiro, Eurico Miller, com 0 auxilio dos indios Nambi- quara, que vivem na drea, No entanto, as condigoes de preservacio do sitio — quesofreu intensaagao de cupins e possivel mistura de camadas arqueolégicas — fazem com que essa data seja tomada com cautela, tornando necesséria a realizagio de novas escavac6es no local para confirmé-la. +23 EDUARDO GOES NEVES bilidade, verificada no presente, também ocortia no pasado, conforme indicado pela arqueologia. Sendo assim, € incorreto projetar um nico padrao de orga- nizagao social e politica para as populagies pré-colo- niais, como se elas vivessem todas do mesmo modo. ‘Ao contririo, & medida que as pesquisas arqueolégicas avangam na regio, percebe-se que a variabilidade de formas de vida no passado tenha talver sido ainda maior quea do presente. Finalmente, ha também que considerar a grande variabilidade geogréfica dentro da bacia amaznica— na cobertura vegetal, na distribuicao de espécies ani- ‘ais, na precipitagao, na fertilidade do solo, na quimi- ca das dguas ¢ na temperatura —, que tem implicagdes importantes para 0 processo de ocupacdo humana da regigo. Concluindo, percebe-se que a diversidade é a chave para o entendimento da arqueologia amazbnica. Nada mais distante, portanto, de uma certa visio tra- dicional que enxerga a Amazénia como um grande ecossistema homogéneo — seja ele um inferno verde ou um paraiso perdido — ocupado por grupos essen- cialmente iguais entre si. O inicio da ocupacao humana A ocupacéo humana da Amazénia se iniciou ha pelo menos 11,000 anos, mas é possivel que seja ainda mais “22s ‘ARQUEOLOSIA DA AMAZONIA, antiga. Datas ao redor de 9200 a.C foram obtidas na escavagao da caverna da Pedra Pintada, uma gruta Jocalizada no atual municipio de Monte Alegre, no Pard. Os achados mostram que esses habitantes antigos tinham uma economia baseada em caga, pesca e tam- bém coleta de frutas, com destaque para algumas pal- meiras até hoje consumidas na Amazénia. O fato de as descoherras em Monte Alegre terem sido feitasem uma gruta no quer dizer que os primeiros habitantes da Amazénia fossem “homens das cavernas”. O que ocor- re € que grutase cavernas, pela propria protecao natural que oferecem, tém melhores condigdes de preservacéo de materiais, a0 contrdrio de sftios a céu aberto, geral- mente expostos & ago da chuva, & crosio ¢ a outras intempéries. No extremo oposto da Amaz6nia, na bacia do alto rio Guaporé, arual estado do Mato Grosso, outra gruta, conhecida como Lapa do Sol, forneceu datas ainda mais antigas, de cerca de 12000 anos a.C. A escavagao foi feita na década de 1970 por um arquedlogo brasi- leiro, Eurico Miller, com 0 auxilio dos indios Nambi- quara, que vivem na drea, No entanto, as condigoes de preservacio do sitio — quesofreu intensaagao de cupins e possivel mistura de camadas arqueolégicas — fazem com que essa data seja tomada com cautela, tornando necesséria a realizagio de novas escavac6es no local para confirmé-la. +23 EDUARDO GOES NEVES De qualquer modo, diferentes partes da Amazénia jderam ocupadas em torno de 7000 a.C. As evidéncias vém de locais tio diversos como a serra dos Carajés, no ard: a bacia do rio Jamari, em Rondénias a regido do rio Caqueté (Japurd), na Colémbia; 0 baixo rio Negro, prdximo a Manaus, e 0 alto Orinoco, na Venezuela. “Apesar da escassez de dados, hd um padrio emergente no que se refere 20 entendimento da economia dos primeiros habitantes da Amav®nia. Esse padro mostra que os povos tinham uma estratégia de exploracio de recursos que valorizava a biodiversidade caracteristica da regido, isto & nao eram cagadores especializados na captura de animais de grande porte, mas sim pescado- tes, coletores e cacadores de animais pequenos. Essa afirmagao pode parecer dbvia, uma vex que existem poutcas espécies de animais de grande porte na Amaz6- nia, mas ¢ importante considerar que, tradicionalmen- te, a arqueologia americana esteve impregnada de uma perspectiva, hoje bastante questionada, de que os pri- meiros habitantes do continente teriam sido especiali- zados justamente nesse tipo de captura. Por conta disso, alguns autores chegaram até a propor que teria sido imposstvel a ocupagio da floresta tropical antes do advento da agriculcura, Tais hipdteses gerais tém sido derrubadas nos tiltimos anos, em grande parte gragas a informagées obtidas na América do Sul. Elas mostram, em primeiro lugar, que, ha cerca de 11.000 anos, havia no continente populagées com diferentes tipos de eco- 24. ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA nomia: algumas eram especializadas na exploracéo de recursos marinhos; outras, como na Amazénia, tinham economias diversificadas; enquanto outras ainda eram especializadas na caca. Os dados obtidos em diferentes partes da Amaz6nia mostram que, de fato, a floresta tropical foi ocupada antes do advento da agricultura, ou seja, por populagées com economias baseadas em caga, pesca e coleta. O inicio da ocupacaio humana nas ‘Américas sempre foi um dos temas mais debatidos na arqueologia, em uma discussao que jé tem mais de um século, Atualmente, esse debate passa por uma trans- formagio profunda, jé que a maioria dos arquedlogos concorda com o fato de que as Américas foram ocupa- das ha mais de 12.000 anos. Os dados da Amaz6nia séo uma contribuigao fundamental para esse debate, ao mostrar que as populagdes que colonizaram inicial- mente a regio tinham economias diversificadas. Os primeiros habitantes da Amazénia provavelmen- te utilizavam uma série de matérias-primas diferentes para produzir seus artefatos e organizar seus modos de vida, mas, devido as condig6es de preservasao normal- mente desfavordveis a materiais organicos, 0 que resta desses conjuntos sio instrumentos de pedra lascada ou polida e refugos de sua produci0, como, por exemplo, lascas, Em alguns sitios antigos na Amazénia brasileira foram identificadas pontas de projetil bifaciais (ou seja, lascadas em ambas as faces), produzidas a partir de diferentes rochas, como 0 quartzo eo sflex. Por conta +25. EDUARDO GOES NEVES disso, alguns autores sugeriram que pontas de projétil poderiam ser utilizadas como artefatos indicadores de cocupagées muito antigas, datadas em mais de 10.000 anos. O_ problema com esse argumento é que pontas de projétil so muito raras na AmazOnia. As estimativas variam, mas menos de 20 delas foram identificadas cm toda a bacia amaz6nica, certamente um niimero muito pequeno. Para complicar a situagao, a maioria desses artefatos foi encontrada fora de contexto, por garimpeiros, ctiangas ou pescadores. Sendo assim, ¢ muito dificil determinar sua idade com preciso. Por outro lado, em outros sitios antigos localizados na serra dos Carajés, em Rondénia, ¢ no rio Caqueté, na Colémbia, identi ficaram-se artefatos de pedra lascada, mas no pontas de projétil, © que mostra que elas nao tiveram um uso disseminado. A situagéo da Amaznia ¢, de qualquer modo, contrastante com a de outras partes do Brasil —como o planalto meridional, no vale do Ribeira, em Sao Paulo, ao norte do Rio Grande do Sul—, onde é comum a ocorréncia de pontas de projétil em s{tios antigos. Em Capelinha, o sitio mais antigo de Sio Paulo, as escavag6es identificaram dezenas de pontas em apenas uma unidade de 1m! Por essa raridade, 0 estudo das pontas amazdnicas ¢ importante, Na caverna da Pedra Pintada, um sitio antigo es- cavado com bastante cuidado, identificaram-se frag- mentos de pontas com datas ao redor de 9000 a.C., mas +26. AROLEOLOGIA DA ANAZONIA nenhum artefato inteiro. J4 no sitio a céu aberto Dona Stella, localizado em Iranduba, no Amazonas, uma ponta inteira foi localizada, mas associada a datas mais recentes, entre 7000 e 6500 a.C. Dona Stella é, até o momento, 0 tinico sitio onde se identificou uma ponta inteira em contexto arqueolégico bem definido em toda a bacia amazénica. O artefato em questio tem cerca de 6x 4cm., A matéria-prima utilizada foi um tipo de silex incomum na regio, cujos afloramentos mais préximos conhecidos localizam-se a quase 200km de distancia. A técnica de produgéo incluiu percussio direta ¢ pressio. O acabamento refinado da ponta, a simetria nos retoques a pouca espessura relativa indi- cam que ela foi confeccionada por arteséos com grande conhecimento técnico. Em ambas as faces do pediin- culo — a haste da base do objeto — hé um pequeno canal formado pela retirada por presséo. A pequena dimensio do pediinculo coloca diividas sobre sua fun- ‘40 quanto ao encabamento da ponta. De ato, o étimo estado de conservagio da ponta e a auséncia de evidén- cias de desgastes no gume, ou mesmo de qualquer tipo de fragmentagio, podem até sugerir que sua fungio talver nao fosse a de instrumento de caca, mas sim, por exemplo, um objeto de status. Aligs, as poucas pontas conhecidas na Amaz6nia néo tém, aparentemente, sinais de uso —como, por exemplo, quebra e reaviva- mento do gume —, 0 que indica que esses artefatos também tenham sido utilizados em contextos mais 27+ EDUARDO GOES NEVES rituais que propriamente utilitarios. Talvez por isso sejam tao raros, Em torno de 10000 ¢ 8000 a.C., na transigo entre as épocas geoldgicas co- nhecidas como Pleistoceno e Holoceno, € provavel que as condigdes climéticas ¢ ecolégicas da AmazOnia fossem seme- 5 Ihantes as atuais, como conseqtiéncia de ae el pa um processo de aquecimento global ini- bacia amazdnica, Ciado alguns milhares de anos antes, a Esse exemplar foico- partir de 16000 a.C. Nessa época, hi letado por James Pe- tersen em 2002, no ak sitio Dons Stellagee ef em média, 6°C mais baixa que a datado entre 7000e atual. Parte considerdvel da égua do pla- 6500 a.C. 18.000 anos, a temperatura do planeta neta estava retida em grandes geleiras localizadas no alto das montanhas ou nas altas laticu- des. O territério que corresponde atualmente a0 Ca- nadé, por exemplo, estava coberto por uma massa de gelo de 3km de espessura e milhdes de quilémetros quadrados de rea. Uma conseqiiéncia da formagao de geleiras foi o recuo do nivel do mar, que em alguns pontos ficou até 100m abaixo dos niveis atuais. No caso do rio Amazonas, esse recuo fez com que sua foz ficasse num local muito distante de onde é hoje, pré- ximo & costa da Guiana Francesa, a mais de 100km de distancia do litoral atual. ‘A partir de 16000 a.C. ocorreu um proceso de reaquecimento cujas causas esto relacionadas a varia- +28. /ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA Ges na drbita do planeta. Na Amaz6nia, de 11000a.C. em diante, os registros indicam aumento da pluviosi- dade, do nfvel dos rios e da sedimentagio aluvial. O crescimento gradual do nivel do mar, o derretimento de geleiras nos Andes e o aumento do volume de égua nos rios levaram ao afogamento de cursos d’dgua ¢ @ formacao de lagos, t{picos da paisagem regional. Desse modo, ¢ provavel que os primeiros habitantes tenham vivido em um contexto ecoldgico semelhante ao atual. Paradoxalmente, os registros paleocliméticos ¢ pa- Jeoecolégicos do Holoceno médio — ou seja, da época entre 6000 ¢ 1000 a.C. — so menos conhecidos que 0s do inicio do Holoceno. As melhores fontes de in- formagao disponiveis para o entendimento do clima do meio ambiente de entao provém de fontes distintas: pélens preservados no fundo de lagos, geleitas nos Andes, quimica dos solos, microvestigios vegetais co- nhecidos como fitélitos ¢ a prépria implantagio dos, sitios arqueolégicos. Todas essas fontes independentes parecem indicar que, na Amaz6nia, o clima foi mais seco entre 6000 ¢ 1000 a.C. Uma possivel conseqiién- cia desce intervalo seco deve ter sido a retragao de dreas cobertas por floresta, com conseqiiente expansio de dreas de cerrado, assim como — nas éreas onde a floresta permaneceu — a mudanga na freqiiéncia de espécies de plantas. E também possfvel que o nivel médio dos rios tenha diminufdo. No baixo rio Xingu, a base de alguns sitios conhecidos como sambaquis, +29 EDUARDO GES NEVES datados de cerca de 2000 a.C., esta atualmente sub- mersas, indicando que o nével médio do rio devia ser mais baixo que o atual. Na baia de Caxiuand, préxima ao baixo Xingu, houve aumento de chuvas a partir de 700..C., enquanto no periodo anterior, de 4000700 a.C., 0 lago era bem mais raso do que atualmente, embora a vegetagio circundante jé fosse composta por floresta tropical. Resumindo a discussfo, as evidéncias aqui apresen- tadas apontam para a ocorréncia de variag6es climati- cas ¢ ecoldgicas na Amazénia durante 0 Holoceno. Os dados sio quase concordantes em um aspecto funda- mental para a histéria da ocupagao humana na regio: © fato de que houve aumento nas condigées gerais de precipitagdo ¢ umidade—além da expansio da loresta em alguns casos —a partir de cerca de 3000 anos atris, Tal processo deve estar relacionado as mudangas vist- veis no registro arqueolégico da regio, notadas a partir da mesma época, conforme se verd a seguir. Particular- ‘mente, no que se refere 20 estudo do inicio da ocupagto humana, 0 reconhecimento de que ocorreram mudan- gas climAticas significativas a0 longo do Holoceno pode explicar por que houve uma aparente diminuigao da freqiiéncia de sitios arqueolégicos nesse periodo. Paradoxalmente, conhece-se mais sobre os sitios mais antigos, ocupados antes de 6000 a.C., do que sobre os sitios ocupados entre 6000 e 1000 aC. Estaré essa lacuna nas informagées relacionada de fato a um esva- +305 ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA, ziamento demogréfico da regio, resultante das mu- dangas climaticas? Ou, por outro lado, os sitios dessa época nao estao sendo identificados devido a proble- mas nas estratégias de levantamento utilizadas pelos arquedlogos? A ainda baixa quantidade de pesquisas impede que tais perguntas sejam respondidas com certeza. Baseado nos dados atualmente disponiveis, apenas duas reas da AmazOnia foram ocupadas mais (ou menos continuamente durante o Holoceno. A pri- meira inclui a regio do baixo rio Amazonas e estustio, desdea tual cidade de Santarém até o litoral, no estado do Pard. A segunda inclui a bacia do alto rio Madeira e seus afluentes, onde atualmente esté localizado 0 estado de Rond6nia. Talver nao por acaso, essas reas correspondem também a locais onde a floresta ficou mais estdvel a0 longo do Holoceno. A transigéo para a agricultura ¢ 0 inicio da produgio ceramica Uma das maiores contribuigoes dos indios das Améri- cas para a humanidade foi a domesticacao de uma série de plantas que atualmente séo consumidas de diferen- tes modos por todo o planeta. A lista & grande e ser4 aqui parcialmente mencionada, em ordem alfabética: abacate, abacaxi, abébora, amendoim, bacata, caju, feijio, mamao, mandioca, maracuj, milho, pimenta- 1316 EDUARDO GOES NEVES vermelha, pupunha, tabaco ¢ tomate, entre outros, foram domesticados em diferentes partes do continen- te americano muito antes da chegada dos europeus. Como quase tudo em arqueologia, ha um grande de- bate sobre a antigitidade do inicio desse processo, mas é provavel que os colonizadores iniciais— que tinham seut modo de vida organizado em torno de caga, pesca coleta — jé praticassem algum tipo de manejo de antas, conforme dados obtidos, por exemplo, na nia equatoriana, A domesticacio de plantas de- ser entendida como um processo a partir do qual lgumas espécies selvagens so manipuladas com 0 bjetivo de destacar algumas de suas caracteristicas, wm raciocinio semelhante ao feito atualmente por iadores de animais de raga. Assim, por exemplo, 0 rocesso de domesticagio da mandioca envolveu a ipulagao de espécies selvagens com 0 objetivo de lesenvolver variedades com raizes mais grossas ¢ lon- gas, jd que esta é a parte da planta que é consumida. Do mesmo modo, a domesticacio da pupunha—uma espécie de palmeira cujos frutos, do tamanho de uma amelxa, sfo amplamente consumidos na Amaz6nia e em outros pafses da América do Sul ¢ Central — envolveu um proceso de selegio que privilegiou, a0 longo do tempo, as variedades com frutos maiores. O processo de selego intencional que leva & domestica- fo de uma planta é bastante longo, com duracio de muitas décadas ou mesmo séculos. Nesse sentido, a | Sate [ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA agricultura nao foi “inventada” por alguns poucos individuos. Ao contrério, resulta de processos longos ¢ cumulativos no decorrer dos quais a selego intencio- nal de caracterfsticas morfolégicas acaba por levar 20 surgimento de novas espécies, aparentadas as espécies selvagens das quais se originaram. E ébvio que hoje isso mudou. Basta, por exemplo, ver as fortunas investidas por grandes laboratérios internacionais no desenvolvi- mento de espécies transgenicas. Pode-se considerar a emergéncia da agricultura ‘como um processo coevolutivo no qual seres humanos ¢ plantas desenvolveram uma dependéncia métua que tornou a vida de ambos impossivel sem a presenga do outro. A mandioca é um bom exemplo: foi domestica- da na Amazinia ¢ atualmente ¢ consumida em larga escala pela América Latina, Caribe, Africa e Asia. Ela é tao dependente dos seres humanos para se reproduzir que muitas variedades jé perderam a capacidade de lancar sementes no solo. Nesses casos, & necessdrio que talos do galho sejam quebrados e plantados pelos agri- cultores. Por outro lado, é correto afirmar que muitas populagdes do mundo em desenvolvimento provavel- mente teriam dificuldades nutricionais ainda piores sem o cultivo de mandioca. Esse exemplo ¢ ilustrativo ¢ impressionante, jd que os indios — provavelmente as indias — do passado desenvolveram uma tecnologia sofisticada, bascada no uso de varios instrumentos, como o ralador, o tipiti e o cumaté, que transforma as EDUARDO GOES NEVES uma planta extremamente venenosa em varios produ- tos importantes, como o beiju, a farinha, a tapioca eo caxiti. ‘A domesticagdo da mandioca é um exemplo de como as antigas Populagdes amazénicas desenvolveram téenicas avangadas de cul- ‘tivo, Essa imagem foi feita por Robert Schomburgk em 1841. No estudo do processo de domesticacéo de plantas eanimais, algumas dreas so classificadas como centros, isto 6, locais onde esses processos inicialmente ocor- reram, enquanto outras so consideradas receptoras, ou seja, locais que posteriormente receberam essas ino- vag6es. Nas Américas, existem dois centros conheci- dos de domesticagéo de plantas:a Mesoamérica— partes do México, Guatemala e Honduras — ¢ os Andes centrais. Paulatinamente, no entanto, a Amazénia 34s ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA também tem sido considerada um centro inde- pendente de domesticacio. A lista de plantas domest. cadas ali € extensa ¢ inclui, entre outras, o abacaxi, 0 amendoim, 0 mamio ¢, principalmente, a mandioca e a pupunha. Normalmente, um centro de domesticacio pode ser identificado a partir dos préprios vestigios paleobota- niicos encontrados nos sitios arqueolégicos ou de estu- dos botinicos ¢ genéticos indicando a ocorréncia, em Areas especificas, de espécies selvagens que tenham parentesco com as espécies domesticadas. Dentro da grande diversidade ecolégica ¢ geogrifica que caracte- tiza a Amaz6nia, ha uma area especifica que pode ter sido um importante centro de domesticacio: a bacia do alto Madeira ¢ seus afluentes, onde hoje esté 0 es- tado de Rondénia, De acordo com evidéncias botani- cas € genéticas, esse foi o centro de domesticacéo de duas das mais importantes plantas cultivadas atual- mente na Amaz6nia: a mandioca e a pupunha. Curio- samente, ¢ talver nao por acaso, essa € uma das poucas dreas onde ha claras evidéncias de ocupagio humana continua durante todo o Holoceno. Conforme se ver adiante, 0 alto Madeira pode também ter sido o centro de origem das linguas tupis. ‘As formas antigas de agricultura da Amazbnia foram provavelmente bastante parecidas com algumas priti- cas atuais, tal como o cultivo nos quintais das casas — &s vezes em hortas suspensas, geralmente sobre canoas 135 EDUARDO GOES NEVES abandonadas — de plantas medicinais ou tempetos, como diferentes tipos de pimentas. Uma diferenca tecnolégica significariva, no entanto, é que as popula- Bes pré-coloniais no dispunham de machados de metal para abrir suas rogas. E provavel que a introdugio desse tipo de instrumento, bem como de facdes, a partir do século XVI, tenha modificado as priticas agri- colas ¢ os préptios padrdes de mobilidade das socieda- des amaz6nicas. A técnica de cultivo tradicionalmente utilizada na Amazénia ¢ também na Mata Atlantica no Brasil central é a agricultura “de coivara”, “de toco” ou “de corte e queima”, que consiste na derrubada ¢ queima de éreas de floresta realizadas na época da seca, € posterior cultivo nesses locais. As cinzas resultantes contribuem para fertilizar os normalmente pouco fér- teis solos das dreas de terra firme da Amazénia. Nas rogas de coivara, os troncos das drvores derrubadas queimadas so mantidos, 0 que confere a elas um aspecto de “sujeira” ou “desorganizagao”. A vida util de uma roga de coivara é relativamente curta: apés dois ou trés anos a fertilidade do solo di- minui, do mesmo modo que aumenta a competigao das plantas cultivadas com aservas daninhas. Por conta desse padrao, alguns autores sugeriram que economias baseadas no cultivo em rogas de coivara seriam impos- siveis de manter populag6es sedentérias, dada suposta necessidade de relocagéo constante, O argumento é interessante, mas tem um problema: € baseado no +36. ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA estudo de sociedades indigenas contemporaneas, que fazem amplo uso de machados e facdes de metal. Isso acelera significativamente 0 arduo trabalho deabertura de uma toga na floresta, 20 mesmo tempo em que facilita a abertura de 4reas mais amplas. Com macha- dos de pedra essa tarefa era certamente mais demorada € complicada, pois eles tendem a quebrar, sio mais pesados ¢ 0 reavivamento de seus gumes € bastante demorado e complexo. Rochas aptas & producto de machados — sejam eles lascados ou polidos — nem sempre sio amplamente dispontveis na Amaz6nia, principalmente nas reas de varzea. Como conseqiién- cia, nfo é & toa que grupos indigenas considerados “isolados” ja fizessem uso de ferramentas de metal quando foram contatados pela primeira vez, Em alguns casos, essas ferramentas estio bastante gastas, mas sua melhor aptidao & derrubada de rogas as torna instru- mentos cobicados. ‘Com base nas diferengas tecnolégicas entre macha- dos de pedra e de metal para a derrubada da mata, percebe-se que os padres de cultivo em rocas decoivara na Amaz6nia pré-colonial eram certamente diferentes dos verificados entre os indios contemporineos da regiéo. E provavel que os sistemas pré-coloniais tives- sem menos mobilidade que os atuais. Se for correta essa hipétese, pode-se supor que areas de vegetacio secun- daria tenham sido valorizadas para a abertura de rogas. Nelas, o didmetro das drvores é, em média, menor do +37. EDUARDO GOES NEVES, que em uma floresta madura, 0 que facilita a derruba- da, mesmo com machados de pedra. E também prové- vel que o tempo de vida itil das rogas tenha sido maior que o verificado atualmente, 0 que levaria a um cuida- do maior no combate as pragas e a algum tipo de inyestimento na manutengio da fertiidade. Finalmen- te, deve-se também considerar a hipétese de que a ocupago das aldeias tenha tido também uma duracéo maior, como conseqtiéncia da menor mobilidade dos sistemas agricolas. Uma possivel resultante dessa pré- tica de cultivo sao as chamadas “terras mulatas”: solos normalmente férteis, de coloragéo marrom, relativa~ mente extensos, préximos a sitios arqueolégicos, nor- malmente interpretados como vestigios de antigas reas de cultivo, Outros tipos de evidéncia arqueolégi- caapdiam essa hipétese: na Amazénia central, em sitios cocupados por muitas décadas ou mesmo alguns sécu- los, € comum a ocorréncia de machados lascados ou polidos de pequeno porte, instrumentos adequados & derrubada de drvores menores, tipicas de dreas de vvegetagéo secundaria. Embora a Amazénia, em particular sua porsao su- doeste, tena sido um centro independente de domes- ticagao de plantas na América do Sul, nao se sabe ainda quando esse processo teve inicio, Para entendé-lo, € necessirio diferenciar os termos “domesticagio” “agri cultura”, j4 que, embora estejam intimamente relacio- nados, referem-se a atividades ou processos distintos. 38+ ARQUEQLOGIA DA AMAZONIA Domesticagéo € 0 processo pelo qual caracteristicas genéticas de plantas selvagens so intencionalmente modificadas até o surgimento de novas espécies, em muitos casos dependentes de intervengdes humanas para sua reprodugao. Ou seja, algumas dessas plantas perdem a capacidade de se reproduzir naturalmente. Agricultura, paraa discussio aqui apresentada, refere-se a0 estabelecimento de um modo de vida totalmente dependente do cultivo de plantas domesticadas. ‘A domesticagio de plantas € uma condigio funda- mental para o estabelecimento de modos de vida agri- colas, mas € possivel que sociedades com economias baseadas em caca, pesca e coleta também tenham se utilizado de plantas domesticadas sem que se tornas- sem completamente agricolas, Esse padro ainda é ve~ rificado entre populagées indigenas amazénicas como os Maku, Nukak, Parakana, Sirioné, entre outras. Trata-se de populagées que, tecnicamente, vivem de caca, pesca e coleta, mas que também mantém o cultivo em pequena escala de algumas espécies de plantas. Para certos autores, alguns desses grupos teriam sido agri- cultores que regrediram a um modo de vida cagador, coletor ¢ pescador devido as pressées da conquista ceuropéia, numa espécie de “marcha a ré evolutiva”. A hipétese ¢ interessante, mas traz uma carga evolucio- nista unilinear, como se 0s processos de mudanga ocorressem por um tinico caminho. Tais “regress6es”, porém, podem ser vistas de outra maneira. A idéia de +39 EDUAROO GOES NEVES regressio implica o retorno a um modo de vida antigo ¢ superado, mas é também plaustvel que alguns desses ‘gupos contemporaneos tenham oscilado entre econo- mias mais ou menos agricolas ao longo de milénios ¢ que a opgio recente pela agricultura seja mais uma manifestagio dessa oscilagio estrutural. A discussio acima é importante porque ajuda a explicar outro paradoxo da arqueologia amaz6nica: 0 grande intervalo cronoldgico, de alguns milhares de anos, entre as evidéncias mais antigas de domesticagéo eaemergéncia de modos de vida plenamente agricolas. E provavel que, 20 longo desses milénios, entre 6000 ¢ 1000 a.C., a ocupagéo humana da Amazénia tenha sido realizada por populagdes com economia mista, baseada em caga, pesca, coleta e em uma agricultura de baixa intensidade. Tais estratégias diversificadas, por certo, mimetizavam a prépria biodiversidade da flo- resta, Assim, embora 0 processo de domesticacéo de plantas seja bastante antigo, o surgimento de modos de vida dependentes da agricultura foi muito mais recente, rendo se iniciado h4 mais ou menos 3.000 anos. Essa hipétese é baseada no fato de que, a partir de entéo, so mais claras as evidéncias de grandes aldeias sedentétias, ocupadas por centenas de pessoas durante muitas décadas, o que é compativel com eco- nomias plenamente agricolas. Como explicar a longa duragao desse intervalo? Uma hipétese seré apresenta- da a seguir. 40+ [ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA As diferentes maneitas pelas quais a agricultura foi ou nfo incorporada aos modos de vida na Amaz6nia, durante o perfodo entre 6000 e 1000 a.C., tiveram. também um papel importante no processo de expansio das Iinguas indigenas na regiéo. A medida que se estreita a cooperagio entre lingitistas ¢ arquedlogos trabalhando em diferentes partes do planeta, fica cada pribui- vex mais claro um padrao que correlaciona a dis Go de Iinguas de algumas famflias lingiifsticas no presente a processos de expansao agricola no passado. Esse parece ter sido 0 caso das linguas indo-européias, na Europa, das linguas bantu, na Africa subsaariana, e das Iinguas austronesianas, no sudeste da Asia e da Polinésia. O raciocinio é simples: a adogéo da agricul- tura levaria ao crescimento populacional, ¢ essa expan- so demogréfica, & colonizacéo de novas dreas, ocupa- das anteriormente por populagées nao agricultoras ou mesino totalmente desocupadas por seres humanos, como na Polinésia. No caso da Amazénia, ha um elemento complicador, que é a ocorténcia de mais de uma expansio lingiifstica. Dessas expansoes, duas fo- 1am bastante amplas: as das familias arawak¢ tupi-gua- rani, No inicio da colonizacao européia das Américas, no final do século XV, as Iinguas arawak tinham ampla distribuicao, cujos limites eram as ilhas Bahamas, no Caribe, a regido do Pantanal mato-grossense, 0 sopé dos Andes ¢ a foz do Amazonas. A distribuicéo das Itnguas tupi-guarani era menor, mas também grande, 41. EDUARDO GES NevES ¢ inclufa uma rea que tinha como limites 0 rio Ama- zonas, o norte da Argentina, o sopé dos Andes bolivia nos ¢ 0 litoral atlintico, do Ceard ao rio da Prata. Apesar de amplas, as distribuigGes das familias arawake ce tupi-guarani no eram continuas, mas sim entremea- das por areas ocupadas por falantes de outras linguas. Naantropologia das terras baixas da Américado Sul, é antiga uma hipétese que correlaciona a expansfo ara- waka domesticacdo eao cultivo da mandioca, De fato, nas ilhas do Caribe, os povos responsdveis pela intro- ducao desse cultivo, hé mais de 2.000 anos, eram falantes de linguas arawak oriundos do norte da América do Sul. E possivel que o mesmo tenha ocorrido em perio- dos mais recentes, no final do primeiro milénio, na bacia do alto Xingu. Além do mais, grupos arawak so tradicionalmente reconhecidos pela antropologia como agricultores contumazes, 0 que confirmaria a hipétese. O problema, no entanto, € que a genética de plantas indica que o provavel centro de origem de do- mesticago da mandioca tenha sido a regio do alto Madeira, onde atualmente esta 0 estado de Rondénia, uma regio aparentemente nunca ocupada por falantes de Iinguas da familia arawak. Como resolver esse pro- blema? Umma caracteristica notavel das ocupagées humanas iniciais na Amazénia é a presenga precoce da produgao ceramica, com datas que esto entre as mais antigas da ‘América do Sul. Tais ceramicas foram identificadas no 242+ /AROUEOLOGIA DA AMAZONIA atual estado do Pard, em uma regio que comesa no baixo Amazonas, préximo &s atuais cidades de Santa- réme Monte Alegre, passa pelo baixo rio Xingu e chega a chamada “zona do Salgado”, que é, de fato, o litoral atlintico desse estado, E provével que ceramicas com tal antigitidade sejam identificadas também no litoral do Maranhio. Fora do Brasil, no litoral do Suriname também se encontram objetos desse tipo. ‘Com excegio da caverna da Pedra Pintada, localiza- da em Monte Alegre, todos os outros pontos onde cerimicas antigas foram identificadas séo sambaquis — sitios arqueolégicos bastante particulares, localiza- dos em praias, éreas ribeirinhas ou lagunares por todo o mundo. Formados pelo actimulo intencional de conchas e terra, resultam em verdadeiras colinas artifi- Giais, em alguns casos com varios metros de altura. Atualmente, acredita-se que os sambaquis fossem lo- cais de moradia, mas também funcionavam como cemitérios, uma vez que é comum identificar neles sepultamentos humanos. No Brasil, os mais conheci- dos ¢ estudados séo os do litoral sul e sudeste, distr. bufdos desde Rio Grande do Sul até o Rio de Janeiro. No vale do Ribeira, em Sao Paulo, encontram-se os sambaquis mais antigos dessas regi6es, tanto litorineos como fluviais, datados de 6000 a.C. A partir dessas datas antigas, sambaquis foram sendo construidos ¢ habitados no sul e sudeste até por volta do ano 1000, quando sio abandonados, provavelmente como con- 143s EDUARDO GOES NEVES seqiiéncia da ocupagio dessa regio por grupos agricul- “tores falantes de Iinguas da familia cupi-guarani. Na Amaz6nia, os sambaquis foram bem menos estudados que em outras partes do Brasil, mas hé informagées sobre sua distribuigdéo em dreas como o litoral do Salgado eo litoral do Amapé, 0 baixo Xingu, proximo a Porto de Méz, a regido de Santarém, a cidade de Itapiranga, no Amazonas, ¢ aré 0 vale do Guaporé, em Rondénia, Essa distribuigdo, no entanto, no é continua. A regio do Salgado, no litoral do Para, é um ambiente bastante rico, formado por extensos manguezais e grande rede de rios ¢ arquipélagos. Nes- sas reas, sabe-se da ocorréncia de sambaquis hé muito tempo, devido a sua destruigao para a mineragio de cal, Cientistas pioneiros como Domingos Ferreira Penna, fundador do Museu Emilio Goeldi, em Belém, realizaram pesquisas em sambaquis do Salgado no final do século XIX, mas foi apenas nas décadas de 1960 ¢ 1970 que, gragas as pesquisas de Mario Simées, se obtiveram datas para eles. Os resultados indicam que so tao antigos quanto os sambaquis do sul e sudeste, com a importante diferenga de que contém cerammicas com idades de até 3500 anos a.C. Conhecidas como mina, elas est4o entre as mais antigas do continente. Nos sambaquis do sul e sudeste, as cerimicas si quase ausentes ¢, quando ocorrem, séo muito mais recentes. ‘As datas de 3500 a.C. identificadas no Salgado fazem parte do quadro mais amplo do inicio da pro- 44. ARQUEOLOGIA DA AMAZONIA dugao cerimica no continente americano. Esse quadro mostra que cerdmicas antigas so encontradas, a partir de 4000 a.C., em um arco que vai do litoral do Equador, a oeste, & foz do Amazonas, a leste, © arco contorna 0 norte do continente, passando pelo litoral norte da Colémbia e pelo litoral do Suriname. Nesses pontos, cerdimicas com datas entre 4000 e 3500 a.C. foram encontradas, em alguns casos em sambaquis. As cer’- micas mais antigas das Américas, no entanto, foram localizadas no interior do continente, no baixo Ama- zonas, préximo a Santarém. Nessa regio, em frente & itha do Ituqui, no sambaqui fluvial de Taperinha, Anna Roosevelt identificou, nos anos 80, ceramicas com datas remontando a quase 5000 a.C. Posterior mente, na década de 1990, ela escavou, na caverna da Pedra Pintada, localizada na mesma regido, cerimicas supostamente mais antigas, datadas de 6000 a.C. No entanto, os resultados dessas pesquisas so ainda dis- cutiveis por varias raz6es. Em primeiro lugar, as infor- mag6es disponiveis sobre tais objetos, bem como sobre (08 contextos onde foram identificados, séo bastante esparsas, Em segundo, alguns arquedlogos sugeriram que processos posteriores & ocupacao desses sitios cau- saram perturbagio nos depésitos, 0 que traria proble- mas quanto & aceitagao das descobertas. Tais criticas sdo procedentes, mas nfo invalidam a plausibilidade das datas. 45° EDUARDO GOES WevES O problema mais agudo para os que criticam essa datagio diz respeito & possibilidade de ter havido mais de um centro original de produgéo de cerimicas em todo o continente americano. Durante muitas décadas, 0s arquedlogos accitaram a idéia de apenas um centro, localizado no noroeste da América do Sul, em uma érea que vai do litoral do Equador, préximo a cidade de Guayaquil, 2o litoral atlantico da Colémbia, préximo a Cartagena, Nessa hipétese, a partir desse centro ini- cial, onde ha cerdimicas de até 4000 a.C., técnicas de fabricacio ou populagées que as dominavam teriam se espalhado para outras éreas, incluindo a América Cen- tral, os Andes ¢ a Amazénia. Essa hipétese tem, no entanto, pelo menos dois problemas: o primeiro, mais ébvio, éa prépria data das cerimicas de Pedra Pintada ¢ Taperinha, que, se confirmada, € mais antiga que a das ceramicas do Equador e da Colémbia. O segundo & que mesmo as cerdimicas mais recentes — como as. dos sambaquis do Salgado, datadas em torno de 3500 a.C. — sio bastante diferentes das supostamente ori- ginais de que teriam derivado. Enquanto, por exemplo, as cerimicas do noroeste da América do Sul tém pa- drdes decorativos plisticos que incluem a inciséo, as do Salgado e as do litoral do Suriname nio tém decoragio alguma, com excesao da pintura vermelha. Esses dados enfraquecem a hipétese de um tinico centro inicial, jé que a expectativa seria que houvesse alguma seme- Ihanga estlfstica ou técnica entre elas. As cerimicas de +46. ARQUEDLOGIA DA AMAZONIA Monte Alegre e Taperinha, por sua vez, parecem tam- bém ter decoragio incisa, mas, como so pouco conhe- cidas, os padrées nfo sao ainda claros para que se possa estabelecer comparagées. ‘Tradicionalmente, arqueélogos associam o inicio da produgio ceramica ao desenvolvimento da agricultura, trabalhando com a premissa de que essa tecnologia — ligada & producéo de vasos para armazenamento € coccéo — permite 0 processamento mais efetivo de alimentos. Os dados sobre o inicio da produsao ce- ramica na Amazénia e no norte da América do Sul mostra que o quadro é mais complexo, uma vez. que as datas mais antigas, em torno de 5000 ¢ 3500 a.C., vyém de contextos em que a agricultura nao havia sido plenamente adotada. Desse modo, a presenca antiga de cerfimica no parece indicar uma ruptura com os modos de vida anteriores. Ao contrario, ¢ provavel que tenha se mantido 0 mesmo padriio de adapracio basca- do em economias diversificadas, organizadas na caca, pesca e colera. ‘O conhecimento sobreas cerimicas antigas na Ama- rénia é, como quase tudo, ainda embriondrio: as éreas com evidéncia de produgao precoce sto aparentemente restritas, estando localizadas em sambaquis litorineos ¢ fluviais do baixo Amazonas e da zona do estudrio. Em outras partes da regido, durante esse mesmo periodo, que durou aproximadamente de 7.500 a 3.500 anos atrés, as evidéncias de produgao cerfimica — e mesmo a7. EDUARDO GOES NEVES de qualquer tipo de ocupagéo humana — so raras, se no totalmente inexistentes. Curioso também é 0 fato de que, em um dos supostos centros originais da ‘Amazbnia—a regio de Santarém e Monte Alegre —, a produgao cer4mica tenha sido aparentemente aban- donada apés um inicio precoce, Se essa hipétese estiver correta, indica, mais uma vez, que 0s processos de mudanga no passado nao foram lineares nem previs! veis, E interessante notar que, embora no inicio do século XVI 0 maior Estado das Américas, 0 Império Inca, tivesse seu centro e sua origem no coragéo da cordilheira dos Andes, todos os focos iniciais de uma importante inovacao tecnolégica, a produgéo ceram «a, estio localizados fora da cordilheira, em dreas de terras baixas tropicais, Ascenso queda das sociedades complexas da Amazénia Uma das hipéteses subjacentes a este livro propde que a ocupacéo humana pré-colonial da Amazénia nio foi uum processo regular e cumulativo, mas sim caracteri- zado pela alternancia entre perfodos de aparente esta- bilidade e outros de mudangas relativamente bruscas nos padrdes de organizacio social, econdmica e politi- ca, visiveis no registro arqueolégico. Talvez as mani festagdes mais claras dessa hipétese sejam as stibitas 48 ARQUEOLOSIA DA AMAZONIA transformagées nos padrées de ocupagio notiveis a partir de cerca de 2.000 anos atrés. Tais modificagées certamente refletem mudangas mais profundas, rela- cionadas a organizacao politica das sociedades amaz6- nicas do periodo. Seu aspecto mais visivel é 0 aumento no tamanho, densidade e duragio de ocupagéo nos sitios arqueolégicos. Esse proceso pode ser inferido, por exemplo, pela construgao de aterros monumentais em regides tao distantes como a ilha de Marajé, 0 alto Xingu, os campos alagados de llanos de Mojos, na Bolivia, eas planicies costeiras das Guianas. Do mesmo modo, é a partir dessa época que ficam mais visiveis € numerosos 0s sitios associados aos solos antrépicos conhecidos como terras pretas de {ndio, correlatos aos processos de ocupagio sedentéria. As modificagées nos padrdes de assentamento cor- respondem também sinais de uma verdadeira explosio cultural, Diferentes tradig6es ceramistas so vistveis no registro arqueolégico, algumas claramente locais, ou- tras com influéncias externas, principalmente do norte da América do Sul. Artefatos liticos polidos com ico- nografias comuns, como muiraquitas e estatuetas, sao encontrados distribufdos por amplas éreas, indicando a ocorréncia de formas de contato que integraram po- pulag6es em redes mais amplas. Finalmente, a partir dessa época, ficam mais vistveis evidéncias de conflitos armados, o que ¢ atestado pela presenca de estrururas 49°

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