You are on page 1of 7

ORIENTALISMO, resenha do livro de Edward W.

Said

FÁBIO DE OLIVEIRA RIBEIRO

SEG, 28/10/2013 - 18:42

ATUALIZADO EM 28/10/2013 - 18:54

Você pode não ter percebido, mas a imprensa brasileira criou um modelo idealizado dos
árabes durante o último ciclo de invasões americanas no Oriente Médio. Se quer entender o
processo de construção do mesmo você deve ler ORIENTALISMO, de autoria de Edward W.
Said.

O livro, que no Brasil foi publicado pela Companhia das Letras, é dividido em três partes. Na
primeira o autor trata do alcance do orientalismo, na segunda das estruturas do mesmo e no
terceiro do orientalismo na atualidade. Apesar de ter sido publicado na década de 1970,
ORIENTALISMO é uma obra fundamental para compreendermos como o Ocidente inventou o
Oriente.

Foi o orientalismo que construiu os consensos que permitem e legitimam as atrocidades


americanas no Oriente Médio. Israel serve-se do mesmo para submeter de maneira brutal os
palestinos dentro e fora do seu território.

Em prefácio para a obra escrito em 2003, Said afirma que as "...sociedades contemporâneas de
árabes e muçulmanos sofreram um ataque tão maciço, tão calculadamente agressivo em razão
de seu atraso, de sua falta de democracia e de sua supressão dos direitos das mulheres que
simplesmente esquecemos que noções como modernidade, iluminismo e democracia não são,
de modo algum, conceitos simples e consensuais que se encontram ou não, como ovos de
Páscoa, na sala de casa." A observação é precisa. Afinal, até bem pouco tempo muitos paises
considerados ocidentais ou viviam sob ditaduras (Argentina, Chile, Brasil) ou apoiavam regimes
autoritários em nome da democracia (EUA) .

Na introdução da obra, o autor esclarece que o "...Oriente não é apenas adjacente à Europa; é
também o lugar das maiores, mais ricas e mais antigas colônias européias, a fonte de suas
civilizações e línguas, seu rival cultural e uma das suas imagens mais profundas e mais
recorrentes do Outro. Além disto, o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) com sua
imagem idéia, personalidade, experiência contrastantes. Mas nada nesse Oriente é
meramente imaginativo. O Oriente é uma parte integrante da civilização e da cultura material
européia. O Orientalismo expressa e representa essa parte em termos culturais e mesmo
ideológicos, num modo de discurso baseado em instituições, vocabulário, erudição, imagens,
doutrinas, burocracias e estilos coloniais."

Ao longo da obra Said demonstrará como este Outro foi material e intelectualmente
importante para consolidar o Ocidente. Também demonstrará que nunca houve uma
contrapartida. Enquanto os europeus (e depois os americanos) alimentavam o orientalismo no
Oriente não houve um processo intelectual similar. Não há um ocidentalismo produzido por
intelectuais árabes. A prova desta assimetria é evidente, pois "...tem se estimado, que foram
escritos cerca de 60 mil livros sobre o Oriente Próximo entre 1800 e 1950; não há um número
nem de longe comparável de livros orientais sobre o Ocidente. Como aparato cultural, o
Orientalismo é agressão, atividade, julgamento, persistência e conhecimento."

Para Said a "...relação entre Ocidente e o Oriente é uma relação de poder, de dominação, de
graus variáveis de uma hegemonia complexa..." O orientalismo, não foi, portanto, apenas o
resultado de ocupações militares. Foi principalmente um investimento continuado que criou
"...um sistema de conhecimento sobre o Oriente, uma rede aceita para filtrar o Oriente na
consciência ocidental, assim como o mesmo investimento multiplicou - na verdade, tornou
verdadeiramente produtivas - as afirmações que transitam do Orientalismo para a cultura em
geral."

Muitos escritores europeus se dedicaram ao orientalismo ou por ele foram influenciados. Nem
todos tinham consciência do verdadeiro valor político e ideológico de sua produção intelectual
para a hegemonia do Ocidente no Oriente. De qualquer maneira ocorreu "...um intercâmbio
dinâmico entre autores individuais e os grandes interesses políticos modelados pelos três
grandes impérios - o britânico, o francês e o americano - em cujo território intelectual e
imaginativo a escrita foi produzida."

O orientalismo se encarregou de representar o Oriente, de definir seus contornos,


características e vocações. Tudo isto foi feito á margem dos interesses do habitantes do
Oriente. Não foram os orientais mas os ocidentais que criaram e alimentaram - e ainda
alimentam - o orientalismo. Mas não é o que está oculto nos textos orientalistas que
chamaram a atenção de Said. Sua análise tem como objeto o que está na superfície dos textos.
É na sua exterioridade em relação ao que descreve que Sai descobre todo um universo de
percepções distorcidas.
O produto desta exterioridade é a representação "...desde um marco tão remoto como a peça
de Ésquilo Os Persas, o Oriente é transformado, passando de uma alteridade muito distante e
freqüentemente ameaçadora para figuras que são relativamente familiares (no caso de
Ésquilo, mulheres asiáticas aflitas)." Segundo Said a peça "...obscurece o fato de que o público
está assistindo uma encenação altamente artificial de algo que um não oriental transformou
num símbolo de todo o Oriente." O mesmo seria feito de maneiras parecidas pelos autores
medievais, iluministas e modernos.

Recentemente tivemos a oportunidade de ver como o orientalismo atua da forma parecida no


cinema. No filme 300, Xerxes foi representado como um gigante libidinoso cercado de seres
infernais. A única virtude do personagem de Frank Miller é faltar-lhe todos atributos dos
gregos comandados por Leonidas (humanidade, honra, virilidade e coragem). O filme é uma
representação de outra representação, ou seja, uma versão distorcida da história do episódio
da segunda Guerra Médica - que como todos sabem chegou a nós através da narrativa de um
grego não por um persa. O enredo do filme se afastou-se de tal maneira do livro de Heródoto
que tomei a liberdade de fazer uma comparação entre o mesmo e o suposto clássico de Frank
Miller.

O filme 300 é sedutor e tem efeitos especiais magníficos. É, portanto, um típico exemplo de
como a tecnologia também tem sido utilizada para preservar o cânone orientalista. Já na
década de 1970, Said percebeu que um "...aspecto do mundo eletrônico pós-moderno é que
houve um reforço dos estereótipos pelos quais o Oriente é visto. A televisão, os filmes e todos
os recursos da mídia têm forçado as informações a se ajustar em moldes cada vez mais
padronizados. No que diz respeito ao Oriente, a padronização e os estereótipos culturais
intensificam o domínio da demonologia imaginativa e acadêmica do 'misterioso Oriente' do
século XIX."

Ao tratar do alcance do orientalismo, Said faz referência a dois políticos ingleses: Balfour e
Cromer.

No princípio do século XX, o britânico Arthur James Balfour proferiu um discurso na Câmara
dos Comuns sobre os problemas no Egito. Após analisar o mesmo detalhadamente, Said
percebeu que o discurso pode ser decomposto da seguinte maneira: "A Inglaterra conhece o
Egito; o Egito é o que a Inglaterra conhece; a Inglaterra sabe que o Egito não pode ter
autogoverno; a Inglaterra confirma esse conhecimento ocupando o Egito; para os egípcios, o
Egito é o que a Inglaterra ocupou e agora governa; a ocupação estrangeira torna-se, portanto,
'a própria base' da civilização egípcia contemporânea; o Egito requer, até insistentemente, a
ocupação britânica."
No discurso de Balfour o Egito não um país. É uma categoria britânica. Os egípcios não são
seres humanos, mas coisas que preenchem um espaço geográfico ocupado pelo exército
colonial da Inglaterra.

Ao contrário de Balfour, Cromer foi governador colonial dos egípcios. Mesmo assim nunca fez
quaisquer "...esforços para esconder que, a seus olhos, os orientais eram apenas o material
humano que ele governava nas colônias britânicas". Para Cromer o oriental "...age, fala e
pensa de um modo exatamente oposto ao do europeu."

O autor de ORIENTALISMO detectou na linguagem de Balfour e Cromer que o "...oriental é


descrito como algo que se julga (como um tribunal), algo que se estuda e descreve (como num
currículo), algo que se disciplina (como numa escola ou prisão), algo que se ilustra (como num
manual de zoologia). O ponto é que em cada um desses casos o oriental é contido e
representado por estruturas dominadoras." Apenas a título de ilustração, sugiro ao leitor que
imagine um egípcio falando dos britânicos em termos parecidos. Qual seria a reação dos
britânicos se isto ocorresse? Caso o leitor não seja capaz de imaginar uma situação tão
inusitada ou de compreender a simetria entre as reações de um inglês e um egípcio às
representações feitas de ambos pelo Outro o orientalismo certamente já capturou sua
consciência.

A análise de discursos políticos pode dar a impressão que o orientalismo foi produto do
colonialismo do século XIX. Não foi. Muito antes do colonialismo europeu os ocidentais já
haviam criado e se apropriado ideologicamente do Oriente. Mas Said reconhece que durante a
expansão européia (1815/1914) houve um progresso imenso das instituições e do conteúdo
orientalista.

"O Orientalismo foi submetido ao imperialismo, ao positivismo, ao utopismo, ao estoicismo, ao


darwinismo, ao racismo, ao freudianismo, ao marxismo, ao spenglerismo. Mas o Orientalismo,
como muitas da ciências naturais e sociais, tem ?paradigmas? de pesquisa, suas próprias
sociedades eruditas, seu próprio establishiment."
Como representação do Outro, o orientalismo tratou de criar uma imagem do islã. Esta
imagem foi construída principalmente em razão do medo, porque depois da "...morte de
Maomé em 632, a hegemonia militar e mais tarde cultural e religiosa do islã cresceu
enormemente. Primeiro, a Pérsia, a Síria e o Egito, depois a Turquia e mais tarde a África do
Norte caíram nas mãos dos exércitos muçulmanos; nos séculos VIII e IX, a Espanha, a Sicília e
partes da França foram conquistadas."

Mesmo após a reconquista de vastas áreas ao islã, os europeus preservaram a imagem


negativa do islã e dos orientais. Em razão disto, não só "...o Orientalismo é acomodado às
exigências do cristianismo ocidental; é também circunscrito por uma série de atitudes e
julgamentos que não enviam a mente ocidental em primeiro lugar às fontes orientais para
correção e verificação, mas antes a outras obras orientalistas.O palco do orientalista, como
venho chamando, torna-se um sistema moral e epistemológico."

Após fazer uma longa referência a campanha napoleônica no Egito, Said esclarece que
enquanto "...os historiadores da Renascença julgavam o Oriente inflexivelmente como um
inimigo, os do século XVIII confrontavam as peculiaridades do Oriente com algum
distanciamento e com uma tentativa de lidar diretamente com a fonte oriental da matéria,
talvez porque essa técnica ajudasse o europeu a conhecer melhor." A conhecer e a dominar,
pois foi o erudito Silvestre Sacy "...quem traduziu a proclamação aos argelinos..." quando os
franceses ocuparam Argel em 1830.

Sacy foi o primeiro grande orientalista. "Seu heroísmo como erudito foi ter enfrentado com
sucesso dificuldades insuperáveis; adquiriu os meios de apresentar um campo de estudo a
seus estudantes, quando não havia campo nenhum. Ele fez os livros, os preceitos, os
exemplos, dizia sobre Sacy o duque Broglie."

Renan continuou a obra de Sacy. Mas ao contrário dele, Renan "...não falava realmente como
um homem a todos os homens, mas antes como uma voz especializada e reflexiva que
aceitava, como ele disse no prefácio de 1890, a desigualdade das raças e a dominação
necessária por uma minoria como uma lei antidemocrática da natureza e da sociedade." Em
Renan a superioridade européia e a inferioridade oriental são axiomas indiscutíveis.

Do alto de seu pedestal, Renan não tinha escrúpulos em julgar os semitas (árabes e judeus)
degenerados. "Leia-se quase toda página de Renan sobre o árabe, o hebraico, o aramaico ou o
proto-semítico, e o que se lê é um fato de poder, pelo qual a autoridade do filólogo orientalista
colhe à vontade na biblioteca exemplos do discurso humano e ali os enfileira rodeados por
uma suava prosa européia que aponta os defeitos, as virtudes, os barbarismos e as deficiências
na linguagem, no povo e na civilização."

Não há dúvidas de que o orientalismo de Renan ajudou a criar e reforçar o mito da


superioridade européia. O próprio Said afirma que "...não é exagerado dizer que o laboratório
filológico de Renan é o local real de seu etnocentrismo europeu; mas o que precisa ser
enfatizado é que o laboratório filológico não existe fora do discurso, a escrita pela qual é
constantemente produzido e experimentado."

Nem Karl Marx escapou dos preconceitos orientalistas. Ao analisar a ocupação inglesa da Índia
o alemão afirmou que "...não devemos esquecer que essas comunidades de vida idílica, por
mais inofensivas que possam parecer, sempre foram o fundamento sólido do despotismo
oriental." A referência ao "despotismo oriental" é sugestiva. Para Said as "...análises
econômicas de Marx são perfeitamente adequadas a um empreendimento orientalista padrão,
ainda que a humanidade de Marx, a sua simpatia pela miséria do povo, esteja claramente
envolvida."

Vários escritores orientalistas residiram no Oriente. Este foi o caso de Lane, Flaubert, Vigny,
Nerval, Kinglake, Disraeli, Burton, Byron, Scott, Chateaubriand e T.E. Lawrence. Mesmo tendo
palmilhado as terras orientais e mantido contato com os povos árabes, nenhum destes autores
deixou de criar representações do Oriente. Mas não vou entrar em detalhes para não retirar
do leitor o prazer de conhecer como cada representação criada do Oriente foi decomposta,
classificada e analisada por Said.

A leitura de ORIENTALISMO nos ajuda compreender como as relações entre o Ocidente e o


Oriente foram lentamente moldadas de maneira a permitir uma verdadeira colonização
cultural e territorial do Oriente Médio. Para o autor "...a versão do mito criada no século XX
tem sido mantida com muito maior dano. Produziu uma imagem do árabe visto por uma
sociedade 'adiantada' quase ocidental. Na sua resistência aos colonialistas estrangeiros, o
palestino era ou um selvagem estúpido ou uma grandeza negligível, moral e existencialmente."
A cada episódio dramático do conflito entre israelenses e palestinos a inferioridade moral dos
últimos tem sido reforçada pela imprensa. Os homens bombas são sempre descritos como
terroristas. Os pilotos israelenses que despejam bombas e mísseis em alvos civis não são
terroristas, são soldados eficientes cumprindo seu dever de retaliar a brutalidade dos
terroristas.
Recentemente vimos como a imprensa mundial legitimou as campanhas americanas no
Oriente Médio fazendo referências diárias a inferioridade moral dos 'árabes', a estreiteza da
'mente árabe'v ao atraso do 'tribalismo árabe', a violência insuperável 'do islamismo'...
Contraposta às virtudes ocidentais (democracia, humanitarismo, etc.) a 'barbárie natural do
árabe' continua justificando as maiores atrocidades cometidas desde o Vietnan (bombardeios
a civis, tortura e execução de prisioneiros de guerra, degradação do meio ambiente nos
territórios ocupados e devastados etc.). Os leitores de Edward W. Said percebem rapidamente
que as recentes invasões do Iraque e Afeganistão foram justificadas e, de certa maneira,
ocasionadas pelo orientalismo.

Já na década de 1970 o eminente professor afirmava que o "...orientalismo também se


espalhou nos Estados Unidos agora que o dinheiro e os recursos árabes tem acrescentado um
considerável charme à tradicional 'preocupação' com o Oriente, estrategicamente importante.
O fato é que o Orientalismo tem se acomodado com sucesso ao novo imperialismo, no qual os
seus paradigmas regentes nem contestam, e até confirmam, o persistente desígnio imperial de
dominar a Ásia."

Ao invés aceitar pacificamente as imagens orientalistas e as guerras causadas e justificadas


pelo orientalismo o livro sugere que devemos conhecer melhor a nós mesmos como
ocidentais. O grego Sócrates, considerado o fundador da filosofia ocidental dizia sempre
'conhece-te a ti mesmo'. Curiosa e ironicamente não foram os intelectuais europeus e anglo-
americanos modernos que permitiram ao Ocidente conhecer-se.

PS: mais informações relevantes sobre o assunto pode ser obtida em:

http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/graduacao/article/download/8812/6176

You might also like