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A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DA CRIANÇA DE ORIGEM ÁRABE

NO ESPAÇO ESCOLAR1

Maria da Graça Queiroz Bermudez2


Valéria Moura Venturella Venturella3

Resumo
O presente trabalho aborda o processo de construção da identidade das crianças de origem árabe
residentes na cidade de Uruguaiana, e estudantes das escolas privadas confessionais católicas do
município, visto sob o ponto de vista de seus professores. O trabalho se constitui em uma pesquisa
qualitativa de que participaram 10 professores e coordenadores pedagógicos da educação infantil e
das séries iniciais do ensino fundamental.

Introdução

Os nacionalismos mesquinhos deverão dar lugar ao universalismo, os


preconceitos étnicos e culturais à tolerância, à compreensão e ao pluralismo, o
totalitarismo à democracia nas suas variadas manifestações, e um mundo dividido,
em que a alta tecnologia é apanágio de alguns, dará lugar a um mundo
tecnologicamente unido. É por isso que são enormes as responsabilidades dos
professores a quem cabe formar o caráter e o espírito das novas gerações
(DELORS, 1996, p.131).

Observemos o rol revelado pelos cadernos de chamada das escolas privadas católicas de
Uruguaiana: Ahmed, Ashla, Barakat, Fuad, Hilal, Ibrahim, Yasmin, Yasser, Youssef, Jamile,
Mohamed, Nasser, Nidal. Quem são? São vozes árabes que emergem nas salas de aulas e
constituem um dos motivos que nos levaram a empreender este estudo: a tentativa de compreender
mais profundamente as relações que constroem a identidade da criança de origem árabe no ambiente
de escolas privadas católicas de nossa comunidade.
Na cidade de Uruguaiana, a colônia árabe constitui uma comunidade cultural significativa
desde a década de 1940, quando milhares de mercadores ambulantes árabes imigraram do Oriente
Médio – conseqüência da diáspora iniciada com a criação do Estado de Israel – para o Sul do Brasil
em busca de uma vida mais tranqüila e produtiva. Segundo Fanti (2004), o município fronteiriço foi
escolhido devido a sua posição geográfica estratégica – na época, antes da emancipação da Barra do
Quaraí, Uruguaiana fazia fronteira com o Uruguai, além da Argentina – propícia a uma sonhada
expansão dos negócios para outros países.
Ao longo das décadas, esses primeiros imigrantes firmaram raízes na cidade. Aprenderam a
língua portuguesa e se mesclaram à população, participando da vida econômica e social do
município. Seus filhos e netos freqüentam as escolas da cidade e convivem com os costumes e
valores locais, construindo e reconstruindo sua identidade individual e coletiva nesse processo. As
ricas relações da criança de origem árabe com sua família, sua cultura, seus colegas, seus

1
Artigo Publicado na Revista Hífen da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul –
Uruguaiana, v.28, n.53, p. 25-28, 2004.
2
Professora da PUCRS Uruguaiana, mestranda em Educação pela PUCRS.
3
Professora da PUCRS Uruguaiana, mestranda em Educação pela PUCRS.
professores, e com o espaço escolar – narradas pelos professores – constituem o foco deste
trabalho.
Como cidadãs e professoras uruguaianenses atentas à relevância de se discutir
multiculturalismo, localismos culturais, inter-relações sociais e pessoais e suas influências na
formação das identidades individuais e conjuntas, fomos envolvidas pelo tema. Quem somos? Como
nos construímos? Que relatos temos que narrar e que linguagem utilizamos? Qual é a importância da
diferença e qual a importância da igualdade? Tais questões nos levaram como mestrandas em
educação a um olhar sobre uma comunidade significativa em nossa cidade – a de origem árabe – e a
um foco na criança uruguaianense de origem árabe, a escola e suas relações.
A comunidade árabe, na sua expressão atual em Uruguaiana, é composta de centenas de
famílias, na sua maioria palestinas e de religião muçulmana, embora os documentos que portam
formem um mosaico de nacionalidades: sírios, jordanianos, libaneses e egípcios.
A comunidade convive harmoniosamente com as diferenças determinadas pelo choque
civilizacional entre uma cultura milenar, brotada no Oriente Médio, e uma cultura ocidental e moderna.
Apesar dessa harmonia, é possível observar os contrastes socioculturais: peculiaridades como
alimentação e indumentária, além de traços distintivos como as línguas de famílias distintas com
dificuldades recíprocas de entendimento; e religiões diferentes nas práticas e nas exigências
confessionais.
Nesse contexto, a escola compartilhada pelas diferentes culturas é um espaço orgânico com
especificidade e compromisso educacionais, e com narratividade simbólica em que ecoam múltiplas
vozes. Para LOURO (1997),

A escola delimita, servindo-se de símbolos e códigos. Ela afirma o que cada um


pode (ou não pode) fazer, ela separa e instituí. Informa o “lugar” dos pequenos e
dos grandes, dos meninos e das meninas. Através dos quadros, crucifixos, santos
ou esculturas, aponta aqueles que deverão ser modelos e permite que os sujeitos
se reconheçam (ou não) nesses modelos (p. 58).

A escola tem o compromisso de refletir as individualidades de seus sujeitos e como missão


propor o respeito à alteridade e à diversidade, assim como constituir-se espaço de produção cultural e
encontro de identidades diferenciadas.
Sabemos que os professores, no espaço de sala de aula, se comprometem a trabalhar, além
dos conteúdos curriculares, temas transversais como a cultura ao mesmo tempo global e diversa da
contemporaneidade. Queremos ver como é realizada tal mediação docente na relação com a
identidade árabe. Que olhar é dado aos sujeitos de origem árabe? Como são valorizadas suas
singularidades, hábitos, tradição, credo? Como é tratada a diferença, quando a família árabe e a
própria criança manifestam sua cultura e sua identidade? Queremos compreender melhor esse
sujeito contemporâneo, estrangeiro em sua origem, que interage com o localismo regional e cujos
filhos desenvolvem uma identidade multifacetada construída na tensão entre a mundialização e a
busca da preservação das raízes particulares.
Contextualização

Todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o desenvolvimento


conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do
sentimento de pertencer à espécie humana (MORIN, 2002c, p. 55).

A educação constituída na e pela modernidade teve como tarefa a conformação de uma


cidadania universal, usando a escola para formar um cidadão homogêneo. Segundo Hall (1999, p.10),
no século XIX, “era o sujeito do iluminismo, numa concepção de pessoa humana como um indivíduo
totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, consciência e de ação”, cuja
centralidade era o “contínuo e idêntico”, isto é, o essencial do eu era a identidade da pessoa.
Hoje percebemos a dificuldade de definição do sujeito como portando uma identidade única.
Com a globalização, ocorre um deslocamento do que se considera identidade cultural única,
permanente, homogênea. Se por um lado, o global – impondo a lógica da igualdade de valores,
hábitos e costumes – sufoca o local, o individual, e a diversidade, por outro lado, a chamada pós-
modernidade se apresenta multicultural.
Paulo Ricouer (1997) aborda a identidade dizendo que é impossível entender identidade sem
distingui-la sob dois prismas: “o formal, substancial, a identidade idem ou mesmidade e outra, que se
modifica através do tempo, a identidade ipsei, ipseidade. A primeira remete ao substancial da
humanidade”. Mesmo que permaneçamos na esfera da identidade mesmidade, a alteridade de
qualquer outro não oferece nenhuma originalidade. Nesta instância está a nossa condição de
indivíduo, de humano. A segunda identidade é aquela que nos permite ser outro na trajetória humana.
Ela é dinâmica com poder de mudança e evolução. Desde o plano da ipseidade, a alteridade pode
chegar a ser constitutiva de nós mesmos, no sentido de ser impossível falar de um sem pensar no
outro. Assim, de tal ótica, a identidade pessoal como ipseidade remete ao outro, aquilo que se
expressa na fórmula eu mesmo enquanto outro. É a ipseidade que nos oferece a condição de evoluir
enquanto pessoa, de mostrar a diferença, de mobilizar características culturais, pessoais, culturais,
sociais próprias.
Edgar Morin, por sua vez, define a identidade de um indivíduo em um conceito de dupla
entrada, em que pesam tanto sua identidade particular quanto a parte que assume na identidade do
todo em que se insere.

o um tem uma identidade complexa (múltipla e una ao mesmo tempo). As partes


[...] têm dupla identidade. Elas têm sua identidade própria e participam da
identidade do todo. Por mais diferentes que eles possam ser, os elementos ou
indivíduos constituindo um sistema têm pelo menos uma identidade comum de
vinculação à unidade global e de obediência às suas regras organizacionais”
(MORIN, 2002b, p. 149).

Assim, com base nos conceitos dos dois autores, podemos afirmar que o processo de
formação do sujeito dá-se a conhecer pelos desafios nascidos da relação dialógica entre a condição
individual e a condição coletiva, isto é, entre e mesmidade e a ipseidade segundo Ricouer ou na
identidade complexa segundo Morin. Importa reconhecermos que a criança deve ser ela mesma, a
partir do espaço multicultural que a escola lhe oferecer para que vá se construindo cidadão do
mundo.
O espaço escolar deve atender às exigências educativas de propiciar um olhar à diferença, à
diversidade, e de propagar o respeito ao multiculturalismo, conforme defende Delors (1996, p. 42) no
relatório da UNESCO quando diz: ”a exigência de verdade, que leva ao reconhecimento de que os
grupos humanos, povos, nações, não são todos iguais, por isso mesmo, obriga-nos a descobrir que
os outros povos têm uma história, também rica e instrutiva”. O conhecimento das outras culturas
torna-nos, pois, conscientes da singularidade da nossa própria cultura, mas também da existência de
um patrimônio comum ao conjunto da humanidade.
A cidadania global se constrói entre muitas fronteiras. Este conceito é explicado por Santos
(2002):

Os processos de globalização só podem produzir uniformidade se produzirem, ao


mesmo tempo, diferença: assim a superação de fronteiras faz-se inevitavelmente,
através da produção de fronteiras. Não pode haver um simples contraste entre a
ordem cultural 'deles' e a 'nossa', uma vez que aquela é gerada como objeto
cognoscível a partir do interior da 'nossa' ordem cultural. A divisão entre o 'nós' e
'ele' funciona como uma imagem de espelho (p.486).

O universo educacional deve compreender que o mundo se organiza e se enriquece dentro


dos vários espaços de fronteira. Espaços esses que não são tão firmes, nem tão fixos, e que, ao
mesmo tempo que nos permitem reconhecer o outro – que pode ser o árabe, o espanhol, o índio, o
branco, o preto – constroem a subjetividade – o eu. A idéia de fronteira é um mediador da
comunicação, um espaço habitável em que o eu e o outro encontram possibilidades de partilha e,
assim, a possibilidade de dar origem às novas configurações de identidade.
A educação deve valorizar o pluralismo cultural, apresentando-o como uma fonte de riqueza
humana: os preconceitos raciais – fatores de exclusão e de violência – devem ser combatidos através
da partilha de conhecimentos sobre a história, os significados, os simbolismos e os valores das
diferentes etnias.
Por outro lado é necessário compreendermos como e onde é produzido o significado das
diferenças culturais. Como a escola percebe as relações dialógicas entre a criança e a família de
origem árabe e o meio em que estão inseridos? Para Hall (1997, p. 2), “nosso circuito da cultura
sugere que, na verdade, os significados são produzidos em diversos lugares e circulam através de
diversos processos ou práticas. O significado é o que nos dá senso de nossa própria identidade, de
quem somos e a quem pertencemos, portanto está atado a questões sobre como a cultura é utilizada
para demarcar e sustentar a identidade e a diferença entre os grupos.” O significado é
constantemente produzido e há um permanente intercâmbio em cada interação social da qual
tomamos parte”.
Queremos compreender, através desta pesquisa qualitativa, como os professores percebem
esse processo no contexto escolar e, mais especificamente, na sala de aula, onde ecoam as vozes
infantis com suas linguagens e representações.
O problema da pesquisa
O problema desta pesquisa qualitativa se constituiu em: Como o professor dos jovens
estudantes – da educação infantil e das séries iniciais do ensino fundamental – percebe, no espaço
da sala de aula, a construção da identidade da criança de origem árabe?

Os objetivos da pesquisa
Os objetivos da pesquisa foram:
• Identificar a percepção do professor da criança de origem árabe sobre sua inserção no contexto
escolar e suas relações com os diferentes elementos que constituem esse contexto;
• Conhecer a maneira como, na visão dos professores, a escola trata a criança de origem árabe,
em minoria em relação às crianças brasileiras na sala de aula;
• Descrever como a escola, representada em sala de aula pelo professor, desenvolve maneiras de
valorizar peculiaridades culturais da criança árabe;
• Identificar as estratégias desenvolvidas pela escola para se relacionar com a família da criança
árabe;
• Descrever como a escola desenvolve práticas de inserção da criança de origem árabe e de sua
família no contexto escolar.

Questões norteadoras
1.Qual é a percepção que o professor tem da criança de origem árabe no contexto escolar?
2.Qual é a visão do professor sobre a relação da criança árabe com seus colegas?
3.Como o professor avalia o tratamento que seus colegas de trabalho dão às crianças de origem
árabe?
4.Que percepção o professor tem da relação entre a escola e a família da criança de origem árabe?

Abordagem e procedimentos de pesquisa


Esta investigação, um estudo de caso, tem cunho construtivista (LINCOLN e GUBA, 1985),
também chamado de qualitativo. Segundo Engers, o paradigma construtivista de pesquisa aceita o
conhecimento “tácito” dos participantes, suas visões de mundo e seu conhecimento construído ao
longo da vida. Esse paradigma de pesquisa “não visa à generalização, contempla a pesquisa em seu
ambiente natural, utiliza a análise indutiva dos dados na busca da compreensão e assume a
subjetividade do pesquisador” (ENGERS, 2000, p. 138).
Optou-se pelo paradigma qualitativo, porque ele proporciona uma visão holística do problema
estudado. Essa visão holística é o que Alves-Mazzotti e Gewandsznajder (2001) definem como a
compreensão do significado de um comportamento ou evento, que somente é possível através da
compreensão das inter-relações que emergem no contexto estudado.
O que motivou as pesquisadoras foi o objetivo de se ter uma visão êmica das crianças de
origem árabe que freqüentam as escolas católicas da rede privada do município de Uruguaiana, no
Rio Grande do Sul. Buscamos um estudo desses sujeitos no ambiente em que circulam e uma
compreensão das inter-relações que estabelecem no meio em que estão inserido.
Desse estudo resultou a emergência de uma teoria que segue os dados, a chamada de
grounded theory – aquela que se manifesta a partir dos dados – e que confluiu para a elaboração de
um relatório que inclui proposições para a formulação de futuras políticas possíveis nas escolas com
relação ao tema pesquisado. Sendo assim, a abordagem escolhida foi o estudo de caso, que
representa, segundo Lincoln e Guba, 1985, “uma fotografia instantânea da realidade”.

Seleção dos participantes


Participaram da pesquisa 10 professoras de educação infantil e de séries iniciais do ensino
fundamental de três escolas confessionais católicas da rede privada do município de Uruguaiana –
Colégio de Primeiro Grau Nossa Senhora do Horto, Colégio Marista Sant'Ana e Instituto Laura Vicuña
– selecionadas intencionalmente. Acreditamos que a percepção que as professoras têm da criança de
origem árabe é são referenciais fundamentais para o desenvolvimento de nosso estudo. A professora
é – de todos os membros da comunidade escolar e agentes do processo educativo – a pessoa mais
próxima dos alunos durante os anos iniciais de sua educação formal, e seu relacionamento com as
crianças contribui de maneira determinante para a construção de sua identidade. Assim,
consideramos que compreender o modo como a professora enxerga seu aluno de origem árabe nos
auxilia a conhecer melhor o processo de construção da identidade dessas crianças.

Procedimentos e técnicas de coleta de dados


A coleta de dados ocorreu por meio da realização gravada de entrevistas pré-estruturadas
consistindo de cinco perguntas (ver modelo em anexo), que foram posteriormente transcritas. As
transcrições não registraram apenas as palavras das professoras entrevistadas, mas tentaram
assinalar seus trejeitos característicos, além de suas pausas e hesitações. Acreditamos que essas
peculiaridades da língua falada podem nos revelar muito sobre a ideologia e os sentimentos das
professoras a respeito dos temas investigados.
Os dados coletados foram analisados e interpretados com base na análise de conteúdo de
Bardin com adaptações de Engers (ENGERS, 1987). A sistemática utilizada para a análise passou
numa primeira etapa pela leitura e releitura das transcrições para a impregnação dos conteúdos,
caracterizando-se essa atividade por um ir e vir entre a leitura das entrevistas e a dos aspectos
teóricos analisados, para poder compreender os conteúdos latentes das entrevistas, dos significados
e dos significantes dos discursos e, assim, poder compreender as percepções dos entrevistados. É o
que Bardin chama de “análise flutuante”. O segundo passo se configurou em uma análise vertical,
consistindo em analisar as respostas de cada participante da pesquisa, marcando-se as expressões
mais relevantes. A terceira fase da análise de conteúdo foi a análise de cada item para todos os
participantes (análise horizontal). Após essas etapas realizou-se uma síntese, destacando-se os
pontos de vistas diferenciados dos participantes, o que culminou na emergência de seis categorias
(ENGERS, 2003).
Procurou-se, na análise de conteúdo realizada, observar o conteúdo manifesto, assim como o
conteúdo latente (MORAES apud ENGERS, 1994), objetivando realizar uma interpretação dos dados
encontrados, no sentido de compreendermos as subjetividades e os significados implícitos.

Resultados
A análise do conteúdo das respostas das professoras às entrevistas semi-estruturadas fez
emergir seis fatores principais que contribuem para a construção da identidade da criança de origem
árabe em seu espaço escolar.
É importante ressaltar que esses seis fatores não emergiram como categorias separadas e
impermeáveis umas às outras, mas sim como elementos em constante inter-relação. Percebe-se uma
rica conexão dialógica e recursiva (MORIN, 2002a) entre os constituintes da formação da identidade
da criança árabe. Embora cada um dos fatores mencionados acima concorra com os demais nesse
processo, eles ao mesmo tempo complementam e influenciam uns aos outros, deixando perceber
uma relação de causalidade não linear, mas circular e interdependente, como tentamos expressar
através de nosso esquema.
Já durante os procedimentos de análise das respostas que as professoras deram às
perguntas da entrevista percebemos que, embora cada categoria se manifestasse de modo bastante
claro para nós, uma categoria só produziria sentido em sua relação com as outras. Em determinadas
ocasiões, compreendemos que um mesmo fragmento de discurso poderia ser encaixado em mais de
uma das categoria, o que para nós demonstrava a estreita relação entre elas.
Assim, na discussão dos resultados, embora tenhamos separado as categorias para fins de
clareza, tentaremos evidenciar a complexidade do fenômeno da construção da identidade da criança
árabe, que ocorre como uma emergência das inter-relações existentes entre os seguintes elementos:
a criança, a família, a cultura, a religiosidade, a escola e a professora.

1. A CRIANÇA DE ORIGEM ÁRABE NO AMBIENTE ESCOLAR


O primeiro elemento construidor da identidade da criança de origem árabe que observamos
emergir das falas das professoras foi a própria criança, em seu movimento na sala de aula, sua
percepção de suas próprias origens, costumes e tradições, e seu relacionamento com os colegas e
professores.
Foi possível constatar que os alunos mais jovens têm pouca ou nenhuma consciência de
suas especificidades culturais. “Ela não mencionou ser árabe nem quando trabalhamos a família”,
relata E, professora de uma aluna de origem árabe de 4 anos. “Nos menores, a diferença é
imperceptível”, concorda J, professora do Jardim B e da 4a. Série. Como as crianças aprendem a
língua portuguesa rapidamente e raramente falam com algum sotaque, sua comunicação com os
companheiros é fácil e natural.
A compreensão de seus traços distintivos em relação às crianças não árabes parece ser
construída em um processo contínuo, paralelo ao desenvolvimento físico, intelectual e afetivo das
crianças. Os alunos das séries iniciais do ensino fundamental já demonstram ter maior entendimento
das origens de sua família e de seus costumes e tradições.
Algumas educadoras relataram que as crianças de origem árabe mais maduras se sentem na
responsabilidade de informar as mais jovens a respeito das diferenças, especialmente as religiosas.
“A criança cobra do colega árabe e, até tenta explicar para os outros colegas porque não vão à
capela: nós não somos católicos, [...] somos árabes” conta a professora A, do maternal, referindo-se à
tradição da escola de oferecer a seus alunos um momento semanal de espiritualidade. A professora B
narra que tinha uma aluna de origem árabe cuja família permitia que fosse à capela com seus
colegas. A criança, porém, deixou de participar das orações devido à insistência de uma colega mais
velha, e a professora D complementa: “Era época de Páscoa. Na hora do sinal da cruz a pequena
tentava imitar os coleguinhas e a grande baixava a mãozinha da irmã e dizia pra ela que não podia
fazer”. Assim, percebemos que as crianças de origem árabe também constroem conhecimento a
respeito de sua identidade cultural no convívio com seus pares mais experientes.
Mesmo após desenvolverem a consciência de suas peculiaridades, as crianças diferem na
comunicação desses traços distintivos. “Muitos alunos já estão totalmente inseridos na cultura local e
não praticam as tradições árabes”, aponta a professora J. Já outras crianças demonstram orgulho de
suas tradições e têm satisfação em compartilhar seus conhecimentos sobre a dança, a culinária e a
religião com os colegas e com a professora, esclarecendo dúvidas e se oferecendo para trazer fotos
de seu país de origem. “Eu sentava com [o aluno] e fazia perguntas, que ele tinha o maior prazer em
responder”, diz a professora C, da 2a. série.
Segundo Imbernón (2004), uma proposta multicultural não consiste apenas em reconhece
que a sociedade é plural e diferenciada e em agir respeitosamente perante a diversidade, mas se
constitui também em promover as diferenças culturais, buscando uma relação satisfatória de
convivência entre os diversos grupos. Ou seja, promover o multiculturalismo não é diluir as diversas
culturas, porém abraçá-las e valorizá-las.
Todas as professoras entrevistadas declararam ver o relacionamento das crianças de origem
árabe com seus colegas como natural e tranqüilo, “inclusive as meninas”, ressalta a professora J –
que conhece mais profundamente o universo da comunidade árabe uruguaianense por ser casada
com um de seus membros – referindo-se à conhecida diferença de comportamento existente entre
homens e mulheres esperada em alguns países do Oriente Médio. A opinião das educadoras é que
essas crianças se integram à turma e à escola, e que, em geral, brincam e realizam suas tarefas de
modo espontâneo e confortável. Seus colegas demonstram curiosidade, por exemplo, por sua
merenda quando é uma comida típica, e respeitam o modo peculiar como expressam sua
religiosidade.
Essa atitude geral de respeito à diversidade não impede, porém, que vez ou outra algum
conflito possa ocorrer. Uma professora da 3a. série relatou que, por ocasião dos incidentes de 11 de
setembro de 2001 um aluno da turma agrediu seu colega de origem árabe, demonstrando franco
desprezo pelo povo muçulmano. O menino agredido ficou muito magoado e o incidente repercutiu
fortemente nos relacionamentos da sala de aula. A professora interveio no conflito para auxiliar os
dois alunos a resolvê-lo.
Um tipo conflito bem menos grave, porém bastante mais usual, ocorre devido ao costume
uruguaianense de se referir aos imigrantes de origem árabe pelo termo “turco”, que tem, às vezes,
sentido jocoso e pejorativo. Em outras ocasiões, revela apenas um costume. As crianças reagem
imediatamente à alcunha: “Não, eu não sou turco, eu sou árabe”, é o que elas dizem para a surpresa
de seus companheiros. Quando os colegas demonstram não saber a diferença entre as duas etnias,
as crianças se dispõem a explicar.
O direito à diferença, segundo Imbernón (2004), é ao mesmo tempo o direito à igualdade. O
autor explica essa afirmação aparentemente contraditória defendendo uma aprendizagem dialógica,
que tem como encargo estimular o diálogo entre as diferentes culturas com vistas à acitação da
alteridade como o fundamento da interação.

2. A FAMÍLIA DE ORIGEM ÁRABE


É unânime o reconhecimento da riqueza das muitas relações sócio-culturais que circulam nos
variados ambientes sociais. Assumir a irreversibilidade do fenômeno da multiculturalidade e a
importância que ele assume em nossas vidas acarreta um debate sobre a emergência de um dilema.
Para Touraine (apud Bolívar, 2004, p.10):

É preciso, por um lado, que as identidades particulares possam expressar-se no


espaço público, no qual a escola está inserida e, por outro, que a igualdade esteja
associada à eqüidade e à diferença. Por isso movemo-nos na tensão entre o ideal
moderno da igualdade (identidade universal) e o ideal pós-moderno da diferença
(identidade distintiva) produzida pela globalização.

Esse processo produz um sujeito pós-moderno que para Hall (1999, p.12), não tem uma
identidade fixa, essencial e permanente. “A identidade torna-se uma celebração móvel, formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados
nos sistemas culturais que nos rodeiam”.
O estudo indica que as famílias árabes chegam à escola, são bem recebidas e convivem
naturalmente: “A família não é só bem recebida, como é aceita. Tem muito diálogo. Faz-se uma
entrevista no momento da matrícula e os pais têm oportunidade de expor a sua cultura e o que eles
esperam da escola” atesta a professora E.
Os pais respondem de modos diferentes em relação ao acompanhamento escolar dos filhos.
Assim a professora H se expressa: “algumas família participam das festividades da escola e são
presentes, preocupadas com o desenvolvimento da criança”. “Outras famílias são ausentes, não
reivindicam a valorização de sua cultura”. Algumas das professores salientaram a ausência de uma
assistência mais próximo da família em relação às atividades escolares do filho: “como eles não tem
horário, trabalham bastante, ela [a criança] chega atrasada, ninguém olha o caderno, ninguém olha
nem isso nem aquilo. Hoje já olham porque a gente [a escola] interferiu. Pedimos para não chegar
atrasada. A família deu um jeito”. Assim, a professora evidencia a prática adotada pelas escolas
quando se sente que a devida orientação não está ocorrendo.
A pesquisa evidenciou a predominância de uma família árabe que vive a tensão entre a
necessidade de cultivar e preservar a identidade narrativa de origem, no caso, a mulçumana, quando
os pais fazem determinadas exigências e assim marcam a diferença, em especial, relativas à religião.
As professoras A e B deixaram claro essa questão nas suas falas: “Têm alguns que em determinadas
horas, em determinados trabalhos, eles lembram que são árabes. Eles deixam bem claro a parte da
religião, das coisas que eles querem que sejam cobradas e respeitadas, principalmente, quando
vamos à capela”. “... pois tem outro problema que a família coloca que não quer que ela [a criança]
faça isso que não quer que ela vá á capela”.
A professora G narra um episódio em que a mãe de seu aluno de origem árabe lhe pediu que
mencionasse em aula um aspecto característico de sua cultura. “Eu vinha de carro com ela [mãe de
aluno árabe], e ela me colocou: hoje é o nosso natal. E eu disse: vou chegar e colocar sobre o natal
[do aluno}. E ele ficou numa alegria por eu ter valorizado na salinha o natal dele”.
A família árabe vive o dilema existencial entre imergir na integração e mundialização de
costumes e a responsabilidade de comungar as raízes, relatá-las aos filhos, expressá-las, mesmo
que o território seja de estranheza. Assim se expressa a professora J: “A gente respeita”, referindo-se
à religião do aluno árabe, “... mesmo porque eu já tenho essa experiência, que eu sou casada com
um muçulmano. Meu filho também vive esse dilema entre as duas religiões, as duas culturas, então
como eu conheço, eu procuro respeitar”. Este fato é explicado por DELORS (1996 p. 41):

A rápida transformação das sociedades humanas a que assistimos na charneira


de dois séculos, dá-se em dois sentidos: no sentido da mundialização, como
vimos, mas também no sentido da busca de múltiplas raízes particulares. Cria
também, naqueles que a vivem ou tentam geri-la, um leque de tensões
contraditórias num contexto de completa alteração.

A família vive numa linha de fronteira, de construção de sua cidadania, quando prescreve
algumas exigências à escola, entre elas a questão da religião. Implicitamente, sabe que o filho, ao
ingressar e educar-se em uma escola ocidental e confessional estará sujeito à emergência das
influências sociais, ideológicas, religiosas e culturais predominantes nas vozes da escola, contudo,
reivindica o respeito à identidade árabe. Colabora com a reflexão a professora D: “Então em algumas
atividades, eles não participam. No geral, são crianças normais. Os pais solicitam que eles não
participem de algumas celebrações religiosas”. Essa mesma questão é levantada pela professora G
quando diz que o sinal da cruz realizado em sala de aula incomodou a família árabe. A mãe árabe foi
conversar com ela e colocou que o filho estava fazendo o sinal da cruz e “o pai não estava gostando
dessa postura”.
Em um outro momento de impregnação, surge um aspecto significativo que representa as
funções paterna e materna, diferentes das costumeiras e usuais nas comunidades ocidentais. A
presença paterna árabe, na relação família-escola é muito forte. É o pai que faz a matricula, é o pai
que mais vezes comparece para dialogar com a escola. A voz das professoras F e E confirmam a
análise: “... no início do ano, o pai perguntou se deveria comprar o livro. E resolveu comprar e disse
que o filho iria assistir à aula de ensino religioso normal”. “... e o pai se propôs a isso na entrevista.
Ele me falou que não gostaria que ela [a filha] participasse, que eles tinham o culto deles”.
Essa é uma linguagem que remete à marcada diferença em relação à representação familiar
ocidental. A mãe ocidental sempre esteve mais perto da vida escolar dos filhos, embora as mudanças
da pós-modernidade apontem para a divisão das tarefas domésticas entre homens e mulheres.
Sabemos que a comunidade árabe em Uruguaiana – em especial a feminina – recebe a influência da
globalização, da fronteira das inter-relações e dos novos valores conquistados pela mulher do mundo
ocidental. Porém, as falas das professoras deixam percebem a ainda grande diferença entre homens
e mulheres. A mulher árabe não possui a mesma posição social e familiar da maioria das mulheres
ocidentais. Algumas aparecem na escola somente nas festas; uma minoria é participativa; uma ou
outra tem até dificuldade para se expressar oralmente, pois não domina o Português, o que dificulta a
comunicação com a escola. A questão perpassa a fala da professora F: “O menino se refere à figura
masculina do pai, pouco da mãe. Aí eu pergunto e ele diz ‘meu pai’ e eu pergunto pela mãe e ele diz
que a mãe fala pouco, que ela fala em inglês e árabe, e que ele entende pouco e, muitas vezes, ela
entende pouco”.
O ambiente escolar, apesar de suas especificidades deve ser para criança – que precisa sair
do egocentrismo, das exclusividades afetivas, do individualismo infante – um prolongamento do
ambiente familiar. O discurso de um segmento social não pode excluir o discurso do outro. A
compreensão solidária para com a família árabe deve se constituir em um dos objetivos educacionais
de respeito à diversidade cultural. Reconhecer suas características dando importância às suas
idiossincrasias e às suas diferenças é papel da escola, que assim facilita a formação da criança que
ali foi acolhida e que necessita formar-se sujeito.

3. A CULTURA ÁRABE
Hall (2002, p. 2) afirma que “os significados estão sempre mudando quando nos deslocamos
de uma cultura para outra, de uma língua para a outra, de um contexto histórico, uma comunidade,
grupo ou subcultura para outra”. Os significados culturais de um povo se manifestam de diferentes
maneiras e dizem respeito ao modo de vida de uma comunidade, nação ou grupo social, dentro de
uma visão antropológica. Para o autor (1997), a palavra cultura pode ser usada para descrever os
valores partilhados de um grupo ou sociedade. As ciências sociais e humanas têm assinalado para a
importância do significado que a comunidade manifesta.
As professoras referem-se aos aspectos mais relevantes da cultura árabe: a culinária, a
religiosidade, o trabalho junto ao comércio e a tradição. “Eu acho que mais se destaca em sala de
aula é a religião e a comida” (professora A). “Quando a gente faz a oração na escola e, em alguma
reflexão, quando a gente tem que fazer algum trabalho na capela, aí sim então eles começaram a
colocar um pouco dessa cultura deles” (professora D).“A questão da culinária é forte. Na outra
experiência que eu tive na outra escola..., as mães traziam para a gente experimentar a comida
árabe e elas traziam doces, comidas de sal e é uma forma delas valorizarem aquilo e fazerem a
gente conhecer e valorizar também” (professora H).
Outro aspecto levantado na pesquisa poderia, por analogia, constituir-se até mesmo em um
rito de passagem: “o ir à Terra”. Bakhtin (apud Smolka e Goes, 1996) destaca que os sentidos de
uma palavra não existem em si mesmo, como algo já dado. Eles são elaborados nas enunciações
concretas que são sempre parte de um diálogo social ininterrupto. Os interlocutores têm sempre um
horizonte social e uma audiência (mesmo que potencial) que configuram as trocas verbais de acordo
com as diversas esferas da prática e que delimitam o que pode ser dito e o que não pode ser dito. A
significação carrega consigo as marcas dessas condições sociais.
A família árabe ou membros dela voltam freqüentemente ao Oriente Médio. Lá buscam suas
raízes, procuram laços culturais, afetivos, econômicos. Ir à Terra representa um deslocamento
necessário para o encontro com o outro, ao mesmo tempo possui um sentido de pertença. É preciso
encontrar significados do que seja ser árabe, ser palestino. Então, ir à Terra para estudar; ir à Terra
para encontrar os parentes; ir à Terra para passear, torna-se um compromisso que dá sustentação à
construção da identidade árabe. Nesse sentido, a professora B se expressou: “Quando tudo se
acomodou, que a criança ficou bem, estava aprendendo, eles foram para a Síria. Aí não voltariam,
mas voltaram”. “Tinha um menino... eu não sei se ele era danado mesmo ou por influência árabe. Aí
ele foi pra Terra. O pai mandou pra lá e lá não quiseram ficar com ele. Hoje eu acho ele bem calmo”.
A professora H comenta sobre uma colega e mãe de um aluno de origem árabe da escola: “...
essa colega nossa nunca foi lá, para a Terra, como eles chamam, mas ela parece que já foi lá,
porque ela fala de lá como se já estivesse estado lá. Ela absorveu toda a cultura do mundo árabe. [...]
Porque eles têm outra concepção. Que quando eles forem para a Terra, tudo vai ser ensinado lá...” A
professora F complementa: “Às vezes, eles vêm de uma outra cultura, da Terra como eles dizem e
caem pra nós".
“Ir à Terra” tem um significado simbólico intenso, produzido pelo jogo das linguagens, remete
à necessária e vital realimentação da identidade árabe, que se desloca a fim de partilhar novos
sentidos culturais.
Um fato que perpassa a fala de todas as docentes entrevistadas é a abertura oferecida pela
escola, e apreciada pelas crianças, para o compartilhamento dos aspectos culturais que diferenciam
um grupo étnico do outro. Nas festas da escola, em especial as que valorizam as etnias e a
diversidade cultural, as crianças sentem prazer em apresentar a indumentária árabe e a família
colabora para apresentar os trajes característicos, símbolo da tradição cultural islâmica.
Segundo o atual presidente da Sociedade Beneficente Árabe Palestina Brasileira de
Uruguaiana, a cidade oferece para a comunidade árabe, além da posição geográfica privilegiada,
uma certa identificação cultural com os gaúchos residentes no oeste do Estado. As indumentárias,
por exemplo, guardam semelhanças no uso da bombacha e do lenço no pescoço. A chula, dança
característica da fronteira-oeste, é muito semelhante à dakaa, tradicional dança árabe. E ainda há a
especial relação do homem com seu cavalo, comum às duas culturas (FANTI, 2004).
Essas similaridades não chegam a ser coincidência. Devemos lembrar que por mais de sete
séculos os povos árabes ocuparam o sul da Espanha, de onde saíram boa parte dos primeiros
habitantes da região oeste do Rio Grande do Sul. O encontro dos árabes com os gaúchos pode ser
interpretado como um re-encontro de culturas que têm uma raiz em comum. Segundo Fernando
Savater (2000), as culturas não são insolúveis. Elas mesclam e se contagiam umas pelas outras, e
isso constitui nossa civilização humana.
Assim, apesar das peculiaridades das culturas, existem raízes humanas profundas que são
compartilhadas. Enquanto a humanidade comum é constituída por aqueles aspectos da espécie
humana que são únicos e irrepetíveis, a diversidade cultural – que se compõe de diferentes modos
próprios de expressar a raiz humana comum – é o que dá variedade e sortimento à humanidade.

4. A RELIGIOSIDADE
As falas das educadoras entrevistadas apontam para um paradigma cultural fortemente
cristalizado no discurso das famílias árabes: a religião islâmica4. A identidade árabe se explicita e é
defendida pela maioria das famílias, as quais não hesitam em informar que preservar a religião
muçulmana na criança árabe é fundamental. Tal atitude define a fronteira da diferença reconhecida
pela professora H: “a cultura árabe na nossa região é bem forte, eu acho que é uma das culturas que
mais a gente pode perceber nuances. A questão da religião é um fator preponderante, que ressalta”.
E pela professora D, “eu tenho três crianças de origem árabe. Eu não vejo nada de diferente na
maneira deles agirem, a não ser na parte como a gente faz a oração na escola e, em alguma
reflexão, quando a gente tem que fazer algum trabalho na capela. Aí sim, eles começam a colocar
um pouco dessa cultura deles”.
É perceptível a resistência da comunidade árabe local às influências das escolas
confessionais católicas, por conseguinte, à provável ocidentalização e cristianização dos costumes e
crenças religiosas.
Os pais reivindicam da escola particular, respeito à diferença religiosa como demonstra a fala
da professora D: “Os pais solicitam que eles não participem das cerimônias religiosas”.
A maioria das mães colabora nessa imposição. Uma delas se propôs a divulgar na escola o
mito de Noé, diz a professora A: “Eu lembro a história da Arca de Noé em que a mãe me deu uma
aula digamos assim da religião deles. Ela quis me dizer que é a mesma coisa, porém com palavras,
nomes diferenciados e que poderia contar aos alunos”. Continua a professora: ”As mães gostam de
mostrar na escola católica que eles têm a religião deles”.
“Eles têm uma marca em determinadas coisas, bem claras, que é a parte da religião”, coloca
a professora A. Como as crianças maiores cobram das menores posturas religiosas diferenciadas dos
demais colegas – como mencionado anteriormente – as crianças árabes de tornam bastante retraídas
nos momentos de espiritualidade. A professora J nos conta, com certa tristeza, que em épocas de
festas cristãs tradicionais como o Natal, as crianças de origem árabe ficam abatidas e se sentem
perdidas, pois percebem a alegria dos colegas, mas não conseguem experienciar e compartilhar
esses sentimentos, que não fazem sentido em sua cultura.
Outro aspecto referendado pelas professoras é o rito do Ramadã 5: “As mães gostam de
mostrar na escola católica que eles têm a religião deles. Nesse momento estão no período do
Ramadã e as crianças maiores já estão fazendo” (professora A).
4
Larousse Cultural (1999). O Islamismo foi fundado por Maomé na Arábia no século VII e difundiu-se na Ásia,
África e Europa. Estima-se em mais de 500 milhões o número de muçulmanos, o que representa um nono da
população mundial. Maomé recebeu de Deus a revelação corânica. O Corão ou Alcorão e o Hadith (tradição do
poeta) formam a tradição que serve de modelo aos muçulmanos. O dogma principal do Islã é a existência de
Deus (Alá), ser supremo único, infinitamente perfeito, criador do universo (p.3238).
5
Ramadã. O nono mês do ano muçulmano, mês de jejum. A abstinência total de alimentos, bebida, fumo,
perfume, e de relações sexuais dura do alvorecer ao entardecer.
§ A polifonia das vozes árabes, reiterada pelo discurso docente, remete à identidade do sujeito
árabe que se configura no respeito à religião, sobre o qual não abrem mão. A religiosidade, os mitos e
os ritos marcam a diferença e servem como estratégias de manutenção identitária da cultural árabe.
LOURO (1997, p. 43) afirma que “no interior das redes de poder, pelas trocas e jogos que constituem
o seu exercício, são instituídas e nomeadas as diferenças e desigualdades. Certamente essas
distinções se referem às várias categorias ou aos diversos marcadores sociais: gêneros, classe,
sexualidade, aparência física, nacionalidade, etnia“. É provável que a religião para o mundo
muçulmano represente o divisor de águas entre o ocidente e o oriente; entre o cristianismo e o
islamismo; entre Cristo e Maomé.

5. O ESPAÇO ESCOLAR
O paradigma da complexidade proposto por Edgar Morin em seu Método 1 (MORIN, 2002b),
coloca que, à luz de uma abordagem complexa, a inteligibilidade dos seres é uma concepção aberta,
que se constitui em uma relação dialógica com a alteridade. Nessa relação identidade-alteridade há
um terceiro incluído que é o ambiente. Com base nesse conceito, podemos afirmar que a identidade
da criança árabe se constrói, na escola, em sua relação com as outras crianças e com os
professores, que constituem a alteridade. Podemos afirmar também que o contexto escolar – o
ambiente – interfere nessa relação de modo determinante.
Assim, para promover uma experiência rica para todos os envolvidos no processo
educacional, a escola deve realizar uma prática pedagógica que tenha como suporte um espaço
sócio-cultural centrado nas crianças e seu desenvolvimento, com especial atenção às relações que se
estabelecem entre elas e o que está ao seu redor – professores, demais colaboradores da escola,
outras crianças, e o próprio espaço escolar. Sob essa ótica, a escola é, outrossim, um espaço de
relacionamentos que se tramam entre seres que são diferentes entre si, e também de
reconhecimento e valorização dessas diferenças.
Nossa investigação deixa transparecer que o aluno árabe – assim como qualquer criança –
recebe um bom acolhimento desde seu primeiro momento na escola. “A família não é só bem
recebida como é aceita”, coloca a professora E. A professora C também enfatiza o acolhimento e a
valorização dos alunos árabes pela escola e pelos professores quando diz: “Olha, o que eu acho é
que dão bastante atenção”. A professora F se refere ao tratamento dispensado às crianças de origem
árabe como um “olhar normal como se dá a qualquer criança, os professores tratam do mesmo jeito
todas as crianças”, enfatizando a rigorosa igualdade de tratamento que é o objetivo da instituição. As
falas das educadoras demonstram que há uma preocupação em receber bem esses alunos e seus
pais, para que eles se sintam bem na escola desde seus primeiros contatos.
A boa acolhida parece se prolongar para o relacionamento quotidiano da escola com os
alunos de origem árabe e suas famílias. “Aqui [na escola], eu acho que o relacionamento é ótimo,
todos, desde a direção, professores”, testemunha a professora B. A professora I compartilha desse
ponto de vista ao afirmar que “eles são bem participativos, são atuantes e não se sentem
discriminados”. “Eles gostam de estar na escola”, resume a professora H.
Nesse sentido, uma narrativa significativa partiu da professora C, que tinha um aluno que já
havia estudado em uma escola na Palestina. A professora conta que seu aluno em certa ocasião
comentou com ela “se eles [os outros colegas] conhecessem como são realmente as escolas na
minha Terra, eles iam ver que aqui eles são tratados assim com o maior carinho, porque lá eles
batem, e o menino é separado da menina”. O menino, ao comparar as duas realidades escolares,
reconhecia que se sentia melhor acolhido e melhor tratado no Brasil.
Durante as entrevistas, as educadoras demonstraram perceber – embora sem compreender
com profundidade – as peculiaridades na cultura e na religiosidade de seus alunos de origem árabe, e
falaram com naturalidade sobre seu relacionamento com as famílias. É perceptível sua preocupação
em valorizar a riqueza de sua cultura e os benefícios que acreditam que a interação dos diferentes
grupos étnicos presentes na escola pode trazer para todo o processo educacional.
Através dos discursos das educadoras entrevistadas, podemos perceber o posicionamento
das instituições: abordagens educacionais sócio-interacionistas e humanistas que se esforçam em
proporcionar experiências de aprendizagem baseadas nas trocas e interações. A proposta
multicultural de não discriminação da diferença e sim de valorização da diversidade é bastante clara,
assim como as estratégias desenvolvidas para integrar as diferentes culturas entre si e à escola.
Percebemos que a escola, de modo visivelmente intencional, tem tentado abrir canais de
diálogo com a família. “Tem muito diálogo. Os pais têm oportunidade de expor a sua cultura e o que
eles esperam da escola”, afirma a professora E. A professora A coloca a clareza de propósitos da
escola da seguinte forma: “as irmãs [diretoras e orientadoras da instituição] têm muito claro. Elas
escutam, atendem a família”. Educadoras de duas instituições mencionaram o procedimento da
entrevista inicial de recepção aos alunos e suas famílias, no início do ano letivo, em que os pais têm a
oportunidade de colocar suas expectativas em relação à escola e fazer suas reivindicações e
recomendações a respeito, por exemplo, dos rituais religiosos propostos pela instituição. “A escola
respeita a cultura dos alunos”, diz a professora E Já a professora D nos conta que há um movimento
recente na instituição no sentido de oportunizar a discussão sobre a multiplicidade étnica. “Eu acho
que há mais espaço na escola de se falar da religião, da cultura diferente deles. Antes trabalhávamos
mais a nossa cultura e não se tinha esse olhar para essa cultura diferente”.
A inclusão de projetos de trabalho com foco na diversidade étnica e cultural – mencionados
por professoras de todas as instituições – não só fazem emergir as diferenças de modo natural, como
atribuem significado a elas, oportunizando a reflexão sobre a multiculturalidade e a valorização de
cada grupo e de seus padrões de comportamento, crenças, conhecimentos e costumes. “Como nós
fomos trabalhar as origens do povo gaúcho [...] um dos povos trabalhados foi o de cultura árabe. As
crianças se motivaram e trouxeram para dentro da sala de aula toda essa cultura”, narra a professora
I, da quarta série. “As festas daqui da escola dão enfoque e valorizam as várias etnias e de um modo
geral valorizam todas, não só a árabe”, reflete a professora C. Assim, pode-se perceber que as
instituições, de modo consciente, abrem espaços e oferecem oportunidades para que a multiplicidade
de culturas se manifeste no ambiente escolar.
O discurso uniforme das educadoras a respeito da diligência em revelar e dar destaque
positivo à multiplicidade étnica revela a preocupação com um trabalho em equipe nas instituições
estudadas. A equipe de professores tem a oportunidade de dialogar sobre suas experiências e
inseguranças. “Eu senti de início uma apreensão... Conversamos como é que cada um ia dar atenção
à individualidade da criança na hora da oração, a essas diferenças” conta-nos a professora D,
revelando a importância do diálogo e da reflexão coletivos no desenvolvimento do trabalho de cada
docente. Para Bakhtin (apud Smolka e Goes, 1996), o ideológico é inerente ao signo e ao discurso.
Segundo ele, todas as manifestações ideológicas banham-se no discurso e não podem ser
analisadas deslocadas deste. Assim, acreditamos que as professoras se colocam em uma posição de
respeito e valorização da diferença em grande parte devido à ideologia das instituições em que
atuam.
Dentre os posicionamentos adotados pelas instituições com vistas à valorização da
diversidade mencionadas pelas educadoras entrevistadas, a que nos pareceu mais significativa foi o
ecumenismo, que tem por objetivo aproximar e valorizar as diferentes opções religiosas. “Por mais
que a gente tenha dentro da escola o Catolicismo, nossa escola tem que ser ecumênica, porque a
gente recebe crianças de ene religiões, ene culturas” , diz a professora G. O Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa define ecumenismo como o “apelo à unidade de todos os povos contido na
mensagem do Evangelho”. Acreditamos, porém, que o discurso proferido pelas educadoras
entrevistadas traz mais a idéia de integração e respeito que de unidade, uma vez que esta última
pode nos levar a pensar em homogeneização, o que não parece ser a posição das instituições
estudadas.
O entendimento entre os diferentes povos do mundo passa, evidentemente, pela
compreensão das relações que ligam o ser humano às questões de espiritualidade e crenças. O
Catolicismo, desde o Concílio Vaticano II (1962-1965), vem abrindo suas portas ao convívio fraterno
com outras religiões, à aceitação de que deve haver respeito à liberdade de credo. As escolas
pesquisadas são católicas, e – coerentemente com a posição política da Igreja Católica – vêm se
mostrando abertas às diferentes opções religiosas dos alunos e de suas famílias. “É de três anos
para cá que aqui na escola começaram a aparecer mais crianças árabes. E o ensino religioso se
modificou. Nós somos uma escola católica. Eu vi que o ano passado, principalmente, quando se
começou a trabalhar toda a visão desse ensino religoso que não só trabalha a parte católica, mas
que se abre a todas as outras religiões”, atesta a professora D.
Embora a termo “ecumenismo” tenha sido usado pelas professoras de uma instituição
apenas, o respeito às diferentes crenças religiosas foi professado em todas as entrevistas, como
pode ser constatado pelas falas da professora I: “A gente não estipula a religião católica. Pelo
contrário, nós respeitamos todas as religiões” e também da professora D: “no geral o pessoal é
preocupado com essa questão de não deixá-los fora de nada, mas também de não forçar as coisas
da religião católica... Eles têm liberdade”.
E a liberdade vai além de oportunidades para que os alunos não católicos possam se
expressar em termos de sua religiosidade. As crianças árabes e suas famílias podem escolher
participar ou não das cerimônias religiosas proporcionadas pela escola, e atividades alternativas são
preparadas para os que escolhem não participar. Assim se expressam os professores: “nas
celebrações, as crianças não são obrigadas a assistir e a escola dá liberdade à criança de ficar na
biblioteca”, diz a professora C.
Compete à escola auxiliar os jovens na compreensão do substrato histórico, cultural e
religioso da coexistência das diferentes etnias que compõem o tecido social da escola, da cidade e do
mundo. Este trabalho é delicado – porque mesmo quando realizado com cuidado pode ferir
sensibilidades – mas é essencial na medida em que auxilia os alunos a construir o seu próprio
sistema de pensamento e de valores, e assim a desenvolver abertura de espírito necessária para o
diálogo democrático e para a busca da coexistência harmoniosa entre os povos.
As falas da professora I parecem traduzir a postura e a proposta das escolas estudadas. “Tu
tens que aceitar as diferenças porque elas é que constituem todo um contexto educacional. [...] É
uma partilha, é troca de experiências. E isso é muito positivo para o aprimoramento da educação das
crianças”.

6. O DISCURSO DOCENTE
Foi por acreditarmos que a percepção dos professores se constitui como um fator
determinante na construção da identidade da criança de origem árabe que optamos por realizar o
presente estudo a partir do olhar das educadoras sobre esses alunos. O que observamos foi que, em
sua maioria, as docentes percebem esses meninos e meninas como iguais aos outros, normais,
“apenas com uma cultura diferente”, como coloca a professora I.
Essa visão, sob a ótica que tentamos apresentar neste trabalho, acarreta vantagens e
desvantagens. Segundo Edgar Morin (2002c) se nos concentrarmos apenas a diversidade das
culturas tenderemos a minimizar ou a ocultar a unidade humana e correremos o risco de desenvolver
preconceitos étnicos, culturais e religiosos. Por outro lado, se focarmos somente na unidade humana
passaremos a considerar como secundária a diversidade das culturas. Ambas as posições são,
segundo o autor, reducionistas. Uma posição complexa e aberta concebe a unidade que assegura e
favorece a diversidade, e a diversidade que se inscreve na unidade.
O fenômeno simultâneo da unidade e da diversidade das culturas é crucial. Do mesmo modo
como a unidade mantém a identidade humana naquilo que tem de universal, a diversidade de culturas
mantêm as identidades sociais naquilo que têm de específico. A relação dialógica entre as duas
instâncias é enriquecedora para a humanidade.
Imbernón (2004) denuncia, porém, que a escola como a cohecemos hoje não foi pensada e
construída para a promoção da multiculturalidade, e sim para a generalidade e para a uniformização.
O que percebemos no discurso das professoras é que, em um esforço para não manifestar
discriminação de qualquer tipo, elas tendem a desconsiderar a diversidade. “Alguns professores
passam por cima”, denuncia J, apontando para a tendência à homogeneização.
“A gente tem tentado mostrar para elas (as professoras) que nós vivemos num
multiculturalismo [...] que tem que ser muito valorizado para que não haja discriminação e exclusão”
afirma H, que é coordenadora da educação infantil da escola, e responsável pelo desenvolvimento
continuado das professoras daquele nível. Seu discurso demonstra o que parece ser a preocupação
principal das docentes – impedir o preconceito e a alienação – ao mesmo tempo que deixa de
mencionar outro aspecto decisivo de um trabalho multicultural, que é a valorização propriamente dita
da diversidade, o que requer, em primeiro lugar, um reconhecimento sem desconforto das diferenças.
A diferença, porém, causa inquietação e insegurança nas professoras, principalmente – mas
não apenas – no aspecto religioso. “Quando se começou a trabalhar toda essa visão desse ensino
religioso que [...] se abre a todas as outras religiões eu senti de início uma apreensão de como
iríamos trabalhar com essas crianças de religião diferente”, revela a professora D. Os diálogos entre
os professores a respeito dos procedimentos durante os momentos de oração têm ajudado D e suas
colegas a “não deixá-los [os alunos de origem árabe] de fora”. A coordenadora da educação infantil
citada acima admite que “elas [as professoras] têm colocado as preocupações e as dúvidas que
surgem, porque muitas vezes elas não dominam essas culturas”, o que revela um certo despreparo
das professoras para trabalhar a diversidade cultural, embora elas estejam conscientes da
importância de uma abordagem educacional multiculturalista.
Um episódio narrado pela professora D é emblemático dessa situação. A mãe de um aluno
de origem árabe procurou a professora para lhe dizer que o menino – devido à prática diária da
oração da sala de aula – estava fazendo o sinal da cruz em casa, o que incomodou seu pai. A
professora decidiu, então, parar de fazer o sinal da cruz no momento da oração, esperando que o
aluno “perdesse o costume”. Ela considerou que esta seria uma solução “natural” para a situação e
decidiu conversar sobre o assunto com as crianças apenas caso houvesse algum questionamento.
Sua preocupação principal era com a incompatibilidade entre o nível de abstração do assunto e o
estágio de desenvolvimento das crianças. “E a gente ficou tentando trabalhar dentro da própria idade
da criança, dentro da característica da idade dela. Dentro do que ela pode vir a assimilar [...] Essa
idade é uma idade assim de muito movimento, muito corpórea, muito concreta”. O evento demonstra
as corretas preocupações com as crianças e com situações de manifestação de diferenças culturais e
étnicas, e também a falta da necessária capacitação para a abordagem dessas diferenças.
Algumas professas mencionaram também dificuldades de aprendizado – especialmente da
leitura e da escrita da língua portuguesa – que as crianças de origem árabe tendem a apresentar. “A
criança árabe ela tem, às vezes, dificuldade no português” (professora H). “[a criança] ainda está
aprendendo a organizar espaços, linha. Lá ela usava a linha da direita para a esquerda, fazia
pauzinhos” (professora B). “Ela troca muito as letras” (professora F). As educadoras não
mencionaram, porém, estratégias específicas que a escola adota para lidar com um problema que
parece ser recorrente.
Apesar de reconhecerem sua dificuldades, as professoras entrevistadas se mostraram
cientes de sua responsabilidade e de seu papel na administração das diferenças e dos conflitos que
surgem delas, e mesmo no processo de adaptação das crianças estrangeiras na sala de aula. “A
gente tem que administrar todas essas nuances que aparecem na sala de aula para que essas
crianças [...] se sintam à vontade” (professora H). “Às vezes, eles vêm de uma outra cultura, da Terra
como eles dizem e caem pra nós. Então é uma adaptação maior, aquela conversa amiga para se
adaptar bem” (professora F).
O papel do professor assume importância ainda maior nesse contexto à medida em que as
famílias contam com seu auxílio na tentativa de preservar suas raízes estando inseridos na
contagiante cultura ocidental moderna. A professora J, mãe de uma criança de origem árabe, coloca
suas expectativas em relação ao trabalho das colegas da seguinte forma: “Como eles vivem inseridos
aqui na nossa cultura é difícil para a criança dissociar. [...] Para a gente fica difícil. Se a gente tem um
apoio, uma valorização externa, com certeza fica mais tranqüilo lidar com essa diferença cultural”.
Por sua vez, a fala da professora G parece resumir o sentimento das professoras
entrevistadas em relação ao trabalho com a diversidade: “Eu percebo que a gente tenta, dentro das
nossas possibilidades, e dentro do que a gente observa, trabalhar, e as minhas colegas também”.
Assim, podemos constatar que apesar de terem boas intenções, de exibirem um discurso pela
valorização das diferenças, as professoras tornariam mais segura e significativa sua ação pedagógica
se pudessem desenvolver um trabalho mais reflexivo, atrelado a um embasamento teórico – um
saber-fazer – mais sólido.
David Selby, em seu artigo Ser e Tornar-se um Educador Global (SELBY, 2004), afirma que o
educador universalista acredita – e age de acordo com a crença de que – um indivíduo ou um grupo
só pode ser compreendido em relação com o que há ao seu redor. Faz parte de seu trabalho auxiliar
seus alunos a reconhecerem as conexões que existem entre os diferentes elementos do mundo,
entre os quais estão as diferentes culturas. O docente deve não só perceber que a escola é um
espaço público de vinculação, representação e enriquecimento social, mas também – e
principalmente – construir condições para a realização de um trabalho que torne real o ideal de
compartilhamento fraterno e enriquecimento mútuo das diferentes culturas.

Proposições

Aceitar a multiculturalidade implica sibstituir a cultura do individualismo –


historicamente tão arraigada nas instituições educativas – por uma cultura do
trabalho compartilhado” (Imbernón, 2004, p. 18).

Educar na multiculturalidade, afirma Imbernón (2004), exige uma profunda re-educação dos
professores e mudanças tanto na filosofia quanto nas práticas da instituição escolar, para que haja as
transformações necessárias nas relações que ali se estabelecem. Com base nessa crença e nos
resultados emergentes da interpretação dos dados coletados nas entrevistas, sugerimos que algumas
ações sejam colocadas em prática, com o objetivo de melhor preparar os professores para atuarem
junto ao espaço escolar e às crianças que carregam diferenças culturais: Essas ações são
mencionadas a seguir,
• Oferecer a professores, orientadores, coordenadores e mesmo à direção das escolas
oportunidades de reflexão a respeito da diversidade cultural e seus reflexos no contexto escolar e
na vida da comunidade;
• Implementar a instrumentalização teórica dos professores, para lhes oferecer condições de
articular reflexivamente o processo de ensino/aprendizagem para uma convivência propriamente
multicultural em sala de aula;
• Promover encontros formais em que os professores possam se encontrar e dialogar, com o
objetivo de atrelar os conhecimentos teóricos na relação teoria-prática, para que exista uma
sólida sustentação à prática, na ética escolar e na solidariedade ecumênica

Considerações finais

[...] retornar-se à definição original de indivíduo, que anteriormente significava


aquele que não está separado do todo. Pessoa inteira no planeta inteiro, planeta
inteiro na pessoa inteira. Todo lugar e tudo, assim, tornar-se o centro (Pike e
Selby, 1988, apud Selby, 2004).

Em seu Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro, Edgar Morin recomenda que a
educação atente para que a idéia de unidade humana não apague a idéia de diversidade e que a de
sua diversidade não apague a da unidade (MORIN, 2002C). Se, por um lado, uma abordagem anti-
universalista poderia pregar uma educação diferente para cada grupo étnico, cultural ou social, o que
poderia cristalizar preconceitos e impedir a abertura necessária ao convívio humano pacífico, por
outro lado, uma educação fundamentada na concepção homogênea e universal de ser humano
poderia asfixiar a rica diversidade que torna a humanidade tão plural.
Acreditamos que a educação tem como missão re-afirmar que nossa única, verdadeira e
essencial pertença é à espécie humana, ao mesmo tempo que deve destacar e valorizar as mais
diferentes manifestações de cultura que fazem parte do contexto escolar, num esforço pela
preservação das diferentes nuances que os grupos humanos assumem segundo o tempo e o espaço
em que se originam.
O Relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI da UNESCO,
coordenada por Jacques Delors afirma que a educação aberta à multiculturalidade tem como uma de
suas tarefas essenciais ”ajudar a transformar a interdependência real em solidariedade desejada. [...]
Deve, para isso, preparar cada indivíduo para compreender a si mesmo e ao outro, através dum
melhor conhecimento do mundo” (DELORS 1996, p.41).
Desse modo, mais do que a preservação das sutilezas próprias de diferentes povos, uma
educação com vistas ao multiculturalismo tem a importante incumbência de auxiliar os indivíduos a
compreenderem suas próprias raízes e as dos outros, num esforço pela compreensão universal tão
necessária à convivência harmônica e pacífica dos povos da Terra.
Nossa preocupação, no presente trabalho, é com o preparo dos professores que têm a tarefa
de promover essa educação aberta e plural. Embora possamos perceber no discurso das professoras
a valorização da diversidade étnica e a consciência da necessidade de um trabalho ecumênico e
democrático do ponto de vista religioso e cultural, é visível que as professoras ainda se sentem pouco
instrumentalizadas para trabalhar a multiculturalidade em sala de aula de modo válido e significativo.
Mesmo correndo o risco de estarmos sendo reducionistas, acreidtamos que é possível
sintetizar uma possível organização da ação docente em três aspectos. Primeiro, o professor precisar
“ter experiências”. Percebemos que nas escolas pesquisadas as docentes estão vivendo
acontecimentos significativos de diversidade cultural, quando se deparam com alunos árabes, suas
famílias e suas relações. Segundo, os educadores necessitam “fazer experiências”, isto é, vivenciar
situações e acontecimentos que propiciem situações e práticas interativas, concretas de respeito ao
social e culturalmente diferente. Terceiro, os docentes devem “pensar sobre as experiências”, tanto
aquelas que tiveram sem ser provocadas, quanto aquelas didaticamente preparadas que provocaram
a contextualização e a inserção do assunto multiculturalismo no espaço escolar.
A complexidade desse processo só pode ser percebida e explorada do ponto de vista
educacional se a escola promover oportunidades para a reflexão no grupo e com o grupo, tomar
decisões que englobem o desafio de desenvolver a construção da identidade complexa, uma
identidade que contemple diversos valores: local, nacional, internacional, individual, político, religioso,
familiar e democrático – a pluralidade da diferença transformada em educação para a humanidade
solidária.

Referências:

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sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira, 2000.

BOLÍVAR, Antonio. Cultural e multiculturalismo. In: Pátio, ano VII, nº28 jan./ 2004.

DELORS, Jacques, Educação um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da comissão


internacional sobre educação para o século XXI. Lisboa, Portugal: Edições ASA, 1996.

Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro : Objetiva, 2001.

ENGERS, Maria Emília Amaral. A pesquisa no contexto da universidade: um novo olhar para a
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Roteiro da Entrevista

1. Como você percebe a criança de origem árabe em sua sala de aula?


2. Como você vê a relação da criança árabe com seus colegas?
3. Como você avalia o tratamento que seus colegas de trabalho dão às crianças de origem árabe?
4. Como você percebe a relação entre a escola e a família da criança de origem árabe?
5. Você poderia narrar uma situação em que a escola necessitou intervir na relação da criança ou
de sua família com as outras crianças ou famílias para facilitar a integração dela no contexto
escolar?

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