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ESCOLA SUPERIOR DE TEATRO E CINEMA

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Uma tentativa de contar a ZONA T.eatro

Breve reflexão sobre um trabalho teatral


realizado com e para a Comunidade de Chelas

Trabalho desenvolvido no âmbito do seminário


Laboratório de Teatro e Comunidade II
do Mestrado em Teatro e comunidade
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dezembro de 2009 
 
Breve enquadramento do trabalho

Quando nos propuseram fazer uma reflexão sobre o nosso trabalho


colocaram-se algumas questões sobre a forma que deveria assumir essa
reflexão. Como poderíamos passar aos outros tudo o que ali aconteceu?
Tratava-se de uma realidade criativa tão vivida e partilhada que qualquer
registo escrito no papel ficaria aquém daquilo que gostaríamos de passar.
Uma impressão pessoal sobre o que fizemos? Pareceu-nos pouco e muito
ficaria por dizer e contar. Um relatório das actividades? A frieza do relatório
não se ajustava ao universo de afectos e sensações que gostaríamos de
transmitir. Por onde começar? Pela primeira sessão? Pela elaboração do
documento do projecto? Também nos parecia redutor iniciar esta estória
como se ela só ali tivesse começado a existir. Os afectos constroem-se e
seria estranho que se relatassem fenómenos de muita proximidade sem que
esse processo tivesse sido, de alguma forma, relatado.
Decidimo-nos, então, por um roteiro dos acontecimentos, pontuado pelas
nossas impressões, sentimentos, reflexões, decisões e acções. Optámos,
também, por contar esta estória desde o seu início, recuando dois anos.
Mesmo sabendo que muito do essencial do projecto ficaria do lado de cá do
papel, avançou-se para aquilo a que chamámos “Uma tentativa de contar a
Zona T.eatro”

Tentativa de contar uma estória ...


Aquilo que começou por ser um sonho longínquo tornou-se, agora,
realidade!
No momento em que decidimos iniciar um projecto de raiz, em vez de fazer
um estágio num projecto já implantado na comunidade, estávamos
conscientes das dificuldades que esse trabalho implicaria. Sabíamos,
também, que já tinham sido lançadas algumas sementes e esperávamos que,

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por ocasião do início das sessões de teatro Comunitário, estas já tivessem
dado frutos.
Quando há dois anos, numa turma do 2º ano, desenvolvemos, no âmbito do
teatro escolar e por ocasião da habitual festa de Natal, a nossa primeira
criação, estávamos longe de imaginar o caminho e a proporção que viria a
assumir toda aquela energia que se sentiu desde o primeiro momento de
preparação da performance e ao longo de todo o processo criativo.
A vontade de continuar o trabalho no âmbito da área da Expressão
Dramática e vir a fazer uma apresentação melhor, surgiu logo após os
primeiros aplausos na época natalícia.
Mãos à obra! Desta vez com um empenhamento maior por parte dos
meninos e com os amigos do Grupo do Sótão que foram aparecendo para
nos ajudar durante o processo criativo. Fez-se uma apresentação
essencialmente baseada no Teatro Físico, com inclusão da música em cena,
tocada pelos actores-meninos e com uma disposição cénica que tornava os
espectadores parte do nosso cenário. O esforço compensou, os elogios
fizeram-se ouvir e a turma de meninos mal comportados, com “casos
perdidos”, (foi assim que me foram apresentados) tornavam-se agora num
motivo de orgulho da escola e foram representá-la numa mostra de arte
promovida pela Junta de Freguesia.
O entusiasmo era crescente, mas o ano acabava e a eminência da mudança
de professora (ossos do ofício de uma contratada no século XXI) fazia
antever um final menos feliz no percurso da formação artística dos
pequenos.
Os familiares gostaram, mas não estavam ainda suficientemente envolvidos
no processo. Para eles tinha ficado um bom momento e o orgulho de uma
apresentação de final de ano francamente acima da maioria das outras
apresentações escolares.

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No ano seguinte, com a felicidade da continuidade da professora na escola e
com os meninos já no 3º ano, o entusiasmo cresceu. A professora fez a
proposta de convidar familiares para contarem histórias ou virem ajudar nas
várias produções da turma.
Era um ano para ver teatro, para conhecer novas realidades, para que o
gosto se entranhasse no corpo sem possibilidades de retrocesso.
Foi, também, o nosso primeiro ano de mestrado na Escola Superior de
Teatro e Cinema, e nada mais fabuloso para uns e para outros do que
experimentar novos universos teatrais!
Os familiares e amigos dos meninos responderam e corresponderam, e
nesse ano foram apresentadas na escola e fora dela quatro performances.
Mais uma vez, a tradicional festa de Natal, o Dia Mundial do Teatro, o Dia
da Poesia e a festa de final de ano. A comunidade espantou-se com toda
aquela algazarra mesmo à porta de casa e, no final do ano lectivo, os
meninos eram já reconhecidos sendo da turma do teatro, que fez as
performances de rua e animou a malta! Estavam criadas as condições
afectivas e motivacionais para pensarmos em projectos mais ambiciosos,
talvez fora das paredes da escola!
Mais um ano e mais uma possibilidade de ficarem sem professora!... Desta
vez o desfecho não foi feliz (ou talvez tenha sido, porque alguém escreve
direito por linhas tortas, enquanto que o ministério escreve torto por linhas
direitas) e a professora ficou colocada noutra escola. O desânimo era
evidente, os telefonemas dos pais e dos alunos foram frequentes e pediam
para voltarem a fazer teatro; colegas e funcionários da escola telefonavam à
ex-professora a relatar como os meninos tinham voltado a ficar
“impossíveis” e como afinal “continuavam os mesmos bandidos de
sempre”!
Entretanto, a proposta de criar um grupo de Teatro Comunitário tinha
ficado no ar... mas os entraves administrativos eram grandes e as

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autorizações para a cedência de espaço tardavam em chegar. Após várias
reuniões com a direcção do Agrupamento de Escolas decidiu-se avançar
com o projecto.

Ficámos contentes e a notícia caiu como uma bomba na comunidade já


criada por aquela turma. O início estava marcado para meados de Outubro e
assim aconteceu.
Criava-se, em Chelas, uma nova forma de viver a arte. Com propostas
inovadoras ou, pelo menos, inabituais, a opção por uma estrutura de
organização extremamente flexível, sem recurso às habituais inscrições, sem
número limite de participantes, sem qualquer tipo de limites de idades,
totalmente gratuita e aberta a todos os que gostavam de teatro e queriam
fazer parte de uma construção colectiva que se organizava sob o lema que
pedimos emprestado a Zeca Afonso - “ traz um amigo também”, antevendo
o quebrar de fronteiras e limites, desde que viessem por bem e conscientes
de que o tempo era nosso amigo também!

Na primeira sessão do grupo, superando todas as expectativas e previsões,


acorreram às instalações da escola cerca de 80 pessoas!
Para nós existiu ali um misto de satisfação e pânico. Como é que
cumpriríamos a nossa planificação com aquele número de pessoas? Como
os fazíamos entrar todos? Como impedi-los que “tomassem a escola de
assalto”, ainda por cima sob os olhares desconfiados e ameaçadores do
pessoal da escola? As questões eram imensas, mas a altura era de acção e
não de reflexão pela reflexão. Lá nos organizámos, fazendo-os entrar um a
um, e mais tarde, em grupos de cinco! O ambiente era, de alguma forma,
mágico e o movimento descendente dos corpos das pessoas que íam
“encontrando a sua zona” no chão do ginásio e se deitavam abandonando
os seus corpos a um momento sensorial de puro relaxamento, faziam

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lembrar um movimento aquático. O espaço foi sendo povoado pelos corpos
que se foram tornando cada vez mais próximos (porque o espaço era exíguo
para tantos corpos) e a visão exterior do acontecimento foi absolutamente
memorável. Diante de nós, um enorme útero materno que faria nascer, daí a
pouco, uma nova forma de ser e estar (e de pensar e agir).
A sessão, apesar da planificação ter ficado completamente no saco, correu
de uma forma, até inesperadamente boa. Houve lugar para jogar,
experimentar, conhecer ...
Os percalços da sessão, estranhamente, não estiveram relacionados com o
enorme número de pessoas que apareceu para conhecer esta nova Zona. Os
problemas aconteceram porque a instituição escolar ainda não estava
preparada para receber projectos de proximidade com a comunidade.
Fomos praticamente postos fora da escola! As expressões usadas pelos
docentes e funcionários da escola não surpreenderam, sobretudo, para
alguém que, como nós, já conhecia a escola por dentro. “ Têm que sair já!” “
Tirem daqui esta gente toda! “Ainda nos dão cabo da escola”, “Mas onde é
que já se viu os pais e familiares entrarem pela escola a dentro”.... Enfim, era
exactamente porque nunca se tinha visto que era essencial continuar este
projecto! A ingénua pergunta sobre onde é que alguma vez se tinha visto
isto, pais e famílias pela escola dentro como se fossem um corpo estranho à
escola revelava o carácter inovador, reflexivo e transformador do nosso
projecto. Perante o invulgar e o inusitado, as pessoas interrogavam-se,
pensavam, procuravam respostas.

Na escola, fizemos mais uma sessão, na já definida sexta-feira às 17:30.


Desta vez, com uma planificação mais adequada ao número de pessoas; a
sessão foi produtiva, construiu-se um painel de palavras relacionadas com o
Teatro e com as expectativas de cada um, fizeram-se jogos de apresentação
de grupo e quebra-gelo e ainda houve tempo para uma pequena reflexão que

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soube a pouco. O tempo era escasso e no final da sessão sentíamo-nos com
a energia finalmente preparada para início de um trabalho mais profundo em
vez do um final de sessão cumprido que gostaríamos de ter. Mais uma vez a
sessão teve alguns percalços sobretudo no que concerne à recepção deste
projecto por parte da escola. Não pudemos preparar os espaços na escola,
por não nos terem facilitado a entrada antes da 17:30; durante a sessão
fomos recebendo vários avisos para acabarmos “impreterivelmente” às
18:30 e o final da sessão foi muito semelhante ao da sessão anterior, com
algum desconforto e pouca simpatia por parte dos elementos da
comunidade educativa escolar.
Para nós, esta reacção por parte da escola tocava-nos particularmente.
Afinal, trabalhámos ali durante dois anos e agora que aparecíamos a partir
de fora (do ponto de vista administrativo), sentíamo-nos estrangeiros na
nossa própria casa. Para as colegas que tornaram connosco este projecto
possível a sensação não era tão emotiva, mas o sentido de injustiça e revolta
faziam-se notar.
Desde o início do nosso projecto que imaginámos a escola como um local
ideal para abrigar esta nossa experiência, por ser um local central no bairro
quer física quer socialmente, por ter sido aí que nasceu esta ideia e por uma
questão logística. Os meninos já lá estavam, só faltava que as famílias se
juntarem a eles durante umas horas.
A mudança de espaço levantava alguns problemas graves. Será que
conseguiríamos encontrar um espaço disponível e com dimensão para
aquele número de pessoas? Será que encontrávamos um espaço até à
próxima sexta-feira? Devíamos continuar a fazer as sessões ali até encontrar
um novo local? Que local poderia ser suficientemente perto para que os
meninos se pudessem deslocar para o local sozinhos? Enfim, mil perguntas
que nos assaltavam em catadupa e não nos deixavam sossegar enquanto não
se tomasse uma decisão, fosse ela qual fosse.

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No final dessa sessão ficaram connosco, à porta da escola, numa espécie de
reunião espontânea, a maior parte dos adultos que entretanto foram
integrando o grupo. Discutiram-se as condições e avançaram-se alguns
possíveis locais. Os actores-vizinhos pareciam inclinados a uma mudança de
espaço ou ao confronto directo, por parte dos familiares, em relação à
escola. Os ânimos estavam quentes e apesar dos nossos fundados receios,
também não nos parecia correcto dizer que estávamos a fazer um projecto
teatral na comunidade, quando na realidade, o que acontecia era apenas a
primeira parte do encontro teatral e ficávamos, portanto, no aquecimento.
Não merecerão estas pessoas um trabalho inteiro, não será isso mesmo a
democratização do Teatro? Permitir um acesso justo e fácil à acção teatral?
O que ali podíamos fazer em tão pouco tempo cedido pela escola, não
poderia ir mais além do que uma aula incompleta de expressão dramática, ou
talvez nem isso...
Para nós, a opção de confrontar a escola e de a “obrigar” através do
contacto com mais altas instâncias estava fora de questão. Não nos pareceu
ser essa a forma como nos queríamos integrar nesta comunidade. Impor o
Teatro na Comunidade não era uma opção! O Teatro deve-se entranhar em
cada vizinho, deve povoar cada espaço comum e fazer, ele próprio, parte
integrante dessa comunidade.
Seria o momento de tomar uma decisão relativamente àquele espaço? Não
sabíamos, mas a decisão (precipitada ou não) ficou tomada naquele final de
tarde, à porta da escola de origem, no coração de Chelas. Uma decisão
tomada em comunidade. Na rua. Em pleno coração do palco.
Por precaução cancelámos a sessão seguinte. Os meninos estavam
preocupados com o futuro do seu espaço de fantasia. Sentiam-se roubados,
enganados. Saíram dali com a promessa de que voltaríamos, embora com o
gosto amargo de quem, infelizmente, está habituado a que as promessas
nem sempre se cumpram.

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A viagem de regresso a casa nesse dia foi difícil. Tinha sido uma decisão
radical e o medo de não sermos capazes de solucionar este problema e de
falhar perante uma comunidade que começava ainda a dar os primeiros
passos de um percurso que cremos libertador, assaltava-nos.
Valeu-nos a prática de implementação de outros projectos e o saber que a
persistência e a vontade são os primeiros condimentos para se conseguir
criar algo novo que venha cortar com as práticas acinzentadas instituídas. A
rotina é um inimigo que demora a vencer.
As primeiras medidas para solucionar esse obstáculo deram-se ainda nessa
noite. Enviámos alguns e-mail’s. Um para a direcção do Agrupamento de
Escolas (que diga-se sempre nos apoiou desde o primeiro momento, mas
que não teve a força suficiente para criar as condições necessárias, numa
escola que não desejava abrir-se à comunidade, até porque a temia)
agradecendo o esforço, mas justificando a nossa recusa em continuar o
projecto naquele espaço. O segundo e-mail foi enviado a três instituições.
Um para a Junta de Freguesia de Marvila, outro para o Centro Paroquial e
um último para a Gebalis, empresa que gere os bairros da Câmara Municipal
de Lisboa. Restava-nos esperar e foi isso que fizemos durante cerca de
quatro dias.
O único e-mail que teve resposta, foi o da Junta de Freguesia, dizendo-nos
que, apesar de acharem o nosso projecto interessante, apenas poderiam
reunir connosco após a tomada de posse do novo executivo, por terem
acabado de haver eleições autárquicas. A tomada de posse apenas
aconteceria daí a cerca de 3 semanas, o que para nós, levantava mais alguns
problemas.
Outras questões e receios começaram a levantar-se. Com esta quebra nas
sessões, conseguiríamos recuperar a Dinâmica já criada com o início do
projecto? Essa energia extremamente positiva perder-se-ia durante a nossa
ausência? Não podendo o projecto continuar na escola, seriam as famílias

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capazes de fazer o esforço de levar os meninos até outro local após as aulas
de sexta-feira, ou o cansaço acumulado ao longo de uma semana de trabalho
seriam um elemento dissuasor que os faria desistir?

Em reunião com os colegas que embarcaram connosco nesta aventura,


tomámos a decisão de passar alguns dias na zona, com alguns elementos da
comunidade e procurar um espaço. Para nós esta abordagem directa poderia
fazer toda a diferença. E fez. A frieza lacónica de um e-mail ou de uma carta
registada jamais passaria para os outros projectos desta natureza.
O dia marcado para iniciarmos a nossa busca por um espaço compatível
com as nossas aspirações chegou e revelou-se extremamente produtivo e
importante para o projecto. Depois de termos feito o levantamento dos
espaços possíveis, aproveitando o know how dos elementos do grupo a que
habitualmente tratamos por vizinhos-actores, iniciámos a nossa pesquisa de
espaços pelo Centro Paroquial uma vez que geriam um espaço amplo muito
próximo da escola. Dirigimo-nos à paróquia e fomos recebidas pelo pároco
que tinha acabado de chegar àquela paróquia, tendo iniciado as suas funções
há apenas duas semanas. Expusemos o nosso projecto e as nossas
ansiedades e, desde logo, mostrou-se extremamente receptivo. O pároco era
um homem alto de origem nórdica, impressionantemente simpático e
interessado. Fez alguns telefonemas e passados alguns minutos estávamos
no Centro Paroquial a ver o espaço proposto que, descobrimos, ter sido
uma antiga igreja da zona. Contudo, o espaço era muito exíguo para a
quantidade de elementos do grupo e os horários de sexta-feira também iam
representar um problema para coordenar com as actividades do Centro.
Outra situação com a qual fomos confrontadas durante a conversa com o
pároco, foi uma intenção excessiva em querer que o grupo de Teatro
abordasse temas relacionados com o Santo padroeiro da Paroquia. Apesar
do Santo Kolbe, ter sido um homem com uma estória interessante e de luta

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num campo de concentração alemão, não nos pareceu atractiva a ideia de
impor aos actores-vizinhos os temas a abordar. Explicámos que
pretendíamos criar um projecto comunitário em que a voz que se faria ouvir
seria a voz da comunidade e não a voz de uma qualquer instituição. Não
queríamos evangelizar, mas antes libertar, criar, expressar a dimensão
colectiva de uma forma artística e criativa.
Apesar da nossa pesquisa não poder parar por ali, no Centro Paroquial
mostraram-se muito prestáveis e indicaram-nos mais alguns contactos e
locais possíveis. Estes contactos, mesmo sem resultados imediatos,
revelavam-se uma outra forma de mergulharmos na comunidade, de
fazermos parte da sua realidade.
Em frente do Centro, a Junta de Freguesia. Apesar de já termos tido uma
resposta, via e-mail do vogal da cultura, resolvemos arriscar falando
directamente com o Presidente (embora soubéssemos que ainda não tinha
tomado posse). O Presidente não estava, mas falámos com a sua secretária
que nos pediu para enviar um pedido para o Salão de Festas do Vale
Fundão, onde actualmente nos encontramos e nos deu o contacto de uma
associação musical que poderia ter alguns espaços para nos ceder e da
Escola 2 / 3 de Marvila.
A viagem desta vez foi um pouco maior, mas passados uns minutos
estávamos em pleno Bairro dos Alfinetes (chamado na gíria de Bairro dos
Namecs e que parece ser um dos bairro mais problemáticos da zona).
Fomos à escola, gostámos do espaço, mas o horário continuava a ser um
problema. Na associação conseguimos falar com o presidente que nos
apoiou, contactando directamente com a Junta e pedindo em nosso nome o
espaço do Vale Fundão, que para ele, seria o espaço mais indicado para um
projecto desta natureza.
Foram criadas algumas relações, conhecemos melhor o bairro e os seus
contornos e regressámos desta primeira visita com a esperança de conseguir

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um espaço, pelo menos no prazo de uma semana. Todavia, mais uma sessão
estava comprometida! Comunicámos o cancelamento de mais uma sessão à
comunidade da zona T e enviamos o e-mail de pedido de espaço, que nos
daria entrada directa para uma reunião com o presidente da Junta. Apesar de
algum desânimo e incerteza, sentimos ali algum calor vindo directamente da
comunidade em relação ao nosso projecto e isso foi essencial para não
desanimarmos e prosseguirmos com os nossos intentos.
Reunimos mais uma vez com os adultos da ZONA T que expuseram, em
assembleia de junta de freguesia, a necessidade de solucionar a questão do
espaço.

Os nossos esforços resultaram numa reunião difícil, de quase três horas, em


que se foram esgrimindo ideias e posições de ambas partes. O desânimo da
estrutura autárquica era evidente, tendo-se chegado a dizer que “grupos de
teatro apareceram ao longo da candidatura mais de cem e todos se foram
embora sem conseguir fazer nada”, que “com esta gente é assim, não se
pode dar cultura a quem não a tem.” Continuando com expressões como
“comigo é ver para crer” e “eu distingo um bom actor à distância, é uma
capacidade que tenho”!
O certo é que saímos dali com a certeza de que a próxima sessão já seria
possível no novo espaço. O Salão de Festas do Vale Fundão.
Mais haveria a dizer e problematizar sobre esta resistência das instituições a
projectos comunitários e artísticos. Essa reflexão fá-la-emos mais tarde,
talvez no âmbito da tese de mestrado, após uma pesquisa mais profunda
sobre as complexas relações entre vários actores sociais: Administração
Local/Sociedade Civil e Cultura/Comunidade.
O passo seguinte seria dar a boa nova à zona T.eatro e preparar a próxima
sessão que aconteceria daí a dois dias.

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Reiniciámos o processo de reflexão e planificação das sessões e na sexta-
feira seguinte saberíamos, finalmente, se os elementos do grupo se
manteriam fieis à recém-criada comunidade teatral, após duas semanas de
ausência, ou se os laços criados e as sementes lançadas teriam sido
suficientes para que a árvore cresça.

Chegado o dia da sessão, rapidamente se começaram a juntar os nossos


pequenos actores entusiasmados. Cerca de 30 meninos não puderam
continuar o seu caminho na Zona T.eatro. Foram essencialmente meninos
mais novos, da infantil ou dos 1º e 2º anos e que não encontraram forma de
convencer os seus pais a fazer um esforço para que pudessem continuar.
Ouviram-se alguns choros, encontraram-se soluções para dois ou três
elementos, e ficou a esperança que na sessão seguinte alguns familiares já se
tivessem organizado para que os meninos pudessem regressar à já sua Zona.
Os mais velhos correram a casa para avisar os pais que “afinal hoje há
teatro!” e regressaram com a aprovação paterna e o brilho nos olhos. Os
mais velhos ajudaram na organização da comitiva que sairia dali a poucos
minutos para conhecer o novo espaço e iniciar os trabalhos.
A viagem, nesse dia, fez-se a pé e o caminho foi sendo coroado com
algumas canções aprendidas e criadas nos dois anos de escola vividos
connosco. O comboio humano era grande e provocava os olhares da
comunidade à janela, nos cafés e nas ruas pelas quais fomos passando. A
viagem funcionou, ali, como o caminho mágico e transformador a percorrer
antes do momento iniciático, comum nas estórias de encantar tradicionais.
A aproximação ao espaço revelou os olhares curiosos de pequenos e
graúdos e o palco, iluminado, causou alguma sensação.
De todos os encontros realizados até aí, este foi o mais completo e
profundo do ponto de vista da acção teatral. Fizemos um breve
aquecimento do corpo e voz com recurso a jogos de expressão dramática,

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tendo-se integrado elementos performativos criados nas duas primeiras
sessões. Explorámos o corpo através de exercícios de construção de estátuas
humanas. A violência e o medo surgiram, ali, como a proposta natural da
comunidade, uma vez que foram surgindo estátuas humanas com claras
referências a assaltos, violência doméstica, guerras de gangues, bulling na
escola, etc... Falámos sobre o significado das estátuas que foram sendo
apresentadas e modificadas colectivamente. O tema não era fácil e para nós
a sessão teve um impacto emocional pesado. O confronto com a violência
das vidas destas crianças e adultos espelhava-se perante os nossos olhos de
uma forma tão crua, quanto natural.
No final da sessão, o ritual de saída. Relaxar e pular a cerca são já um hábito
e os encontros acabam sempre em celebração.
Durante a semana foram-se trocando alguns e-mails entre os membros do
grupo e construímos com os nossos colegas de trabalho mais uma
planificação.

No 4º encontro criativo, a viagem fez-se de carro, até porque os chuviscos


desencorajavam os menos seguros. Alguns familiares comunicaram-nos a
dificuldades em ir levar e buscar os filhos e outros em participar por razões
várias, mas sobretudo relacionadas com o horário de trabalho.
Decidimos que transportaríamos os meninos para o espaço e os levaríamos
a casa. Num bairro com estas características, as formas de “fazer” e de nos
“relacionarmos” não podem, nem devem ser as mesmas. A experiência de
três anos de trabalho que trazíamos da Cova da Moura e mais dois anos na
Zona J de Chelas ensinou-nos que a maioria das famílias de bairros sociais,
com características sócio-económicas muito delicadas, vivem realidades
laborais muito duras com uma enorme fragilidade no que diz respeito aos
vínculos laborais, ter carro nestes tipo de bairros é um luxo a que poucos
podem aceder e a própria estrutura familiar apresenta fragilidades várias que

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não permitem a criação de compromissos duradouros que impliquem um
grande e reiterado esforço, sobretudo quando o fim a atingir é algum
conforto ou a satisfação de uma vontade pessoal. Assim, pensamos que se
devem encontrar soluções, também elas criativas, para contornar as
dificuldades de uma realidade que a maioria da população de outras áreas
dificilmente compreenderá. O território artístico-cultural do Teatro social
tem características muito específicas que necessitam de ser expostas e ser
objecto de uma reflexão mais cuidada para que se possam encontrar alguns
pontos comuns que ajudem as equipas artísticas no terreno a implementar
os seus projectos. Acresce a esta situação o facto de cada bairro e cada
comunidade ter, ela também, as suas características próprias, exigindo,
portanto, soluções específicas, apoiadas num conhecimento local profundo.
Já no espaço da Zona T.eatro, regressou-se ao trabalho de corpo,
reinventando-se algumas técnicas propostas por mestres do Teatro
Comunitário, como Boal e Spolin. Todos os exercícios tiveram como tema
central a vivência no bairro, tendo-se integrado as palavras encontradas no
painel que havíamos criado em sessões anteriores. A ideia de partitura cénica
ou teatral, furtada, na sua origem, nos finais do séc. XIX, a autores como
Appia, Craig, Meyerholds começou, nessa sessão, a ser trabalhada com mais
intensidade, tendo-se revelado uma excelente forma de trabalhar com um
número tão grande de pessoas. Neste exercício foram-se introduzindo
alguns movimentos / sons criados nas sessões anteriores, o que permitiu
haver ali um sentimento de cumplicidade interessante. Apenas nós sabemos
que sequência de movimentos e som significa a palavra “cafezinho”!
Não nos alongaremos na descrição das sessões uma vez que anexamos a
esta reflexão as planificações cumpridas.

Nas sessões seguintes o trabalho correu como planificado e intensificaram-


se as relações e o sentido de pertença à Zona e ao próprio bairro. Foi

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sugerido que se apresentasse na última sessão de 2009, uma performance de
rua, até porque nesse dia o nosso espaço seria ocupado por uma festa de
Natal.

As duas últimas sessões aconteceram já em pleno processo criativo da


performance. Sendo, apenas, de assinalar fora das planificações uma sessão
de fado vadio espontânea e uma celebração do aniversário de um dos
nossos meninos com direito a piquenique no palco!

Para o exercício performativo decidimos fazer uma espécie de sessão aberta,


mas com uma partitura a cumprir, pré-conhecida. Foram integrados
exercícios construídos nas sessões anteriores e introduzidos elementos
estéticos que nos permitiriam fazer uma apresentação mais cuidada. Foram
também desenvolvidos alguns elementos cénicos encontrados na reflexão
sobre as sessões já realizadas. Surgiu a ideia de utilizar balões, como
referência simbólica aos nossos voos de relaxamento e alusão a dois
exercícios realizados com balões na penúltima sessão. Decidiram integrar,
também, narizes de palhaços, como forma de assinalar uma das sessões,
onde o medo de um suposto grupo de criminosos vestidos de palhaços
andariam a atormentar os jovens daquela zona se tornou um dos elementos
centrais da temática tratada nesse dia. A música percutida é uma
característica das nossas sessões e, portanto, não poderia faltar. Vieram
amigos com alguns instrumentos de percussão africanos ajudar na
performance.
A construção do breve exercício performativo tornou o grupo mais unido e
concentrado.
A mostra das produções criativas do grupo parece-nos essencial em Teatro
Comunidade. A nossa acção teatral comunitária não faria sentido se o
projecto não pertencesse à comunidade. Não se trata de dar algumas aulas

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de expressão dramática, mas antes de uma forma colectiva de viver a arte
em comunidade. Assim, as apresentações em locais públicos parecem-nos
essenciais para atrair novos elementos e para criar uma onda de cultura no
bairro. A limite, este tipo de acções continuadas poderão permitir a criação
de realidades como as do Grupo de Teatro brasileiro “Nós no Mouro”, que
de 10/20 elementos iniciais passaram a ser, eles próprios a comunidade.
Uma verdadeira escola de artes para meninos de rua, com 300 participantes
entre profissionais das artes do espectáculo e vizinhos da favela.

Infelizmente, no dia 18 de Dezembro, uma enorme chuvada acabaria por


fazer cancelar a tão esperada performance.
Após as despedidas para férias de Natal, ficou já marcada a próxima sessão e
a promessa de apresentar o exercício performativo no início do novo ano.

Acabava, assim, o nosso projecto realizado no âmbito do seminário de


Laboratório II do Mestrado em Teatro e Comunidade.
Ainda no âmbito do Mestrado, para o seminário de Teatro e Comunidade
II, ministrada pelo professor Domingos, criámos um blogue como forma de
apresentação de um projecto de Teatro Comunitário, mas que nos servirá,
no futuro, como forma de exposição do nosso trabalho e como plataforma
comunicacional entre os elementos do grupo.
Acabar aqui este projecto não nos parecia correcto: é que gorar as
expectativas de cerca de 40 pessoas que se mantiveram fiéis ao Grupo seria
como cometer uma traição. E o sentimento de terem sido esquecidos e
traídos ao longo destes anos está muito forte na comunidade.

Há, agora, que encontrar formas de financiamento do grupo que permitam


tornar esta experiência duradoura e mais consistente.

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Nesse sentido, estivemos já presentes em duas reuniões com todos os
agentes e instituições de intervenção social neste bairro (uma promovida
pela Junta de Freguesia e a outra promovida pela Gebalis – entidade gestora
dos bairros da Câmara Municipal de Lisboa) no sentido de encontrarmos
respostas conjuntas e concertadas para os problemas da zona e nos
apresentarmos à comunidade dos agentes de terreno, expondo as nossas
especificidades e tornando evidente o que nos torna diferentes.
Concorremos, também, aos projectos de acordo e parceria da Câmara
Municipal de Lisboa, no sentido de conseguir algum financiamento para o
nosso projecto. A indispensabilidade dos factores subjectivos favoráveis,
não nos pode fazer esquecer a necessidade de conquistar condições
materiais e objectivas para a concretização das nossas intenções. Tudo para
que seja possível a existência de mais uma zona no bairro de Chelas: a
ZONA T.eatro!

Filipa Albuquerque
Dezembro 2009

 
 
 
 

Nota: Por uma questão de hábito e preferência desta forma na realização de trabalhos
académicos, optei por utilizar a primeira pessoa do plural, em vez da usada primeira
pessoa do singular.

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Bibliografia

APPIA, Adolphe. A Obra de Arte Viva. Tradução de Redondo Júnior, edição de


Eugénia Vasques. 2ª ed. Amadora: Biblioteca; Escola Superior de Teatro e
Cinema, 2004. CD-Rom.

BIDEGAIN, Marcela. Teatro Comunitario – Resistencia y transformación social.


Buenos Aires: Biblioteca de Historia del Teatro Occidental, Atuel, 2007

BOAL, Augusto. Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2008

CRAIG, Edward Gordon. Da Arte do Teatro. Trad. de Redondo Júnior, Ed. de


Eugénia Vasques. 3ª ed. Lisboa: biblioteca; Escola Superior de Teatro e Cinema,
2005. e-book

LECOQ, Jacques. Le Corps Poétique – Un enseignement de la création Théâtrale.


Les Cahiers Théâtre/ Education, Actes SUD-Papiers,1997

MEYERHOLD, Vzévolod. O Teatro teatral. Trad. de Redondo Júnior. Lisboa:


Arcádia, 1980

SPOLIN, Viola. Jogos Teatrais – o Fichário de Viola Spolin. Tradução de Ingrid


Dormien Koudela. Rio de Janeiro: Editora Perspectiva, 2008

Nota: Esta foi a bibliografia usada para a construção deste roteiro e na realização
das planificações das nossas sessões de trabalho.

Filipa Albuquerque  19 

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