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O CANDOMBLÉ E O TEMPO

Concepções de tempo, saber e


autoridade da África para as
religiões afro-brasileiras*

Reginaldo Prandi

I noção de tempo, por se ligar à noção de vida e


morte e às concepções sobre o mundo em que vi-
Diferentes sociedades e culturas têm concep- vemos e o outro mundo, é essencial na constitui-
ções próprias do tempo, do transcurso da vida, ção da religião.
dos fatos acontecidos e da história. Em sociedades Muitos dos conceitos básicos que dão sus-
de cultura mítica, também chamadas sem-história, tentação à organização da religião dos orixás em
que não conhecem a escrita, o tempo é circular e termos de autoridade religiosa e hierarquia sacer-
se acredita que a vida é uma eterna repetição do dotal dependem do conceito de experiência de
que já aconteceu num passado remoto narrado vida, aprendizado e saber, intimamente decorren-
pelo mito. As religiões afro-brasileiras, constituí- tes da noção de tempo ou a ela associados. Assim,
das a partir de tradições africanas trazidas pelos muitos aspectos das religiões afro-brasileiras po-
escravos, cultivam até hoje uma noção de tempo dem ser melhor compreendidos quando se consi-
que é muito diferente do “nosso” tempo, o tempo deram as noções básicas de origem africana que
do Ocidente e do capitalismo (Fabian, 1985). A os fundamentam. Da mesma maneira se pode am-
pliar o conhecimento sobre valores e modos de
agir observáveis entre os seguidores dessas reli-
* Conferência apresentada no evento “Tempo Inocu- giões quando consideramos a herança africana
lado”, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio original em oposição a concepções ocidentais
de Janeiro, em 31 de janeiro de 2001. Agradeço a
Marcello Dantas, curador do evento, pelo entusias-
com que a religião africana teve e tem de se con-
mo, e a Teresinha Bernardo, pelas sugestões amigas frontar no Brasil, sobretudo nas situações em que
e competentes. concepções de diferentes origens culturais se

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opõem e provocam ou propiciam mudanças na- minantes. O candomblé angola, embora tenha
quilo que os próprios religiosos acreditam ser a adotado os orixás, que são divindades nagôs, e
tradição afro-brasileira, seja ela doutrinária, seja ri- absorvido muito das concepções e ritos de origem
tual. As noções de tempo, saber, aprendizagem e iorubá, desempenhou papel fundamental na cons-
autoridade, que são as bases do poder sacerdotal tituição da umbanda, no início do século XX, no
no candomblé, de caráter iniciático, podem ser li- Rio de Janeiro e em São Paulo. Hoje, todas essas
das em uma mesma chave, capaz de dar conta das religiões e nações congregam adeptos que se-
contradições em que uma religião que é parte guem ritos distintos, mas que se identificam, nos
constitutiva de uma cultura mítica, isto é a-históri- mais diversos pontos do país, como pertencentes
ca, se envolve ao se reconstituir como religião a uma mesma população religiosa, o chamado
numa sociedade de cultura predominantemente povo-de-santo, que compartilha crenças, práticas
ocidental, na América, onde tempo e saber têm rituais e visões de mundo, que incluem concep-
outros significados. ções da vida e da morte. Terreiros localizados nas
O candomblé de que trata o presente texto é mais diferentes regiões e cidades interligam-se
a religião dos orixás formada na Bahia, no século através de teias de linhagens, origens e influências
XIX, a partir de tradições de povos iorubás, ou na- que remetem a ascendências que convergem, na
gôs, com influências de costumes trazidos por maioria dos casos para a Bahia, e que daí apon-
grupos fons, aqui denominados jejes, e residual- tam, no caso das nações iorubás, para antigas e,
mente por grupos africanos minoritários. O can- às vezes, lendárias cidades hoje situadas na Nigé-
domblé iorubá, ou jeje-nagô, como costuma ser ria e no Benim.
designado, congregou, desde o início, aspectos A idéia que norteia o presente trabalho é re-
culturais originários de diferentes cidades ioruba- fazer inicialmente essa trajetória, religando a Áfri-
nas, originando-se aqui diferentes ritos, ou nações ca dos orixás aos terreiros de candomblé de na-
de candomblé, predominando em cada nação tra- ções iorubás, que podem hoje ser encontrados na
dições da cidades ou região que acabou lhe em- Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Distri-
prestando o nome: queto, ijexá, efã (Silveira, to Federal e outros Estados, para, num segundo
2000; Lima, 1984). Esse candomblé baiano, que momento, procurar entender como e por quê as
proliferou por todo o Brasil, tem sua contraparti- antigas heranças religiosas vão sofrendo mudan-
da em Pernambuco, onde é denominado xangô, ças e adaptações no contexto das transformações
sendo a nação egba sua principal manifestação, e socioculturais que modelam o Brasil atual. Embo-
no Rio Grande do Sul, onde é chamado batuque, ra o texto presente esteja focado na observação
com sua nação oió-ijexá (Prandi, 1991). Outra va- do candomblé iorubá, para o qual podemos con-
riante iorubá, esta fortemente influenciada pela tar com uma etnografia que permite estabelecer
religião dos voduns daomeanos, é o tambor-de- comparações entre o que se observou na África e
mina nagô do Maranhão. Além dos candomblés o que se observa no Brasil, é fato que muitas das
iorubás, há os de origem banta, especialmente os conclusões podem ser, em maior ou menor grau,
denominados candomblés angola e congo, e aproximadas para o conjunto das religiões afro-
aqueles de origem marcadamente fom, como o brasileiras, quando não extravasadas para além do
jeje-mahim baiano e o jeje-daomeano do tambor- universo estritamente religioso, em outras dimen-
de-mina maranhense. sões da cultura popular brasileira.
Foram principalmente os candomblés baia-
nos das nações queto (iorubá) e angola (banto)
que mais se propagaram pelo Brasil, podendo II
hoje ser encontrados em toda parte. O primeiro
veio a se constituir numa espécie de modelo para Um novo adepto do candomblé ou outra re-
o conjunto das religiões dos orixás, e seus ritos, ligião afro-brasileira tradicional que tenha nascido
panteão e mitologia são hoje praticamente predo- e sido criado fora dessa religião, na qual ele in-
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gressa por escolha pessoal, não é caso raro (Pran- engomadas e passadas a ferro (é sempre uma
di, 2000a). Desde que o candomblé se transfor- enormidade de roupas para engomar e passar!);
mou numa religião aberta a todos, independente- pôr em ordem os adereços, que devem ser limpos
mente da origem racial, étnica, geográfica ou de e polidos; preparar as comidas que serão servidas
classe social, grande parte dos seguidores, ou a a todos os presentes e providenciar as bebidas;
maior parte em muitas regiões do Brasil, é de ade- decorar o barracão, colhendo-se para isso as fo-
são recente, não tendo tido anteriormente, nem lhas e flores apropriadas etc. etc.
mesmo no âmbito familiar, maior contato com va- Num terreiro de candomblé, praticamente to-
lores e modos de agir característicos dessa reli- dos os membros da casa participam dos preparati-
gião. Na maioria dos casos, aderir a uma religião vos, sendo que muitos desempenham tarefas espe-
também significa mudar muitas concepções sobre cíficas de seus postos sacerdotais. Todos comem
o mundo, a vida, a morte. O novo adepto do can- no terreiro, ali se banham e se vestem. Às vezes,
domblé, ao freqüentar o terreiro, o templo, e dorme-se no terreiros noites seguidas, muitas mu-
participar das inúmeras atividades coletivas indis- lheres fazendo-se acompanhar de filhos pequenos.
pensáveis ao culto, logo se depara com uma nova É uma enormidade de coisas a fazer e de gente as
maneira de considerar o tempo. Ele terá que ser fazendo. Há uma pauta a ser cumprida e horários
ressocializado para poder conviver com coisas mais ou menos previstos para cada atividade, como
que, nos primeiros contatos, lhe parecerão estra- “ao nascer do sol”, “depois do almoço”, “de tarde”,
nhas e desconfortáveis. Ele tem de aprender que “quando o sol esfriar”, “de tardinha”, “de noite”.
tudo tem sua hora, mas que essa hora não é sim- Não é costume fazer referência e nem respeitar a
plesmente determinada pelo relógio e sim pelo hora marcada pelo relógio e muitos imprevistos
cumprimento de determinadas tarefas, que po- podem acontecer. No terreiro, aliás, é comum tirar
dem ser completadas antes ou depois de outras, o relógio do pulso, pois não tem utilidade. Duran-
dependendo de certas ocorrências, entre as quais te a matança, os orixás são consultados por meio
algumas imprevisíveis, o que pode adiantar ou do jogo oracular para se saber se estão satisfeitos
atrasar toda a cadeia de atividades. Aliás, esses com as oferendas, e podem pedir mais. De repen-
termos “atrasar” e “adiantar” são estranhos à situa- te, então, é preciso parar tudo e sair para providen-
ção que desejo considerar, pois no candomblé, ciar mais um cabrito, mais galinhas, mais frutas, ou
como já disse, tudo tem seu tempo, e cada ativi- seja lá o que for. Em qualquer dos momentos, ori-
dade se cumpre no tempo que for necessário. É a xás podem ser manifestar e será preciso cantar para
atividade que define o tempo e não o contrário. eles, se não dançar com eles. Os orixás em transe
As festas de candomblé, quando são realiza- podem, inclusive, impor alterações no ritual. Eles
das as celebrações públicas de canto e dança, as podem ficar muitas horas “em terra” enquanto to-
chamadas cerimônias de barracão, durante as dos os presentes lhes dão atenção e tudo o mais
quais os orixás se manifestam por meio do transe espera. Durante o toque, a grande cerimônia públi-
ritual, são precedidas de uma série de ritos propi- ca, a presença não prevista de orixás em transe im-
ciatórios, que envolvem sacrifício de animais, pre- plica o alargamento do tempo cerimonial, uma vez
paro das carnes para o posterior banquete comu- que eles devem também ser vestidos e devem dan-
nitário, fazimento das comidas rituais oferecidas çar. A chegada de dignitários de outros terreiros,
aos orixás que estão sendo celebrados, cuidado com seus séquitos, obriga a homenagens adicionais
com os membros da comunidade que estão reco- e outras seqüências de canto e dança. Embora haja
lhidos na clausura para o cumprimento de obriga- um roteiro mínimo, a festa não tem hora para aca-
ções iniciáticas, preparação da festa pública e fi- bar. Não se sabe exatamente o que vai acontecer
nalmente a realização da festa propriamente dita, no minuto seguinte, o planejamento é inviabilizado
ou seja, o chamado toque. Preparar o toque inclui pela intervenção dos deuses.
cuidar das roupas, algumas costuradas especial- Quando se vai ao terreiro, é aconselhável
mente para aquele dia, que devem ser lavadas, não marcar nenhum outro compromisso fora dali
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para o mesmo dia, pois não se sabe quando se Com o dia já escuro, discretamente, Ruth Landes
pode ir embora, não se sabe quanto tempo vai voltou para seu hotel. Só tempos depois pôde
durar a visita, a obrigação, a festa. Aliás, candom- continuar sua conversa com a ialorixá. Soube mais
blé também não tem hora certa para começar. Co- tarde a antropóloga que a mulher que interrompe-
meça quando tudo estiver “pronto”. Os convida- ra a entrevista trazia problemas e que a mãe fora
dos e simpatizantes vão chegando num horário cuidar dos rituais necessários para resolver a afli-
mais ou menos previsto, mas podem esperar ho- ção da filha (Landes, 1967: 86-99). Comentando o
ras sentados. Então muitos preferem chegar bem episódio, Ruth Landes escreveu: “Durante a minha
tarde, o que pode acarretar novos atrasos. E não permanência na Bahia pasmava-me a liberdade
adianta reclamar, pois logo alguém dirá que “can- que as mães tomavam com o tempo. Menininha
domblé não tem hora”. Uma vez, depois de mui- não voltou à sala aquele dia e como soube, sub-
ta espera, perguntei a que horas iria o candomblé seqüentemente, sempre se atrasava, sempre de-
realmente começar. A resposta foi: “Depois que morava. Era um privilégio da sua posição, aceito
mãezinha (a mãe-de-santo) trocar de roupa.” En- como natural numa terra de aristocracia e escravi-
fim, o tempo será sempre definido pela conclusão dão. Que era o tempo? O tempo era o que se faz
das tarefas consideradas necessárias no entender com ele e ela estava sempre ocupada” (Landes,
do grupo, a fórmula: “quando estiver pronto”. 1967, p. 95). O que Landes atribuiu a privilégios
Essa idéia de que o tempo está sujeito ao numa terra de aristocracia e escravidão era, entre-
acontecer dos eventos e ao sabor da realização de tanto, a expressão de uma concepção africana de
tarefas necessárias pode ser observada no cotidia- tempo muito diferente daquela a que estamos ha-
no dos terreiros também fora das festas. Pesquisa- bituados por força de nossa cultura européia.
dores que estão se iniciando em trabalho de cam- Para o pensador africano John Mbiti, enquan-
po se espantam muito com a “falta de horário” das to nas sociedades ocidentais o tempo pode ser
mães e pais-de-santo, tendo que esperar horas e concebido como algo a ser consumido, podendo
horas, se não dias, para fazer uma entrevista que ser vendido e comprado como se fosse mercado-
pensavam estar agendada para um horário bem ria ou serviço potenciais – tempo é dinheiro –, nas
determinado. Clientes que vão ao terreiro para o sociedades africanas tradicionais o tempo tem que
jogo de búzios ou outros serviços mágicos tam- ser criado ou produzido. Mbiti afirma que “o ho-
bém podem se sentir incomodados pelo modo mem africano não é escravo do tempo, mas, em
como o povo-de-santo usufrui do tempo. vez disso, ele faz tanto tempo quanto queira”. Co-
Em 1938, a antropóloga americana Ruth Lan- menta que, por não conhecerem essa concepção,
des veio ao Brasil para estudar as relações raciais muitos estrangeiros ocidentais não raro julgam que
entre nós e permaneceu vários meses em pesqui- os africanos estão sempre atrasados naquilo que
sa junto aos candomblés de Salvador. É muito in- fazem, enquanto outros dizem: “Ah! Esses africa-
teressante o relato de seu primeiro encontro com nos ficam aí sentados desperdiçando seu tempo na
a jovem Mãe Menininha do Gantois, que décadas ociosidade” (Mbiti, 1990, p. 19).
depois viria a ser a mais famosa mãe-de-santo do
Brasil. Marcada a visita, Menininha a recebeu e
com ela começou a conversar com muita simpa- III
tia. Chegou então uma filha-de-santo que cumpri-
mentou a mãe com todas as reverências, dizendo- Antes da imposição do calendário europeu,
lhe alguma coisa em voz baixa. Menininha pediu os iorubás, que são a fonte principal da matriz
licença à antropóloga para se retirar um momen- cultural do candomblé brasileiro (Prandi, 2000b),
to, dizendo-lhe que ficasse à vontade e que volta- organizavam o presente numa semana de quatro
ria em seguida. A tarde se esvaiu, com muita mo- dias. O ano era demarcado pela repetição das es-
vimentação na casa, muitas pessoas chegando e tações e eles não conheciam sua divisão em me-
saindo, mas a mãe-de-santo não voltou à sala. ses. A duração de cada período de tempo era mar-
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cada por eventos experimentados e reconhecidos Nas cortes dos reis iorubás havia funcionários
por toda a comunidade. Assim, um dia começava encarregados de manter viva a memória dos reis, e
com o nascer do sol, não importando se às cinco eles eram treinados para recitar os eventos impor-
ou às sete horas, em nossa contagem ocidental, e tantes que marcaram o reinado de cada soberano,
terminava quando as pessoas se recolhiam para mas os episódios não eram datados, fazendo com
dormir (Mbiti, 1990, p. 19), o que podia ser às oito que a reconstrução recente da história dos povos
da noite ou à meia-noite em nosso horário. Essas iorubás não comportasse uma cronologia para os
variações, importantes para nós, com nosso reló- tempos anteriores à chegada dos europeus, vendo-
gio que controla o dia, não o eram para eles. se obrigada a operar com mitos e memórias lança-
Cada um dos quatro dias da semana iorubá dos num passado sem datas (Johnson, 1921).
tradicional, chamada ossé, é dedicado a uma divin- Como o tempo é cíclico, fatos inesperados
dade (Ojô Awô, Ojô Ogum, Ojô Xangô, Ojô Oba- são recebidos com espanto. Assim, as ocorrências
talá, respectivamente, dia do segredo ou de Ifá, dia cíclicas da natureza – por exemplo, as fases da lua
de Ogum etc.), regulando uma atividade essencial e as estações climáticas – são encaradas como
para a vida de todos os iorubás tradicionais: o acontecimentos normais da vida, mas o que esca-
mercado. O mercado ou feira funciona em cada al- pa do ritmo normal do tempo é visto com preo-
deia e cidade num dos dias da semana, todas as cupação e medo, como um eclipse, uma enchen-
semanas ou a cada duas, três ou quatro semanas. te etc. O nascimento de gêmeos, que contraria o
Até hoje, as mulheres vão vender seus produtos desenlace normal da gestação, constitui também
nos mercados de diferentes cidades, fazendo des- um fato excepcional.
sa atividade uma instituição fundamental para a Os afro-descendentes assimilaram o calendá-
sociabilidade iorubá e a regulação do cotidiano. rio e a contagem de tempo usados na sociedade
Os iorubás tradicionais reconheciam a existência brasileira, mas muitas reminiscências da concep-
do mês lunar, mas lhe davam pouca importância, ção africana podem ser encontradas no cotidiano
sendo muito mais importantes as épocas de reali- dos candomblés. A chegada de um novo odum,
zação das grandes festas religiosas, marcadas pelas ano novo, é festejada com ritos oraculares para se
estações e fases agrícolas do ano, que eles chama- saber qual orixá o preside, pois cada ano vê repe-
vam de odum. O dia era dividido não em horas, tir-se a saga do orixá que o comanda: será um ano
mas em períodos, que poderíamos traduzir por ex- de guerra, se o orixá for um guerreiro, como
pressões como “de manhã cedo”, “antes do sol a Ogum, de fartura, se o orixá for um provedor,
pino”, “com o sol na vertical”, “de tardinha” etc. A como Oxóssi, será de reconciliações, se for de um
noite era marcada pelo cantar do galo. orixá da temperança, como Iemanjá, e assim por
A contagem dos dias e das semanas era pra- diante. O ossé, a semana, constituiu-se num rito
ticada em função de cada evento, de modo que a semanal de limpeza e troca das águas dos altares
mulher era capaz de controlar a duração de sua dos orixás. Cada dia da semana, agora a semana
gestação, assim como o homem contava o desen- de sete dias, é dedicado a um ou mais orixás, sen-
rolar dos seus cultivos, mas sem datação (Ellis, do cada dia propício a eventos narrados pelos mi-
1974, pp. 142-151). Os iorubás tradicionais consi- tos daqueles orixás, por exemplo, a quarta-feira é
deravam duas grandes estações, uma chuvosa e dia de justiça porque é dia de Xangô. As grandes
outra seca, separadas por uma estação de fortes festas dos deuses africanos adaptaram-se ao ca-
ventos, de modo que cada ano podia durar alguns lendário festivo do catolicismo por força do sin-
dias a mais ou a menos, dependendo do atraso ou cretismo que, até bem pouco tempo, era pratica-
adiantamento das estações, mas isso não importa- mente compulsório, mas o que a festa do terreiro
va, uma vez que os dias não eram contados. Os enfatiza é o mito africano, do orixá, e não o do
anos passavam como passavam as semanas e os santo católico.
dias, num fruir repetitivo, não se computando arit- Embora o candomblé e outras religiões de
meticamente cada repetição. origem africana sejam de formação recente, aqui
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constituídas somente depois das primeiras déca- minado pelo que o precede, podendo assim ser
das do século XIX, as datas de fundação dos ter- controlado pela ação no presente.
reiros, assim como as que marcam os reinados de Para os africanos tradicionais, o tempo é
sucessivas mães e pais-de-santo no início, são uma composição dos eventos que já aconteceram
desconhecidas. Seus nomes são bem lembrados e ou que estão para acontecer imediatamente. É a
seus feitos são cantados e festejados nas cerimô- reunião daquilo que já experimentamos como
nias que louvam os antigos fundadores – o padê realizado, sendo que o passado, imediato, está in-
nos candomblés mais velhos –, mas nada de da- timamente ligado ao presente, do qual é parte, en-
tas. Esse passado brasileiro também já se fez mito. quanto o futuro nada mais é que a continuação
daquilo que já começou a acontecer no presente,
não fazendo nenhum sentido a idéia do futuro
IV como acontecimento remoto desligado de nossa
realidade imediata (Mbiti, 1990, pp. 16-17). O fu-
Nas palavras de Wole Soyinka, “o pensa- turo que se expressa na repetição cíclica dos fatos
mento tradicional opera não uma sucessão linear da natureza, como as estações, as colheitas vin-
de tempo mas uma realidade cíclica” (Soyinka, douras, o envelhecer de cada um, é repetição do
1995, p. 10). O tempo escalar, que se mede ma- que já se conheceu, viveu e experimentou, não é
tematicamente, podendo ser somado, subtraído, futuro. Não há sucessão de fatos encadeados no
dividido etc., não faz nenhum sentido para o passado distante, nem projeção do futuro. A idéia
pensamento africano tradicional. Para os ociden- de história como a conhecemos no Ocidente não
tais, o tempo é uma variável contínua, uma di- existe; a idéia de fazer planos para o futuro, de
mensão que tem realidade própria, independen- planejar os acontecimentos vindouros, é comple-
te dos fatos, de tal modo que são os fatos que se tamente estapafúrdia. Se o futuro é aquilo que
justapõem à escala do tempo. É o tempo da pre- não foi experimentado, ele não faz sentido nem
cisão, que objetiva o cálculo, que viabiliza a pro- pode ser controlado, pois o tempo é o tempo vi-
jeção e fundamenta a racionalidade – tempo da vido, o tempo acumulado, o tempo acontecido.
ciência histórica e da modernidade. Nessa escala Mais que isso, o futuro é o simples retorno do
ocidental do tempo, os acontecimentos são enfi- passado ao presente, logo, não existe.
leirados uns após outros, em seqüências que Para os iorubás e outros povos africanos, an-
permitem organizá-los como anteriores e poste- tes do contato com a cultura européia, os aconte-
riores, uns como causa e outros como conse- cimentos do passado estão vivos nos mitos, que
qüência, construindo-se uma cadeia de correla- falam de grandes acontecimentos, atos heróicos,
ções e causações que conhecemos como histó- descobertas e toda sorte de eventos dos quais a
ria. Entre nós, o relógio e o calendário permitem vida presente seria a continuação. Ao contrário da
contar o tempo transcorrido entre dois eventos, narrativa histórica, os mitos nem são datados nem
sendo possível, mesmo num passado distante, mostram coerência entre si, não existindo nenhu-
saber que fatos estão mais próximos entre si e ma possibilidade de julgar se um mito é mais
quais mais se distanciam. Um segmento de tem- verossímil, digamos, do que outro. Cada mito
po pode ser comparado com outro, por exem- atende a uma necessidade de explicação tópica e
plo, o tempo médio da vida de um homem. As- justifica fatos e crenças que compõem a existência
sim, todos os fatos relevantes são datados, isto é, de quem o cultiva, o que não impede de haver
descritos num calendário seqüencial escalonado versões conflitantes quando os fatos e interesses a
em intervalos iguais (século, ano, mês, dia, justificar são diferentes. O mito fala do passado
hora). Esse tempo é projetado para a frente, de remoto que explica a vida no presente. O tempo
modo que o que vai acontecer compõe com o mítico é apenas o passado distante, e fatos sepa-
presente e com o já acontecido uma linha sem rados por um intervalo de tempo muito grande
solução de continuidade, estando o futuro deter- podem ser apresentados nos mitos como ocorrên-
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cias de uma mesma época, concomitantes. Cada vivo, o transe ritual repetindo o passado no pre-
mito é autônomo e os personagens de um podem sente, numa representação em carne e osso da
aparecer em outro, com outras características e re- memória coletiva.
lações, às vezes, contraditórias, sem que isso im-
plique algum tipo de questionamento da sua ve-
racidade. Os mitos são narrativas parciais e sua V
reunião não propicia o desenho de qualquer tota-
lidade. Não existe um fio narrativo na mitologia, Como parte da vida que transcorre no pre-
como aquele que norteia a construção da história sente, e numa dimensão diferente daquela do pas-
para os ocidentais. O tempo do mito é o tempo sado mítico, existe um passado próximo formado
das origens, e parece existir um tempo vazio en- pelos eventos que compõem a vivência particular
tre o fato contado pelo mito e o tempo do narra- do indivíduo e que depende de sua memória pes-
dor. No mundo mítico, os eventos não se ajustam soal. Os mortos, por exemplo, enquanto são lem-
a um tempo contínuo e linear. A mitologia dos brados pelos parentes vivos, fazem parte desse
orixás, que fala da criação do mundo e da ação passado recente que se confunde com o presente
dos deuses na vida cotidiana, bem o demonstra e, assim, participam da experiência presente dos
(Prandi, 2001). vivos enquanto estiverem vivos na lembrança dos
Esse passado remoto, de narrativa mítica, é vivos. Continuam a fazer parte da família, sendo
coletivo e fala do povo como um todo. Passado por ela louvados e alimentados, até que um dia
de geração a geração, por meio da oralidade, é possam retornar reencarnados. Com a reencarna-
ele que dá o sentido geral da vida para todos e ção tudo se repete, o ciclo se recompõe. Assim
fornece a identidade grupal e os valores e normas como se repetem as estações do ano, as fases da
essenciais para a ação naquela sociedade, con- lua, os ciclos reprodutivos, o desenrolar das se-
fundindo-se plenamente com a religião. O tempo meaduras às colheitas, a vida do homem se repe-
cíclico é o tempo da natureza, o tempo reversí- te na reencarnação: cíclica é a natureza, cíclica é
vel, e também o tempo da memória, que não se a vida do homem, cíclico é o tempo.
perde, mas se repõe. O tempo da história, em Para os iorubás tudo acontece em três pla-
contrapartida, é o tempo irreversível, um tempo nos: o Aiê, que é este nosso mundo, o do tempo
que não se liga nem à eternidade, nem ao eterno presente; o Orum, que é o outro mundo, a mora-
retorno (Prigogine, 1991: 59). O tempo do mito e da dos deuses orixás e dos antepassados, o mun-
o tempo da memória descrevem um mesmo mo- do mítico do passado remoto; e o mundo interme-
vimento de reposição: sai do presente, vai para o diário dos que estão aguardando para renascer.
passado e volta ao presente – não há futuro. A re- Este mundo dos que vão nascer está próximo do
ligião é a ritualização dessa memória, desse tem- mundo aqui-e-agora, o Aiê, e representa o futuro
po cíclico, ou seja, a representação no presente, imediato, atado ao presente pelo fato de que
através de símbolos e encenações ritualizadas, aquele que vai nascer de novo continua vivo na
desse passado que garante a identidade do grupo memória de seus descendentes, participando de
– quem somos, de onde viemos, para onde va- suas vidas e sendo por eles alimentados, até o dia
mos? É o tempo da tradição, da não-mudança, de seu renascimento como um novo membro de
tempo da religião, a religião como fonte de iden- sua própria família. Para o homem, o mundo das
tidade que reitera no cotidiano a memória ances- realizações, da felicidade, da plenitude é o mundo
tral. No candomblé, emblematicamente, quando do presente, o Aiê (Babatunde, 1992, p. 33). Não
o filho-de-santo entra em transe e incorpora um há prêmio nem punição no mundo dos que vão
orixá, assumindo sua identidade representada nascer, nada ali acontece. Os homens e mulheres
pela dança característica que lembra as aventuras pagam por seus crimes em vida e são punidos pe-
míticas dessa divindade, é o passado remoto, co- las instâncias humanas. As punições impostas aos
letivo, que aflora no presente para se mostrar humanos pelos deuses e antepassados por causa
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de atos maus igualmente não os atingem após a Quando a memória do morto extravasa os li-
morte, mas se aplicam a toda coletividade à qual o mites de sua família particular e passa a ser louva-
infrator pertence, e isso também acontece no Aiê. da pela comunidade mais ampla da aldeia, da ci-
Trata-se de uma concepção ética focada na coleti- dade, de uma grande linhagem que reúne muitas
vidade e não no indivíduo (Mbon, 1991, p. 102), famílias, quando esta lembrança deixa de ser pri-
não existindo a noção ocidental cristã de salvação vativa de alguns indivíduos para se incorporar na
no outro mundo nem a de pecado. O outro mun- lembrança coletiva, o morto não precisa mais re-
do habitado pelos mortos é temporário, transitório, nascer entre os vivos para garantir o ciclo de sua
voltado para o presente dos humanos. Nem a vida eternidade. Ele vai para o Orum, tornando-se, en-
espiritual tem expressão no futuro. tão, um antepassado. Isso acontece com os gran-
É preciso que o morto não tenha sido esque- des reis, heróis, fundadores e líderes. Do Orum, o
cido pelos seus familiares para poder nascer de mundo mítico onde habita com os deuses orixás,
novo, pois seu lugar é sempre na família. São ele passa a atuar diretamente nos acontecimentos
duas as condições para se continuar vivo na me- do Aiê: vai interferir no presente, ajudando e pu-
mória, no presente. Primeiro, é preciso ter tido nindo os humanos. O passado mítico é um passa-
muitos filhos, pois um homem sem prole não tem do vivo, e seus habitantes o tempo todo agem e
quem cultive sua memória. Um homem sem pro- interferem no presente. Os antepassados, que os
le não tem uma grande família onde ele possa re- iorubás chamam de egunguns, não se recusam a
nascer. Para tanto é necessário ter muitas mulhe- vir ao Aiê e conviver com os humanos e o fazem
res e poder sustentá-las. Segundo, deve ter vivido através de seus sacerdotes nos grandes festivais
muito, para que seus atos memoráveis tenham de máscaras em que se cultua a memória ances-
sido testemunhados pelos filhos, netos e, quem tral coletiva daquela comunidade (Drewal, 1992,
sabe, bisnetos. Muitos nomes iorubás dados a cap. 6).
uma nova criança referem-se àquele de quem ela Quando, numa outra dimensão, o antepassa-
se acredita ser simplesmente o retorno, como Ba- do conquista o respeito de todo um povo, quando
batundê, que quer dizer o pai está de volta; Iya- sua cidade impõe seu culto a outras, quando ele
bó, a mãe retorna; Babatunji, o pai acordou de se desprende da comunidade original e passa a fa-
novo. A memória depende da convivência, e é zer parte da memória de toda uma sociedade, a
graças a ela que se conhece, ama e respeita o ou- reverência por ele recebida se expande, sua in-
tro. A lembrança é um sentimento de veneração fluência no Aiê cresce, seu poder no mundo do
respeitosa e afetiva. Para renascer, então, tem que presente se eterniza: ele é, então, um orixá, um
se viver até uma idade provecta. Ai dos que mor- entre os deuses iorubás. Sua relação não é mais
rem cedo, estes terão dificuldade para renascer. com os parentes nem com os membros da sua co-
Quando se morre na tenra infância pode-se renas- munidade, mas com a humanidade. Ele pode até
cer como outra criança gerada no útero da mesma mesmo ser reverenciado em terras do além-mar,
mãe (Oduyoye, 1996, p. 113). Contudo, este não onde se fará atuante no presente de muitos outros
é um nascimento festejado, pelo contrário, é temi- povos, como ocorreu com a diáspora iorubá na
do, pois a criança renascida não tem compromis- América por força da escravidão, com a fundação
so com o presente, com a família, com o Aiê, e de novos cultos e religiões, como o candomblé, o
pode perfeitamente querer morrer de novo cedo, tambor-de-mina, o xangô e o batuque, no Brasil, e
sem viver, pelo simples e degenerado prazer de a santeria, em Cuba. Ele é parte do passado míti-
nascer por nascer. Essas criaturas, chamadas abi- co, e o passado mítico responde pelo presente. O
cus, literalmente, nascido para morrer, só fazem passado mítico é o que existe desde o começo dos
sofrer as mães e frustrar os pais, que precisam de- tempos, o que sempre foi, o que não é datado.
sesperadamente de uma longa descendência, pois Os iorubás acreditam que o espírito do ser
os filhos que geram filhos são a garantia da eter- humano é constituído de diversas partes imateriais,
nidade celebrada no presente. sua alma não é indivisível como na concepção ju-
O CANDOMBLÉ E O TEMPO 51

daico-cristã. Há uma individualidade espiritual brados de geração a geração, mas não pôde pre-
chamada ori que só existe no presente, isto é, en- servar a idéia de que os mortos renascem na fa-
quanto se vive no Aiê. Ela é responsável pelas rea- mília carnal, pois a adesão ao candomblé é indi-
lizações humanas, contém o destino de cada pes- vidual e a família-de-santo não corresponde
soa. O ori morre e é destruído juntamente com o necessariamente à família biológica. A idéia do
corpo material. Outra parte é constituída da me- antepassado egungum veio ocupar um lugar se-
mória cultuada pela família do morto, o egum, que cundário na religião, apenas complementar na re-
volta ao presente por meio da reencarnação, que ligião dos orixás, que na maioria dos terreiros de
mantém o morto no presente. E, como parte fun- formação recente é praticada sem essa referência.
damental, talvez a mais importante, há o orixá par- Como a religião dos orixás congrega grupos mi-
ticular da pessoa, considerado o seu antepassado noritários, cada um pertencente a um determina-
remoto. O orixá particular da pessoa é uma ínfima do terreiro, autônomo em relação aos demais,
porção do orixá geral cultuado por todos. É o vín- grupos formados por adeptos que fazem parte de
culo do ser humano com o divino, o eterno, o pas- uma sociedade mais ampla, cuja cultura é predo-
sado mítico. Com a morte do corpo, o orixá minantemente ocidental e cristã, o culto a ante-
pessoal retorna ao orixá geral, àquele que existe passados coletivos que controlam a moralidade de
desde o princípio dos tempos. O ori representa o uma cidade inteira, digamos, como ocorria origi-
presente do ser humano; o egum, a sua capacida- nalmente em terras africanas, não se viabilizou
de de retornar sempre a esse presente, ou se eter- por razões evidentes. O mundo brasileiro fora dos
nizar no Orum como antepassado egungum; o ori- muros do terreiro não é território dos antepassa-
xá pessoal, a ligação do presente com o mito, com dos, como era na África tradicional.
o passado remoto que age sobre o presente e do A concepção iorubá de reencarnação sofreu
qual recebe as honrarias sacrificiais. O passado re- na América a influência da idéia cármica de reen-
produzido no presente pela infinidade de huma- carnação do espiritismo kardecista – religião de
nos, nos quais os orixás se perpetuam a cada nas- origem européia que prega a reencarnação como
cimento, pois cada ser humano descende de um mecanismo de um sistema ético de premiação e
orixá, fecha de novo o ciclo africano do tempo. punição dos atos praticados em vida e que permi-
A escravidão destruiu as estruturas familiares te ao espírito do morto aperfeiçoar-se através de
dos africanos trazidos como escravos para a Amé- muitas vidas (Prandi, 2000c). O kardecismo tem
rica, submeteu-os a um ritmo de trabalhado com- uma concepção de tempo repetitivo em espiral,
pulsório e alienado, impôs novas crenças e um que expressa mudança, evolução espiritual, aper-
novo modo de vida cotidiana que pressupunha feiçoamento voltado para o futuro neste e no ou-
uma outra maneira de contar o tempo e de o con- tro mundo, tudo muito diferente da visão africana.
ceber. Assim, quando a religião dos orixás foi re- Além da influência kardecista, as concepções
construída entre nós, muitos dos aspectos e con- africanas da morte também foram se borrando no
ceitos da antiga cultura africana deixaram de fazer contato da religião dos orixás com as noções pró-
sentido e muitos desapareceram. Mas muito das prias do catolicismo hegemônico, durante mais de
velhas idéias e noções se reproduziram na cultu- um século de sincretismo. O rito funerário do axe-
ra religiosa dos terreiros de candomblé e de ou- xê (Prandi, 1999), celebrado para desligar o mor-
tras religiões dedicadas aos orixás iorubanos, vo- to da vida presente, para que ele possa partir e
duns fons e inquices bantos, assim como muita depois voltar como outra pessoa, rito que repre-
coisa se conservou, em maior ou menor escala, senta a quebra de todos os vínculos do morto
em aspectos não religiosos da cultura popular de com o Aiê, continua a ser praticado, mas tende
influência africana. hoje a ser realizado com mais freqüência nas exé-
No Brasil dos dias de hoje, o candomblé quias dos líderes mais expressivos do terreiro de
continua a cultuar a memória de seus mortos ilus- candomblé. Raramente se realiza quando o morto
tres, invocados em diferentes cerimônias e relem- ocupa um lugar inferior na hierarquia religiosa.
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Justifica-se hoje mais pela etiqueta da corte do mula receitada é a mesma aplicada no passado,
que pela concepção tradicional de reencarnação. quando foi usada com sucesso, conforme narra o
Não parece, contudo, que os seguidores do can- mito. Nada é novo, tudo se refaz. Também é atri-
domblé e de outras religiões afro-brasileiras te- buição do babalaô identificar, no nascimento de
nham incorporado decisivamente nem a noção de uma criança, a reencarnação de um ente querido.
carma do espiritismo nem a idéia salvacionista Não se pode dar nome a uma criança sem antes
cristã de julgamento, prêmio e punição após a saber de onde ela vem, pois um nascimento não
morte, de tal modo que o futuro que se descorti- é uma tábula rasa. É um retorno. O babalaô é ao
na depois desta vida, segundo a concepção cristã, mesmo tempo o guardião do passado e o decifra-
continua a ser para os religiosos brasileiros afro- dor do presente. Ele usa o passado para a decifra-
descendentes, pelo menos em certa medida, um ção do presente. Seu demorado e penoso treina-
tempo desprovido de sentido: depois da morte, o mento o obriga a aprender de cor milhares de
que se esperaria, assim, é voltar para este mundo, versos, os poemas de Ifá, que narram o passado
para o presente do Aiê. mítico de seu povo, seus deuses e seus heróis
(Prandi, 1996, cap. 3).
Não há mais babalaôs no Brasil, mas os pais
VI e mães-de-santo operam as antigas técnicas oracu-
lares. Não aprendem os poemas de Ifá, atribuição
Para os iorubás o tempo é cíclico, tudo o dos antigos babalaôs, mas sua magia ainda consis-
que acontece é repetição, nada é novidade. Aqui- te em descobrir o odu que rege cada situação pre-
lo que nos acontece hoje e que está prestes a sente, como meio de desvendar no presente as
acontecer no futuro imediato já foi experimentado mesmas causas dos acontecimentos no passado. E
antes por outro ser humano, por um antepassado, saná-las, com o mesmo receituário.
pelos próprios orixás. O oráculo iorubano, prati-
cado pelos babalaôs, que são os sacerdotes de Ifá
ou Orunmilá, o deus da adivinhação, baseia-se no VII
conhecimento de um grande repertório de mitos
que falam de toda sorte de fatos acontecidos no À concepção africana de tempo no candom-
passado remoto e que voltam a acontecer, envol- blé e em outras denominações religiosas de ori-
vendo personagens do presente. É sempre o pas- gem negro-africana estão intimamente associadas
sado que lança luz sobre o presente e o futuro as idéias de aprendizado, saber e competência.
imediato. Para os africanos tradicionais, o conhecimento hu-
Conhecer o passado é deter as fórmulas de mano é entendido, sobretudo, como resultado do
controle dos acontecimentos da vida dos viventes. transcorrer inexorável da vida, do fruir do tempo,
Esse passado mítico, que se refaz a cada instante do construir da biografia. Sabe-se mais por que se
no presente, é narrado pelos odus do oráculo de é velho, porque se viveu o tempo necessário da
Ifá. Cada odu é um conjunto de mitos, cabendo aprendizagem. A aprendizagem não é uma esfera
ao babalaô descobrir qual deles conta a história isolada da vida, como a nossa escola, mas um
que está acontecendo ou que vai acontecer na processo que se realiza a partir de dentro, partici-
vida presente do consulente que o procura em pativamente. Aprende-se à medida que se faz,
busca de solução para suas aflições. Quando o que se vive. Com o passar do tempo, os mais ve-
adivinho identifica o mito que se relaciona com o lhos vão acumulando um conhecimento a que o
presente do consulente, e o faz usando seus ape- jovem só terá acesso quando tiver passado pelas
trechos mágicos de adivinhação, fica sabendo mesmas experiências. Mesmo quando se trata de
quais procedimentos rituais – como sacrifícios, re- conhecimento especializado, o aprendizado é por
colhimento e purificações – devem ser usados imitação e repetição. As diferentes confrarias pro-
para sanar os males que afligem o cliente. A fór- fissionais, especialmente as de caráter mágico e
O CANDOMBLÉ E O TEMPO 53

religioso, dividem as responsabilidades de acordo aprendizado rápido, racional e impessoal, o saber


com a senioridade de seus membros e estabele- premido pelo tempo de calendário. A escola, me-
cem ritos de passagem que marcam a superação canismo de transmissão de todo o saber conside-
de uma etapa de aprendizado para ingresso em rado importante pela sociedade, é uma instituição
outra, que, certamente, implica o acesso a novos para jovens. Em nossa sociedade, é na juventude
conhecimentos, segredos ou mistérios da confra- que se domina o conhecimento e espera-se que
ria. A importância dos ritos de passagem foi enfa- os jovens saibam mais do que os velhos. De fato,
ticamente preservada nas religiões afro-brasileiras; um jovem de vinte anos, hoje, pode saber mais do
ritos que são sua marca mais notável. Na carreira que seus pais e muito mais do que seus avós, por-
iniciática, cada etapa corresponde, evidentemen- que aprende na escola, onde o conhecimento
te, ao compromisso de novas obrigações e ao al- avança rapidamente. O saber está fora de casa,
cance de novos privilégios. A passagem de uma fora da família. E o conhecimento nunca é defini-
etapa para outra não é determinada pelo tempo tivo, pois está em permanente expansão e cons-
escalar, nem poderia, mas por aquilo que real- tante reformulação, devendo cada um atualizar-se,
mente o iniciado é capaz de fazer. Mais uma vez, tomar ciência das novas descobertas que surgem
o que conta é a experiência. Ser mais velho é sa- sem cessar.
ber certo, fazer mais e melhor. Muitas das diferen- Em nossa sociedade, a velhice é concebida
tes atribuições profissionais, talvez as mais impor- como a idade da estagnação, do atraso, da apo-
tantes, são herdadas, passadas de pai para filho, sentadoria, que significa etmologicamente recolhi-
de mãe para filha, numa clara reafirmação de que mento aos aposentos e conseqüente abandono da
a vida é repetição. vida produtiva e pública. O jovem não aprende
Os iorubás só conheceram a escrita com a mais convivendo com os mais velhos, aprende
chegada dos europeus. Assim, todo o conheci- com a leitura e as instituições da palavra escrita, e
mento tradicional baseia-se na oralidade. Mitos, não há professor sem livro. O conhecimento atra-
fórmulas rituais, louvações, genealogias, provér- vés da escrita, cujo acesso se amplia com a aqui-
bios, receitas medicinais, encantamentos, classifi- sição de livros, com as consultas às bibliotecas, e
cações botânicas e zoológicas, tudo é memoriza- agora com a chamada navegação na internet, não
do. Tudo se aprende por repetição, e a figura do tem limites, e muito menos segredo. Tudo está ao
mestre acompanha por muito tempo a vida dos alcance dos olhos e nem é preciso esperar. Etapas
aprendizes. Os velhos são os depositários da cul- do aprendizado podem ser queimadas, nada pode
tura viva do povo e a convivência com eles é a deter a vontade de saber.
única maneira de aprender o que eles sabem. Os Essa nova maneira de conceber o aprendiza-
velhos são os sábios e a vida comunitária depen- do, a idade e o tempo interfere muito nas noções
de decisivamente de seu saber, de seus mistérios. de autoridade religiosa, hierarquia e poder religio-
O ancião detém o segredo da tradição. Sua pala- so, dando lugar a contradições e conflitos no in-
vra é sagrada, pois é a única fonte de verdade. terior do candomblé, questionando a legitimidade
Essa forma de conceber o aprendizado e o do poder dos mais velhos, provocando mudanças
saber entra em crise nos candomblés quando seus no processo de iniciação sacerdotal.
membros, já escolarizados, passam a se valer das
fórmulas escritas que, pouco a pouco, vão surgin-
do disponíveis nos livros e em outras publicações. VIII
Mais que isso, os seguidores das religiões dos
orixás, voduns e inquices são, hoje em dia, prove- Ainda hoje nos candomblés do Brasil procu-
nientes das mais diferentes origens e classes ra-se ensinar que a experiência é a chave do co-
sociais e todos eles, ou sua grande maioria, co- nhecimento, que tudo se aprende fazendo, vendo,
nhecem a experiência efetiva de se aprender na participando. Cada coisa no seu devido tempo.
escola. Esta é orientada para a efetivação do Assim, o conhecimento do velho é o conhecimen-
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to legítimo, ao qual se chega ao longo de toda a sua inferioridade hierárquica. Lembrando que a
uma vida. Roger Bastide, que estudou o candom- estrutura organizacional do candomblé é uma re-
blé na década de 50, escreveu que “são os sacer- produção simbólica da estrutura tradicional da fa-
dotes que têm a noção do valor do tempo; é o mília iorubá, de resto perdida no Brasil, evidencia-
tempo que amadurece o conhecimento das coi- se a importância da experiência acumulada na
sas; o ocidental tudo quer saber desde o primeiro constituição dos grupos de autoridade. Os ebômis
instante, eis por que, no fundo, nada compreen- são os que sabem, porque são mais velhos, vive-
de” (Bastide, 1978, p. 12). ram mais, acumularam maior experiência. Sua au-
Toda a hierarquia religiosa é montada sobre toridade é dada pelo tempo acumulado, que pres-
o tempo de aprendizagem iniciática, numa lógica supõe saber maior.
segundo a qual quem é mais velho viveu mais e, Como o candomblé é religião e em nossa so-
por conseguinte, sabe mais. Mas para o jovem de ciedade a religião é uma das esferas autônomas
mentalidade ocidental, o tempo urge, o tempo da cultura (o que faz da religião dos orixás na
deve ser vencido. A palavra escrita é o meio de América algo bem diferente do que foi na África),
acesso ao saber e a oralidade não faz mais ne- a noção de tempo acumulado no âmbito religioso
nhum sentido. Só faz sentido quando se acredita entre nós tende a ser, e cada vez é mais, descola-
que a fórmula aprendida pela via da oralidade é a da do tempo que marca o transcurso da vida.
única capaz de se mostrar eficaz, mas isso é uma Pode-se ingressar no candomblé, por livre esco-
imposição religiosa defendida apenas pelos aman- lha, em qualquer momento da vida, em qualquer
tes da tradição, seja lá o que isso possa significar. idade. Assim, a idade biológica da pessoa não é a
Numa sociedade como a nossa, em que a ciência mesma da idade iniciática, de modo que um jo-
já desmascarou o segredo, é difícil acreditar que vem iniciado há muito tempo pode ser o ebômi
tudo tem o seu tempo, e que é preciso esperar a de um iaô que se iniciou depois de maduro. O
hora certa, pois a vida diária e a luta pela sobrevi- tempo de iniciação transformou-se no tempo que
vência se encarregam de mostrar o contrário. Em realmente conta. Evidentemente, nos primórdios
nossa cultura, é premiado quem chega primeiro. do candomblé, a passagem de uma sacerdotisa jú-
Os membros de um candomblé são classifi- nior para a categoria sênior era o resultado natu-
cados basicamente em duas grandes categorias de ral do saber religioso acumulado durante o tempo
idade iniciática: os iaôs, aqueles iniciados há pou- necessário, durasse quanto durasse. O reconheci-
co tempo e que formam o grupo júnior, e os ebô- mento por parte do grupo de sua capacidade e
mis, os iniciados há bastante tempo e que assim competência na realização de atribuições rituais
são capazes de realizar, com autonomia, ativida- complexas era resultado natural do fazer dessas
des rituais mais complexas, o grupo sênior. A atribuições, combinado com a dedicação religiosa
palavra ebômi, do iorubá egbomi, significa exata- expressa por meio de sucessivas obrigações ri-
mente “meu mais velho”, e era assim que na anti- tuais a que se submetia a devota. Cuidar de seu
ga família poligínica iorubá as esposas mais velhas orixá pessoal, oferecendo-lhe os necessários sacri-
se tratavam. Iaô, nessa família tradicional, era a fícios periódicos, e trabalhar com autonomia em
denominação dada às esposas mais novas. No benefício do grupo eram as condições que indica-
candomblé, enquanto os ebômis conquistam certa vam maturidade, competência nos ritos, capacida-
autonomia em relação à autoridade suprema da de de liderança, saber e autoridade.
mãe ou do pai-de-santo e são encarregados de ta- Numa determinada época da consolidação
refas rituais importantes, de prestígio dentro do do candomblé, foi necessária a criação de rito de
grupo, com privilégios e honras especiais, as iaôs passagem específico que tornasse público o reco-
(ou os iaôs, pois há muito a palavra iaô perdeu nhecimento da condição de senioridade, rito hoje
no candomblé a conotação de esposa), os jovens conhecido pelo nome de decá, a partir do qual a
iniciados, enfim, só fazem obedecer, usando sím- iaô assume a posição de ebômi, de mais velho.
bolos e cultivando gestos e posturas que denotam Agora fazendo parte de uma sociedade em que o
O CANDOMBLÉ E O TEMPO 55

tempo que conta é o tempo do calendário, dota- todos os momentos em que a etiqueta do terrei-
do em nossa cultura de objetividade inquestioná- ro imprime a marca do tempo.
vel, o candomblé acabou por mensurar em anos Um lema da chamada lei-do-santo muito cul-
o tempo de aprendizagem do iaô. Depois de se tivado afirma que o mais velho sabe mais e que
submeter ao grande rito de passagem que o inclui sua verdade é incontestável. Saber é poder, é pro-
no candomblé como sacerdote júnior, a chamada ximidade maior com os deuses e seus mistérios, é
feitura de orixá, o iaô pode, depois de anos de sabedoria no trato das coisas de axé, a força mís-
aprendizado, e tendo cumprido os ritos interme- tica que move o mundo, manipulada pelos ritos.
diários, ascender ao grau de ebômi, conquistando Por isso, o mais novo prostra-se diante do mais
assim sua senioridade. Como sênior poderá rece- velho e lhe pede a bênção, não lhe dirige a pala-
ber incumbências de mando, assumir tarefas de vra se não for perguntado, pede licença – Agô
prestígio e iniciar novos adeptos, podendo, se ebômi, licença meu mais velho – para falar na sua
quiser, abrir seu próprio terreiro. Em algum mo- presença, oferece-lhe sua comida antes de come-
mento no meio do curso do século XX – e çar a comer – Ajeum, vamos comer, servido? –,
ninguém sabe dizer como foi nem de onde veio a abaixa a cabeça quando dele se aproxima, curva-
iniciativa –, a lei-do-santo, espécie de código con- se à sua passagem, inclina-se e o cumprimenta
sensual não escrito que regula os costumes e a juntando as mãos – Mojubá, salve! – quando se
vida religiosa nos terreiros, em permanente cons- canta para o orixá a que este mais velho é devo-
tituição, fixou em sete o número mínimo de anos tado. Tudo isso acontece numa ordem na qual
necessários ao recebimento do grau de seniorida- cada um conhece bem o seu posto, ou pelo me-
de, o tempo do decá, tempo de autoridade. O nos deveria conhecer.
decá é o coroamento de uma seqüência de obri- Contudo, no mundo em que vivem, os jo-
gações que inclui, depois da feitura, a obrigação vens aprendem que idade não é sinônimo de sa-
de um ano, a de três anos e finalmente a de sete bedoria. No candomblé, experimentam que nem
anos, tudo definido numa escala de tempo oci- sempre os mais velhos em iniciação sabem mais.
dental. Evidentemente, atrasos eventuais em qual- O jovem aprende no terreiro, mas pode ampliar
quer etapa arrastam para adiante o período total. seus conhecimentos religiosos por meio de outras
O tempo de iniciação, agora computado em fontes, sendo que a leitura pode ser uma porta
termos de anos, meses e dias, e em certos casos aberta que o leva a um universo de informação
horas, impõe-se como chave do ordenamento sobre as coisas da religião do qual o mais velho
hierárquico no grupo, instituindo-se o que os an- nem suspeita. O jovem perde a confiança no mais
tropólogos chamam de peking order, a “ordem velho, contesta sua sabedoria, rompe sua lealdade
das bicadas”, uma disposição hierárquica que para com aqueles que o iniciaram e pode abando-
pode ser observada nos galinheiros. Ali, uma ga- nar o grupo à procura de outros líderes que lhe
linha, certamente a mais forte, a líder inconteste, pareçam mais apropriados, mudando de axé,
bica todas as demais e não é bicada por nenhu- como se diz, mudando de terreiro, de família-de-
ma; uma segunda é bicada pela primeira e bica as santo, de filiação religiosa. Muitos que se iniciam
outras; uma terceira é bicada por essas duas e hoje no candomblé têm uma aspiração ocupacio-
bica as demais, e assim por diante, até a última nal muito clara: desejam ser pais e mães-de-santo,
galinha, que é bicada por todas e não bica ne- buscando nessa religião, como acontece nas ou-
nhuma. Esse esquema, muito característico de so- tras, um meio de vida e uma oportunidade de as-
ciedades de estruturação social mais simples e de censão social. Para esses, quanto mais cedo for al-
associações iniciáticas, é rigorosamente observa- cançada a senioridade, melhor, não raro burlando
do nos candomblés. Pode ser apreciado na or- a contagem dos sete anos.
dem em que as filhas-de-santo se colocam na A busca do conhecimento transforma-se, en-
roda das danças, na ordem dos pedidos de bên- tão, numa luta contra o tempo, invertendo comple-
ção – quem beija a mão de quem – e em quase tamente sua noção original, quebrando a idéia de
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que o tempo é a soma das experiências de vida. O Os velhos do candomblé falam do passado
terreiro passa a ser visto como uma escola ociden- como um tempo perdido, que já não se repete,
tal, que estipula prazos e, ao final deles, outorga tí- vencido por um presente em que impera a pressa,
tulos e diplomas que atribuem direitos no mercado o gosto pela novidade, a falta de respeito para
profissional. O lugar do tempo africano, o tempo com as caras tradições e, sobretudo, o descaso
do mito, é tomado pelo tempo do relógio. para com os mais velhos. Dizem que “o candom-
blé hoje vive de comércio, é pura exibição”, recla-
mam que “uns querem ser mais que os outros”, fa-
IX lam que “os que mal saíram das fraldas, que não
sabem nada, já empinam a cabeça para os anti-
Velhos iniciados contam que nos idos e sau- gos”, lamentam que “os velhos babás e as velhas
dosos tempos do candomblé antigo o recolhimen- iás não tem mais voz em nada”, asseveram que “os
to à clausura, onde se processa a iniciação, não jovens o que querem é sugar os seus mais velhos
tinha duração pré-determinada. O filho-de-santo e depois chutar seu traseiro e buscar outro lugar
ficava recolhido no terreiro o tempo necessário à onde podem mandar à vontade”. Falam com sau-
sua aprendizagem de sacerdote e à realização de dade daquele mundo ideal que ficou para trás e
todas as atividades que os ritos de uma feitura de gostam sempre de frisar que “no meu tempo não
orixá envolvem. Podia ficar meses, muitos meses, era assim”, repetindo que “hoje ninguém mais tem
isolado do mundo, totalmente mergulhado na sua humildade, querendo saber mais do que os anti-
iniciação. Isso ficou para trás. Hoje, cada inicia- gos, essas crianças presunçosas, esses jovens
ção, que se faz num período que não soma os cheios de vento”. Seu discurso triste revela certa-
dias de um mês, tem de ser cuidadosamente mente muito de nostalgia da juventude, mas é tam-
planejada, de modo a encaixar os dias de recolhi- bém o testemunho verdadeiro de perdas efetivas.
mento do filho-de-santo nas suas férias de traba- O presente agora se descortina como ruptu-
lho ou nos momentos vagos deixados pelos com- ra, descontinuidade. O passado não explica mais,
promissos da vida secular. O tempo da iniciação nem se completa no presente. Os mitos vão sen-
passa a ser regulado pelo tempo do mercado de do esquecidos, os odus simplificados, os deuses
trabalho. O tempo africano do terreiro é vencido ganham ares mais condizentes com a modernida-
pelo tempo da sociedade capitalista. de. Os jovens acusam os mais velhos de levarem
Nesta nossa sociedade do tempo irreversível, para o túmulo segredos iniciáticos que não trans-
cada vez mais as imagens e referências do tempo mitem para ninguém, enfraquecendo os mistérios
circular vão se perdendo: o relógio analógico, da religião e sua força, o axé, mas de fato não se
com seus ponteiros sempre dando a volta para re- importam muito com isso. Acreditam menos na
tornarem ao ponto zero, são substituídos pelo re- existência dos segredos do que os mais velhos di-
lógio digital; os supermercados 24 horas e outros ziam acreditar. Aprenderam que a tradição é e
negócios essenciais ao consumo na vida cotidiana pode ser construída a cada instante, pois a lei-do-
não fecham para descanso; os canais de televisão santo, que ordena as tradições do candomblé, não
ficam no ar noite e dia; trabalha-se em qualquer tem mais do que um século de vida, nem uma
período; a internet mantém ininterrupto o acesso única versão, e está sempre mudando. E levam
aos arquivos de informação dos computadores li- adiante sua religião, pensando no futuro.
gados na rede mundial; até o amor se faz a qual-
quer hora nos motéis full-time; a eletricidade há
muito acabou com a escuridão e fez da noite, dia; X
a engenharia dos transgênicos nos faz sonhar com
uma natureza transformada a cada colheita. Se até Para o Ocidente, o futuro é a grande incóg-
na natureza o tempo cíclico vai perdendo impor- nita a ser decifrada, controlada, um tempo a ser
tância, que dirá na vida do terreiro. planejado para melhor ser usufruído. A esperança
O CANDOMBLÉ E O TEMPO 57

sempre se deposita num tempo vindouro para o Bastide quase meio século atrás (Bastide, 1971,
qual são pensadas as grandes realizações que de- pp. 517-518) – para se tornar uma religião para to-
vem ser introduzidas em prol da felicidade huma- dos, disposta a competir com os demais credos do
na. Investe-se no futuro. Olha-se para o passado país no largo e aberto mercado religioso. Uma ins-
procurando os erros cometidos e que devem ser tituição dos tempos atuais em um processo de
evitados no presente para garantir um futuro me- mudança que reformula a tradição e elege novas
lhor. A história ensina como agir com sabedoria e referências, para o bem e para o mal. O tempo é
responsabilidade em face do devir. Um emblemá- tempo de mudar.
tico mote de Karl Marx diz que na história nada se
repete, a não ser como farsa. Para o africano tra-
BIBLIOGRAFIA
dicional é o contrário: a repetição é o almejado, o
certo, o inquestionável. O novo, o inesperado, o
BABATUNDE, Emmanuel D. (1992), A critical
que não vem do passado, é o falso, o perigoso, o
study of bini and yoruba value systems of
indesejável.
Nigeria in change: culture, religion and
O candomblé dos dias de hoje está posto en-
the self. Lewinston, UK, The Edwin Mel-
tre esses dois conceitos opostos de tempo. Um e
len Press.
outro remetem a concepções diversas de aprendi-
zado, saber e autoridade. Levam a noções diver- BASTIDE, Roger (1971), As religiões africanas no
gentes sobre a vida e a morte, a reencarnação e a Brasil. São Paulo, Pioneira.
divinização. Nesse embate, a religião muda, adap- _________. (1978), O candomblé da Bahia: rito
ta-se, encontra novas fórmulas e adota novas nagô. 3ª. ed. São Paulo, Nacional.
linguagens. Os orixás ganham novos territórios,
conquistam adeptos nas mais diferentes classes so- DREWL, Margaret Thompson (1992), Yoruba ri-
ciais, origens raciais e regiões deste e outros paí- tual: performers, play, agency. Blooming-
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sil tem mostrado é que a religião dos orixás cres- ELLIS, A. B. (1974), The yoruba-speaking peoples
ce e prospera (Pierucci e Prandi, 1996). Sobretudo of the slave coast of West Africa. 2ª. ed.
se transforma, cada vez mais brasileira, cada vez Londres, Pilgrim.
menos africana. Mesmo o movimento de africani-
FABIAN, Johannes (1983), Time and the other:
zação, que procura desfazer o sincretismo com o
how anthropology makes it object. Nova
catolicismo e recuperar muitos elementos africa-
York, Columbia University Press.
nos de caráter doutrinário ou ritualístico perdidos
na diáspora, não pode fazer a religião dos orixás JOHNSON, Samuel (1921), The history of the yoru-
no Brasil retornar a conceitos que já se mostraram bas. Lagos, Nigéria, CSS Bookshops.
incompatíveis com os da civilização contemporâ- LANDES, Ruth (1947), The city of women. Nova
nea. O tempo africano perde sua grandeza, vai se York, Macmillan. Edição brasileira (1967):
apagando. Permanece, contudo, nas pequenas coi- A cidade das mulheres. Rio de Janeiro, Ci-
sas, fragmentado, manifestando-se mais como vilização Brasileira.
ordenador de um modo peculiar de organizar o
LIMA, Vivaldo da Costa (1984), “Nações-de-can-
cotidiano característico de uma religião que se
domblé”, in LIMA, Vivaldo da Costa
mostra exótica, extravagante e enigmática.
(org.), Encontro de nações de candomblé.
E pouco a pouco o povo-de-santo acerta
Salvador, Centro de Estudos Afro-Asiáti-
seus relógios. Sabe que o candomblé deixou de
cos da UFBa e Ianamá.
ser uma religião exclusiva dos descendentes de
escravos africanos – uma pequena África fora da MBITI, John S. (1990), African religions and phi-
sociedade, o terreiro como sucedâneo da perdida losophy. 2ª. ed. Ibadan, Nigeria, Heine-
cidade africana, como ainda o encontrou Roger mann Educational Books.
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RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 179

O CANDOMBLÉ E O TEMPO CANDOMBLÉ AND THE TIME LE CANDOMBLÉ ET LE TEMPS

Reginaldo Prandi Reginaldo Prandi Reginaldo Prandi

Palavras-chave Keywords Mots-clés


Tempo e religião; Tempo e hierar- Time and religion; Time and reli- Temps et religion; Temps et hiérarchie
quia religiosa; Tempo e iniciação; gious hierarchy; Time and initiation; religieuse; Temps et initiation; Temps
Tempo nas religiões afro-brasileiras. Time in Afro-Brazilian religions. dans les religions afro-brésiliennes.

Procura-se mostrar como concep- The article tries to show how con- Par cette étude, l’auteur cherche à
ções de tempo, aprendizagem e sa- ceptions of time, learning and démontrer de quelle manière les
ber, próprias do candomblé, são knowledge, typical aspects of Can- conceptions de temps, d’apprentis-
constitutivas da cultura africana de domblé, are a constituent part of sage et de savoir, propres au can-
povos que instituíram no Brasil a re- African culture and people that ins- domblé, sont des éléments constitu-
ligião dos orixás. A idéia de vida e tituted the orixás religion in Brazil . tifs de la culture africaine, de peu-
morte, nascimento e reencarnação, The idea of life and death, birth and ples qui ont institué, au Brésil, la re-
assim como o culto aos antepassa- reincarnation, as well as the cult to ligion des Orishas. L’idée de vie et
dos e aos orixás, tal como concebi- the ancestors and to the orixás, as de mort, de naissance et de réincar-
dos em solo africano, reproduziram- conceived in African soil, was repro- nation, ainsi que le culte aux ancê-
se no Brasil em conformidade com duced in Brazil in conformity with tres et aux Orishas, tel que conçu
aquelas concepções. Com a trans- those conceptions. With the trans- en sol africain, se sont reproduits au
formação do candomblé em religião formation of Candomblé in a reli- Brésil suivant ces conceptions. Avec
não mais restrita a afro-descenden- gion not only restricted to afro-des- la transformation du candomblé en
tes e sua propagação por todo o cendants and its propagation une religion qui n’est plus restrein-
país, congregando agora adeptos in- around the country, congregating te aux seuls descendants africains,
seridos num mundo de trabalho e followers inserted in the world of et sa propagation dans l’ensemble
de aprendizado controlado pelo work and of controlled learning, ba- du pays, réunissant des adeptes in-
tempo capitalista, as concepções sed on the capitalist notion of time, sérés dans un monde de travail et
ocidentais vão minando os concei- the Western conceptions undermine d’apprentissage contrôlé par le
tos africanos de tempo e, especial- the African concepts of time, espe- temps capitaliste, les conceptions
mente, de saber, alterando-se princí- cially those concerning knowledge, occidentales minent peu à peu les
pios iniciáticos e de constituição da changing the initiation practices and concepts africains de temps et, par-
autoridade, da hierarquia e do po- the constitution of authority, hie- ticulièrement, de savoir, altérant
der religioso nos terreiros, com mu- rarchy and the religious power in ainsi des principes initiatiques et de
danças profundas na religião. the terreiros (yards), provoking constitution de l’autorité, de la hié-
deep changes in the religion. rarchie et du pouvoir religieux dans
les terreiros (temples d’influence
Nago), avec de profonds change-
ments dans la religion.

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