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Erivaldo Teixeira1
Cristian Paiva2
O transitar durante o dia pelas ruas de Fortaleza, em especial pelo centro da cidade,
num ínterim driblando o calor, nem sempre permite olhares mais apurados para as tramas
de interação ali vivenciadas. À boca da noite, abrem-se outras temporalidades e regimes de
visibilidade, constituindo territórios em desalinho, em torno de cujos rastros voltam-se as
lentes desta investigação, em busca de boas garimpagens conceituais que permitam dar
conta do que se passa nas cartografias noturnas do centro. Este texto foi originado a partir
de incursões etnográficas de caráter intensivo em uma das manchas morais (PARKER,
2002; MAGNANI, 2003) de boemia no centro da metrópole cearense, na qual se
espacializam práticas de sociabilidade homoerótica, dispondo de forma borrada diversas
manifestações do desejo homossocial (SEDGWICK, 2007, 1985), as quais desafiam as
demarcações identitárias do coletivo LGBTT, permitindo configurar sub-identidades com
escassa inteligibilidade política e acadêmica, mas profundamente arraigadas na cultura
sexual brasileira e nordestina. A busca de inserção nesses territórios, tomados como
configurações de espaço-tempo praticados por sujeitos e mediados por linguagens,
silêncios e códigos de interação, na tentativa de elucidações bem chegadas, pretende dar
conta de um nível de investigação capaz de aproximar-se das práticas de subjetivação, de
espacialização do desejo e dos borramentos identitários naqueles contextos, focalizando as
interações sexuais e afetivas entre homens.
Uma das inquietações no decorrer da trama da pesquisa consistiu em buscar o
entendimento dessas “identidades embaçadas”, mais precisamente que tipos de
sociabilidades ou recortes são elaborados, elegendo como eixo analítico e metodológico as
práticas homossociais e as “sociações” (no sentido de Simmel) que se processam num
ambiente de freqüência homoerótico no centro da cidade. Esse “centro” que possui um
1
Graduando em Ciências Sociais na Universidade Estadual do Ceará – UECE/Fortaleza - e-mail:erivestt@hotmail.com
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Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC/Fortaleza (Orientador da pesquisa) – e-mail:
cristianpaiva@uol.com.br
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Aqui tem uma coisa interessante, a gente vai se aproximando dos bofes ou
homens casados que fazem e por vezes rolam. E nem precisamos de muito aqué.
Cena comum, regada por cervejas e michetagem clara nas investidas dos bofes,
idealizações para muitos homoeróticos. A disputa pelos homens ficará entre as mulheres,
na sua maioria, descasadas ou descompromissadas. (Vale destacar que o recorte para o
texto não privilegiou as mulheres freqüentadoras ou em busca de parceiros momentâneos
ou aquelas que jogam olhares aos homens não-efeminados). No decorrer das cenas, tal
observação era nebulosa, pois a interface dos desejos, a priori não nos credencia a
identificarmos os códigos-territórios (PERLONGHER, 2008), mas a tessitura dos
episódios, daí a atenção nesse nível molecular para dar conta dessas sinuosidades.
O DL tem na parte interna várias mesas com cadeiras fixas, e um corredor que leva
aos banheiros e um outro espaço onde as disputadas serestas às sextas-feiras e sábados
atraem muitas pessoas, dentre elas comerciários e gente para sambar, cantar, “se esbaldar”.
Num dos cantos desse espaço ao fundo do DL, quando eu resolvi sair para um flanar meio
às avessas pelo local em busca de outros olhares, verifiquei que em várias dessas mesas,
dispostas próximas do banheiro, os homoeróticos afeminados se postam num estilo caça
ou fisgada.
Recordo da intervenção de Jonas em busca de homens de verdade naquele circuito
em que transitam desejos e a técnica para fisgar dependerá de outras situações, geralmente
acordadas de forma rápida nos momentos que esses homens demonstram interesse, daí “o
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combinar para fazer lá fora é melhor e se rolar aqué eles vão mesmo. Inclusive, eu prefiro
vir aqui pois não gosto de lugares gays. Aqui tem homem que faz e nem sempre a gente
tem que pagar pois eu não pago para fazer com bofe”. (Jonas, 44 anos, auxiliar de
laboratório, homossexual). Nos dias em que no DL não há seresta, o espaço que denomino
de salão de festas fica restrito a poucos casais ou conversas mais reservadas de casais
heterossexuais.
No decorrer dos dias da semana, a parte externa é disputada por grupos de amigos
para um bate-papo ou paquerar as pessoas que passam ou adentram no DL. Os
homoeróticos “mais discretos” freqüentam o local afirmando que por lá é mais tranqüilo e
há segurança. Ouvi relatos de garçons e taxistas de que por ali todos são iguais e não há
esse negócio de discriminar. Diferentemente observo ao sentar na parte externa os
embustes para com as travestis mal-arrumadas ou homens que vivem nas ruas quando se
aproximam dos clientes para pedirem dinheiro ou parte do que se alimentam. Rapidamente
o segurança solicita que se afastem, o que tem concordância por parte dos clientes.
Nos dias mais movimentados, sextas-feiras e sábados, jovens mais descolados
estacionam seus veículos e em grupos ficam por lá mas não se enturmam com os clientes
mais presentes. Homens com vistosas alianças de ouro na mão esquerda acompanhados de
mulheres, casais heterossexuais ou grupo de homens vindo das lojas adentram no DL
efusivamente. Nas várias incursões nunca me deparei com travestis sentadas nas mesas ou
em grupo naquele local. Numa outra ocasião no Mega Lanches – ML, uma travesti,
inclusive com militância em uma associação de travestis, foi incisiva ao afirmar:
A gente não vai lá por que eles não gostam das travestis. Por aqui o Zequinha
não mexe com a gente. Eu e minhas amigas nos sentimos melhor aqui (Mega
Lanches) do que por lá..Muito diag! (Leidiane, 38 anos).
A intervenção de Leidiane em uma ocasião me faz lembrar uma das questões que
inibem as travestis naquele local: a presença massiva de mulheres nas serestas ou o
ambiente policialesco da própria casa que não permite o desbunde ou o excesso. Num
ambiente em que nada permite-nos falar de vigilância disciplinar ou panoptismo, as
práticas de vigilância também são ambíguas, e servem ora para inibir, ora para facilitar os
fluxos de desejo homoeróticos. Aproveitando a situação de cliente/pesquisador indago ao
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Marcondes, um dos garçons, sobre a segurança. Ele afirma que tais coisas são para evitar
bagunça, drogados e gente que só vem para roubar.
Um dos segmentos que têm cadeira cativa por lá são os homoeróticos mais idosos,
aparentando já estar na casa dos cinqüenta anos ou visivelmente idosos. Por vezes ficavam
horas sozinhos nas mesas ou acompanhadas por homens novos. Segundo o garçom que
privilegiei para interlocução e ao qual me apresentei com o decorrer das incursões
enquanto aluno que estava fazendo uma pesquisa sobre boemia:
...a maioria desses caras chegam junto desses velhos, ficam por ali, eles pagam
tudo, alguns até saem com eles. A gente informa que alguns roubam, mas eles
nem ligam. Esse pessoal tem a cabeça dura. Mas são bons clientes e não causam
nenhum problema a casa. Eles são discretos.
Outra indagação que orbitou nas minhas incursões nesse local se deu por ocasião de
comentar a conhecidos e até mesmo em segmentos homoeróticos que realizava um
trabalho sobre o referido local e prontamente fui surpreendido com depoimentos como:
Engraçado esse seu trabalho. Eu já fui por lá, inclusive com amigos e amigas
para assistir a jogos, e nunca me dei conta que por lá tem toda essa
efervescência. Talvez seja lá dentro, pois ali fora eu nunca vi isso. (Rodrigo, 55
anos, professor, heterossexual)
Pois num é quem me disseram que por lá rola babado. Eu não sabia ainda disso.
Eu já fui por lá algumas vezes e nunca vi nada. Interessante essas coisas.
(Antonio, 59 anos, jornalista, homossexual).
No âmago dessas cenas, os dois bares já não são mais díspares, talvez nas falas
nativas de alguns clientes bem mais discretos, os quais chegam juntos, sentam em casal nas
mesas internas e se possível lá no salão de festa, não fazem nenhuma demonstração de
afeto em público, mas revelam o amor que não ousa dizer o nome; ou mesmo quando
descuidadamente fixam os olhos nos bofes postos com a perna fixada na parede próxima
ao banheiro. Esses clientes não freqüentam o outro bar que será descrito, mas passam nas
proximidades, orbitam o desejo, mas preferem o DL na parte interna pela nebulosidade dos
afetos e das possíveis conquistas mais reservadas.
Preliminarmente, observo diferenciação entre os clientes no circuito desses bares
analisados para estudo e produção do texto e nas formas e efetivação dos arranjos dos
desejos e nas insinuações por vezes velada dessas homossociabilidades.
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Por aqui eu sempre oriento esses entendidos de quem rouba quem é legal, mas
geralmente eles não se preocupam com isso, daí de vez em quando tem uns
roubos, mas a gente não apóia essas coisas.
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Tal consideração decorreu de uma cena onde percebi o engodo do boy para com um
cliente, um senhor com média de 50 anos, gordo, com aliança de ouro na mão esquerda e
com uma chave de um veículo, o qual segundo o gerente, tem dinheiro. Nesse dia, após
uma conversa entre os dois, em pouco tempo o cliente retorna desnorteado, trajando apenas
um calção, a única peça que o boy lhe deixara. Nenhum movimento ou prática solidária
transcorre. Atônito, observo que o senhor de forma preocupada põe as mãos sobre a cabeça
e sai ao encontro do carro. Em suas mãos, a chave do veículo.
Verificando que o som continuava, nesse instante tocando na disputada vitrola
(cada cliente paga um real e tem direito a escolher três músicas, dentro do repertório
programado na máquina) a música Paralelas de Belchior, indago ao gerente sobre o
episódio. Ele rapidamente adverte que isso é comum e sempre avisa aos entendidos que
muitos “desses caras” roubam. Tal fala me faz lembrar o garçom do DL. A “casa” por ser
menor, aproxima os clientes e os faz observarem todas as cenas e situações do circuito.
Inclusive me inquietavam as constantes idas de travestis, clientes mais discretos ou
efeminados ao banheiro. Abruptamente fui advertido pela travesti que escolhi (na mesma
medida em que fui por ela escolhido) como informante privilegiada que o babado era forte
e se eu tinha coragem de ir. Nessa hora pus em cena o que fazia naquele local e obtive
apoio dela por ser membro de uma organização de trans, conforme já aludido.
No ML, observo os incessantes “olhares amendoados” dos clientes idosos ou
afeminados dirigidos aos clientes mais másculos acompanhados na parte interna ou aos
homens de verdade que passam pela calçada. As investidas das travestis decorrem do bate
cabelo ou exibicionismo quando percebem que não estão dando close ou sendo notadas.
Nem sempre os michês (termo que designa os jovens que por ali rodeiam, para propostas
ambíguas de contato sexual por atração ou trabalho sexual) são paquerados pelas travestis,
mas disputam os “homens discretos” que freqüentam o local. Nas vezes que fui ao ML,
não verifiquei que o local seria adequadamente caracterizado como point das travestis, mas
nitidamente de investida dos homens solitários, casados ounão em busca de amores
fortuitos na tentativa de, por essa estratégia de invisibilidade, fugirem da abjeção que ronda
as práticas e identidades ligadas à homossexualidade.
Dos dois bares, o ML me fez perceber com maior nitidez as corporeidades, as
tramas e situacionalidades de forma mais densa na área de boemia homoerótica do centro.
A idéia de controle naquele local passa ao longe. Os acordos verbais ou códigos já
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incorporados contam com a colaboração dos garçons, taxistas, moto-taxistas e clientes que
há anos freqüentam o local colaboram na tessitura dos conceitos moleculares e botânico
dessas manchas difusas onde as ebulições subjetivas denotam o quanto traçarmos
classificações elaborações escorregadias ou conforme Matos (2007, p. 03)
Ainda aproveitando a situação daquela mesa florida, indago a travesti por que não
percebia a presença delas no DL. Prontamente ela diz: “A gente não se sente bem por lá.
Não é que não possamos ir, mas aqui é o nosso canto. As monas e travestis se entendem
melhor”.
Essa consideração decorre do fato de que no ML as negociações são mais frouxas
ou resultantes de maior liberação ou ousando não falar, ver ou dizer das tramas, acordos ou
jogatinas entre os clientes. A presença feminina é mínima e, quando ocorre, tem a ver com
alguma família, que ocasionalmente freqüenta o local à noite, ou casais. Essas nuances e
pontuações dos desejos são frouxas mas nem sempre expostas. As negociações nas mesas
são formas mais reservadas de conquista, as quais por vezes são perguntadas ao gerente se
a pessoa é gente boa ou está ali “para se dar bem”. O que eu não conseguia decifrar mas
com o decorrer das inúmeras visitações compreendia o quanto a mediações até mesmo na
captura dos desejos são valiosas.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade, a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran
Barbosa. Bauru, SP. EDUSC, 2007.
MARCOS, Plínio. Dois perdidos numa noite suja. Ed. Zanotto. – São Paulo: Global, 2003.
PAIVA, Antonio Cristian Saraiva. Reservados e invisíveis: o ethos íntimo das parcerias
homoeróticas. 1. ed. Campinas - SP: Pontes Editores, 2007. v. 1. 368 p.
__________ Between men: English literature and male homosocial desire. New York:
Columbia University Press, 1985.
SILVA, Hélio. Travestis: entre o espelho e a rua. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
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