Bioética: princípios morais e aplicações
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Bioética - Darlei Dall'Agnol
PRIMEIRA PARTE:
BIOÉTICA ESPECIAL
Capítulo 1
PRINCÍPIOS BIOÉTICOS
Em 1974, o Congresso Estadunidense instituiu uma comissão com a finalidade de identificar os princípios básicos que deveriam nortear a experimentação com seres humanos nas ciências do comportamento e na biomedicina (The National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behaviroal Research). A Comissão Nacional era interdisciplinar e contava com a participação de um filósofo (Albert Jonsen) e de vários cientistas e representantes da sociedade. A comissão nasceu a partir de escândalos como o caso Tuskegee onde pacientes negros do Estado de Alabama não eram tratados, mas simplesmente observados para verificar como a sífilis se desenvolvia naturalmente neles. Esse caso foi associado aos abusos dos experimentos nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial resultando no Código de Nuremberg (1948), que começou a exigir a autorização explícita dos participantes em experimentos científicos. Quatro anos depois, em 1978, foi publicado o Belmont Report e três princípios foram apresentados com o intuito de justificar as regras necessárias para tais procedimentos. Esses princípios são: o respeito pelas pessoas (isto é, as preferências valorativas dos indivíduos e suas escolhas devem ser consideradas e aqueles com autonomia reduzida devem ser protegidos); a beneficência (promoção do bem-estar dos participantes e o dano prevenido) e a justiça (as pessoas devem ser tratadas equitativamente).
Sob o ponto de vista teórico-conceitual, alguns pontos chamam a atenção. Em primeiro lugar, o Relatório Belmont afirma explicitamente que outros princípios podem ser relevantes. Quer dizer, reconhece-se que tais normas podem ser insuficientes para cobrir todas as situações complexas. Por exemplo, alguns bioeticistas sustentam que o respeito aos povos ou às comunidades também deveria ser introduzido. Em segundo lugar, afirma-se que esses princípios não podem sempre ser aplicados para resolver todas as disputas de problemas morais particulares. O Relatório Bemont, então, parece pressupor a casuística senão levar ao próprio casuísmo. Por exemplo, se durante uma pandemia há um tratamento experimental sem evidências suficientes de sua eficácia e segurança, o princípio da não-maleficência exigiria que ele fosse, mesmo assim, prescrito? Não seria danoso prescrevê-lo? Que outros princípios deveriam ser considerados? A autonomia tem valor absoluto? Como veremos, essa tensão na aplicação dos princípios deve-se à base metaética intuicionista, ou seja, à tese de que não há uma ordem hierárquica entre aqueles princípios nem a possibilidade de subsunção a uma metanorma (RAWLS, 1999, p. 30). Finalmente, o relatório normatiza somente experimentos com seres humanos e não com outros animais, além de não fazer referências ao meio ambiente. Por isso, o relatório pareceu, para alguns, natimorto (cf. EMANUEL, 1995). Na última seção deste capítulo, esses problemas serão retomados.
Os bioeticistas Tom Beauchamp (filósofo contratado para assessorar a Comissão Nacional), seguindo tendências éticas utilitaristas, e James Childress, um defensor do deontologismo rossiano, publicaram, em 1979, o livro PBE (1ª ed.). A obra discute os três princípios de forma mais detalhada – o princípio da não-maleficência foi acrescentado e distinguido do princípio da beneficência. O motivo da distinção é o de que os deveres negativos da não-maleficência possuem algumas especificidades que parecem torná-los prioritários em relação aos deveres de beneficência. Beauchamp e Childress também não consideram o respeito à pessoa, mas simplesmente o respeito pela autonomia individual. Seja como for, (discutiremos esses problemas mais adiante), alguns bioeticistas (Cf. COSTA; GARRAFA; OSELKA, 1998,p. 15) dividiram esses princípios em deontológicos (não-maleficência e justiça) e teleológicos (beneficência e autonomia). O principialismo é, portanto, uma teoria normativa mista. Foi esse enfoque que se tornou predominante, tanto científica quanto academicamente, mundo afora.
No Brasil, ele continua, desde 1996 (através da antiga Resolução 196) a embasar a legislação que regulamenta as pesquisas com seres humanos. O Capítulo III da agora atualizada Resolução 466, de 2012, estabelece:
III.1 - A eticidade da pesquisa implica em:
a) respeito ao participante da pesquisa em sua dignidade e autonomia, reconhecendo sua vulnerabilidade, assegurando sua vontade de contribuir e permanecer, ou não, na pesquisa, por intermédio de manifestação expressa, livre e esclarecida;
b) ponderação entre riscos e benefícios, tanto conhecidos como potenciais, individuais ou coletivos, comprometendo-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos;
c) garantia de que danos previsíveis serão evitados;
d) relevância social da pesquisa, o que garante a igual consideração dos interesses envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação sócio-humanitária.
Discutiremos cada um desses princípios nas próximas quatro seções do presente capítulo. Dada a peculiaridade da atual legislação brasileira, é oportuno destacar que alguns bioeticistas fazem uma distinção entre pesquisa em seres humanos e com seres humanos. Desse modo, temos hoje também a Resolução 510/16 direcionada às Humanidades que faz parte do sistema CEPs (Comitês de Ética em Pesquisa) da CONEP, mencionada na Introdução. O Art. 3 da referida legislação segue, entretanto, os quatro princípios acima citados e acrescenta outros para pesquisas em Ciências Humanas e Sociais, por exemplo respeito aos valores culturais.
Cabe ressaltar que o esboço teórico básico do principialismo pode ser encontrado em William Frankena (ou até mesmo em David Hume) que sustentava a moralidade em dois princípios elementares e independentes, a saber, o da beneficência ou utilidade e o da justiça (FRANKENA, 1963, p. 35). Tal teoria é chamada de deontológica mista
na medida em que seus dois princípios são vistos como sendo válidos prima facie e não são deveres absolutos. Frankena claramente defendeu que na maioria das vezes o princípio da justiça deve sobrepor-se ao da