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As Meninas - Lygia Fagundes Telles

O livro narra a história de três universitárias de condição social e origens


diversificadas, que se conhecem em um pensionato de freiras na cidade de São Paulo,
tornam-se muito amigas, apesar das diferenças de valores e personalidades, convivem
durante algum tempo, compartilham seus dramas e sonhos, ajudam-se nos momentos
difíceis e terminam por separar-se definitivamente. O encanto e a dificuldade aparente
da leitura repousam no foco narrativo cambiante: Lorena Vaz Leme, Ana Clara
Conceição e Lia de Melo Schultz contam a própria história através do fluxo de
consciência, misturando suas falas, ações, lembranças e críticas recíprocas. Depois
dessa surpresa inicial, o leitor acaba por identificar o estilo de cada personagem e
sente-se desafiado a desvendar o universo interior das três "meninas"- uma paulista
quatrocentona, uma baiana "terrorista" e uma modelo de moral "duvidosa" e viciada
em drogas. Os capítulos não têm nome, mas números: "Um" - Lorena Vaz Leme
divaga em seu quarto dourado e rosa - com cozinha, geladeira, banheira etc - no
pensionato Nossa Senhora de Fátima: pensa na amiga Lia de Melo Schultz, que tem
pretensões a escritora e é militante política; no gato Astronauta, que cresceu e
abandonou-a; em Che Guevara, que foi líder de toda uma geração; em M.N., homem
misterioso que lhe desperta desejos eróticos, em Jesus Cristo, a quem dedica a música
de Jimi Hendrix; e na morte desse roqueiro e de Rômulo, seu irmãozinho querido. Lia
aparece para pedir-lhe o carro de "mãezinha" emprestado, e enquanto tomam o chá
especial de Lorena, conversam e divagam sobre tolices e sobres coisas sérias,
concomitantemente a greve na faculdade; a prisão de Miguel, namorado de Lia e
militante político também; na alienação da burguesia acomodada; na repressão militar,
nos amigos que estão presos e sendo torturados. Lorena lembra a morte traumática de
Rômulo e sua agonia nos braços da mãe, vitimado por um tiro acidental dado pelo
outro irmão, Remo. Da fuga deste para o exterior através da Diplomacia, dos
freqüentes presentes que ele envia a ela (sinos, lenços, roupas, comida...). Mistura a
esses pensamentos a figura do médico Marcus Nemésios (o M.N.), casado e bem mais
velho, de quem ela sonha receber amor, carinho e proteção (Aliás, passa o livro todo
aguardando um telefonema dele, que nunca se concretiza); evoca ainda a figura de
Ana Clara, suas origens "suspeitas", no excesso de tranqüilizantes que consome;
pensa na própria adolescência, ao piano, no gostoso convívio familiar, nos banhos de
banheira, na decisão de morar no pensionato, no aluguel e decoração do quarto por
Mieux, o atual namorado da mãe. Lia fala sobre o livro que escrevera e acabara por
rasgar. Criticam Ana Clara e o namorado Max, traficante que a viciou em drogas, e o
provável e desconhecido noivo rico com quem ela pretende se casar para "sair do
buraco", após plástica restauradora da virgindade, "bancada" por Lorena. Lia pede
várias vezes o carro emprestado, e um pouco de "oriehnid" (dinheiro "ao contrário",
para dar sorte) para o "aparelho"(= grupo de resistência à ditadura militar). Apesar de
temer envolvimentos com o grupo e suas conseqüências, Lorena é incapaz de dizer
"não" aos pedidos da (s) amiga (s). "Dois" - Ana Clara e Max drogam-se na cama e
deliram. Ela sente-se travada, bloqueada, apesar das sessões de terapia - ela odeia o
analista. Acha-se bonita (modelo, 1,77 m) e carente - a mãe, prostituta, nunca lhe deu
atenção. Lembra-se do Dr. Algodãozinho, que deixava seus dentes apodrecerem para
abusar sexualmente dela e da mãe, em sua cadeira de dentista. Pensa no quanto ama
Max, mas que em janeiro casa-se com o noivo rico e resolve seus problemas. Sente
ódio de Deus - e de negros. Resgata a infância carente, repleta de ruídos (ratos,
baratas) e cheiros, nos prédios em construção, onde vivia com a mãe e os sucessivos
amantes.Também evoca detalhes da vida das amigas Lia e Lorena. Max também
delira. Reza. Teve educação esmerada (fala francês, é fino) mas empobreceu e tornou-
se traficante. Tem uma irmã que sumiu com as jóias da família e encontra-se
internada em sanatório. Ana e Max se amam, mas seu relacionamento é difícil e
complicado. "Três" - Lorena reflete sobre a violência do mundo; assaltos a bancos; a
morte de Rômulo; a profissão de Remo propiciando sua "fuga" para o exterior.
Gostaria de poder alienar-se da "máquina desse mundo" violento (intertextualidade
com o texto "A Máquina do mundo", de Carlos Drummond de Andrade), como uma
ostra dentro de sua concha dourada (= seu quarto - refúgio). Rememora a chegada de
Lia e A. Clara e a "invasão" das duas à sua privacidade, a amizade das três, apesar das
personalidades opostas. Miúda e magra, mostra certa inveja da beleza de Ana Clara,
apesar da diferença cultural... Através da visão de Lorena, conhecemos um pouco mais
sobre as duas amigas: Lia de Melo Schultz tem um "pé" baiano, da mãe Diú (D.
Dionísia) e outro berlinense, do pai seu Pô (Herr Paul, ex-oficial nazista). Herdou do
pai o vigor germânico; da mãe, as "proporções gloriosas e a cabeleira de sol negro" e o
açúcar da voz. É uma "mulher-hino", enquanto Lorena vê-se como uma civilizada,
requintada "balada medieval" (ou "Magnólia desmaiada", para os colegas da Faculdade
de Direito). Ana Clara "arrombou" a privacidade de Lorena, obrigando-a a verdadeiros
exercícios de caridade cristã: mexe em tudo, nos livros, nos objetos pessoais. Tem
olhos verdes, é modelo, linda, mas "de cuca embrulhada", deprimida e deprimente,
juntadíssima, afetadíssima, mentirosíssima - "ni ange ni bête" - (nem anjo, nem
demônio). Envolvida com sexo e drogas. Enquanto lancha ao sol, Lorena recorda o
aborto de Aninha, resgatando a fábula da formiga e da cigarra (inconsciente,
bagunceira, irresponsável), com quem compara a amiga. Recebe carta de Remo e
pensa na morte de Rômulo. Filosofa sobre o lado omisso das relações humanas. Sonha
em casar-se com M.N., pois sente-se frágil, insegura, precisando de um homem em
tempo integral. Ao voltar para o quarto, pensa no colega Fabrízio, na noite chuvosa em
que ele veio estudar mas preferiu envolvê-la nos braços, ameaçando sua virgindade;
na falta de luz e subseqüente chegada de Lia, estragando o momento mágico com suas
alpargatas molhadas e suas pesquisas sobre a vida das prostitutas, sua obsessão por
Miguel. Lia sai, mas chega Ana Clara, e "se instala". Fim da noite para Fabrízio e
Lorena. No dia seguinte, conheceu o Dr. M.N. na sua Faculdade e ganhou carona.
Passa a viver aguardando seu telefonema, fantasiando um amor edipiano. "Quatro" -
Max delira na cama. Gosta de Chopin, de Renoir. Conversa com a Coelha (A. Clara)
sobre a riqueza passada, as viagens. Ana compara os diferentes níveis de artistas
abstratos e reclama de estar lúcida - teria tomado aspirina? Lembra o passado de
miséria e sonha com o futuro promissor como psicóloga de ricaços - "Nessa cidade as
pessoas não se preocupam mais com nome, mas com o saco de ouro" (de que adianta
o nome Vaz Leme de Lorena, descendente de bandeirantes?). Quer esquecer a mãe, os
amantes, Jorge, Aldo, Sérgio... e o suicídio com formicida. Lembra-se da amiga
Adriana, feia e vesga, mas com casa na praia, onde A. Clara tentou lavar a memória
do passado num banho de mar. Max desperta e os dois deliram juntos. Ela está
grávida e quer abortar. Ele deseja o filho, cuja voz diz ter ouvido. Vão ficar ricos e
fazer cruzeiros pelo mundo. Ela é a gata borralheira, que tem encontro marcado com o
noivo, que já deve estar inquieto com o atraso. "Cinco" - Lorena aguarda o
telefonema de M.N., como sempre. Pensa em arte, em literatura (Dante, Beatriz) , em
música (jazz), em cheiros (incenso); em morte (Rômulo); na mãe e no carro (teme
que Lia seja metralhada dentro dele). Gostaria de poder sair de moto com Fabrízio, um
cinema, um jantar... mas acha que ele deve estar na faculdade, incitando a greve e
namorando uma poetazinha que resolveu seduzi-lo. Recebe a visita da irmã Bula e
desconfia que esta é a autora das cartas anônimas, que falam coisas horríveis sobre as
meninas e as freiras, para Madre Alix, a superiora. Enquanto serve licor e biscoito para
a freira, relembra a morte de Rômulo, as manchetes nos jornais; pensa em Lia, em
Simone de Beauvoir (escritora francesa), em segundo e terceiro sexos, em M.N., em
Che Guevara, em morrer e renascer (segundo S. Marcos, "é necessário nascer de
novo"). Recupera a teoria da amiga "terrorista" sobre a perda de pureza do baiano e
do índio, e cita Gonçalves Dias. Coloca um Noturno de Chopin e serve constantemente
vinho à freirinha. Quando tampa a garrafa, pensa na ferida de Rômulo, na fuga de
Remo. Despede-se da Irmã Bula e de sua velhice sem sentido. "Seis" - Na sala
imunda e mal iluminada onde montaram o "aparelho", Lia ("Rosa de Luxemburgo") e
Pedro começam a separar material para o jornal. Conversam sobre experiências
homossexuais; Jango; o nazismo; conceito de santidade; sobre Che Guevara; Martin
Luther King (líder negro americano), engajamento político-social, atuação da Igreja
progressista, casamento de padres, amor... Sai para uma operação noturna com o
Bugre, que lhe conta sobre a próxima deportação de Miguel para a Argélia. De volta ao
pensionato, feliz, conversa com Madre Alix: fala de seu amor pela família, do passado
com saudade, do presente (fases da vida!...); de A. Clara, Max e seu envolvimento
com drogas; na sua pretensa vocação para escritora; na desilusão com Miguel (muito
cerebral) e Lorena (muito sofisticada). Madre Alix quer ajudá-las, mas sente-se
impotente e teme por seu futuro. Sugere uma epígrafe para o livro de Lia e que serve
para a vida das duas: "Sai da tua terra e da tua parentela e da casa de teu pai e vem
para a terra que eu te mostrarei"(Gênesis). "Sete" - Irmã Clotilde leva frutas para
Lorena, que se exercita na bicicleta. Falam sobre as duas Santas Teresas; sobre
Tolstói; sobre homossexualismo (comenta-se no pensionato que I. Clotilde é lésbica);
sobre beleza, ideais, filosofias de vida. A freira vai lavar as mãos e volta criticando a
cor, a saúde e a alimentação das três amigas. Lorena anseia por beleza e um
telefonema... Quer ficar só, mas a freira se demora na visita e no exame do quarto,
dos animais, dos livros da moça. Esta lê um pedaço de um livro de Direito, cita frases
em latim, enquanto pensa sobre o lado oculto das pessoas: a vida é um jogo de
espelhos, e Lorena tem sede de autenticidade... Lia chega, a freira se vai. Devolve a
chave do carro, conta sobre a viagem à Argélia, brinca de entrevistar Lorena (os
assuntos de sempre: virgindade, casamento, M.N., Fabrízio, Pedro) e diz que esta é
edipiana. Ambas mostram-se preocupadas com a gravidez de Ana "Turva" e sua
dependência. Divertem-se no jardim e despedem-se no portão. Lia pede roupas para
os "revolucionários". Lorena fica pensando na iniciação sexual das amigas e imagina
como será sua "primeira vez"(M.N. é ginecologista, um "gentleman"). "Oito" - Ana
Clara e Max acordam e conversam: ele e Lorena são "aristocratas", têm álbum de
retratos... Os de Lorena estão na garagem do pensionato. Criticam o amante jovem de
"mãezinha", Mieux. Max vai até a geladeira, come e volta a dormir. Ana pensa na
desculpa que vai inventar para o noivo aceitar seus sumiço. Arruma-se e sai. Chove.
São quase 11 h da noite. Não consegue táxi e aceita carona de um industrial em um
Mercedes. Foge dele e refugia-se em um bar, onde encontra um velhote estranho que
a convida para seu apartamento. Confundindo-o com "um pai" que nunca teve, segue-
o. Apartamento de boêmio - retratos na parede, vitrola de corda, discos de tangos.
Ana deita-se na cama e dorme, enquanto ele lê para ela textos sobre Napoleão,
Rodolfo Valentino e tem orgasmo. Diz que o platonismo amoroso é a forma mais sutil e
temível da paixão infinita e insaciável. "Nove" - Na banheira, Lorena filosofa sobre
"ser" ou "estar" no mundo - na desintegração do ser humano na cidade grande, no
papel do filósofo, do advogado, do médico, do psiquiatra. Sente todos os sintomas de
todas as doenças mentais, apesar de charmosa e inteligente. Lembra-se da fazenda,
das procissões em que se vestia de anjo. Rememora o primeiro encontro com M.N. e
imagina as reações de mãezinha quando lhe contar sobre ele. Sai do banho
emocionada e veste um robe. Chega o colega Guga, que lhe conta ter abandonado a
família, a escola e estar vivendo em um porão, numa comunidade. Escandalizada com
sua sujeira, Lorena corta-lhe as unhas, alerta-o sobre promiscuidade e lê para ele uma
carta de M.N. Guga se excita e tenta amá-la. Ela quase cede, mas reage e ele se vai.
Chega Lia. Conversam sobre filosofia, Lacan, auto-identificação, transferência de
afetos. Lia quer provar que M.N. está mais para pai que para namorado, mas Lorena
não admite. Falam sobre o telefonema de Herr Pô e da promessa de ajuda em dinheiro
para a viagem. Lorena entrega a Lia um cheque em branco e pede-lhe para usar uma
cruz na corrente, enquanto filosofa sobre Deus, religião, fé. Lia sai rindo. Lorena faz
caretas. "Dez" - Lia pega carona com o motorista de mãezinha de Lorena e vai visitá-
la. No caminho, consegue fundir a cabeça do senhor com seu discurso sobre família e
liberdade. Recebida no hall pelo mordomo, fuma, examina os objetos e tapetes
luxuosos, enquanto imagina sua viagem, a desunião da esquerda; vê-se na Argélia
escrevendo seu diário e exaltando a Pátria. Mãezinha chora, na cama, a morte do
psiquiatra Dr. Francis. Desajeitada, Lia tenta consolá-la e ouve suas lamúrias sobre a
diferença de idade entre ela e Mieux, a impossibilidade de acompanhá-lo em seus
programas, a dificuldade em aceitar a velhice e a morte. Lia lembra-se de sua família
(tão equilibrada!) com saudade e amor. Mãezinha pergunta sobre os namoros de
Lorena e Lia (acha-a masculinizada) e quer trazer a filha de volta à casa. Conta uma
versão totalmente diferente sobre a morte de Rômulo (falência cardíaca, ainda bebê).
Lia sente-se nauseada e pensa em ver o álbum de fotos na garagem: acha que
mãezinha está escamoteando a tragédia por auto-defesa. Ganha roupas e mala para a
viagem. "Onze" - Tarde da noite. Ana Clara chega transtornada ao quarto de Lorena,
que está estudando para a prova no dia seguinte (a greve terminara). Entra arrastada,
gritando de dor no peito e imunda. Lorena coloca-a na banheira - seu corpo está cheio
de nódoas roxas e sofre alucinações com formigas, baratas, Deus e Max. Pede uísque e
a bolsa. Delira. Lorena pensa no abismo entre o ser e o estar, num futuro feliz no
campo, fora de sua casca. As novelas da vizinhança encobrem os ruídos e finalmente
A. Clara adormece. Lorena toma chá. Finalmente Lia chega para preparar as malas (a
viagem será na manhã seguinte) e Lorena vai até seu quarto. Conversam muito -
sabem que estão se despedindo - e Lia conta-lhe que Guga virá procurá-la. Não vêem
futuro na relação com M.N., que jamais abandonará a família, pois a "dor do remorso
dói mais que a dor física"(Tolstói). Ao voltar para o quarto, Lorena tem um choque: A.
Clara está morta. "Doze" - Lia corre aos acenos da amiga. Ao entrar, encontra Lorena
massageando o peito de A. Clara, tentando revivê-la, enquanto reza. Lia pensa em
chamar o pronto-socorro, em acordar todo mundo, em que poderia ter feito mais pela
amiga, além dos "discursos". A bolsa de A. Clara está aberta: talvez dali ela tirara a
própria morte. Lorena tem idéias e age: encomenda o corpo, reza em latim, veste e
pinta A. Clara como se esta fosse a uma festa. Elimina todas as pista
comprometedoras para Aninha e Max, além das freiras do pensionato. As duas amigas
carregam A. Clara através da noite providencialmente nebulosa e abandonam o corpo
em um banco em uma linda praça do bairro. Voltam para o pensionato e separam-se:
cada uma vai viver a própria vida. Lia no exílio. Lorena de volta para a casa de
mãezinha, deixando sua concha para a futura hóspede, que vem do Pará. Ação A ação
do livro é prevalentemente interiorizada. Quase nada acontece na realidade exterior; a
vidinha pacata e rotineira no pensionato, as conversas intermináveis, os estudos, as
visitas das personagens ao redor do quarto de Lorena - centro daquele microcosmo -,
poucos momentos na faculdade e no "aparelho"; as atitudes contraditórias de Ana
Clara e sua morte; a solução dada pelas amigas para se livrarem de um cadáver
comprometedor. Tudo se passa no âmbito da memória, enquanto as meninas resolvem
o passado e evocam suas experiências em busca de auto-conhecimento, de solução
para seus traumas e conflitos interiores, para a exorcização de seus "fantasmas".
Personagens Lorena Vaz Leme, filha de fazendeiros, culta, fina, aristocrática,
descende de bandeirantes. É aluna na Faculdade de Direito e bastante estudiosa: cita
com freqüência passagens da Bíblia, frases em latim, em francês, em espanhol, de
filósofos variados, escritores e músicos. Demonstra cultura e educação esmerada,
onde se fundem harmoniosamente o erudito e o popular. Assistiu impotente à
derrocada da própria família e evoca freqüentemente esse passado, onde contrapõe os
momentos felizes da infância, na fazenda, à morte acidental do irmão e a subseqüente
desagregação do núcleo familiar - a fazenda vendida, o pai internado em sanatório, o
irmão traumatizado pela culpa, a mãe vivendo de fantasias, terapias e falsas ilusões.
Lorena tenta "equilibrar-se" fechando-se em uma concha dourada dentro do
pensionato de freiras, onde pratica ginástica, faz chá, recebe cartas e presentes do
irmão, visitas freqüentes de colegas, e de onde ajuda as amigas. Toma sol, lê, filosofa,
mas pouco age. Segundo Lia, trata-se de uma burguesa alienada, apesar da bondade e
do carinho com que recebe e ajuda a todos. Mas o mundo insiste em invadir sua
privacidade - as amigas, as freiras, Fabrízio, Guga, o amor impossível pelo médico
mais velho colocam-na em freqüente conflito com o mundo exterior. Procurando viver
de sonhos, perde várias oportunidades de realizar-se afetivamente e ser feliz. No
entanto, diante da morte de A. Clara, consegue definir-se e agir positivamente,
encontrando, por um lado, solução para o problema imediato; e, de outro, um possível
desfecho para sua alienação: voltará para a casa da mãe, acabará por perceber a
impossibilidade de um compromisso com M.N. e se abrirá para o amor de Guga,
enquanto se resolve a enfrentar o mundo e a deixar sua "concha" definitivamente. Lia
de Melo Schultz serve como contraponto à "finesse" de Lorena: veste-se mal, usa
alpargatas, não gosta muito de banho, não cuida da aparência. Veio da Bahia para
fugir da mãe superprotetora e do pai com um passado misterioso de ex-oficial nazista.
Matricula-se no curso de Ciências Sociais (foco de agitações estudantis na década de
60), onde se envolve com um grupo militante da esquerda e apaixona-se por Miguel,
que acaba preso. Sua preocupação consiste em angariar dinheiro e roupas para o
"aparelho", e está sempre discursando contra a alienação da burguesia, das amigas, e
a pobreza do Nordeste. Seu equilíbrio repousa sobre dois referenciais: em seu
engajamento político (doação de amor aos amigos e à liberdade da Pátria) e na
segurança que encontra no amor de Miguel e no apoio da família, que, mesmo à
distância, protege-a e dispõe-se a ajudá-la em sua fuga para o exterior. Escolhe seu
próprio caminho e resolve-se bem. Ana Clara Conceição apresenta o temperamento
mais problemático e a personalidade mais inconsistente das três, apesar do fascínio
que a força de suas evocações exerce sobre o leitor, as amigas e Madre Alix,
principalmente. Filha de pai desconhecido, amargou uma infância carente, junto a uma
mãe prostituída e constantemente machucada pelos sucessivos companheiros, um dos
quais a induz ao suicídio pela ingestão de formicida. Ana foi seduzida por um dentista,
que abusa sexualmente da mãe e da filha. Traumatizada, não consegue encontrar
prazer nos seus relacionamentos amorosos. Permanece quase o livro todo na cama
com o namorado Max, traficante que a viciou em drogas e, embora conversem muito,
seu discurso aparece truncado - amam-se, mas não conseguem ser felizes. Sob o
efeito das drogas, suas evocações são basicamente sinestésicas: ruídos (o roque-roque
dos ratos e o barulho das baratas, nas construções), cheiros (do consultório do
dentista, da bebida, do mar, do corpo de Max...), sensações variadas de frio e de calor
entrecruzam-se enquanto ela desnuda seus traumas sem qualquer pudor e, fugindo à
realidade, adia todas as soluções para "o ano que vem". Só que o peso da memória é
mais forte: nem a aspirina; nem a ilusão de um noivo rico; nem a probabilidade da
plástica restauradora da virgindade; nem a perspectiva de ascensão social através da
Faculdade de Psicologia, da carreira de modelo, do dinheiro que conseguirá na clínica
para a burguesia; nem o amor e os conselhos de Madre Alix e das amigas conseguem
salvá-la. Seu fim é trágico: morre de overdose no quarto de Lorena, e, vestida e
enfeitada, cumpre seu destino num banco de praça, sem prejudicar aquelas pessoas
que conseguiram dar-lhe um pouco de afeto, mas não a paz de que tanto necessitava.
Tempo Subjaz à narrativa uma seqüência cronológica pouco marcada de alguns dias
ou poucas semanas: o tempo é voluntariamente vago e difícil de precisar. O que
prevalece é o tempo psicológico, pois tudo acontece através do entrecruzar da
memória, da evocação do passado, da mistura com algumas ações no presente. Alguns
fatos permitem a localização da obra no final dos anos 60, pois evocam as agitações
sociais, as greves universitárias, a prisão e a tortura de militantes políticos sob o
enrijecimento da ditadura militar, o crescimento agressivo da megalópole que tritura o
jovem e esmaga sua individualidade, alienando-o, censurando-o e dificultando-lhe a
busca de caminhos. Passado e presente fundem-se de modo inextricável, e nos
traumas da memória encontram-se as explicações para os problemas existenciais das
três meninas - símbolos de toda uma geração massacrada e alienada por forças do
passado e das circunstâncias. Espaço Oprimidas pela cidade grande e sua violência, as
três meninas refugiam-se no Pensionato N. Senhora de Fátima, na região central de
São Paulo. O quarto-concha de Lorena constitui-se no refúgio para onde as pessoas
convergem em busca de conforto, de carinho, de segurança, de afeto e compreensão -
um tipo de oásis dentro de um mundo desorganizado, caótico e extremamente
ameaçador, onde "Deus vomita os mortos". Foco Narrativo O foco narrativo em
primeira pessoa é manipulado pela Autora de forma magistralmente cambiante: ele se
desloca constantemente (e inesperadamente!) para o fluxo de consciência das três
amigas, que se entrevistam, que se apresentam umas às outras e ao leitor, que
refletem continuamente sobre si mesmas e umas sobre as outras, arrastando-nos
nessas freqüentes invasões à privacidade de A. Clara, Lorena e Lião, que se vão
desnudando paulatinamente diante de nós. Existe uma dificuldade inicial para a leitura
até a identificação do estilo peculiar de cada personagem, pois cada uma delas se
exprime dentro de seu "dialeto" coloquial - o discurso mais elaborado e culto de
Lorena, o regionalismo politicamente engajado de Lião e o pensamento confuso e
truncado de Ana "Turva". Superada essa dificuldade, o leitor mergulha de corpo e alma
no universo fantástico dessas três meninas encantadoras, representantes autênticas
daquele que foi um dos períodos mais importantes e difíceis para a emancipação da
mulher, para a liberdade de pensamento e para a realização individual dentro de um
universo politicamente conturbado. O romance As Meninas oferece-nos, de um lado,
um painel saboroso das vivências de três pessoas em busca de si mesmas; de outro,
uma amostra dos problemas cruciais que agitaram a juventude durante um dos
períodos mais conturbados da história do Brasil, que Lygia Fagundes Telles teve a
ousadia e a coragem de denunciar.

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