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Traficantes de Jesus

Autor: Gabriel Mallet Meissner ©Todos os direitos reservados.

Publicado originalmente no blog Entremundos.

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A notícia é de março, mas continua atual e vale a pena relembrar e


comentar. É uma das situações mais contraditórias geradas
pela intolerância religiosa. Em diversas favelas no Rio de Janeiro,
traficantes têm expulsado pais e mães-de-santo dos morros e
proibindo terreiros de umbanda e candomblé de funcionar. São
membros de igrejas neopentecostais que não exigem que seus
membros abandonem o crime para serem convertidos. São
traficantes, sim; mas traficantes de Jesus!

Esta notícia foi dada pelo site de notícias Extra Online e pode ser lida
na íntegra aqui.

Por mais contraditório que seja, acho que consigo entender o


raciocínio por trás disso. Para a imensa maioria das pessoas, religião
é apenas um rótulo que assumem para se sentirem melhores ou
superiores a todos os demais. Não é um caminho de desenvolvimento
espiritual, psicológico, moral ou ético.

Mesmo em situações aonde não chega a ocorrer um absurdo como


este, percebe-se este fenômeno com facilidade. O indivíduo adere a
uma denominação religiosa qualquer e passa a achar que, pelo
simples fato de ter aderido a ela, está salvo e tem seu lugar
reservado no céu. Não busca reconhecer seus próprios defeitos, nem
se esforça em superá-los. Não busca uma transformação interior,
amadurecer, crescer. Não é necessário. Já está do lado certo. Já é de
Jesus. Aleluia! Glória a Deus!

No limite, este tipo de pensamento, que em grande parte é


inconsciente, gera casos como este em que um traficante pode
considerar-se “salvo” porque aceitou Jesus, ainda que não tenha
aceitado viver de acordo com os seus ensinamentos.
Aliás, cabe aqui uma reflexão do que se entende por salvação. Este é
um termo que é facilmente mal interpretado. Da maneira como
comumente se compreende, salvação é o mero resultado da
aderência a uma denominação religiosa e da adequação a
determinadas convenções de uma igreja, convenções exteriores que
pouco dizem respeito à vida interior e, portanto, espiritual do ser
humano. Este entendimento da idéia de salvação é o que faz as
pessoas considerarem-se abençoadas por Deus sem qualquer
necessidade de mudança interior ou de resolução da personalidade. É
o que faz as pessoas continuarem as mesmas que era antes, porém,
supostamente salvas da danação eterna.

Seria melhor, tanto para os fiéis de qualquer igreja, quanto para o


resto do mundo, que salvação e danação fossem compreendidos
como fenômenos interiores, estados de espírito. Como no antigo
conto zen, em que o monge ensina ao samurai o que são o céu e o
inferno. Se não conhece esta história, conto-a aqui:

Um samurai grande e forte, de índole violenta, procurou um monge.

— Monge, disse numa voz acostumada à obediência imediata. Ensine-


me sobre o céu e o inferno!

O monge, miudinho, olhou para o terrível guerreiro e respondeu com


o mais absoluto desprezo:

— Ensinar a você sobre o céu e o inferno? Eu não poderia ensinar-lhe


coisa alguma. Você está imundo. Seu fedor é insuportável. A lâmina
da sua espada está enferrujada. Você é uma vergonha, uma
humilhação para a classe dos samurais. Suma da minha vista! Não
consigo suportar sua presença execrável.

O samurai enfureceu-se. Estremecendo de ódio, o sangue subiu-lhe


ao rosto e ele mal conseguia balbuciar alguma palavra de tanta raiva.
Empunhou a espada, ergueu-a sobre a cabeça e se preparou para
decapitar o monge.

— Isso é o inferno, disse o monge calmamente.

O samurai ficou pasmo. A compaixão e absoluta dedicação daquele


pequeno homem, oferecendo a própria vida para ensinar-lhe sobre o
inferno! O guerreiro foi lentamente baixando a espada, cheio de
gratidão, subitamente pacificado.

— E isso é o céu, completou o monge com serenidade.

Fonte:http://www.4c.com.br/historias_ceu_e_inferno_zen.htm

Dessa forma, mais do que considerar céu e inferno, salvação e


danação, como locais a que se destinam as almas após a morte,
dependendo de quais associações religiosas fizeram ou não parte,
melhor seria considerá-los como no conto acima. Se assim fosse,
membros de uma denominação religiosa poderiam mais facilmente
ter uma convivência pacífica com outras, pois compreenderiam que
não é o nome da sua Igreja que garante a si e aos seus irmãos a sua
tão esperada salvação. E casos escabrosos, como este dos traficantes
de Jesus, não aconteceriam, pois entenderiam que o seu
comportamento, que espelha o estado de espírito de tais pessoas, é
incompatível e contrário ao ideal que pensam aderir.

Fonte: HTTP://entremundos.com.br

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