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A LÓGICA E A EVOLUÇÃO DA TEORIA CIENTÍFICA (Karl Popper)

A ideia central que gostaria de apresentar nesta palestra pode ser expressa do seguinte
modo.
As ciências naturais, bem como as ciências sociais, começam sempre por problemas,
pelo facto de algo nos causar espanto, como os filósofos gregos costumavam dizer. Para
resolver estes problemas, as ciências usam fundamentalmente o mesmo método que o senso
comum emprega, o método da tentativa e erro. Para ser mais preciso trata-se do método que
consiste em experimentar soluções para o nosso problema e depois pôr de parte as falsas
considerando-as erróneas. Este método pressupõe que trabalhemos com um grande número de
soluções experimentais. É testada e eliminada uma solução após outra.
No fundo, este procedimento parece ser o único que é lógico. E também o
procedimento que um organismo inferior, até uma amiba unicelular, utiliza quando tenta
resolver um problema. Neste caso estamos a falar de testar movimentos de experimentação,
através dos quais o organismo tenta livrar-se de um problema que o aflige. Os organismos
superiores são capazes de aprender por tentativa e erro como deve ser resolvido um
determinado problema. Podemos dizer que também eles fazem movimentos de
experimentação – experimentações mentais – e que aprender é essencialmente testar, um após
outro, movimentos de experimentação até encontrar um que resolva o problema. Podemos
comparar a solução bem sucedida do animal a uma expectativa e assim, a uma hipótese ou a
uma teoria. Porque o comportamento do animal mostra-nos que este espera (talvez
inconscientemente ou por temperamento) que, numa circunstância semelhante, os mesmos
movimentos de experimentação resolvam de novo o problema em questão.
O comportamento dos animais, e também o das plantas, mostra que os organismos
estão ligados a leis ou regularidades. Eles esperam leis e regularidades no ambiente
circundante e presumo que a maior parte destas expectativas são determinadas geneticamente
— o que quer dizer que são inatas.
Ocorre um problema para o animal se se verificar que uma expectativa estava errada.
Isso conduz então a movimentos de experimentação, a tentativas de substituir a expectativa
errada por uma nova expectativa.
Se um organismo superior for muitas vezes desapontado nas suas expectativas, cede.
Não consegue resolver o problema; perece.
Gostaria de apresentar aquilo que disse até agora sobre a aprendizagem por tentativa e
erro num modelo de três fases. O modelo consta das três fases seguintes:

1. o problema;
2. as tentativas de solução;
3. a eliminação.

A primeira fase do nosso modelo é o problema. O problema urge quando ocorre algum
tipo de perturbação – uma perturbação quer de expectativas inatas, quer de expectativas que
tenham sido descobertas ou aprendidas por tentativa e erro.
A segunda fase do nosso modelo consiste nas tentativas de solução — ou seja,
tentativas para resolver o problema.
A terceira fase do nosso problema consiste na eliminação de soluções mal sucedidas.
Neste modelo de três fases a pluralidade é essencial. A primeira fase, o próprio
problema, pode aparecer no singular; mas não a segunda fase, a que chamei "tentativas de
solução" no plural. Já no caso dos animais falamos em movimentos de experimentação, no
plural. Não faria sentido chamar a um determinado movimento pontual um movimento de
experimentação.
A Fase 2, as tentativas de solução são movimentos de experimentação e
consequentemente, no plural; são submetidas ao processo de eliminação na terceira fase do
nosso modelo.
A Fase 3, a eliminação, é negativa. A eliminação é fundamentalmente a eliminação de
erros. Se for eliminada uma solução mal sucedida ou despropositada, o problema mantém-se
por resolver e dá origem a novas tentativas de solução.
Mas o que é que acontece se uma tentativa de solução vier a ser bem sucedida?
Acontecem duas coisas. Primeiro, a solução bem sucedida é aprendida. Entre os animais isso
significa geralmente que, quando surgir de novo um problema semelhante, os movimentos de
experimentação anteriores, incluindo os mal sucedidos, são breve e esquematicamente
repetidos pela ordem original; são percorridos até se chegar à solução bem sucedida.
Aprender significa que as soluções mal sucedidas ou postas de parte descem cada vez
mais ao nível de referências passageiras, de modo que finalmente a solução experimentada
bem sucedida surge como quase a única possível. Este é o procedimento de eliminação que
depende da pluralidade das tentativas de solução.
Pode dizer-se que o organismo aprendeu assim uma nova expectativa. Podemos
descrever o seu comportamento dizendo que espera que o problema seja resolvido por
movimentos de experimentação e, por fim, pelo último movimento de experimentação que
não é eliminado.
Como veremos, o desenvolvimento desta expectativa pelo organismo tem a sua
correspondente científica na formação de hipóteses ou teorias. Mas antes de passar à
formação de teorias científicas gostaria de referir uma outra aplicação biológica do meu
modelo de três fases. O meu modelo de três fases,

1. o problema;
2. as tentativas de solução;
3. a eliminação,

pode também ser entendido como o esquema da teoria da evolução de Darwin. E aplicável
não só à evolução do organismo individual mas também à evolução da espécie. Na linguagem
do nosso modelo de três fases, uma mudança, quer nas condições ambientais, quer na
estrutura interna do organismo produz um problema. É um problema de adaptação da
espécie: ou seja, a espécie só consegue sobreviver se resolver o problema através de uma
mudança na sua estrutura genética. Como se passa isto na visão darwiniana das coisas? O
nosso aparelho genético é de tal ordem que ocorrem continuamente mudanças ou mutações na
estrutura genética. O darwinismo presume que, nos termos do nosso modelo, estas mutações
funcionam como as tentativas de solução da Fase 2. A maior parte das mutações são fatais:
são mortais para o portador da mutação, para o organismo em que ocorrem. Mas desta forma
são eliminadas, de acordo com a Fase 3 do nosso modelo. No nosso modelo de três fases
devemos então de novo realçar a pluralidade essencial da segunda fase de tentativas de
solução. Se não houvesse uma imensidade de mutações, não seriam dignas de ser
consideradas tentativas de solução. Devemos partir do princípio que é essencial uma
mutabilidade suficiente para o funcionamento do nosso aparelho genético.
Posso agora finalmente passar ao meu tema principal, a teoria ou lógica da ciência.
A minha primeira tese neste capítulo é que a ciência é um fenómeno, biológico. A
ciência surgiu do conhecimento pré-científico; é uma continuação bastante notável do

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conhecimento de senso comum, que por sua vez pode ser considerado uma continuação do
conhecimento animal.
A minha segunda tese é que o nosso modelo de três fases é também aplicável à ciência.
Mencionei no início que, tal como já consideravam os filósofos gregos, a ciência parte
de problemas, do espanto em relação a algo que pode ser bastante comum em si mesmo, mas
que se torna um problema ou uma fonte de espanto para os pensadores científicos. A minha
tese é que cada novo desenvolvimento na ciência só pode ser compreendido desta forma, que
o seu ponto de partida é um problema ou uma situação problemática (o que significa o
aparecimento de um problema num determinado estádio do nosso conhecimento acumulado).
Este ponto é extremamente importante. A velha teoria da ciência ensinava, e ainda
ensina, que o ponto de partida da ciência é a nossa percepção dos sentidos ou a nossa
observação sensorial. Isto parece, à primeira vista, bastante razoável e convincente, mas está
basicamente errado. Pode facilmente demonstrar-se isso com a tese: sem um problema não há
observação. Se eu vos pedisse "Por favor, observem!", então a correcção linguística exigiria
que me respondessem perguntando-me "Sim, mas o quê? O que devemos observar?" Por
outras palavras, pedem-me que vos coloque um problema que possa ser resolvido através da
vossa observação; e se eu não vos der um problema, mas apenas um objecto, já é alguma
coisa, mas não é de forma alguma suficiente. Por exemplo, se eu vos disser "Por favor, olhem
para o vosso relógio", continuarão a não saber o que realmente pretendo que seja observado.
Mas já é diferente assim que vos colocar o problema mais banal. Talvez o problema não vos
interesse, mas pelo menos saberão o que se pretende que descubram através da vossa
percepção ou observação. (Como exemplo, podem considerar o problema de saber se a Lua
está a crescer ou a diminuir, ou em que cidade foi publicado o livro que estão a ler.)
Por que razão a antiga teoria pensava erradamente que em ciência se parte de
percepções dos sentidos ou observações e não de problemas?
Neste aspecto, a antiga teoria da ciência dependia da concepção de conhecimento
baseada no senso comum. Diz-nos que o nosso conhecimento do mundo exterior deriva
inteiramente das impressões dos nossos sentidos.
De uma maneira geral, tenho muito respeito pelo senso comum. Acho mesmo que, se
formos um pouco críticos, o senso comum é o conselheiro mais valioso e fiável em qualquer
situação problemática. Mas nem sempre é fiável. E em questões de teoria científica ou
epistemológica, é extremamente importante que se tenha uma atitude verdadeiramente crítica
em relação a ele.
É obviamente verdade que os nossos órgãos dos sentidos nos informam sobre o mundo
à nossa volta e que são indispensáveis para esse efeito. Mas não se pode concluir daí que o
nosso conhecimento começa com a percepção dos sentidos. Pelo contrário: os nossos
sentidos, do ponto de vista da teoria da evolução, são instrumentos que foram formados para
resolver certos problemas biológicos. Aparentemente, os olhos dos homens e dos animais
desenvolveram-se para que as coisas vivas capazes de mudar de posição e de se moverem
possam ser avisadas a tempo de encontros perigosos com objectos duros que possam
causar--lhes dano. Do ponto de vista da teoria evolutiva, os nossos órgãos dos sentidos são o
resultado de uma série de problemas e tentativas de solução, como o são os nossos
microscópios ou binóculos. E isso demonstra que, biologicamente falando, o problema vem
antes da observação ou percepção pelos sentidos: as observações ou as percepções dos
sentidos são importantes ajudas para as nossas tentativas de solução e desempenham o papel
principal na sua eliminação. O meu modelo de três fases é assim aplicável da seguinte forma à
lógica ou metodologia da ciência.

1. O ponto de partida é sempre um problema ou uma situação problemática.

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2. Seguem-se tentativas de solução. Estas consistem sempre em teorias e estas teorias,
sendo tentativas, estão frequentemente erradas: são, e sempre serão, hipóteses ou conjecturas.
3. Também na ciência aprendemos eliminando os nossos erros, eliminando as nossas
teorias falsas.

O nosso modelo de três fases,

1. o problema;
2. as tentativas de solução;
3. a eliminação,

pode portanto ser aplicado ao descrever a ciência, o que nos leva à questão central:
O que é que há de distintivo na ciência humana? Qual é a diferença-chave entre uma
amiba e um grande cientista como Newton ou Einstein?
A resposta a esta pergunta é que a característica distintiva é a aplicação consciente do
método crítico; na Fase 3 do nosso modelo, a fase de eliminação do erro, agimos de maneira
conscientemente crítica.
Só o método crítico explica o crescimento extraordinariamente rápido da forma
científica de conhecimento, o extraordinário progresso da ciência.
Todo o conhecimento pré-científico, animal ou humano, é dogmático; e a ciência
começa com a invenção do método crítico não dogmático.
Em todo o caso, a invenção do método crítico pressupõe uma linguagem humana
descritiva na qual podem tomar forma argumentos críticos. Possivelmente até pressupõe a
escrita. Porque a essência do método crítico é que as nossas tentativas de solução, as nossas
teorias e as nossas hipóteses, possam ser formuladas e apresentadas objectivamente sob a
forma de linguagem, para que se tornem objectos de investigação conscientemente crítica.
E muito importante observar a enorme diferença entre um pensamento que apenas é
subjectivo ou privadamente pensado ou tido como verdadeiro, que é uma estrutura
psicológica tendencial, e o mesmo pensamento, quando formulado na fala (talvez também na
escrita) e assim apresentado para discussão pública.
A minha tese é que o passo que vai do meu pensamento não falado "Hoje vai chover" à
mesma proposição falada "Hoje vai chover" é um passo tremendamente importante, um passo
sobre um abismo, por assim dizer. A princípio, este passo, expressão de um pensamento, não
parece assim tão grande. Mas formular algo por meio do discurso significa que aquilo que
antes era parte da minha personalidade, das minhas expectativas e talvez medos, está agora
objectivamente acessível e portanto disponível para discussão crítica geral. A diferença para
mim, pessoalmente, também é enorme. A proposição — a previsão, por exemplo, separa-se de
mim quando é formulada por meio do discurso. Torna-se independente dos meus estados de
espírito, esperanças e medos. Está reificada. Pode ser defendida experimentalmente por
outros, e por mim próprio, mas também pode ser experimentalmente posta em causa. Os prós
e os contras podem ser pesados e discutidos. As pessoas podem tomar partido a favor ou
contra a previsão.
Aqui chegamos a uma importante distinção entre dois significados da palavra
conhecimento [Wissen] – conhecimento no sentido subjectivo e no sentido objectivo.
Normalmente pensa-se no conhecimento como um estado subjectivo ou mental. Partindo
forma verbal "Eu sei" explicamos o conhecimento como um certa forma de crença — isto é,
uma espécie de crença que assenta em razões suficientes. Esta interpretação subjectiva da
palavra "conhecimento" teve uma influência demasiado forte na antiga teoria da ciência. Na
realidade, é completamente inútil para uma teoria da ciência, porque o conhecimento

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científica consiste em proposições objectivas formuladas por meio do discurso, em hipóteses
e problemas, e não em expectativas ou convicções subjectivas.
A ciência é um produto da mente humana, mas esse produto é tão objectivo como uma
catedral. Quando se diz que uma proposição é um pensamento expresso por meio do discurso,
isso é de certo modo verdade, mas não se centra com suficiente agudeza na sua objectividade.
Isto prende-se com a ambiguidade da palavra "pensamento". Como os filósofos Bernard
Bolzano e (seguindo as ideias deste) Gottlob Frege salientaram com particular acuidade,
devemos distinguir o processo de pensamento subjectivo do conteúdo objectivo ou do
conteúdo lógico ou informativo de um pensamento. Se eu disser: "Os pensamentos de Maomé
são muito diferentes dos de Buda", estou a falar não do processo de pensamento dos dois
homens mas do conteúdo lógico das duas doutrinas ou teorias.
Os processos de pensamento podem encontrar-se nas relações causais. Se eu disser: "A
teoria de Spinoza foi influenciada pela teoria de Descartes", estou a descrever uma relação
causal entre duas pessoas e a afirmar algo sobre o processo de pensamento de Spinoza.
Mas se eu disser: "A teoria de Spinoza contradiz no entanto a de Descartes em vários
pontos importantes", estou a falar do conteúdo lógico objectivo das duas teorias e não de
processos de pensamento. O que tenho sobretudo em mente quando sublinho o carácter
objectivo da fala humana é o conteúdo lógico de afirmações. E quando antes disse que só os
pensamentos verbalmente expressos podem ser sujeitos a crítica queria dizer que só o
conteúdo lógico de uma proposição, e não o processo de pensamento psicológico, pode ser
discutido de maneira crítica.
Gostaria agora de recordar o meu modelo de três fases:

1. o problema;
2. as tentativas de solução;
3. a eliminação,

e a minha observação segundo a qual este esquema de como o novo conhecimento é adquirido
se aplica desde a amiba a Einstein.
Qual é a diferença? Esta pergunta é decisiva para a teoria da ciência.
A diferença crucial surge na Fase 3, na eliminação das tentativas de solução. No
desenvolvimento pré-científico do conhecimento, a eliminação é algo que nos acontece: o
ambiente elimina as nossas tentativas de solução; não somos activos na eliminação, mas
apenas participantes passivos; sofremos eliminação e se ela destruir com demasiada
frequência as nossas tentativas de solução ou se destruir uma tentativa de solução que foi
previamente bem sucedida, destrói não só a tentativa de solução mas também a nós próprios
enquanto seus portadores. Isto é evidente na selecção darwiniana.
A novidade crucial do método e da abordagem científicos é que simplesmente estamos
activamente interessados e envolvidos na eliminação. As tentativas de solução são reificadas;
já não somos pessoalmente identificados com as nossas tentativas de solução.
Independentemente da consciência que possamos ter ou não do modelo de três fases, a
novidade da abordagem científica é que procuramos activamente eliminar as nossas tentativas
de solução. Submetemo-las à crítica e essa crítica opera com todos os meios que tenhamos à
disposição e que sejamos capazes de produzir. Por exemplo, em vez de esperar até que o
nossa ambiente refute uma teoria ou uma solução experimentada, tentamos modificar o
ambiente por forma a que ele seja tão desfavorável quanto possível à nossa tentativa de
solução. Pomos assim à prova as nossas teorias – na realidade tentamos submetê-las ao mais
rigoroso dos testes. Fazemos tudo para eliminar as nossas teorias porque nós próprios
gostaríamos de descobrir as teorias que são falsas.

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A questão de como difere a amiba crucialmente de Einstein pode assim ser respondida
da seguinte forma.
A amiba evita o falibilismo: a sua expectativa faz parte dela própria e os portadores pré-
científicos de uma expectativa ou de uma hipótese são frequentemente destruídos pela
refutação da expectativa ou da hipótese. Todavia, Einstein tornou a sua hipótese objectiva. A
hipótese é algo fora dele, e o cientista pode destruir a sua hipótese através da crítica, sem
perecer com ela. Em ciência fazemos as nossas hipóteses morrer por nós.
Alcancei agora a minha própria hipótese, a teoria que defensores da teoria tradicional
da ciência rotularam de paradoxal. A minha principal tese é que aquilo que distingue a
abordagem e o método científicos da abordagem pré-científica é o método de tentativa de
falibilismo. Cada tentativa de solução, cada teoria, é testada tão rigorosamente quanto nos é
possível testá-la. Mas um exame rigoroso é sempre uma tentativa de descobrir as fraquezas
existentes naquilo que está a ser examinado. O nosso teste às teorias é também uma tentativa
de detectar as suas fraquezas. Testar uma teoria é pois uma tentativa de refutar ou falibilizar a
teoria.
Claro que isto não significa que um cientista fique sempre satisfeito ao falibilizar uma
das suas próprias teorias. Ele lança a teoria como uma tentativa de solução, e isso quer dizer
que essa teoria se destinava a suportar testes rigorosos. Muitos cientistas que conseguem
falibilizar uma solução prometedora, sentem-se pessoalmente muito desapontados.
Muitas vezes o objectivo de falibilizar a teoria não será o objectivo pessoal do cientista
e muitas vezes também o verdadeiro cientista tentará defender do falibilismo uma teoria na
qual depositou grandes esperanças.
Isto é absolutamente desejável do ponto de vista da teoria científica; pois de que outra
forma poderíamos nós distinguir falibilismos genuínos de falibilismos ilusórios? Em ciência
precisamos formar partidos, a favor e contra qualquer teoria que esteja a ser submetida a um
exame sério. Porque precisamos ter uma discussão científica racional, e a discussão nem
sempre leva a uma solução inequívoca.
Em qualquer dos casos, a abordagem crítica é a novidade crucial que faz da ciência o
que ela é, conseguida sobretudo através de uma formulação objectiva, pública e linguística
das suas teorias. Isso leva por norma a que se tome partido e consequentemente à discussão
crítica. Muitas vezes o debate prolonga-se por muitos anos, como no caso do famoso debate
entre Albert Einstein e Niels Bohr. Além disso não temos garantia de que todas as discussões
científicas possam ser resolvidas. Não há nada que possa garantir o progresso científico.
Portanto, a minha tese principal é que a novidade da ciência e do método científico, que
o distingue da abordagem pré-científica, é a sua atitude conscientemente crítica em relação às
tentativas de solução; toma uma parte activa nas tentativas de eliminação, nas tentativas de
criticar e falibilizar.
Por outro lado, as tentativas para salvar uma teoria do falibilismo têm também a sua
função metodológica, como já vimos. Mas a minha tese é que uma tal atitude dogmática é
essencial mente característica do pensamento pré-científico, ao passo que a abordagem crítica
envolvendo tentativas conscientes de falibilismo conduz à ciência e rege o método científico.
Embora a tomada de partido tenha sem dúvida uma função no método científico, em
minha opinião é importante que o investigador individual tenha consciência do significado
subjacente às tentativas de falibilizar e do falibilismo por vezes bem sucedido. Porque o
método científico não é cumulativo (como Bacon de Verulam e Sir James Jeans ensinaram); é
fundamentalmente revolucionário. O progresso científico consiste essencialmente na
substituição de antigas teorias por teorias mais recentes. Estas novas teorias deverão ser
capazes de resolver todos os problemas que as antigas teorias resolveram e de os resolver pelo
menos tão bem quanto aquelas. Assim, a teoria de Einstein resolve o problema do movimento
planetário e da macromecânica em geral, pelo menos tão bem como, e talvez melhor do que, a

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teoria de Newton. Mas a teoria revolucionária parte de novos pressupostos, e nas suas
conclusões vai além de, e contradiz directamente, a antiga teoria. Esta contradição permite-lhe
elaborar experiências que possam distinguir a velha teoria da nova, mas apenas no sentido em
que podem falibilizar pelo menos uma das duas teorias. Na verdade, as experiências podem
provar a superioridade da teoria sobrevivente, mas não a sua verdade; e a teoria sobrevivente
pode, por seu turno, ser rapidamente ultrapassada.
O cientista, após ter percebido que é assim que as coisas se passam, vai ele próprio
adoptar uma atitude crítica em relação a sua teoria. Vai preferir ser ele próprio a testá-la e
mesmo a falibilizá-la, do que deixar essa tarefa aos seus críticos.
(…)
Estamos sempre a aprender milhares de coisas com o falibilismo. Aprendemos não só
que uma teoria está errada; aprendemos por que é que está errada. Acima de tudo ganhamos
um problema novo e focado com maior precisão; e um novo problema é, como já sabemos, ()
verdadeiro ponto de partida para um novo desenvolvimento na ciência.
Talvez tenham ficado surpresos por eu mencionar tantas vezes o meu modelo de três
fases. Fi-lo em parte para vos preparar para um modelo de quatro fases muito semelhante, que
é típico da ciência e da dinâmica do desenvolvimento científico. O modelo de quatro fases
pode partir do nosso modelo de três fases (problema, tentativas de solução, eliminação),
porque o que fazemos é chamar à primeira fase "o antigo problema", e à quarta fase "Os
novos problemas" Se posteriormente substituirmos "tentativas de solução" por "soluções
experimentais", e "eliminação", por " tentativas de eliminação através de discussão crítica"
chegamos ao modelo de quatro (ases, característico da teoria científica.
Portanto, apresenta-se da seguinte forma:

1. o antigo problema;
2. formação de tentativas de teoria;
3. tentativas de eliminação através de discussão crítica, incluindo testes experimentais;
4. os novos problemas, que surgem da discussão crítica das nossas teorias.

O meu modelo de quatro fases permite que seja feita uma série de considerações
científicas.
Sobre o problema. Os problemas pré-científicos e científicos são inicialmente de
natureza prática, mas com o ciclo de quatro fases são rapidamente, pelo menos em parte,
substituídos por problemas teóricos. Isso significa que a maior parte dos novos problemas
surge da crítica às teorias: são internos à teoria. Isto já é verdadeiro nos problemas da
cosmogonia de Hesíodo e ainda o é mais nos problemas dos filósofos gregos pré-socráticos; e
é verdade na maior parte dos problemas das ciências naturais contemporâneas. Os problemas
são eles próprios produtos de teorias, e das dificuldades que a discussão crítica revela nas
teorias. Estes problemas teóricos são fundamentalmente perguntas relativas a explicações ou
teorias explicativas: as respostas experimentais fornecidas pelas teorias são na realidade
tentativas de explicação.
Entre os problemas práticos podemos incluir os problemas de prever algo. Mas do
ponto de vista intelectual da ciência pura, as previsões pertencem à Fase 3 – a fase de
discussão e exame críticos. São intelectualmente interessantes porque nos permitem, na
prática e no mundo real, verificar a validade das nossas teorias ou tentativas de explicação.
Podemos também ver a partir do nosso modelo de quatro fases que, em ciência,
começamos no meio de um ciclo de antigos problemas e terminamos com novos problemas
que funcionam, por seu turno, como ponto de partida para um novo ciclo. Devido ao carácter
cíclico ou periódico do nosso modelo podemos começar em qualquer das quatro fases.
Podemos começar com teorias, na Fase 2 do nosso modelo. Ou seja, podemos dizer que o

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cientista parte de uma antiga teoria e, discutindo-a de forma crítica e eliminando-a, chega a
problemas que tenta então resolver através de novas teorias. Precisamente devido ao seu
carácter cíclico, esta interpretação é perfeitamente satisfatória.
Tem também a seu favor o facto de podermos descrever a criação de teorias
satisfatórias como objectivo da ciência. Por outro lado, a questão das circunstâncias nas quais
uma teoria pode ser considerada satisfatória leva-nos de volta ao problema como ponto de
partida. Porque evidentemente a primeira coisa que se exigimos numa teoria é que resolva
problemas que necessitem de ser explicados, eliminando as dificuldades que constituem o
problema.
Finalmente, podemos escolher como ponto de partida a eliminação ou erradicação de
teorias até agora existentes. Porque pode dizer-se que a ciência parte sempre do colapso de
uma teoria. Esse colapso, essa eliminação, conduz ao problema da substituição da teoria
eliminada por uma teoria melhor.
Pessoalmente, prefiro o problema como ponto de partida, mas tenho plena consciência
que a natureza cíclica do modelo possibilita considerar qualquer das fases como ponto de
partida para um novo desenvolvimento.
Uma característica crucial do novo modelo de quatro fases é o seu carácter dinâmico.
Cada uma das fases contém, por assim dizer, uma motivação lógica interna para passar à fase
seguinte. A ciência, tal como aparece neste esboço lógico, é um fenómeno que deve ser
percebido como em perpétuo crescimento: essencialmente dinâmica, nunca algo acabado;
não existe um ponto no qual atinja o seu objectivo de uma vez por todas.
Há uma outra razão que me leva a preferir o problema como ponto de partida. A
distância entre um antigo problema e o seu sucessor, o novo problema, parece-me uma
característica muito mais impressionante do progresso científico do que a distância entre
antigas teorias e a geração seguinte de novas teorias que substituem as antigas.
(…)
Por razões como esta parece-me melhor começar o nosso modelo de quatro fases com o
problema. De qualquer formei, o modelo mostra o que é novo no desenvolvimento dinâmico
da ciência comparado com o desenvolvimento pré-científico – nomeadamente, o nosso
envolvimento activo nos processos de eliminação, através da invenção da linguagem, da
escrita e da discussão crítica. A minha principal tese é que a ciência surgiu com a invenção da
discussão crítica.
Uma conclusão importante da minha tese principal refere-se à questão de como as
teorias científicas empíricas diferem de outras teorias. Isto em si não é um problema científico
empírico, mas um problema científico teórico; é um problema que pertence à lógica ou
filosofia da ciência. A resposta, que pode ser derivada da minha principal tese, é a seguinte.
Uma teoria científica empírica difere de outras teorias porque pode ser destruída por
possíveis resultados experimentais: quer dizer, podem ser descritos possíveis resultados
experimentais que falibilizariam a teoria se de facto os obtivéssemos.
Chamei ao problema da distinção entre teorias científicas empíricas de outras teorias
"problema de demarcação" e à minha proposta de solução "critério de demarcação".
A minha proposta de solução para o problema de demarcação é pois o seguinte critério
de demarcação. Uma teoria faz parte da ciência empírica se, e apenas se, for contraditória com
possíveis experiências e for por isso, em princípio, falibilizável por meio de experiências.
Chamei a este critério de demarcação "critério de falsificabilidade".
O critério de falsificabilidade pode ser ilustrado por muitas teorias. Por exemplo, a
teoria de que a vacinação protege contra a varicela é falibilizável: se alguém que tiver sido
vacinado apanhar ainda assim varicela, a teoria é falibilizada.
Este exemplo pode também ser usado para demonstrar que o critério de falsificabilidade
tem os seus próprios problemas. Se uma entre um milhão de pessoas vacinadas apanhar

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varicela, dificilmente consideraremos a teoria falibilizada. Antes consideramos que houve
algo de errado coma vacinação ou curai o material da vacina. E em princípio é sempre
possível anui saída deste género. Quando estamos perante um falibilismo podemos sempre
argumentar contra ele de uma maneira ou de outra; podemos introduzir uma hipótese auxiliar
e rejeitar o falibilismo. Podemos "imunizar" as nossas teorias contra qualquer falibilismo
(para usar uma expressão do professor Hans Albert).
Portanto, nem sempre é fácil aplicar o critério de falsificabilidade. Todavia, o critério
de falsificabilidade tem o seu valor. É aplicável à teoria da vacina da varicela mesmo que a
aplicação nem sempre seja tão simples. Se a proporção de pessoas vacinadas que apanham
varicela for sensivelmente a mesma que (ou talvez mesmo maior do que) a proporção de
pessoas não vacinadas que contraem a doença, todos os cientistas desistem da teoria da
protecção da vacina.
Comparemos este caso com o de uma teoria que na minha opinião não é falibilizável: a
teoria da psicanálise de Freud, por exemplo. Evidentemente que esta teoria só poderia em
princípio ser testada se pudéssemos descrever algum comportamento humano que fosse
contraditório com ela. Existem teorias de comportamento falibilizáveis: por exemplo, a teoria
de que um homem que já tenha vivido muito e sempre tenha sido honesto não vai
subitamente, se a sua situação financeira for segura, tornar-se um ladrão na velhice.
Esta teoria é por certo falibilizável e suspeito que pontualmente ocorram exemplos
falibilizantes, de forma que a teoria é simplesmente falsa na formulação que acabámos de
fazer.
Mas em oposição ao que acontece com esta teoria, parece não haver comportamento
humano concebível que possa refutar a psicanálise. Se um homem salvar a vida de outro
arriscando a sua própria vida, ou se um homem ameaçar a vida de um velho amigo – qualquer
comportamento humano invulgar que possamos imaginar – isso não está em contradição com
a psicanálise. Em princípio, a psicanálise pode sempre explicar o comportamento humano
mais peculiar. Não é, portanto, empiricamente falibilizável; não se pode testar.
Não estou a dizer que Freud não tenha tido muitas intuições correctas. Estou a dizer que
a sua teoria não é ciência empírica, que é rigorosamente intestável.
Isto contrasta com teorias como o nosso exemplo da vacinação, mas acima de tudo,
com teorias na física, na química e na biologia.
Desde a teoria da gravitação de Einstein que temos razões para supor que a mecânica
newtoniana é falsa, embora seja unia excelente aproximação. De qualquer modo, tanto a
teoria de Newton como a de Einstein são falibilizáveis, embora, claro, seja sempre possível
argumentar contra o falibilismo através de uma estratégia de imunização. Ao passo que
nenhum comportamento humano concebível contradiria a psicanálise de Freud, o
comportamento de uma mesa contradiria a teoria de Newton, caso a mesa começasse a andar.
Se a chávena de chá em cima da minha mesa começasse subitamente a dançar, a girar, a dar
voltas, seria uma falibilização da teoria de Newton – especialmente se o chá não se entornasse
com as voltas dadas pela chávena. Pode dizer-se que a mecânica se encontra em contradição
com toda uma série de comportamentos imagináveis por parte de corpos físicos – ao contrário
da psicanálise, que não está em contradição com nenhum comportamento humano concebível.

A teoria de Einstein da gravitação seria ela própria afectada por quase todas as
violações possíveis da mecânica de Newton precisamente por a mecânica newtoniana ser uma
tão boa aproximação da mecânica einsteiniana. Além do mais, Einstein procurava
especialmente casos que, ao serem observados, refutassem a sua teoria mas não a de Newton.
Einstein escreveu, por exemplo, que se a mudança para vermelho que previra no
espectro dos satélites de Sírio e outras anãs brancas não tivesse sido descoberta ele teria
considerado a sua teoria refutada.

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Além disso, é interessante que o próprio Einstein tenha tido uma atitude extremamente
crítica em relação à sua teoria da gravitação. Embora nenhum dos testes experimentais (todos
propostos por ele) se tivesse provado desfavorável à sua teoria, não a considerava
completamente satisfatória por razões teóricas. Tinha perfeita consciência que a sua teoria,
como todas as teorias das ciências naturais, era uma tentativa provisória de solução, e
consequentemente de natureza hipotética. Mas foi mais longe do que isso. Deu razões pelas
quais a sua teoria devia ser considerada incompleta e inadequada para o seu próprio programa
de investigação. E elaborou uma lista de requisitos que uma teoria adequada deveria
preencher.
Mas aquilo que defendia quanto à sua teoria original da gravitação é que ela
representava uma melhor aproximação à teoria que se procurava do que a teoria da gravitação
de Newton e, portanto, uma melhor aproximação à verdade.
A ideia de aproximação à verdade é, do meu ponto de vista, uma das ideias mais
importantes da teoria da ciência. Está ligada ao facto de, como vimos, a discussão crítica de
teorias concorrentes ser tão importante em ciência. Mas a discussão crítica é regulada por
determinados valores. Precisa de um princípio regulador ou, em terminologia kantiana, de
uma ideia reguladora.
Entre as ideias reguladoras que regem a discussão crítica de teorias concorrentes
existem três de grande relevância: primeiro, a ideia de verdade; segundo, a ideia de conteúdo
lógico e empírico de uma teoria; e terceiro, a ideia de conteúdo de verdade de uma teoria e da
sua aproximação à verdade.
Que a ideia de verdade rege a discussão crítica pode ver-se no facto de se discutir
criticamente uma teoria na esperança de eliminar teorias falsas. Isto prova que somos guiados
pela ideia de procurar teorias verdadeiras.
A segunda ideia reguladora – a ideia do conteúdo de uma teoria – ensina-nos a procurar
teorias com elevado conteúdo informativo. Tautologias ou proposições aritméticas triviais
como 12 x 12 = 144 são destituídas de conteúdo: não resolvem nenhum problema
empírico--científico. Problemas difíceis só podem ser resolvidos por teorias com elevado
conteúdo lógico e empírico.
Podemos descrever a dimensão desse conteúdo como a ousadia de uma teoria. Quanto
mais coisas defendemos por meio de uma teoria, maior é o risco de essa teoria ser falsa.
Portanto, nós procuramos de facto a verdade, mas só estamos interessados em verdades
ousadas e arriscadas. Exemplos de teorias ousadas com elevado conteúdo lógico são, mais
uma vez, as teorias da gravitação de Newton e de Einstein, a teoria dos quanta dos átomos e a
teoria do código genético, que soluciona em parte o problema da hereditariedade.
Teorias ousadas como estas, têm um elevado conteúdo – isto é, elevado conteúdo
lógico e elevado conteúdo empírico.
Podemos explicar estes dois conceitos de conteúdo da seguinte forma. O conteúdo
lógico de uma teoria é a classe das suas consequências, ou seja o conjunto ou classe de todas
as proposições que podem derivar logicamente da teoria em questão – que será tanto mais
elevado quanto maior for o número de consequências.
Talvez ainda mais interessante é a ideia do conteúdo empírico de uma teoria. Para
compreender esta ideia, comecemos pelo facto de que uma lei natural empírica, ou uma teoria
empírica, descarta certas ocorrências observáveis. (A teoria "Todos os corvos são negros"
não considera a existência de corvos brancos; e a observação de um corvo branco refuta a
teoria.) Mas como vimos, a psicanálise freudiana não põe de parte nenhuma ocorrência
observável. O seu conteúdo lógico é certamente elevado mas o seu conteúdo empírico é nulo.
O conteúdo empírico de uma teoria pode pois ser descrito como o conjunto ou classe de
proposições empíricas excluídas pela teoria – o que quer dizer, o conjunto ou classe de
proposições empíricas que contradizem a teoria.

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Vejamos uma ilustração muito simples. A teoria de que não existem corvos brancos
contradiz a afirmação "Aqui está um corvo branco". Exclui por assim dizer, a existência de
corvos brancos. A teoria de que todos os corvos são negros tem um conteúdo empírico muito
maior. Exclui não só os corvos brancos como também os azuis, os verdes, os vermelhos: a
classe de proposições escolhidas é muito maior.
Uma afirmação empírica ou observacional que contradiga uma teoria pode ser descrita
como um possível falibilismo ou um potencial falibilizador da teoria em questão. Caso se
observe um possível falibilismo, então a teoria é empiricamente falibilizada.
A afirmação "Aqui está um corvo branco" é pois um possível falibilismo tanto da teoria
de baixo conteúdo de que não existem corvos brancos como da teoria de elevado conteúdo de
que todos os corvos são negros.
A afirmação "No dia 10 de Fevereiro de 1972 foi entregue um corvo verde no Jardim
Zoológico de Hamburgo" é um possível falibilismo ou um potencial falibilizador da teoria de
que todos os corvos são negros, mas também da teoria de que todos os corvos são vermelhos
ou azuis. Se esta afirmação, este potencial falibilizador, for aceite como verdadeiro, com base
na observação, então todas as teorias de que é falibilizador deveriam ser consideradas
realmente falibilizadas. O que é interessante é que quanto mais afirma uma teoria, maior é o
número dos seus potenciais falibilizadores. Faz mais afirmações e pode esclarecer mais
problemas. O seu potencial explicativo, ou o seu potencial poder explicativo, é maior.
Deste ponto de vista podemos uma vez mais comparar as teorias da gravitação de
Newton e de Einstein. O que vemos é que o conteúdo empírico e o poder explicativo
potencial da teoria de Einstein são muito maiores do que os da teoria de Newton, porque
aquela afirma muito mais. Descreve não apenas todos os tipos de movimento descritos pela
teoria de Newton, especialmente as órbitas planetárias, mas também o efeito da gravidade
sobre a luz, um problema sobre o qual Newton nada tinha a dizer nem na sua teoria da
gravitação nem na sua óptica. A teoria de Einstein é pois mais arriscada. Pode em princípio
ser falibilizada por observações que não ferem a teoria de Newton. O conteúdo empírico da
teoria de Einstein, a sua quantidade de potenciais falibilizadores, é assim consideravelmente
maior do que o conteúdo empírico da teoria de Newton. Por fim, o poder explicativo potencial
da teoria de Einstein é de longe o maior. Se, por exemplo, aceitarmos que os efeitos ópticos
da mudança para vermelho prevista por Einstein no espectro do satélite de Sírio foram
confirmados por observações, então esses efeitos ópticos são também explicados pela teoria
de Einstein.
Mas mesmo que as observações relevantes não tenham ainda sido feitas, podemos dizer
que a teoria de Einstein é potencialmente superior à de Newton. Tem um maior conteúdo
empírico e um maior potencial explicativo. Isso quer dizer que é teoricamente mais
interessante. Ao mesmo tempo, porém, a teoria de Einstein corre um risco muito maior do que
a de Newton. E muito mais propensa a falibilismo precisamente por o número de potenciais
falibilizadores ser muito maior.
É por isso muito mais passível de ser rigorosamente testada do que a de Newton que é
já ela própria passível de ser muito rigorosamente testada. Se a teoria de Einstein aguentar
estes testes, se mostrar que se encontra à altura, mesmo assim continuamos a não poder dizer
que é verdadeira, pois pode ser falibilizada em testes posteriores; mas podemos dizer que não
só o seu conteúdo empírico mas também o seu conteúdo de verdade são maiores do que os da
teoria de Newton. Isto significa que o número de afirmações verdadeiras que dela podem ser
derivadas é maior do que as que podem ser derivadas da teoria de Newton. E pode ir-se mais
além, dizendo que a teoria de Einstein, à luz da discussão crítica que faz um uso cabal dos
resultados de testes experimentais, parece ser uma melhor aproximação à verdade.
A ideia de aproximação à verdade – tal como a ideia de verdade enquanto princípio
regulador – pressupõe uma visão realista do mundo. Não pressupõe que a realidade seja como

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as nossas teorias científicas a descrevem, mas pressupõe que existe uma realidade e que nós e
as nossas teorias – que são ideias que nós próprios criámos e por isso são sempre idealizações
– nos podemos aproximar cada vez mais de uma descrição adequada da realidade, se
empregarmos o modelo de quatro fases de tentativa e erro. Mas o método não é suficiente.
Temos também de ter sorte. Porque as condições que encontramos aqui na Terra, que tornam
a vida possível e também o desenvolvimento da fala humana, da consciência humana e das
ciências humanas, são extremamente raras no cosmos, mesmo que o cosmos esteja longe de
ser como a ciência o descreve. Porque, segundo a ciência, o mundo encontra-se quase vazio
de matéria e está principalmente cheio de radiação caótica; e nos poucos lugares onde não está
vazio está cheio de matéria caótica, geralmente demasiado quente para a formação de
moléculas ou demasiado frio para o desenvolvimento de formas de vida tal como a
conhecemos. Haja ou não vida noutros lugares do universo, do ponto de vista cosmológico a
vida é um fenómeno invulgarmente raro e bastante extraordinário. E no desenvolvimento da
vida, o método científico crítico é por sua vez um desenvolvimento invulgarmente raro – em
qualquer cálculo de probabilidades, quase infinitamente improvável. Isto significa que
ganhámos o jackpot quando passaram a existir vida e ciência.
A visão realista do mundo juntamente com a ideia de aproximação à verdade
parecem--me indispensáveis para urna compreensão da natureza do eterno carácter de
idealização da ciência. Além disso, a visão realista do mundo parece-me a única visão
humana do mundo: é a única a reconhecer o facto de existirem outras pessoas que vivem,
sofrem, e morrem como nós.
A ciência é um sistema dos produtos das ideias humanas – até aqui o idealismo tem
razão. Mas é provável que estas ideias falhem quando testadas em comparação com a
realidade. E é por isso que em última análise é o realismo que tem razão.
Podem achar que por um momento me afastei do meu tópico com estas observações
sobre o realismo e a disputa entre realismo e idealismo. Mas não é o caso – pelo contrário. O
debate do realismo é muito relevante para a mecânica quântica e é por isso hoje em dia um
dos problemas mais actuais e mais em aberto da filosofia da ciência.
Ficou já claro que não tenho uma atitude neutra em relação a este problema. Estou
inteiramente do lado do realismo. Mas existe uma influente escola idealista na mecânica
quântica. Na realidade existem todas as tonalidades de idealismo possíveis e um famoso físico
dos quanta chegou mesmo a tirar consequências solipsísticas da mecânica quântica; afirma
que estas consequências solipsísticas derivam obrigatoriamente da mecânica quântica.
Só posso responder que se assim é algo está errado com a mecânica quântica, por mais
admirável e melhor aproximação à realidade que ela seja. A mecânica quântica aguentou
testes excepcionalmente rigorosos. Mas só podemos tirar conclusões deste facto relativamente
à sua proximidade da verdade se formos realistas.
A luta sobre realismo e objectivismo na teoria científica continuará ainda por muito
tempo. Trata-se de um problema em aberto e específico. E também, como foi dito e muito
bem, um problema que, num certo sentido, leva a teoria científica para além de si própria.
Espero ter deixado bem clara a minha posição neste problema tão fundamental.

Karl Popper, «A Lógica e a Evolução da Teoria Científica», in A Vida é Aprendizagem.


Epistemologia Evolutiva e Sociedade Aberta. Lisboa, Edições 70, 2001, pp. 17-40.

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