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SEMINÁRIO DE ESTUDOS CULTURAIS, IDENTIDADES E RELAÇÕES INTERÉTNICAS

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE


SÃO CRISTÓVÃO, DIAS 05, 06 E 07 DE AGOSTO DE 2009

DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA – INCURSÕES ETNOGRÁFICAS SOBRE


PRÁTICAS DE HOMOSSOCIABILIDADE NA METRÓPOLE CEARENSE.

Erivaldo Teixeira1
Cristian Paiva2

O transitar durante o dia pelas ruas de Fortaleza, em especial pelo centro da cidade,
num ínterim driblando o calor, nem sempre permite olhares mais apurados para as tramas
de interação ali vivenciadas. À boca da noite, abrem-se outras temporalidades e regimes de
visibilidade, constituindo territórios em desalinho, em torno de cujos rastros voltam-se as
lentes desta investigação, em busca de boas garimpagens conceituais que permitam dar
conta do que se passa nas cartografias noturnas do centro. Este texto foi originado a partir
de incursões etnográficas de caráter intensivo em uma das manchas morais (PARKER,
2002; MAGNANI, 2003) de boemia no centro da metrópole cearense, na qual se
espacializam práticas de sociabilidade homoerótica, dispondo de forma borrada diversas
manifestações do desejo homossocial (SEDGWICK, 2007, 1985), as quais desafiam as
demarcações identitárias do coletivo LGBTT, permitindo configurar sub-identidades com
escassa inteligibilidade política e acadêmica, mas profundamente arraigadas na cultura
sexual brasileira e nordestina. A busca de inserção nesses territórios, tomados como
configurações de espaço-tempo praticados por sujeitos e mediados por linguagens,
silêncios e códigos de interação, na tentativa de elucidações bem chegadas, pretende dar
conta de um nível de investigação capaz de aproximar-se das práticas de subjetivação, de
espacialização do desejo e dos borramentos identitários naqueles contextos, focalizando as
interações sexuais e afetivas entre homens.
Uma das inquietações no decorrer da trama da pesquisa consistiu em buscar o
entendimento dessas “identidades embaçadas”, mais precisamente que tipos de
sociabilidades ou recortes são elaborados, elegendo como eixo analítico e metodológico as
práticas homossociais e as “sociações” (no sentido de Simmel) que se processam num
ambiente de freqüência homoerótico no centro da cidade. Esse “centro” que possui um

1
Graduando em Ciências Sociais na Universidade Estadual do Ceará – UECE/Fortaleza - e-mail:erivestt@hotmail.com
2
Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC/Fortaleza (Orientador da pesquisa) – e-mail:
cristianpaiva@uol.com.br

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imaginário social bastante estruturado por hierarquizações morais associados às dicotomias


casa x rua, espaços de higiene x espaços de poluição, espaço dos semelhantes x espaço dos
estranhos, sendo o centro ligado ao ethos da boemia, da marginalidade, da transgressão em
potencial, lugar policiado, mas habitado de subjetivações sexuais. Lugar policiado,
marcado como lugar exterior à sexualidade conjugal, ao ambiente saudável para crianças,
adolescentes e mulheres decentes, que abre a fronteira para o exercício das estridências e
sussurros das sexualidades desviantes. O centro, desse modo, também presta-se como
contexto de interação para as tramas relacionais entre homens, mediadas por interesses
sexuais e emocionais. Podemos dizer, inclusive, que as sociações homoeróticas estão
profundamente associadas à constituição de uma cultura urbana, a uma ética de interação
cosmopolita, as homossexualidades sendo um segmento social relevante para a
caracterização desse modo de viver a cidade, a metrópole e o seu centro.
Sendo o centro lugar policiado, podemos do mesmo modo afirmar que o centro da
cidade configura demandas e significações outrora decorridas ou ainda resistentes de
boemia (CARDOSO, 1996), nas quais incessantemente se expressa o desejo de
“requalificação” ou de constituir novos usos desses espaços, visando dirimir as
ambigüidades e liminaridades historicamente associados ao centro. Daí propormos
entender os sujeitos das interações noturnas no centro da cidade como sujeitos permeados
por fluxos instáveis de identificação, os quais escapam aos desavisados, dado o caráter
borrado daquelas práticas, códigos e identidades, negociados em regimes de visibilidade e
enunciabilidade ambíguos e permeados por não-ditos e reversibilidades.
Nessas interações, os homens que por ali transitam constituem tramas relacionais
polissêmicas, engendrando distribuição de afeições nebulosas ou imperceptíveis, fortuitas e
sem expressão identitária demarcada, sem publicização das práticas, códigos de pertença e
valores/afetos vivenciados. Daí que apelamos à noção de “male homosocial desire”,
tomada de Sedgwick (1985), para destacar a amplitude desse mosaico de pulsações ou
desejos ligados às sociações entre homens. O termo “desejo homosocial” reveste-se, no
contexto específico da cultura sexual brasileira, e em particular nordestina, de novas
ambigüidades e deslizamentos, indo além (ou, melhor seria dizer, permanecendo aquém)
de categorizações identitário-políticas das sexualidades e dos gêneros.

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Os bares elencados no contexto da pesquisa, situados no centro da cidade, trazem


consigo um saudosismo ainda presente no entorno social. Por conseguinte, os vários motéis
nas bordas, os mini-cinemas pornôs e um aporte sombreado de michetagem e jogatinas
apontam o fisgar amendoados dos clientes que insistem em ocuparem a parte externa onde
a caça é mais fácil, inclusive tal consideração denota “o desejo pelo homem de verdade, ou
seja, pelo padrão de masculinidade idealizado no contexto brasileiro” (MISKOLCI e
PELUCIO 2008).
Tais cenários foram bons achados ao aprendiz quando insistiu em não ficar nas
pesquisas de gabinete, mas ao contrário, desejou estar lá, na poluição de afetos da noite,
para acompanhar determinadas trilhas dessa paisagem noturna saturada de sentidos
sexuais. A carnalidade da pesquisa motivou, juntamente com a interlocução com o
orientador, que também se fez presente nas noites do centro, a escrita desse pequeno
ensaio, que aqui apresento. Essa experiência de aprendiz-pesquisador-flâneur encontrou
ecos quando da leitura de Dois perdidos na noite suja, do escritor Plínio Marcos (2003), no
qual a surdina é tomada em seu valor legítimo de micropolítica de afetos, e no caso da
nossa pesquisa, serve de modalidade de registro etnográfico no trato dos múltiplos usos da
sexualidade dos sujeitos que habitam aquelas zonas morais do centro. Surdina,
ambigüidade, negociações de afeto, abjeção compõem a atmosfera da cartografia noturna,
para além da versão “oficial” da cena do centro.
Privilegiei, durante as incursões em campo, o debruçar sobre as mesas, o ouvir
atento, a vontade de aprender o idioma nativo dos sujeitos, as “falas nativas”, que
continuamente desafiam as “falas peritas” acerca daqueles sujeitos sexuais/políticos. Da
parte do aprendiz-pesquisador, adotamos outra postura que não a identificação taxativa do
“ser pesquisador”, rotulação que no mais das vezes serve para obstruir os contatos e
produzir falar “por cima dos ombros” dos informantes. Vinculo essa postura à de Silva
(2007), o qual adentrou no universo de glamour, devaneios, amores e cotidiano das
travestis da Lapa no Rio de Janeiro. Uma das estratégias metodológicas de Hélio Silva por
mim fisgada, diz respeito principalmente ao deixar de ser um mero observador
desconhecido para tornar-se um confidente, alguém confiável a quem foram abertas as
portas daquele mundo particular. Ele teve acesso a seus lares, histórias de vida, angústias,
alegrias, desabafos.

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UM APROXIMAR DA METODOLOGIA COM O CAMPO E SUAS FORMAS DE


VER AS COISAS
A elaboração das narrativas aqui colhidas foi possível por intermédio de
informantes qualificados ou privilegiados, que elucidam os movimentos e códigos
engendrados na situacionalidade do espaço-tempo investigado. Insistimos aqui em apontar
um uso desconectado entre o idioleto praticado pelos sujeitos e o discurso político e as
categorizações identitárias construídos pelos coletivos LGBTT. As reivindicações do
movimento (direito à união civil, à saúde, à superação de vulnerabilidades, etc.) e as
segmentações identitárias (gays, lésbicas, transexuais, travestis) raramente coincidem com
aquelas vivenciadas pelos sujeitos investigados. Entendidos, mariconas, boys, casados que
curtem, giletes, travecos, afeminados, discretos, etc, formam um coletivo ininteligível
relativamente às representações e identificações do movimento associativo. Para dar conta
desse “idioma nativo”, freqüentemente somos ajudados por informantes qualificados, que
elucidaram os movimentos, códigos, atores e espaços que habitam os referidos territórios.
Insistindo que o pesquisar necessita de força narrativa, múltiplas vozes se fazem
ouvir no relato etnográfico, além das vozes dos pesquisadores, visando recuperar parte da
polifonia encontrada no campo: nas situações fortuitas, nos movimentos dos corpos em
seus trajetos para o banheiro ou vindos de trottoirs, nas práticas de interações eróticas, em
múltiplas situações fisgadas de um flanar sociológico mais apurado ou decorrente de
garimpagem a fundo. Nesse sentido, o mote do estar jogado, perdido, na noite tida como
suja, extraído do teatro de Plínio Marcos (2003), sinaliza a postura metodológica de
pesquisa, em que reconhecemos a importância de nos vermos incluídos nas cenas e intrigas
(RICOEUR, 1994, p. 16) que ali se perfazem, emprestando as sensibilidades noturnas
experimentadas naqueles bares do centro. Além disso, os procedimentos da pesquisa
insistiram menos na gélida enunciação dualista: questão/resposta, do que nas práticas de
visitações intensivas e sistêmicas, visando dar conta das enunciações locais, no balcão, na
escuta surda de inúmeros desabafos ou saudosismos, principalmente por parte das travestis.
Para superar a condição de “ser estrangeiro” ou “de fora”, associada à condição de
pesquisador – os dois perdidos na noite suja – ficamos atentos aos detalhes de uma
“sociologia da surdina” (PAIVA, 2007) e das transitoriedades onde o escutar por vezes
debruçando sobre mesas, no balcão interno ou mesas postas em ângulos onde o olhar
alcançava visão das tramas e insinuações ocorridas. Tais enunciações, no mais das vezes

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efêmeras, necessitavam de registro em diário de campo, do contrário voam feito a


penumbra da noite.
No decurso da pesquisa está sendo construído o patchwork teórico, levando em
conta os trabalhos já clássicos sobre cultura sexual brasileira e homossexualidade (Fry,
Parker, Trevisan, Silva, etc), bem como trabalhos produzidos sobre as práticas
homossociais na noite da cidade de Fortaleza (tais como PAIVA, 2006; VALE, 1996,
2006), dentre vários outros autores que trabalham com objetos de investigação que ainda
pertencem a um campo de estudos visto de forma suspeita ou ainda em diagonal.
As tentativas de sociações eróticas, disputas falseadas por flertes transmutados por
interesses financeiros, fisgados no percurso da madrugada, compõem cenas tresloucadas,
alegres ou melancólicas, a depender do que se passa nas mesas: cerveja, disputas, flertes,
composição de personagens (o garoto, a maricona, o senhor, o michê, a travesti, o morador
de rua, o taxista, etc.), ou o solitário à mesa. Sem perder o ritmo, a vitrola eletrônica,
alimentada por moedas de um real, põe o fundo musical da noite: Belchior, Calcinha Preta,
Calypso ou Madonna.
Num dos bares, os clientes mais assumidos, do babado ou afeminados geralmente
ocupam as mesas e cadeiras expostas na parte externa, ou seja, a pista, onde não raro se
dão as tentativas de fisgar, por olhares amendoados, os transeuntes. Na parte interna, o
binômio homem/mulher ou clientes que por outras questões preferem ficar na espreita.
Distintamente, no outro bar, as tentativas de sociabilidade são mais livres ou expressas sem
os olhares em desalinho dos garçons do bar concorrente. Michês, afeminados e travestis
dão a tônica do circuito externo/interno/banheirão, juntamente com os demais clientes
reservados ou que discretamente fazem parte das tramas decorridas.
As sinuosidades e ambigüidades das interações ali encenadas permitem
compreender as incertezas que freqüentemente rondavam o pesquisador (“os perdidos na
noite”) na busca de explicitar a ética do desejo negociada, por exemplo, nas enunciações e
apreensões junto aos clientes que após acordos verbais resolvem “dar uma volta” com os
michês de quinta ou personagens não-indicados pelo aceite dos garçons. Pela noite adentro
com os entendidos e mariconas – categorias nativas demarcadas em inúmeras indagações –
os desabafos, exposições ou justificativas de amores falseados, foram motes discursivos
para não adentrarmos nas identificações nominais dos informantes qualificados.

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Todavia, o esmiuçar dessas cenas e intrigas colaboraram no trato das narrativas


durante as inúmeras idas a campo e derivou insistentes indagações: Nessas territorialidades
há demarcações homossociais ou literalmente abarcam um leque de sujeitos e
subjetivações distintas? Em que medida o caráter híbrido, borrado, das identidades dos
sujeitos que freqüentam esses bares constituem um desafio às identidades e representação
políticas construídas pelos movimentos homossexuais no Brasil e no Ceará?

E ONDE ESSES BARES ESTÃO?


Dispostos na Avenida Duque de Caxias, outrora, cenário de densa michetagem de
pista, fechação e travestilidade, novos aportes condensam o local que já não tem o glamour
dos anos oitenta onde a boate Casa Blanca e o Bar Duques e Barões impulsionaram a
movimentação noturna. Todavia, o fazer etnográfico em um cenário diferenciado com
saudosismo nas entrevistas favorece diálogos com os informantes qualificados, daí ser
necessário um olhar "molecular", uma espreita das sutis movimentações de desejo
homossocial, num nível próximo ao olhar do narrador proustiano, “olhar botânico"
(PAIVA 2006), o qual possibilitou percepções nesse regime de surdina e investido de
desejo homoerótico, os quais nem sempre são afirmados declaradamente nos discursos das
“casas”.
Essas casas são dois bares dispostos cerca de cinqüenta metros um do outro. Dentre
as considerações nas idas a campo, indaguei a tímida presença da travestilidade no bar
Disney Lanches (DL) o que é bem demarcado e com freqüência no bar Mega Lanches
(ML), onde lá se revelam práticas homossociais e subjetivações eróticas mais explícitas. A
estrutura do DL proporciona ao cliente opções externa (na calçada), na parte interna e ao
fundo um grande espaço que nas sextas-feiras e sábado há seresta e uma sensação de
conquista e de um ficar mais intenso. Inclusive a presença de mulheres talvez se constitua
como um dos impeditivos para as travestis, ou seja, uma direta concorrência com os
homens casados, descasados ou solteiros que adensam as mesas e cadeiras.

DISNEY LANCHES OU PREVALÊNCIA DE MÚLTIPLOS DESEJOS


A “casa” dispõe de uma boa estrutura física, com mesas, cadeiras, lanches rápidos,
inclusive local de jantar para muitos casais e homens solteiros que residem no centro.
Inicialmente jamais percebi decorrer caça a homens de verdade naquele local, por sujeitos

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homoeróticos. Informano por um conhecido, sentei numa quinta-feira de maio de 2008.


Sentado na parte externa numa mesa percebi o quanto fervem os desejos e os acordos que
envolvem até mesmo o senhor que garante a segurança quando levava um bilhete ou fazia
contatos no modelo “pombo-correio”. Observei que os homoeróticos mais discretos ou que
reforçam o modelo bicha/bofe predominam no entra-e-sai e permanecer da clientela
desejante. Dentre os informantes qualificados, uma consideração de Osmar, 38 anos,
homossexual afeminado, cabeleireiro, o qual disse marcar ponto às sextas-feiras, que faz
essa delimitação na tentativa de ficar com homens de verdade, se faz presente nas frestas
do aprendiz quando se postam à mesas senhores adultos, geralmente desconfiados, com
homens jovens ou boys já manjados ou conhecidos dos garçons:

Aqui tem uma coisa interessante, a gente vai se aproximando dos bofes ou
homens casados que fazem e por vezes rolam. E nem precisamos de muito aqué.

Cena comum, regada por cervejas e michetagem clara nas investidas dos bofes,
idealizações para muitos homoeróticos. A disputa pelos homens ficará entre as mulheres,
na sua maioria, descasadas ou descompromissadas. (Vale destacar que o recorte para o
texto não privilegiou as mulheres freqüentadoras ou em busca de parceiros momentâneos
ou aquelas que jogam olhares aos homens não-efeminados). No decorrer das cenas, tal
observação era nebulosa, pois a interface dos desejos, a priori não nos credencia a
identificarmos os códigos-territórios (PERLONGHER, 2008), mas a tessitura dos
episódios, daí a atenção nesse nível molecular para dar conta dessas sinuosidades.
O DL tem na parte interna várias mesas com cadeiras fixas, e um corredor que leva
aos banheiros e um outro espaço onde as disputadas serestas às sextas-feiras e sábados
atraem muitas pessoas, dentre elas comerciários e gente para sambar, cantar, “se esbaldar”.
Num dos cantos desse espaço ao fundo do DL, quando eu resolvi sair para um flanar meio
às avessas pelo local em busca de outros olhares, verifiquei que em várias dessas mesas,
dispostas próximas do banheiro, os homoeróticos afeminados se postam num estilo caça
ou fisgada.
Recordo da intervenção de Jonas em busca de homens de verdade naquele circuito
em que transitam desejos e a técnica para fisgar dependerá de outras situações, geralmente
acordadas de forma rápida nos momentos que esses homens demonstram interesse, daí “o

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combinar para fazer lá fora é melhor e se rolar aqué eles vão mesmo. Inclusive, eu prefiro
vir aqui pois não gosto de lugares gays. Aqui tem homem que faz e nem sempre a gente
tem que pagar pois eu não pago para fazer com bofe”. (Jonas, 44 anos, auxiliar de
laboratório, homossexual). Nos dias em que no DL não há seresta, o espaço que denomino
de salão de festas fica restrito a poucos casais ou conversas mais reservadas de casais
heterossexuais.
No decorrer dos dias da semana, a parte externa é disputada por grupos de amigos
para um bate-papo ou paquerar as pessoas que passam ou adentram no DL. Os
homoeróticos “mais discretos” freqüentam o local afirmando que por lá é mais tranqüilo e
há segurança. Ouvi relatos de garçons e taxistas de que por ali todos são iguais e não há
esse negócio de discriminar. Diferentemente observo ao sentar na parte externa os
embustes para com as travestis mal-arrumadas ou homens que vivem nas ruas quando se
aproximam dos clientes para pedirem dinheiro ou parte do que se alimentam. Rapidamente
o segurança solicita que se afastem, o que tem concordância por parte dos clientes.
Nos dias mais movimentados, sextas-feiras e sábados, jovens mais descolados
estacionam seus veículos e em grupos ficam por lá mas não se enturmam com os clientes
mais presentes. Homens com vistosas alianças de ouro na mão esquerda acompanhados de
mulheres, casais heterossexuais ou grupo de homens vindo das lojas adentram no DL
efusivamente. Nas várias incursões nunca me deparei com travestis sentadas nas mesas ou
em grupo naquele local. Numa outra ocasião no Mega Lanches – ML, uma travesti,
inclusive com militância em uma associação de travestis, foi incisiva ao afirmar:

A gente não vai lá por que eles não gostam das travestis. Por aqui o Zequinha
não mexe com a gente. Eu e minhas amigas nos sentimos melhor aqui (Mega
Lanches) do que por lá..Muito diag! (Leidiane, 38 anos).

A intervenção de Leidiane em uma ocasião me faz lembrar uma das questões que
inibem as travestis naquele local: a presença massiva de mulheres nas serestas ou o
ambiente policialesco da própria casa que não permite o desbunde ou o excesso. Num
ambiente em que nada permite-nos falar de vigilância disciplinar ou panoptismo, as
práticas de vigilância também são ambíguas, e servem ora para inibir, ora para facilitar os
fluxos de desejo homoeróticos. Aproveitando a situação de cliente/pesquisador indago ao

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Marcondes, um dos garçons, sobre a segurança. Ele afirma que tais coisas são para evitar
bagunça, drogados e gente que só vem para roubar.
Um dos segmentos que têm cadeira cativa por lá são os homoeróticos mais idosos,
aparentando já estar na casa dos cinqüenta anos ou visivelmente idosos. Por vezes ficavam
horas sozinhos nas mesas ou acompanhadas por homens novos. Segundo o garçom que
privilegiei para interlocução e ao qual me apresentei com o decorrer das incursões
enquanto aluno que estava fazendo uma pesquisa sobre boemia:

...a maioria desses caras chegam junto desses velhos, ficam por ali, eles pagam
tudo, alguns até saem com eles. A gente informa que alguns roubam, mas eles
nem ligam. Esse pessoal tem a cabeça dura. Mas são bons clientes e não causam
nenhum problema a casa. Eles são discretos.

Outra indagação que orbitou nas minhas incursões nesse local se deu por ocasião de
comentar a conhecidos e até mesmo em segmentos homoeróticos que realizava um
trabalho sobre o referido local e prontamente fui surpreendido com depoimentos como:

Engraçado esse seu trabalho. Eu já fui por lá, inclusive com amigos e amigas
para assistir a jogos, e nunca me dei conta que por lá tem toda essa
efervescência. Talvez seja lá dentro, pois ali fora eu nunca vi isso. (Rodrigo, 55
anos, professor, heterossexual)
Pois num é quem me disseram que por lá rola babado. Eu não sabia ainda disso.
Eu já fui por lá algumas vezes e nunca vi nada. Interessante essas coisas.
(Antonio, 59 anos, jornalista, homossexual).

No âmago dessas cenas, os dois bares já não são mais díspares, talvez nas falas
nativas de alguns clientes bem mais discretos, os quais chegam juntos, sentam em casal nas
mesas internas e se possível lá no salão de festa, não fazem nenhuma demonstração de
afeto em público, mas revelam o amor que não ousa dizer o nome; ou mesmo quando
descuidadamente fixam os olhos nos bofes postos com a perna fixada na parede próxima
ao banheiro. Esses clientes não freqüentam o outro bar que será descrito, mas passam nas
proximidades, orbitam o desejo, mas preferem o DL na parte interna pela nebulosidade dos
afetos e das possíveis conquistas mais reservadas.
Preliminarmente, observo diferenciação entre os clientes no circuito desses bares
analisados para estudo e produção do texto e nas formas e efetivação dos arranjos dos
desejos e nas insinuações por vezes velada dessas homossociabilidades.

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NO MEGA LANCHES É MAIS LIBERAL, AQUI É TUDO DE BOM!


Nas várias ocasiões do campo, decidi, acompanhado do orientador, fazer o pequeno
percurso DL – ML, para ter uma visualização do que acontecia na noite, sentir as
diferentes velocidades dos fluxos de desejo expressos naqueles territórios. Aos poucos,
começávamos a nos tornar conhecidos dos freqüentadores, sendo por eles reconhecidos, e
inclusive convidados para dividir a mesa, nos dias mais disputados. Houve uma noite em
que após flanarmos rapidamente entre as mesas e os bares, sem cumprimentar os
conhecidos, fomos abordados por Leidiane. Na mesa em que ela estava haviam outras três
travestis e um amigo delas denominado André. O convite para sentar com eles foi um
bálsamo nas minhas tentativas de um estar lá, estar perto, estar junto. As travestis não
fazem parte do recorte empírico desse texto, mas são coadjuvantes nas situações ou citadas
por informantes, inclusive para entender um pouco essas movimentações travestis no
centro, me debrucei sobre o texto de Vale (1996), o qual discorre sobre o antigo cinema
Jangada e rememorado em muitas das conversas que tive com elas no decorrer das visitas.
O ML fica na esquina da rua Floriano Peixoto com a Avenida Duque de Caxias. De
forma estratégica e sem ter por onde se esconderem, os clientes se posicionam
internamente ou na parte externa. Com fluxo intensivo de clientes, os garçons ficam num
frenesi intenso mas atentos aos códigos-territórios propostos por Perlongher (2008).
Explicitamente, quem circunda pela parte externa da “casa” verifica que as mesas e
cadeiras brancas de plástico são ocupadas, segundo o próprio discurso dos clientes, pelas
pintosas, travestis, boys com grupos de homoeróticos mais velhos ou algum casal
heterossexual desavisado que, com o tempo, observa o diferencial na clientela e ali
permanece. Mas apesar de ser liberal, há acordos com o gerente/dono que, de forma
atenciosa, monitora todas as ações. Os garçons orientam no uso da vitrola eletrônica e
vistoriam o que não estiver de acordo com a casa. O gerente é um dos informantes
privilegiado e mediador frente às conversas que rondam aquele balcão:

Por aqui eu sempre oriento esses entendidos de quem rouba quem é legal, mas
geralmente eles não se preocupam com isso, daí de vez em quando tem uns
roubos, mas a gente não apóia essas coisas.

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Tal consideração decorreu de uma cena onde percebi o engodo do boy para com um
cliente, um senhor com média de 50 anos, gordo, com aliança de ouro na mão esquerda e
com uma chave de um veículo, o qual segundo o gerente, tem dinheiro. Nesse dia, após
uma conversa entre os dois, em pouco tempo o cliente retorna desnorteado, trajando apenas
um calção, a única peça que o boy lhe deixara. Nenhum movimento ou prática solidária
transcorre. Atônito, observo que o senhor de forma preocupada põe as mãos sobre a cabeça
e sai ao encontro do carro. Em suas mãos, a chave do veículo.
Verificando que o som continuava, nesse instante tocando na disputada vitrola
(cada cliente paga um real e tem direito a escolher três músicas, dentro do repertório
programado na máquina) a música Paralelas de Belchior, indago ao gerente sobre o
episódio. Ele rapidamente adverte que isso é comum e sempre avisa aos entendidos que
muitos “desses caras” roubam. Tal fala me faz lembrar o garçom do DL. A “casa” por ser
menor, aproxima os clientes e os faz observarem todas as cenas e situações do circuito.
Inclusive me inquietavam as constantes idas de travestis, clientes mais discretos ou
efeminados ao banheiro. Abruptamente fui advertido pela travesti que escolhi (na mesma
medida em que fui por ela escolhido) como informante privilegiada que o babado era forte
e se eu tinha coragem de ir. Nessa hora pus em cena o que fazia naquele local e obtive
apoio dela por ser membro de uma organização de trans, conforme já aludido.
No ML, observo os incessantes “olhares amendoados” dos clientes idosos ou
afeminados dirigidos aos clientes mais másculos acompanhados na parte interna ou aos
homens de verdade que passam pela calçada. As investidas das travestis decorrem do bate
cabelo ou exibicionismo quando percebem que não estão dando close ou sendo notadas.
Nem sempre os michês (termo que designa os jovens que por ali rodeiam, para propostas
ambíguas de contato sexual por atração ou trabalho sexual) são paquerados pelas travestis,
mas disputam os “homens discretos” que freqüentam o local. Nas vezes que fui ao ML,
não verifiquei que o local seria adequadamente caracterizado como point das travestis, mas
nitidamente de investida dos homens solitários, casados ounão em busca de amores
fortuitos na tentativa de, por essa estratégia de invisibilidade, fugirem da abjeção que ronda
as práticas e identidades ligadas à homossexualidade.
Dos dois bares, o ML me fez perceber com maior nitidez as corporeidades, as
tramas e situacionalidades de forma mais densa na área de boemia homoerótica do centro.
A idéia de controle naquele local passa ao longe. Os acordos verbais ou códigos já

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incorporados contam com a colaboração dos garçons, taxistas, moto-taxistas e clientes que
há anos freqüentam o local colaboram na tessitura dos conceitos moleculares e botânico
dessas manchas difusas onde as ebulições subjetivas denotam o quanto traçarmos
classificações elaborações escorregadias ou conforme Matos (2007, p. 03)

As “outras histórias” convergem... A um questionar das concepções de história


como evolução linear...Ao focalizar o relativo, a multiplicidade de durações que
convivem entre si urdidas na trama histórica abriu possibilidades para as
nuanças, as tendências...

Ainda aproveitando a situação daquela mesa florida, indago a travesti por que não
percebia a presença delas no DL. Prontamente ela diz: “A gente não se sente bem por lá.
Não é que não possamos ir, mas aqui é o nosso canto. As monas e travestis se entendem
melhor”.
Essa consideração decorre do fato de que no ML as negociações são mais frouxas
ou resultantes de maior liberação ou ousando não falar, ver ou dizer das tramas, acordos ou
jogatinas entre os clientes. A presença feminina é mínima e, quando ocorre, tem a ver com
alguma família, que ocasionalmente freqüenta o local à noite, ou casais. Essas nuances e
pontuações dos desejos são frouxas mas nem sempre expostas. As negociações nas mesas
são formas mais reservadas de conquista, as quais por vezes são perguntadas ao gerente se
a pessoa é gente boa ou está ali “para se dar bem”. O que eu não conseguia decifrar mas
com o decorrer das inúmeras visitações compreendia o quanto a mediações até mesmo na
captura dos desejos são valiosas.

DE VOLTA À ENCANTADORA ALMA DAS RUAS


Sendo este um exercício inicial de etnografia dos afetos noturnos ligados ao desejo
homossocial, ainda há bastantes questões e dimensões da experiência que precisam ser
retomadas e discutidas com mais vagar. Este texto representa uma tentativa de refigurar a
experiência da noite naqueles bares do centro, com um entorno constituído por pequenos
motéis e salas cinevídeo que desenham uma mancha moral na qual se espacializam os
fluxos de desejo homoerótico. Resta, inclusive, fazer melhor cartografia dessas manchas.
As pequenas cenas aqui narradas e os sujeitos aqui abordados acusam uma empatia do
pesquisador pela rua, pela noite, pelo centro e pelos afetos aí suscitados, cenário que

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convida ao pensamento e à paixão intelectual. Ficará para outro momento a elaboração


analítica mais apurada dessa empatia e dessa experiência pessoal com “a alma encantadora
da noite”. Volto a ela, a seus sujeitos e seus afetos.

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