You are on page 1of 223
(LE oUTRAS POETICAS PoLITiCAS 6 EDICAO _AUGUSTO BOAL TEATRO DO OPRIMIDO E OUTRAS POETICAS POLITICAS ‘Augusto Boal — sabem-no to- dos — & personalidade marcante como autor ¢ diretor teatral, ten- do se empenhado, ao longo de sua carreira, na tenovagdo da cena brasileira, buscando reformular- -Ihe 0 conteddo ¢ transformar o espetéculo num ato de comunhio popular. Teatro para ele sempre esteve vinculado ao povo. Teatro do oprimido € otras potticas politicas € livro em que Augusto Boal expe, com entu- siasmo criativo ¢ lucidez exegéti- ca, o seu idedrio de teatrdlogo ¢ metteur en scone. Mas no livro o autor niio se limita a debater teorias — o que fax com raro brilho eficdcia — ow a expor criticamente as trans- formagdes fundamentais pot que © teatro passou no decorrer dos ‘tempos, ou seja, do sistema trigi- © coercitivo de Aristételes ¢ da poética da virtii, de Maquiavel, até chegar as colocagies propos- tas pelas coordenadas hegelianas © brechtianas. Boal avanga até o que chama poética do oprimido, ‘onde mostra “alguns dos caminhos pelos quais o povo reassume sua fungSo protaginica no teatro ¢ ma Sociedade.” Os escritos de Augusto Boal niio sdo fruto apenas de leituras, resultados eruditos de uma vida compromissada com o estudo, a meditagiio © a pesquisa. Slo, an- tes, produtos de uma vivéncia, Permanente e incansdvel, de um continuo trabalho com a matéria viva dos textos, dos palcos, das arenas, dos picadeiros ¢ de outros locais em que se exerga o oficio artistico — officio que aspira seja encaminhado de modo a que o teatro reencontre a atmosfera de liberdade que lhe é vital. © livro de Boal é polémico, discutidor, como convém a uma obra em que as idéias s3o 0 seu Principal conteiido. Idéias foram feitas para sofrerem, nfo perse- guigdes, mas o mais amplo, vee- mente, candente e caloroso deba- te. A fung&o do leitor, diante deste livro, é discutir também com © autor, ‘Os ensaios de Teatro do opri- mido e outras poéticas politicas foram escritos, com diferentes propésitos, — diz Boal — desde 1962, em Sio Paulo, até fins de 1973, em Buenos Aires, relatan- do experiéncias realizadas no Bra- sil, na Argentina, no Peru, na Venezuela e em varios paises lati- no-americanos. Epirora CIVILIZAGAO BRASILEIRA Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Politicas Augusto Boal Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Politicas 6° Edicao ene tl "Tat civilizagao brasileira Desenho de capa: pouné Diagramago: Léa CAULLIRAUX Impresso no Brasil Printed in Brazil 1991 Direitos desta edigdo reservados & EDITORA CIVILL O BRASILEIRA S.A. Av. Rio Branco, 99 - fear Centro 20040 - Rio de Janeiro - Tel: (O21) 263-2082 Telex: aly 33798 Fax: (021) 263-6112 Caixa Postal 2356 20.010 - Rio de Janeiro Para meu filho FABIAN ‘© Autor manifesta o seu profundo agradecimento a Enio Silveira que, através da edigio deste livro, concretizou o seu retorno ao Pais, depois de tantos anos. Sumario Explicagio 13 1. O Sistema Trigico Coercitivo de Aristdteles 15 Introdugio 17 A arte imita a natureza 19 Pequeno diciondrio de palavras simples 48 Como funciona o sistema trégico coercitivo de Aristételes 50 Distintos tipos de conflito: harmatia x ethos social 54 Conclusio 62 Notas 65 2. Maquiavel e a Poéiica da Virti 69 I — A abstragio medieval 71 Tl — A concregiio burguesa 78 TIT — Maquiavel © A Mandrdgora 86 TV — Modemas reduges da virtii 94 3. Hegel ¢ Brecht: Personagem-Sujeito ou Personagem-Objeto? 103 4. Poética do Oprimido 133 — A — Uma experiéncia de teatro popular no Peru 136 Conclusto: “‘espectador”, que palavra feia! 180 — B — O sistema coringa 185 I — Etapas do Teatro de Arena de Sho Paulo 185 Tl — A necessidade do coringa 198 Il — As metas do coringa 205 IV — As estruturas do coringa 213 ‘V — Tiradentes: quest6es preliminares 221 ‘VI — Quixotes ¢ heréis 230 Explicagao STE Livro(*) procura mostrar que |todo teatro € neces- Etitaments politico, porque politicas sfio todas as ativida- des do homem, e 0 teatro é uma delas.) Os que pretendem separar o teatro da politica, pretendem conduzir-nos ao erro — ¢ esta é uma atitude politica, Neste livro pretendo igualmente oferecer algumas provas de que o teatro é uma arma, Uma arma muito eficiente. Por isso, é ne- cessdrio lutar por ele. Por isso, as classes dominantes perma- nentemente tentam apropriar-se do teatro € utilizé-lo como instrumento de dominagao. Ao fazé-lo, modificam o préprio conceito do que scja o “teatro”. Mas o teatro pode igualmente ser uma arma de liberacdo, Para isso é necessdrio criar as for- mas teatrais correspondentes. E necessdrio transformar. _* Este livro redne ensaios que foram escritos com diferentes pro- Pésitos, desde 1962 em Sio Paulo, até fins de 1973 em Buenos Telatando experiéncias realizadas no Brasil, na Argentina, no Peru, na Venezuela e em varios outros paises latino-americanos. Alguns foram Originalmente escritos em portugués, outros em espanbol Creio que isto explica a diferenga de estilos, bem como possiveis reiteragées de certas idéias © temas, 13 Este livro mostra algumas destas transformagSes funda- )_mentais. “Teatro” era o povo cantando livremente ao ar livre: 9 povo era o criador eo destinatério do espeticulo teatral, que se podia entiio chamar “canto ditirambico”. Era uma festa em que podiam todos livremente participar. Veio a aristocracia - ¢ estabeleceu divisées: algumas pessoas iriam ao palco ¢ 9} elas poderiam representar enquanto que todas as outras per- maneceriam sentadas, receptivas, passivas: estes scriam 0s espectadores, a massa, o povo. E para que o espetdiculo pudes- s¢ refletir eficientemente a ideologia dominante, a aristocracia \ estabeleceu uma nova divisfo: alguns atores seriam os prota- gonistas (aristocratas) e os demais seriam o coro, de uma forma ou dé outra simbolizando a massa. “O Sistema Trigico Coercitivo de Aristteles” nos ensina o funcionamento deste tipo de teatro. — ! Veio depois a burguesia ¢ transformou estes protagonistas: deixaram de ser objetos de valores morais, superestruturais, e passaram a ser sujeitos multidimensionais, individuos exeep- i) cionais, igualmente afastados do povo, como novos aristocra- tas — esta é a “Poética da Virti'' de Maquiavel. Bertolt Brecht responde a estas cas e@ converte o personagem teorizado por Hegel de sujeito-absoluto outra vez €2\em objeto, mas agora se trata de objeto de forgas sociais, nfo mais dos valores das superestruturas. O “ser social de- ‘termina o pensamento” e nilo vice-versa. Para completar o ciclo, faltava o que est atualmente ‘ocorrendo em tantos paises da América Latina: a destruigao das barreiras criadas pelas classes dominantes. Primeiro se des- tréi_ a barreira entre atores e espectadores: todos devem re- presentar, todos devem protagonizar as necessirias transfor- mages da sociedade. E o que conta “Uma Experiéncia de Teatro Popular no Peru". Depois, destrdi-se a barreira entre 03 protagonistas ¢ o Coro: todos devem ser, ao mesmo tempo, coro € protagonistas — é o “Sistema Coringa”. Assim tem que ser a “Podtica do Oprimido”: a conquista dos meios de [MARX] - Buenos Aires, Junho 1974 eo Augusto Boal 1 O Sistema Tragico Coercitivo de Aristételes tragédia é a criagio mais caracteristica da democracia ateniense} em nenhuma outra forma artistica os conflitos interiores da estrutura social estio mais clara ¢ diretamente apresentados. Os aspectos exteriores do espetéculo teatral para as massas ¢ram, sem ddvida, democriticos. Mas o contetido era aristocrdtico. Exaltava-se o individuo excepcional, rente de todos os demais mortais: isto é, © aristocrata. O Gnico progresso feito pela democracia ateniense foi o de substituir gradual- mente a aristocracia de sangue pela aristocracia do dinheiro, Atenas era uma democracia imperialista € as suas guerras traziam beneficios apenas para a parte dominante da sociedade. A prépria separagiio do protagonista do resto do coro demonstra a im- ularidade tematica do teatro grego. A tragédia € francamente tendenciosa. O Estado ¢ os fowem Ti pagavam as produgdes e naturalmente nao permitiams a encenagio de pegas de conteido contririo ao regime vigente”. Anold Hauser, Histdria Social da Literatura e da Arte. Introducao piscussko sobre as relagdes entre o teatro e a politica é tdo velha como o teatro... ou como a politica. Desde ‘Aristételes ¢ desde muito antes, ji se colocavam os mesmos temas € argumentos que ainda hoje se discutem. De um lado se afirma que a arte é pura contemplagio ¢ de outro que, pelo contrério, a arte apresenta sempre uma visio do mundo em transformagio ¢, portanto, € inevitavelmente politica, ao apre- sentar os meios de realizar essa transformagio, ou de demo- ré-la, Deve a arte educar, informer, organizar, influenciar, incitar, atuar, ou deve ser simplesmente objeto-de prazer ¢ gozo? © poeta (Cémico Aris(éfaries| pensava que “o comedid- grafo nfo s6 oferece prazer como deve também ser um pro- fessor de moral ¢ um conselheiro politico”. Erastdstene# pen- sava © contrario, afirmando que “a fungio do poeta é encan- tar os espiritos dos seus ouvintes, nunca instrul-los”. SSTRABO) argumentava: “A poesia é primeira ligio que o Estado d ensinar a crianga; a_poesia € superior 4 filosofia porque esta se dirige a uma minoria enquanto que aquela se dirige 4s massas.” (Pfafad\ pelo contrdrio, pensava que os poetas de- viam ser expulsos de uma Repiblica perfeita, porque, “a_pot- 17 pura Sia s6 tem sentido quando exalta as figuras © os fatos que devem servir de exemplo; o teatro imita as coisas do mundo, mas o mundo ndo € mais que uma simples imitagio das idéias — assim, pois, o teatro vem a ser uma imitagio de uma imi- tagio.” ‘Como se vé, cada um tem a sua opinifio. Mas serd isto possivel? A relagdo da arte com o espectador é algo susceti- vel de ser diversamente interpretado, ou, pelo contrdrio, obe- dece rigorosamente a certas leis que fazem da arte um fe- némeno puramente contemplativo ou um fendmeno estranha- velmente politico? F suficiente que o poeta declare suas inten- ges para que sua realizagio siga o curso previsto por cle? Vejamos o caso de Aristételes, por exemplo, para quem ia e politica so disciplinas completamente distintas, que devem ser estudadas 4 parte porque possuem leis i porque servem a distintos propdésitos e tém diferentes objeti- vos. Para chegar a estas conclusdes, Aristételes utiliza em sua Poéiica certos conceitos que sic melhor explicados em suas outras obras. Palavras que conhecemos por suas conotagées mais usuais mudam completamente o sentido se eames através da Etica a Nicémaco ou da Grande foral. ‘Atistteles] propos a independéncia da poesia (lirica, épi- ca ¢ dramatica)\em relagio a politica; o que me proponho a fazer neste trabalho € mostrar que, nJo obstante suas afirma- gées, Aristételes constrdi o primeiro sistema _poderosissimo. Poético-politico de intimidagio do espectador, de eliminagio das “mds” tendéncias ou tendéncias “ilegais” do piblico espec- tador, Este sistema é amplamente utilizado até o dia de hoje, no somente no teatro convencional como também nos dra- malhées em série da TV e nos filmes de far west: cinema, teatro ¢ TV, itelicamente unidos_para_reprimir. 9 poyo. Felizmente, o teatro aristotélico nfio é a a maneira de se fazer teatro. A arte imita a natureza A Tuam dificuldade que s¢ nos apresenta para que pos- samos compreender corretamente o funcionamento da tragédia segundo Aristételes consiste na propria definigSo que esse filésofo oferece da arte. Que é a arte, qualquer arte? Para ele, é uma imitagdo da natureza. Para nés, a palavra “imitar” significa fazer uma odpi mais ou menos perfeita de um modelo original. Sendo assim, a arte seria entiio uma cépia da natureza. E “natureza” sig- nifica, para nés, 0 conjunto das coisas criadas. A arte seria pois um oSpia das coisas criadas. Aristételes, contudo, quis dizer uma coisa completamen- te diferente. Para cle, imitar (mimesis) nio tem nada que ver com a eépia de um modelo exterior. A melhor tradugio da palavra mimesis seria “recriagio”. E “natureza" nio & o ‘conjunto das coisas criadas ¢ sim o préprio principio criador de todas as coisas. Portanto, quando Aristételes diz que a arte imita a natureza, devemos entender que esta afirmagio, que pode ser encontrada em qualquer tradug¢io moderna da Poética, 6 wma mf tradugo, originada talvez em uma inter- Pretagfio isolada do texto. “A arte imita a natureza” na verda- 19 de que dizer: ‘A arte recria o principio criador das coisas eriadas”. Para que fique um pouco mais claro como se processa essa “recriagio” ¢ qual € esse “principio”, devemos, ainda que superficialmente, recordar alguns filésofos que elaboraram suas teorias antes de Aristételes. EscoLa pe MiLeTo — Entre os anos 640 e 548 a.C., viveu na cidade grega de Mileto um comerciante de azeite, muito religioso, que era também navegante. Acreditava piamente em todos os deuses mas, ao mesmo tempo, tinha que transportar sua mercadoria por via maritima. Por isso, ocupava uma boa parte do seu tempo em elevar aos céus suas oragGes, para que fizesse bom tempo ¢ mar: tranqililo, ¢ nos seus momentos livres se dedicava a estudar as estrelas, os yentos, o mar e as relagSes entre as figuras geométricas. Tales|— assim se cha- mava esse grego — foi o primeiro ‘cientista a _prever_um eclipse solar. Também a cle se atribui_ um tratado de astro- omia nautica. Como se vé, Tales acreditava nos deuses, mas nao descuidava o estudo das ciéncias. Chegou a conclusio de que o mundo das aparéncias, cadtico, multifacético, na rea- lidade nzda_mais_era do que o resultado de diversas trans- formagSes de uma sé substiincia: a dgua. Para ele, a agua se podia transformar em todas as coisas e todas as coisas se podiam igualmente transformar em dgua. Essas transforma- Ges, segundo Tales, ocorriam porque as_ coisas possui “alma”, As vezes, essa “alma” podia se tornar sensivel ¢ seus efeitos cram imediatamente visiveis: o ima atrai o ferro — esta atrago é a alma. Portanto, segundo ele, a alma das coisas consiste no movimento que as proprias coisas possuem, que as transforma em agua que, por sua vez, se transforma em todas as coisas. ‘ ANAXIMANDRO, que viveu pouco depois (610-546 a.C.), acte- ditava mais ou menos no mesmo, mas para ele a substancia fundamental ndo era a agua e sim algo indefinivel, sem_pre- dicados, chamado “apeiron”, que se condensava ou rarefazia, criando assim as coisas. O “apeiron” era divino, por ser imor- tal _¢ indestrutivel. Outro dos fildsofos chamados da Escola de Mileto, Sane) (450 a.C.), sem variar grandemente as concep- anteriores, Wa_que © ar era o elemento mais pro- © era portanto o principio universal jas aS coisas. Existe algo comum a esses trés filésofos: a busca de uma matéria ou substincia Gnica, cujas transformagoes originam todas as coisas conhecidas; além disso, os trés afirmam — eee te ane antec as ae ae a De "tudo que escreveram, no entanto, muito poucos textos che- garam até os nossos dias. Jd de Herdctito, o primeiro din- fico, temos farta documentagio. Herdcurto & CrAtiLo — Para Herdclito, o mundo ¢ todas as coisas do mundo estio em pemuneni. transformagio, E essa ‘transformagao permanente ¢ a_coisa imutiyel. A apa- Téncia de estabilidade é uma simples iluséo dos sentidos e deve ser corrigida pela razio. E como ocorre essa transformagio? Bem: todas as coisas coisas, da mesma maneira pela qual o ouro se transforma em joias que podem por sua vez ser transformadas em ouro. ‘Mas, como na verdade o ouro nfo se transforma ¢ sim ¢ transformado, existe alguém (o joatheiro), estranho a maté- ria Ouro, que faz possivel essa transformagio. Porém, para Heraclito, o elemento transformador residia dentro da coisa mesma, como uma oposigio: “a guerra é a mie de todas as coisas; a oposigdo unifica, pois o que esté separado cria a mais bela harmo tudo que acontece, acontece téo-soments porque existe luta”. Isto é, cada coisa traz dentro de si mesma 21 perTeGOn It ase um antagonismo que faz com que se mova do que é para © que nao é Para mostrar o cardter de permanente transformagio de todas as coisas, Herdclito dava um exemplo concreto: ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio. Por que? Porque na segunda vez em que entre j4 nfo serfio as mesmas Aguas as que estario correndo, nem sera cxatamente a mesma pessoa, que serd mais velha, ainda que seja de tio-somente alguns se- gundos. Cratilo, seu aluno, ainda mais radical, dizia ao mestre que ninguém pode entrar no rio nem sequet uma 6 vez, pois, a0 entrar, j4 as dguas do rio se estario movendo (¢ em que ‘iguas entraré?) ¢ jé estard envelhecendo a pessoa que tenta entrar no rio (e¢ quem estgré entrando, a mais velha ou a jovem?). S60 movimento das fguas é eterno, dizia Cré- ilo; 6 o envelhecimento é eterno; s6 o movimento existe: tudo © mais so aparéncias vas, PakMENiDEs E ZENKo — No extremo oposto a esses dois de- fensores do movimento, da transformagio, da luta interna que Promove essa transformagio, estava Parménides, que partia, para a criag%io de sua filosofia, de uma premissa fundamental, légica: “O Ser & @ o nJo-Ser niio Efetivamente seria ab- surdo pensar o contrdrio ¢, como dizia Parménides, “os pen- samentos absurdos nao sio reais". Existe portanto uma identi- dade entre o “ser” ¢ o “pensar” segundo o fildsofo. Se acei- tamos esta premissa inicial, dela estaremos obrigados a extrair uma quantidade de conseqiiéncias: 1. @ Ser é tinico, porque, se assim nao fosse, haveria entre um Ser e outro Ser o “nio-Ser", que estaria entre 0s dois; mas j4 accitamos que o “ndo-Ser” nio é, & por- tanto teremos que aceitar que o Ser é dnico, apesar da ‘aparéncia enganosa que nos diz 0 contrério; 2. Ser é eterno, porque, se assim niio fosse, depois do Ser viria necessariamente 0 “ndo-Ser" que, como jé vimos, no €; 3. o Ser é infinito (e aqui Parménides cometeu um pe- queno erro Kégico: depois de afirmar que o Ser € infini- to — pois do contrério, depois de sua finitude, ° néo-Ser — afirmou também que era esférico; ora, pois, se é esférico, tem uma forma, ¢ se a tem, tera igualmente seus limites, além dos quais necessariamente estaria outra vez 0 nfio-Ser. Nao é este porém o Ingar para examinar tais sutilezas. Possivelmente “esférica” seja uma mA tra- dugao ¢ talvez Parménides tivesse querido dizer “infinito em todas as diregdes” ou coisa que o valha); 4. 0 Ser é imurdvel, porque toda transformacio signi- ficaria que o Ser dei de ser o que € para comegar a ser o que ainda nfo é: entre um e outro estado, necessa- riamente estat talado o nfo-Ser, e como este nfo é, nao existe possibilidade alguma, segundo esta légica, de que exista qualquer transformagio; 5. o Ser é imével: o movimento € uma ilusio, porque significaria que o ser se moveria de um lugar onde esté para um lugar onde nfo estd, significando isso que entre os dois lugares estaria o nfo-Ser ¢, uma vez mais, isto seria uma impossibilidade légica. + ‘Destas afirmagSes, Parménides termina por concluir que, como elas esto em desacordo com os nossos sentidos, com 0 que podemos ver, ouvir ¢ sentir, isto significa que existem dois mundos perfeitamente definiveis: o m inteligivel, racio- nal, ¢ o mundo das aparéacias. O movimento, segundo ele, & uma Si, pa porque podemos demonstrar que niio existe; o mesmo em relagiio multiplicidade das coisas reais existentes, jue so, em sua légica, um tnico Ser, infinito, eterno, intrans- formavel, imével. Também Parménides, como era hdbito, tinha seu disci- pulo radical, chamado Zeno. Este tinha o costume de contar duas histérias para provar a inexisténcia do movimento. Duas histérias célebres, mas que vale a pena recordar. |A primeira contava que em uma corrida entre Aquiles (o mais ripido corredor grego) e uma tartaruga, aquele jamais conseguiria ¥ 23 alcangar esta, se 4 tartaruga fosse concedida uma pequena vantagem inicial. Assim era seu raciocinio: por mais rapido que corra Aquiles, teré que vencer primeiro @ distincia que o se- parava da tartaruga no momento em que se iniciou a corrida. Mas, por mais lenta que seja a tartaruga, durante esse breve momento ¢la jé se teré movido, ainda que seja tio-somente alguns poucos centimetros, Quando Aquiles se proponha outra vez a alcangd-la, ter, sem divida, que vencer esta segunda distancia. Durante este lapso de tempo, por menor que seja, uma vez mais a tartaruga teri avangado um pouco mais ¢, para sobrepassi-la, Aquiles tera uma vez mais que vencer a distincia cada vez menor, que continuamente o estard sepa- rando da tartaruga, que, muito lentamente, jamais se deixard wencer.[ 9! shi ‘A segunda histéria consistia em afirmar que se um arquei- {ro dispara uma flecha em dires3io a uma pessoa, esta pessoa no tem nenhuma razio para sair da frente, porque a flecha jamais a alcancaré. Da mesma forma, se cai uma pedra na cabeca de alguém, esse alguém nfo tem a menor necessidade de fugir, porque a pedra jamais the quebrard a cabeca. Por 2? simplesmente, segundo Zeno (obviamente um ho- mem de extrema direita!), porque uma flecha ou uma pedra, Para mover-se, col walquer objeto ou qualquer pessoa, deve mover-se ou no lugar onde esti ou no lugar onde ainda nio estd. No se pode mover no lugar onde esté, porque, se esid af, isso significa que no se moveu. Tampouco se pode mover no lugar onde no esta, porque é evidente que nfo esta Id para | fazer esse movimento. Conta-se que quando Ihe atiravam pe- | dras pela rua por causa de raciocinios como este, Zenio, ape- (sar de sua légica, fugia... » Claro que a légica de Zenfio padece de uma falha fun- d I: o movimento de Aquiles e da tartaruga nio si interdependentes, nem descontinuos. Aquiles no vence pri- meiro uma parte da distlincia, para vencer depois a segunda etapa. Ao contrario, corre toda a distincia sem s¢ relacionar Com a velocidade da tartaruga, ou com a de um bicho pre- Guiga que pode estar por sua livre iniciativa participando da mesma corrida. No segundo caso, 0 movimento ndo se pro- 24 cessa em um lugar ov em outro, ¢ sim de um lugar PARA o outro: © movimento é justamente a passagem de um lugar @ outro ¢ no uma seqiiéncia de atos em distintos lugares. Locos £ PLatio — E& importante compreender que nao pre- tendo aqui escrever a histéria da filosofia, mas apenas tentar explicar o mais claramente possivel o conceito aristotélico de que a arte imita a natureza, ¢ de esclarecer de que natureza se trata, de que tipo de imitagdo, e de que tipo de arte. Por isso, passamos tio sup ‘ialmente por cima de tantos pen- sadores ¢, de -Savratet, quaremes deixar estabelecido tio-so- mente o scu (conceito de logos. Para ele, o mundo real ne- cessitava ser conceituado & mancira dos geémetras. Na natu- reza existem infinidades de formas que se assemelham a uma forma geralmente designada como trifingulo: assim se estabe- lece o conceito, o logos do triingulo: é a figura geométrica que possui trés lados e trés Angulos. Uma infinidade de obje- tos reais podem ser assim conceituados, Existe uma infinida- de de formas de objetos que se parecem ao quadrado, a esfe- ra, ao poliedro; portanto, se estabelecem os conceitos (logos) do poliedro, da esfera ¢ do quadrado. Deve-se fazer o mesmo, dizia Sécrates, com os logos de valores morais & conceituar 0 que € a coragem, o bem, o amor, a tolerincia, etc. (TPoputiliza a idéia socritica de logos, e vai mais longe: 1. te por ser intuitiva, é pura: nhum triangulo perfeito, mas a idéia que temos do trifin- gulo é perfeita. Niio se trata deste ou daquele trifingulo que podemos ver na realidade, mas sim do tridngulo “em geral”. Quando as pessoas se amam, quando realizam o ato do amor, realizam-no imperfeitamente. Mas a “idéia™ de amor, essa idéia é perfeita. Todas as “idéias” sfio per- feitas ¢ siio imperfeitas todas as coisas concretas da rea- lidade. 2. as “idéias” sto as esséncias das coisas cxistentes no mundo sensivel. As idéias so indestrutiveis, iméveis, imu- taveis, intemporais ¢ eternas. 25 — (3) © “conhecimento” consiste em que nos elevemos, ‘através da dialética — isto é, do debate das idéias postas e contrapostas, das idéias © das negagbes dessas mesmas idéias, que sfio por sua vez outras “idéias” — desde o mundo da realidade sensivel até 0 mundo das idéias eter- nas. Esta ascese & o conhecimento. PorTANTO, QUAL £ 0 SIGNIFICADO DE IMITAR? Aqui estamos quando entra ARISTOTELES (384-322 a.C.) ¢ refuta Platio: 1. Platio unicamente multiplicou os seres que para Parménides eram um s6 Ser; para ele s&o infinitos, por- que infinitas sio as idéias. 2. a metaxis, isto é, a participagdo de um mundo em outro, é incompreensivel; na werdade, que tem a ver 0 mundo das idéias perfeitas com o mundo imperfeito das coisas reais? Existe o transito? Como se processa esse transite? Refuta, mas ao mesmo tempo também o utiliza. Intro- duz alguns novos conceitos: “substincia” ¢ a unidade indis- soldvel de “matéria” © “forma”. “Matéria”, por sua vez, ¢ © que constitui a “substAncia’ matéria de uma tragédia sio as palavras que a constituem; a matéria de uma estdtua € 0 m&rmore ou a pedra, “Forma” é a soma de todos os pre- dicados que podemos atribuir a uma coisa, é tudo o que po- demos dizer dessa coisa. Cada coisa vem a ser o que é (uma estétua, um livro, uma casa, uma drvore) porque a sua ma- téria recebe uma forma que Ihe dé sentido e finalidade, Esta ‘conceituagio confere ao pensamento platénico a caracteris- tica dinimiea que the faltava. (0 mundo das idéias nio co- -existe lado a lado com o mundo das realidades, mas, ao contririo, as “idéias” (aqui chamadas “formas”) sio o pré- Prio principio dindmico da matéria.] Em iitima andlise: para 26 Aristételes, a realidade nfo & a cépia das idéias mas, ao con- trario, tende & perfeigao expressa por essas idéias; contém, em si mesma, 0 motor que a levard a essa perfeigio. O bomem tem a tendéncia a ser sauddvel, a ter a pro- porgio corporal perfeita, etc; os homens, em conjunto, ten- dem a familia perfeita, ao Estado. As drvores tendem A per- feigfio da Arvore, isto é, & idéia platénica da drvore perfeita. © amor tende ao Amor platénico, perfeito. ‘matéria”, para Aristételes, era pura poténcia e a “forma” puro ato. E o movimento das coisas em busca da perfeig¢io € o que ele chamava atoalizagio da poténcia, isto é, © trinsito da pura poténcia A pura forma. Para nossos propdsitos, neste momento, interessa in: tir neste ponto: para Aristételes, as coisas tendiam A perfei- gio por virtudes préprias, por sua prépria “forma”, ou motor, ou atoalizago de sua poténcia. Nido existem dois mundos ¢ Portanto nio existe metaxis. O mundo da perfeigio nio é nada mais que um anelo, um movimento que desenvolve a matéria em dire¢lo A sua forma final, #—* Portanto, que quer dizer jitar” para Aristételes? Quer dizer: recriar esse movimento interno das coisas que se diri- gem_ perfeigio. “Natureza” era esse movimento e no o conjunto de coisas j4 feitas, acabadas, visiveis, “Imitar”, por- tanto, no tem nada a ver com “realismo", “cépia” ou “im- Provisagio". E é por isso que Aristételes podia dizer que o artista deve “‘imitar” os homens como deviam ser e niio como so. Isto é, imitar um modelo que nfo existe, PARA QUE SERVEM ENTAO A ARTE E A CIENCIA? Se as coisas por si mesmas tendem A perfeigio, se a per- feigdo é imanente a todas as coisas ¢ ndo transcendente, para que servem entdo a arte © a ciéncia? —+A Natureza, segundo Aristételes, tende a perfeigo, mas isso nléo quer dizer que a alcanceJ O corpo humano tende & Satie, mas pode enfermar-se. Os homens tendem ‘gregaria- 27 mente ao Estado perfeito e & vida comunitdria, mas podem ocorrer guerras. Diriamos melhor portanto que a Natureza tem certos fins em vista, perfeitos, ¢ a eles tende, mas ds vezes fracassa. (Para isso serve a arte © serve a ciéncia: para, “recriando o principio eriador” das coisas criadas, corrigir a natureza naquilo em que haja fracassado.] Alguns exemplos: o corpo humano fenderia a resistir & chuva, a0 vento ¢ ao sol, mas tal ndo se dé, e a pele no é suficientemente resistente para isso. Entra, pois, em agio a arte da tecelagem, que permite a fabricagéo de tecidos para a protegio da pele. A arte da arquitetura constréi edificios @ pontes para a habitagio do homem ¢ para que cruze os rios, A medicina prepara os medicamentos necessdrios para quando determinado 6rgao deixe de funcionar como deve. E a politica serve igualmente para corrigir as falhas que os ho- mens possam cometer, ainda que tendam todos 4 vida comu- nitéria perfeita. Esta é a fungdo da arte e da ciéncia: corrigir as falhas da natureza, utilizando para isso as proprias sugestSes da na- tureza. Artes MaAlorEs E ARTES MENORES: As artes e as ciéncias nfo existem isoladamente, sem que nada as relacione, mas, a0 contrdrio, esto todas inter-rela- cionadas segundo a atividade propria de cada uma. Estio de certa forma hierarquizadas segundo a maior ou menor mag- nitude do seu campo de agao. As artes maiores se subdividem em artes menores € cada uma destas trata dos elementos espe- cificos que compSem aquelas. da felicidade: o exercicio virtuoso da alma racional. ! ~— Agora sabemos que a Tragédia “imita as agdes da alma racional, paixdes transformadas em hébitos, do homem que busca a felicidade, isto é, o comportamento virtuosq™ Muito. bem. Mas ainda nos falta saber o que € a virtude. ET E A VIRTUDE, © QUE £? A virtude é 0 comportamenta mais distante dos extremos de comportamento possiveis em uma situagio dada. A vit- tude nfo pode ser encontrada nos cxtremos: tanto 0 homem que yoluntariamente nio come como 0 comilfio causam da- nos a sua sadde, Nenhum dos dois s¢ comporta virtuosamente. Comer com moderagio sim, é um comportamenta virtuoso. Tanto a auséncia do exercicio fisico como o exercicio dema- siado violento arruinam o corpo: o exercicio fisico modera- do é 0 comportamento virtuoso, Ocorre 9 mesmo com as vir- tudes morai ‘reonte pensa apenas no bem do Estado, en- (quarito-que“Antigona pensa apenas no ‘bem da familia, ¢ por isso deseja enterrar 0 corpo de seu irmio invasor. Os dois se ) \comportam de uma forma nfo virtuosa: seus comportamentos ! ‘sao extremos, A virtude estaria em alguma parte do meio /yNyermo, Seria necessério respeitar os interesses da familia, mas 4 etambém os do Estado. O homem que se entrega a todos os ““crazeres é um libertino, mas o que foge de todos os praze- t) 5 é um insensivel. O que foge de todos os perigos é um i] ‘covarde mas o que enfrenta todos os perigos € um temerario. A virtude nao esté geometricamente no meio, no € equi- distante: a coragem (virtude) de um soldado estd muito mais perto da temeridade do que da covardia. A virtude também nao existe em nés “naturalmente”: € necessdrio aprendé-la. ‘As coisas da natureza nao podem adquirir habites: 0 homem sim, A pedra nfo pode cair para cima, nem o fogo queimar para baixo. Nés, os homens, podemos criar habitos que nos permitam o comportamento virtuoso. Os animais podem criar hdbitos, mas jamais sera capazes de sentir.a felicidade no seu nivel superior. A Natureza, sempre segundo Aristételes, nos da facul- dades ¢ nés temos o poder de transformé-las atos (paixdes) ¢ em hdbitos, Torna-se sibio aquele que exerce a sabedo- Tia, ¢ se tora justo aquele que exerce a justiga, enquanto que o arquiteto adquire sua virtude como arquiteto construin- do edificios. Habitos, ¢ no simples faculdades! Habitos, ¢ Aristételes vai mais longe e afirma que os hdbitos devem ser contraidos desde a infincia ¢ que o jovem no pode fazer politica porque necessita antes “aprender todos os habitos vir- tuosos que Ihes ensinam os mais velhos, os legisladores que Preparam os cidadios para o exercicio dos habitos virtuo- ‘808 = ibemos agora que o vicio é o comportamento extremo € que a virtude é 0 comportamento em que niio se verifica excesso nem caréncia, Mas, para que se possa dizer que de- terminado comportamento é virtuoso ou vicioso ¢ necessirio que se cumpram quatro condigSes indispensiveis: voluntarie- dade, liberdade, conhecimentoe constincia. J4 explicaremos © significado destas expressdes, mas queremos antes deixar bem claro que a “Tragédia imita as aces da alma racional do homem (paixdes habituais), em busca de uma felicidade que consiste no comportamento virtuoso”. Pouco a Pouco, nossa definigio, segundo Aristételes, val-se tomando cada vez mais complexa, Caracteristicas NecessArias A VIRTUDE © homem pode se comportar de uma maneira totalmen- te virtuosa ¢ nem por isso ser considerado virtuoso, ou de uma mancira viciosa € nem por isso ser considerado vicioso. Sao necessirias quatro condighes para que o comportamento seja considerado vicio ou virtude: PRIMEIRA CONDICAO: VOLUNTARIEDADE — A voluntariedade exclui o acidente. Isto é: o homem atua porque decide vo- luntariamente atuar. Um dia um pedreiro pos uma pedra em cima de um muro de tal maneira que um forte vento jogou-a abaixo. Por casualidade, caiu ¢m cima da cabega de um transeunte que ia passando. E ele morreu. Sua vitiva processou o pedreiro ¢ este sc defendeu afirmando que nfo tinha cometido crime algum porque no tinha tido a intengio de matar a vitima, ‘Niio haveria, pois, o comportamento vicioso porque se tra- 33 tava nitidamente de um acidente. Mas o juiz no aceitou esta defesa e condenou o pedreiro, baseando-se no fato de que nio existia voluntariedade em relagio & morte do transeunte, mas sim em colocar uma pedra tal posigfo que podia cair ¢ causar uma morte. Neste aspecto, existiu volunteriedade. Se a acio de um homem é determinada por sua vontade, af existe virlude ou vicio. Se, a0 contrdrio, sua agio nfo estd determinada por sua vontade, ai nfo existird uma coisa nem outra. Quem pratica o bem sem perceber o que est fazendo, nfio é uma boa pessoa. Nem seri m4 aquela que causar um dano involuntirio. SEGUNDA CoNDIGAO: LiBERDADE. — Neste caso se exclui a violéncia exterior. Se um homem faz alguma coisa ma, obri- gado por outro que Ihe aponta um revélver na cabeca, ndo se pode, neste caso, falar vicio. A virtude é o compor- tamento livre, sem pressdes exteriores de nenhuma indole. Uma mulher, abandonada por seu amante, decidiu matd- lo antes de perdé-lo. Levada aos tribunais, declarou, para de- fender-se, que nfo havia agido livremente: havia sido levada ao crime por sua paixSo irracional, Mas também neste caso © Juiz pensou diferentemente: a paixdo é parte integrante da pessoa, € parte da sua “alma”. Nao existe liberdade quando alguém sofre uma violéncia exterior, e este era um impulso interior. E a mulher foi condenada. (55 Tercema CONDI¢AO: CONHECIMENTO — Eo contririo da ignorincia. A pessoa que age tem diante de si uma opgao cujos termos essa pessoa conhece. Em um tribunal, um criminoso bébedo afirmou que havia cometido o crime em estado de embriaguez, ¢ portanto nio tinha consciéncia do que fazia, no momento em que matou outro homem, Também neste caso ‘9 bébedo fai condenado: antes de comegar a beber tinha per- feita consciéncia de que o flcool podia levé-lo ao estado de inconsciéncia. Era, portanto, culpado de ter-se permitido che- gar a um estado em que j4 nilo teria mais conhecimento do que fazia. MM @- ditedacs Em relagéo a esta terceita condigao do comportamento virtuoso, em geral se contrapdem os casos de Otelo e¢ de Edipo. Nos dois casos se discute a existéncia de conhecimento (que confere caracteristicas de virtude ou de vicio ao comporta- mento), ou nio. Na minha opiniio, é conhece a verdade: Iago mente sobre démona, sua ¢sposa, ¢ Otelo, cego de citimes, mata-a. ‘A tragédia de Otelo, contudo, reside em algo muito além do simples assassinato. Sua falha trigica_(e logo discutire- mos o conceito de Aarmatia, falha trigica) (nfo é ter dado morte 4 sua esposa. Este nio era um acontecimento “habi- tual", Ao contrério, o seu constante orgulho’e a sua teme- ridade irrefletida, esses sim, eram habitos. Em varios momen- tos da pega, Otelo conta como arremetia contra seus inimigos sem medir as conseqiiéncias da sua agdo. Sua soberba foi a causa da sua desgraga, € sobre isto Otelo tinha perfeita cons- ciéncia, perfeito conhecimento. Também no caso de Edipo & necessirio considerar qual a sua verdadeira falha trigica (harmatia). Sua tragédia nio consiste em haver assassinado seu pai ¢ casado com sua mde. F légico que estes nfo eram atos “habituais", ¢ como ja vimos o habito é uma das quatro caracteristicas do comportamento virtuoso ou vicioso. Se lemos com atenglo a pega de Séfo- cles veremos que Edip, em todos os momentos importantes de sua vida, revela seu extraordindrio orgulho, sua soberba, sua aulovalorizagao, que faz com que gle se_acredite superior aos proprics deuses. Néo é a Moira (o Destino) que faz com que ele caminhe para o seu fim trigico; ele mesmo, por de- cisfo propria, caminha para a sua desgraga. E sua intolerin- cia que o leva a matar um velho (que descobre, posteriormen- te, ser seu pai), porque este nJo o tratou com o devido res- peito, numa encruzilhada, E, quando decifrou o enigma da Esfinge, foi uma vez mais por orgulho que aceitou o trono de Tebas, ¢ a mio da Rainha, uma senhora com idade sufi- ciente para ser sua mie. Para infelicidade sua, era! Caramba: uma pessoa a quem os ordculos (espécie de macumbeiros ou videntes da época) haviam dito que ia se casar com sua pré- Ptia mie ¢ matar seu proprio pai deveria ter um pouco mais 35 de cuidado ¢ abster-se de matar velhos com idade de ser seu pai, e de casar-se com velhas com idade de ser sua mic, Por que no 0 fez? Por orgulho, por soberba, por intolerancia, por acreditar-se adversirio digno dos préprios deuses. Estas sic as suas falhas, estes séo os. seus vicios. Conhecer ou nfo a iden- tidade de Jocasta, e de Laio, era inteiramente secundirio. O préprio Edipo, quando reconhece seus erros, reconhece estes fatos. Concluimos entio que a terceira condigdo para que o comportamento seja virtuoso consiste em que o agente saiba, conhega, os verdadeiros termos da sua opgio, Quem quer que aja por ignorincia nio pratica vicio nem virtude. Quanta conpigio: ConstAncta — Como as virtudes ¢ 05 vicios so hébitos © mo apenas paixdes, ¢ necessério que o comportamento virtuoso ou vicioso seja também constante, Todos os herdis da tragédia grega agem consistentemente da mesma maneira. Quando a falha tragica de um personagem consiste precisamente na sua incoeréncia, ¢sse personagem deve ser apresentado como “coerentemente incoerente". Mesmo neste caso, nem o acidente nem a casualidade caracterizam o vicio ou a virtude. Assim, pois, os homens que a tragédia imita sfio 03 ho- mens virtuosos que, a0 atuar, mostram. vyoluntariedade, liber- dade, conhecimento ¢ constincia. O homem busca a felici- dade através da virtude, ¢ estas so as quatro condigdes neces- sérias ao exercicio da virtude. Mas, existird uma sé virtude, ou existirlo virtudes de diferentes graus? Os Graus DA VIRTUDE -/Cada arte, cada ciéncia, possui a sua prépria_virtude, porque possui o seu préprio fim, o seu proprio bem, A vir- tude do cavaleiro consiste em andar bem a cavalo; a virtude do ferreiro em fabricar bem instrumento de ferro; @ vittude do artista em criar sua obra perfeita; a do % médico, em restituir a sadide ao doente; a do legislador, em fazer as leis perfeitas que tragam a felicidade aos cidaddos. Vemos assim que cada arte e cada ciéncia possui a sua propria virtude, mas também é verdade que todas as artes ¢ todas as ciéncias entio inter-relacionadas, sio interdependen- tes, © que umas so superiores as outras quando sio mais complexas que as outras, © quando estudem ou incluam se- tores maiores da atividade humana. De todas as artes ¢ cién- cias, a ciéncia e a arte soberana € a Politica, porque nada lhe é estranho. A Politica tem como objeto de estudo a tota- lidade das relagdes da totalidade dos homens. Portanto, o maior bem, cuja obtengio significard a maior virtude, é o bem poli- tico,~ ‘A Tragédia imita as agdes do homem, cujo fim é o bem; mas a Tragédia nfo imita as agdes cujos fins sio fins me- nores, de importincia secundéria. A Tragéd ta as agdes cujo fim é o fim superior, o Bem Politico. E qual sera o Bem Politico? Nao ha duvida: o bem superior € o Bem Politico ¢ o Bem Politico ¢ a Justigal Mas, 0 que & A Justica? Na Etica a Nicémaco, Aristoteles propde (¢ nds aceita- mos) que “justo é o igual e injusto o desigual”, Em qual- quer divisiio, as pessoas que sejam iguais devem receber par- tes iguais, € as pessoas que, por qualquer critério, sejam desiguais, devem receber partes desiguais. Até af estamos de acordo. Mas é necessdrio definir quais sio os critérios de desi- gualdade porque ninguém vai desejar set desigual “para men- nos”, € todos desejardo ser desiguais “para mais”. © proprio Aristételes era contra a lei de Taliio (olho por olho, dente por dente), porque dizia que, se as pessoas nao fossem iguais, tampouco seriam iguais os seus dentes ¢ os seus olhos. Por isso, tinha cabimento perguntar: olho de quem por olho de quem? No caso de se tratar de um olho de senhor por um olho de escravo, Aristteles se opunha porque, para ele, esses olhos nio se equivaliam. Se se tratasse de 37 ‘um dente de homem por um dente de mulher, para Aristételes tampouco havia equivaléncia. Neste ponto, para determinar os critérios de desigualdade e pata que ninguém possa protestar, 0 nosso filésofo utiliza ‘um argumento aparentemente honesto. Pergunta: “de que de- vemos partir, dos principios ideais abstratos ¢ descer até a realidade, ou, pelo contrdrio, da realidade concreta e subir até os principios?” Abandonando qualquer romantismo, ele mesmo responde: “devemos partir evidentemente da realida- de concreta; empiricamente temos que descobrir quais sfio as desigualdades reais existentes ¢ sobre clas basear os nossos cri- térios de desigualdade”. Este raciocinio falaz nos leva a accitar como justas as desigualdades jd existentes. Quer dizer, 2 justiga jA estaria contida na realidade ta qual é. Aristétcles nfo considera a possil de de transformagio das desigualdades jd existentes: ele as aceita como justas, porque séo empiricamente consta- tdveis.|E s6 por isso, Em seguida determina que, existindo na realidade empi- rica homens livres ¢ homens escravos (e¢ no importam os principios abstratos, nlio importa saber se essa realidade pode ser transformada), esse sera o primeiro critério de desigual- dade, Ser homem @ mais do que ser mulher — quem o diz € Aristételes que assim cré interpretar a realidade real ¢ con- ‘creta. Se aceitamos estas desigualdades, os homens livres esta~ riam em primeiro lugar, viriam depois as mulheres livres, em seguida os homens escravos ¢ fechando a fila as pobres mu- Theres. escravas. ‘Assim era a “democtacia” ateniense, que se baseava no valor supremo da “liberdade”. Mas nem todas as sociedades se baseiam nesse mesmo valor: para as oligarquias, por exem- plo, o valor supremo é a riqueza. Nelas, os homens que mais tém sio considerados superiores aos que menos possuem, Sem- pre partindo da realidade tal qual é... i ‘Chegamos assim & conclusio de que a(Justica ndo € a igualdade ¢ sim a proporcionalidade.)E os critérios de desi- gualdade estiio dados pelo sistema politico vigente em cada cidade, ow em cada pais. A Justiga serd sempre a proporcio- nalidade, mas os critérios que determinam esta nfo serio sem- Ely pre os mesmos, variando quando se trate de uma democracia, uma oligarquia, uma repdblica, uma ditadura, etc. E como se estabelecem os critérios de desigualdade para que todos os conhegam? Através das leis! E quem fabrica essas leis? Se as leis fossem feitas pelos seres humanos de ca- tegorias inferiores, como as mulheres, os escravos, os pobres,, etc., evidentemente seriam leis inferiores como seus autores. Para que se facam leis superiores & necessirio que sejam fei- tas pot seres superiores: os homens livres, as ricos, etc. Eu quero deixar bem claro que quem faz esas afirmagoes & Aris- tételes, eu nfo tenho nada que ver com isso... A Constituigio sistematiza o conjunto de leis de umia cidade ou pais. A Constituicio, portanto, ¢ a expressio do bem politico, é a expressiio maxima da Justiga. al Agora, finalmente, com a ajuda da Etica a Nicémaco, podemos chegar a uma conclusio clara do que é, para Aris- toteles, a Tragédia. Sua definicio mais ampla e mais comple- ta seria a seguinte: “A Tragédia imita as agdes da alma racional do homem, suas paixdes tornadas hdbitos, em busca da felicidade, que consiste mo comportamento virtuoso, que é aquele que 6 afasta dos extremos possiveis em cada situagio dada concre- ta, cujo bem supremo ¢ a Justiga, cuja expresso maxima é a Constituigio!” Ufa! >, Em ltima instineia, a felicidade consiste em obedecer ae teil a Ora veja! Aristételes nio diz nem mais nem menos d qué isso, e o declara com todas as letras! Para as pessoas que fazem as leis, parece que isto Ihes vai muito bem. Mas, ¢ os outros? Estes, compreensivelmente se rebelam ¢ nfo desejam accitar os critérios de desigualdade. que a realidade afual, vigente, — mas n§o necessariamente eterna, — propde. Esses critérios sio modificdveis, como mo- dificdvel é a propria realidade. Por que no modific-la? Nes- tes casos, adverte severamente o filésofo, “As vezes a guerra ." Quer dizer, quando nao sfo aceitos por bem, ! x» EM QUE SENTIDO 0 TEATRO PODE FUNCIONAR COMO UM INSTRUMENTO PURIFICADOR B INTIMIDATORIO? J& vimos que a populagio de uma cidade ou pais nfo esti “uniformemente” contente com as desigualdades reais existentes, Por isso é necess4rio fazer com que todas fiquem, se nio uniformemente contentes, pelo menos uniformemente pas- sivos, diante das desigualdades ¢ seus critérios. Como conse- gui-lo? Através das muitas formas de repress: politica, bu- rocracia, policia, habitos, costumes, tragédia grega, etc. Esta afirmagio pode parecer um tanto arriscada, mas nada mais é do que a verdade. Na verdade, o sistema apresentado por Aristételes em sua Podtica, o sistema de funcionamento da tragédia (¢ de todas as outras formas de teatro que até hoje seguem OS seus mecanismos gerais), no sio apenas um sis- tema de repressio: é claro que outros fatores mais “estéticos” também intervém, e devem igualmente ser considerados. Neste ensaio, porém, pretendo analisar fundamentalmente este aspec- to, a meu ver, central: a fungio repressiva do sistema pro- posto por Aristételes. E por que a fungiio repressiva é o aspecto fundamental da tragédia grega e do sistema trigico aristotélico? Simplesmen- te porque, segundo Aristételes, a_finalidade suprema da Tra- pédia & a de provocar a “catarse’ FINALIDADE ULTIMA DA TRAGEDIA © cardter fragmentério do que nos restou da Podtica fez desaparecer a s6lida conexo existente entre as suas partes, como também a hierarquizagio de cada uma destas dentro do todo. $6 esse fato explica que observagdes marginais, de escas- sa ou nenhuma importincia, tenham sido consideradas con- ceitos centrais do pensamento aristotélico. Quando s¢ trata, Por exemplo, de Shakespeare ou do teatro medieval, é muito comum dizer-se que tal ou qual peca nfo ¢ aristotélica por- que nfo obedece A chamada “lei das trés unidades"... Hegel, ha sua Histéria da Filosofia, contesta: “... as trés unida- 40 des... que as Estéticas antigas formulavam invatiavelmente como as régles d'Aristote, la sceine doctrine, embora ele fale Hiio-somente da unidade da ago, e apenas de passagem, da uni- dade de tempo, sem mencionar nunca a tereeira unidade, ou seja, a de lugar.” (pag. 239). A desproporcionada importincia que se di a esta lei & incompreensivel, j4 que sua validez é tio nula como seria a afirmagao de que sio aristotélicas apenas as pegas que apre- sentem um prélogo, cinco episédios ¢ cantos corais e um éxodo. A esséncia do pensamento aristatélico no pode residir em aspectos estruturais como estes. Quando se magnificam esses aspectos menores, isso equivale a comparar o filésofo grego com os modermos e abundantes professores de drama- turgia, especialmente norte-americanos, que nada mais sio do que cozinheiros de menus teatrais. Eles estudam as reagdes tipicas de determinados piblicos e daf extraem conclusées ¢ regras sobre como se deve escrever a peca perfeita, conside- rando-se perfeigio o éxito de bilheteria. Aristételes, a0 contrério, esereveu uma Poética completa- mente orginica, que é o reflexo, no campo da tragédia e da poesia, de toda a sua contribuicao filoséfica; € a aplicacio pritica © concreta dessa filosofia ao campo especifico © res- trito da poesia ¢ da tragédia. Por essa raziio, sempre que nos encontremos com afirma- gGes imprecisas ou fragmentarias, devemos imediatamente re- correr aos demais textos escritos pelo autor. Foi o que preci- samente fez S. H. Butcher no seu livro Aristotle's Theory of Poetry and Fine Art, procurando entender a Poética desde a Perspectiva da Metafisica, da Politica, da Retérica e sobretu- do das trés Eticas. A ele devemos fundamentalmente o escla- recimento do conceito de “catarse”. A natureza tem certos fins em vista; quando fracassa e nao consegue atingir seus objetivos, intervém a arte e a cién- ia, O homem, como parte da natureza, tem certos fins em a saide, a vida gregaria no Estado, a felicidade, a vir- tude, a justiga, etc. Quando falha na consecugSo desses obje- tivos, intervém a arte da Tragédia. Esta correg3o das agdes ‘do homem, do cidadio, chama-se “catarse”. 4

You might also like