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Traços Pós-modernos na Ficção Portuguesa Actual

Texto original: http://www.letras.puc-rio.br/Catedra/revista/4Sem_02.html (acessado em 23 de


agosto de 2009)

Isabel Pires de Lima


Universidade do Porto — Portugal

“Entre o bem e o mal uma mortalha de papel de seda.(…) «Sendo assim, tanto faz — tudo é
idêntico a tudo»”. (p.140)

Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios

“Viver não é apenas viver, é sobretudo contar repetidamente o que vivemos, forma de multiplicar a
vida. Dizer amo-te é uma coisa. Contar que amo alguém é outra.” (p.207)

Augusto Abelaira, Deste Modo ou Daquele

“Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não
vêem.” (p.310)

José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira

Como é sabido, falar de pós-modernidade, isto é, “dizer que estamos num momento posterior à
modernidade e conferir a este facto um significado de algum modo decisivo” — lembra Gianni
Vattimo — “pressupõe a aceitação daquilo que mais especificamente caracteriza o ponto de vista da
modernidade, a ideia de história, com os seus corolários, a noção de progresso e de superação”[1].
Se é um lugar comum notar a imprecisão do conceito de pós-modernismo, pelo menos em torno
destas ideias parece haver consenso: [1]. O pós-modernismo radica na rejeição das estratégias
modernas que privilegiam o conceito de história como realização progressiva da humanidade, como
entidade unitária em torno de um centro ordenador e totalizante que lhe dá um sentido. [2]. O
abandono do conceito moderno de história acarreta a crise da ideia moderna de progresso que fora
geradora de um forte potencial utópico evidenciado e sedimentado pelas grandes narrativas
legitimadoras da cultura ocidental: o Cristianismo, o Iluminismo, o Marxismo… [3]. Do
questionamento da ideia de progresso decorre a perda da ideia de história como superação, como
encadeamento de acontecimentos no sentido da evolução e do desenvolvimento, dirigidos para um
fim.

O ocaso da modernidade traz consigo, portanto, uma relativização da história, o seu descentramento
de um sujeito unitário e racional, o sujeito epistemológico ocidental, situado num eixo tido como
único lugar possível para interpretar ou dar sentido à história de forma objectiva. A emergência de
uma sociedade da comunicação generalizada, a par de alterações como a crise do colonialismo e
imperialismo europeu, evidenciaram o carácter ilusório de qualquer ponto de vista supremo, se é
que depois de Auschwitz essa ilusão ainda era possível. O sujeito racional e unitário perde a sua
segurança epistemológica, a sua autoconsciência axiológica e questiona-se do ponto de vista
ontológico, torna-se frágil, débil, na expressão de Vattimo, e a par dessa transformação, assiste-se è
erosão do princípio da realidade: a realidade deixa de ser uma só, ou deixa mesmo de ser — como
para Derrida —, torna-se plural, caótica, oscila, abre-se a um mundo de possíveis.

Daqui à relativização ética vai um curto passo. Na falta de relatos legitimadores universais, os
valores esvaem-se, as referências escasseiam. Os media e as redes informáticas confrontam-nos
com a fragmentação, a velocidade e um volume de factos que nos afastam da órbita referencial das
coisas. Mergulhados no puro jogo da diferença, estamos para além do bem e do mal, do verdadeiro
e do falso, da realidade e da ilusão, numa instabilidade que atinge até categorias antropológicas que
pareciam estáveis (macho/fêmea, razão/mito) ou polaridades elementares (afirmação/negação,
sujeito/objecto): vogamos fora da história e do reino limitador da refencialidade, na incerteza
radical, em pleno simulacro — nos termos de Baudrillard.

Os matizes dentro desse grande guarda-chuva chamado pós-modernismo são inúmeros. Não cabe,
nem importa aqui evidenciá-los. Seria além disso difícil se não impossível fazê-lo. Importará apenas
alertar para a definição de algumas linhas de fuga dentro de um certo pós-modernismo que se
escusa ao niilismo paralisante, à disseminação infinita sem qualquer possibildade de consenso, a um
círculo de espelhos sem princípio nem fim, à referência sem um referente. Num desses pontos de
fuga situa-se por exemplo o apelo de Vattimo à intensificação do diálogo e da interpretação na
sociedade transparente(?), porque complexa, dos meios de comunicação; a sua força emancipadora
residiria na experiência de liberdade num mundo de múltiplos “dialectos”, que ao propiciar a
experiência da oscilação abriria a “chance de um novo modo de sermos (talvez finalmente)
humanos”[2]. Noutro ponto de fuga poder-se-ía colocar Lyotard, o qual, reclamando a pluralidade
das pequenas narrativas que traçam a trama do tecido quotidiano no sentido de desconstruir a
história e assinalar a multiplicidade e a diferença, admite um conceito ético de justiça por contraste,
por dissensus, em oposição ao consenso sempre totalitário, e reclama uma cultura pós-moderna da
diversidade[3]. Fiquemos por aqui, não sem notar que as estratégias de fuga a que aludimos
valorizam o exercício da palavra particular (do dialecto) ao serviço da construção de narrativas
particulares (do quotidiano).

Não é de estranhar, pois, que por um lado, a ficção contemporânea tenha sido atravessada por
inúmeros veios inerentes à condição e ao pensamento pós-modernos e que por outro, se tenha
tornado objecto de análises que determinam a existência de uma ficção classificada de pós-moderna
por contraposição à ficção moderna. O importante trabalho de Brian McHale, Postmodernist Fiction
(1987), estabelece a existência de uma dominante ficcional pós-moderna, na linha de outros como
David Lodge (1977), Douwe Fokkema (1984) ou, depois, Diane Elam (1992)[4]. Esta última adopta
mesmo o neologismo romance pós-moderno e atenta nas implicações da intersecção dos dois
conceitos, defendendo que “1) romance should be considered as a postmodern genre; 2)
postmodernism is romance.”[5]

Como vemos, pensa-se a condição pós-moderna — agora no campo da ficção — por oposição a
uma dominante modernista de tipo epistemológico, que integra critérios axiológicos definidos na
perseguição de uma verdade e do estabelecimento de um sentido, a qual põe questões do tipo: “O
que há para conhecer? Será que posso e até que ponto posso conhecer? Como e até onde o
conhecimento é transmissível? etc.” A dominante pós-modernista, defende McHale, é, pelo
contrário, de tipo ontológico. Aqui as questões postas são doutro género: “Que mundo é este? O que
é um mundo? Que espécie de mundos existem? Como se constituem? Em que diferem? Como se
projecta e estrutura um mundo? Etc.” Esta nova dominante assenta, portanto, no
descomprometimento axiológico do sentido, gerador de mundos possíveis e de instabilidades, quer
de valores, quer de estratégias narrativas[6].

O código modernista, na formulação de Fokkema, tinha preferência por construções hipotéticas,


assentes em convenções como o carácter não definitivo e incompleto do texto, a dúvida
epistemológica, o cepticismo metalinguístico, o respeito pela individualidade do leitor, algumas das
quais não deixarão de ser apropriadas, se bem que substancialmente matizadas ou extremadas, pelo
código pós-modernista[7]. Este, por seu turno, vai basear-se “numa preferência pela não-selecção
ou por uma quase-não-selecção, numa rejeição de hierarquias discriminadoras e numa recusa da
distinção entre verdade e ficção, entre passado e presente, entre relevante e irrelevante”[8]. Em
consequência, este novo código dá origem a uma relação entre o autor e o seu texto menos tensa; o
autor mostra-se indiferente ao estatuto do seu texto, privilegiando o arbitrário e o desconexo;
afirma-se a paródia da explicação do mundo, numa lógica cheia de contradições internas; atribui-se
mais realce ao leitor e dá-se mais ênfase ao código, isto é, valoriza-se a componente auto-reflexiva
da ficção.

Em sentido idêntico caminha Diane Elam, ao fazer decorrer a sua proposta de intersecção entre pós-
modernismo e romance, do facto de ambos conviverem com o excesso, isto é, de ambos serem
incapazes de respeitarem fronteiras estéticas ou históricas, o que tem como consequência a irrupção
do anacronismo. Anacronismos temporais, estéticos e outros que conduzem à falência da narrativa
sequencial ou de qualquer outra hipoteticamente capaz de narrar o fracasso desta última. Portanto,
para a autora,

Postmodernism is not a new (…) narrative but rather the coexistence of multiple and mutually
exclusive narrative possibilities without a point of abstraction from which we might survey them.
Postmodern romance offers no perspectival view; it is an ironic coexistence of temporalities.[9]

Ll

Pensar a narrativa portuguesa actual à luz de uma dominante pós-moderna implica ponderar na
especificidade do contexto político, social e cultural português — o de um país que, coertado por
uma ditadura longa e anacrónica, não experienciou nem em liberdade, nem em plenitude, o projecto
moderno de emancipação. Tal facto teve por consequência uma atitude de forte responsabilização
da parte de intelectuais e escritores de luta pela consumação, antes e depois do 25 de Abril, do
referido projecto. Porém, o não cumprimento da racionalidade moderna durante a ditadura não
significa que ela se mantenha hoje inocentemente exequível, sem ir a par da denúncia e da crítica da
irracionalidade global a que o próprio projecto moderno conduziu.[10]

Que tipo de efeito esta situação particular cria ao nível da produção ficcional portuguesa dos
últimos 20 anos? A meu ver daí decorre uma certa duplicidade que domina boa parte da nossa
ficção: por um lado, a perseguição de uma racionalidade totalizante moderna que explique o
passado e que nalguns casos mantém uma vertente projectiva e por outro, a abertura a soluções
narrativas e a práticas estéticas pós-modernas. Um romance que vive da tensão entre história e
ficção, estabelecendo a ponte entre realidade e literatura, através de formas de mediação muito
diferentes das do realismo oitocentista.[11]

Reterei a minha atenção em três romances: A Costa dos Murmúrios (1988), de Lídia Jorge[12],
Deste Modo ou Daquele (1990), de Augusto Abelaira[13] e Ensaio sobre a Cegueira (1995), de José
Saramago[14].

Várias aproximações pós-modernas a estes textos e destes textos entre si são possíveis. Desde logo
os títulos instauram um clima de oscilação ou de indiferenciação pós-modernas: Saramago propõe-
nos um romance que se quer ensaio; Abelaira constrói o seu título sobre uma disjuntiva, que abre
para um mundo de possíveis; Lídia Jorge na palavra murmúrios não deixa de remeter para uma
certa indeterminação.

Os três romances põem em questão o lugar estável do narrador, quer através da sua multiplicação,
quer através da sua problematização e complexificação, criadoras de instabilidades ontológicas.

Em A Costa dos Múmúrios, estamos aparentemente diante de uma narrador de 3ª pessoa, que conta
uma história, referente a um episódio da guerra colonial portuguesa em Moçambique, designada Os
Gafanhotos, a qual constitui a 1ª parte do romance, mas este narrador heterodiegético revela-se
afinal um “autor” intradiegético, um efeito do texto: o autor de Os Gafanhotos é afinal um jornalista
que na 2ª parte do romance confronta a sua versão dos factos com a versão da protagonista Eva
Lopo, num diálogo em que só nos é dado ouvir a voz dela ou quando muito o eco das perguntas
dele (“Se teve consequências? Teve…” p.88). Assistimos, portanto, a uma tematização do autor e
da leitora de Os Gafanhotos, num processo de con-fusão ontológica entre narradores e personagens,
autores e leitores de tipo metaficcional que abalam a distinção entre realidade e ficção — tudo é
texto, nada está sedimentado numa realidade pré-existente, a realidade e a ficção são construções
verbais.

No romance de Abelaira, temos várias vozes doadoras da narrativa, mas é Jorge Fonseca, por sinal
autodenominado “o Narrador”, que funciona como centro autoconsciente da ficção. Ele é escitor e
personagem, o que desde logo contribui para a constituição de ambiguidade no universo ficcional:
ele narra numa posição de autoridade discursiva que lhe permite manipular a história contada, mas
também é narrado e co-autor dos sentidos gerados pelo texto. Propõe-se narrar a vida “real” de
António Bastos, autor de um Diário que vai sendo transcrito (outro narrador) ou condensado e
comentado ao longo do romance. Diogo Anselmo, um historiador amigo de Jorge Fonseca, será a
terceira voz narrativa, pondo em causa a fiabilidade da versão narrativa do amigo, sem que se possa
concluir qual a verdadeira versão (a do Diário, a de Jorge Fonseca, a de Diogo Anselmo?), o que
impedirá o sossego do leitor e instala uma estratégia de desconstrução metaficcional.

Saramago, por seu turno, concebe um narrador desenganado relativamente à sua omnisciência, que
todavia não prescinde dela, e cuja omnipresença e poder manipulador pretende conciliar com uma
multiplicidade dialógica de pontos de vista das personagens, donde resulta uma voz narrativa não
confiante, insegura no conhecimento e domínio das informações, a qual debilita a autoridade e a
objectividade dos conceitos. Atente-se no seguinte interferência do narrador: “A partir deste ponto,
salvo alguns soltos comentários que não puderam ser evitados, o relato do velho da venda preta
deixará de ser seguido à letra, sendo substituído por uma reorganização do discurso oral, orientada
no sentido da valorização da informação pelo uso de um correcto e adequado vocabulário. É motivo
desta alteração, não prevista antes, a expressão sob controlo, nada vernácula, empregada pelo
narrador, a qual por pouco o ia desqualificando como relator complementar, importante, sem
dúvida, pois sem ele não teríamos maneira de saber o que se passou no mundo exterior, como
relator complementar, dizíamos, destes extraordinários acontecimentos, quando se sabe que a
descrição de quaisquer factos só tem a ganhar com o rigor e a propriedade dos termos
usados.”(p.122-3) Daqui nasce um discurso da suspensão, relativizado e incerto, que se projecta na
própria construção da narrativa e que provoca incerteza axiológica e ontológica: a propósito de um
certo episódio o narrador comenta:

Não havendo testemunhas, (…), é compreensível que alguém pergunte como foi possível saber que
estas coisas sucederam assim e não doutra maneira, a resposta a dar é a de que todos os relatos são
como os da criação do universo, ninguém lá esteve, ninguém assistiu, mas toda a gente sabe o que
aconteceu. (Ensaio... p.253)

Por aqui se insinua também a aguda consciência pós-moderna de que a linguagem é construtora da
realidade.

Relativamente a cada um destes romances procurarei evidenciar um ou vários traços que se


conjugam com uma sensibilidade e com estratégias narrativas pós-modernas, mas poderíamos ler
quase todos esses traços em todos eles …

Como disse, a construção em duplo d’A Costa dos Murmúrios faz com que a obra se institua como
romance de uma aventura de fundo histórico, apresentada na referida primeira parte, e como
narrativa dessa aventura, na segunda. “Os Gafanhotos” apresenta-se como ilusão da realidade, como
texto, graficamente delimitado pelo título e pela palavra FIM. A segunda parte contrapõe-se a esta
como “realidade”. Na articulação das duas partes insinua-se uma indeterminação ontológica — o
autor de “Os Gafanhotos”, confundível com o autor empírico, na primeira parte, torna-se
simplesmente ser de papel, ficção, na segunda; Evita dá um passo inverso, torna-se Eva Lopo que,
invocando permanentemente a categoria da “realidade” como caução da sua narrativa, não se cansa
de repetir: “Evita era eu”. E uma tal indeterminação ontológica, se por um lado institui uma reflexão
metanarrativa do problemático estatuto do romance enquanto universo de ficção na sua relação com
a realidade, por outro, confrontando-nos com a tematização da leitura problematiza a tradicional
oposição ficção/realidade — Eva Lopo lendo-se enquanto Evita é tão “real” como nós, ou nós tão
fictícios quanto ela.

Ao fazer a narração oral da sua própria vida, apresentando os factos de que, na “realidade”, foi
testemunha, Eva Lopo fá-lo com a auto-consciência ficcional de um romancista. Para construir a
sua leitura, a sua versão de “realidade”, ela seleccionará de entre os factos vividos, em função de
uma teoria que designa por “simultaneidades” (p.168) e não por contiguidade espacial ou temporal,
porque “tudo tem uma semelhança com tudo” (p.201). Esta maior importância dada às
correspondências do que às circunstâncias permite a Eva Lopo, como a qualquer ficcionista, propor
dois finais alternativos para a sua narrativa.

O romance de Lídia Jorge questiona metaficcionalmente as possibilidades do romance representar a


realidade e reconstituir o passado, mas não recusa a sua ligação ao mundo, através da constituição
daquilo a que Ricoeur chama referencialidade de 2º grau, que liga o texto autónomo à realidade
extra-textual, através de complexas formas de mediação entre linguagem e mundo.

A Costa dos Murmúrios não deixa, portanto, de ser também um romance sobre a guerra colonial,
procedendo a uma revisão da história do passado colonial português. O romance subverte a versão
oficial da história da epopeia imperial, embora não exactamente através de uma contra-facção
paródica, no sentido que lhe dá Elisabeth Wesseling[15], muito típica do romance pós-moderno,
pese embora ela surja sobretudo para descrever a dimensão anti-heróica do soldado português. O
meio escolhido para aquele efeito é o da inversão dos pontos de vista que tradicionalmente
veiculam o registo do nosso passado. O romance dá os pontos de vista ex-cêntricos, o ponto de vista
feminino de Evita, que não legitima a perspectiva oficial e colonial dos factos, evidenciada, por
exemplo, no comentário ao massacre da degola dos negros em que Luís Alex, o seu noivo,
participara:

(…) quem determina a hierarquia da lâmina onde fenece a mesquinhez e se inicia a grandiosidade?
De novo não havia nenhuma fronteira, ou ela era imperceptível e irrelevante e ninguém podia
indicar se era grandiosidade ou mesquinhez o impulso das pessoas que degolavam as cabeças das
outras e as espetavam em paus, e as agitavam em cima das habitações dos próprios degolados.
Sempre assim fora. O Condestável tê-lo-ia feito, o Fundador muito pior (…) (A Costa... p.138).

A infidelidade do ponto de vista de Evita, simbolicamente insinuada no romance como sugere


Maria Irene Santos[16], pelo seu percurso conjugal “literalmente infiel”, permite contrapor o direito
à afirmação dos povos colonizados e das culturas locais africanas.

Mas para chegar aqui, Evita teve que ultrapassar a primeira fase da desistência da interpretação, da
quase-não-selecção pós-moderna, do “tudo é igual a tudo” (p.147) que a paralisara num relativismo
ético e a levara a dizer: “Que há momentos em que não me importa a verdade. Digo então que tudo
são folhas e tudo é breve e volante como as folhas.” (pp.143-4)

Se há romance intensamente auto-reflexivo, “narcísico”, metaficcional, no sentido que estes termos


têm para Linda Hutcheon ou Patricia Waugh[17], esse romance é Deste Modo ou Daquele. É um
romance que chama para si o papel de Narciso e, de forma autoconsciente, contempla-se no espelho
feito de palavras para se ver na construção em construção. (Des)Escreve-se (des)crevendo,
realizando o paradoxo de ser produto e produção. Nesta viagem narcísica de autocentramento
reflexivo, o romance desvela a caixa de segredos do processo de invenção e, ao autodescrever-se
como artifício de linguagem, apresenta-se como modelo adequado a uma nova apendizagem sobre a
própria realidade.

Se no primeiro momento do processo de criação a linguagem parece reproduzir a realidade,


rapidamente o Narrador se apercebe que a linguagem, para além da função de representação, produz
simulacros, produz realidade. No texto ficcional, o reflexo do real rapidamente se converte no real
desse reflexo, no momento em que a diferenciação de fronteiras ontológicas entre o mundo actual e
o mundo projectado, entre a ficção e a realidade se diluem: “Por vezes o Narrador tem a sensação
de que fala verdade, viveu aquilo que descreve” (pp.163-4). De tal modo que as situações ficcionais
que constrói e em que se projecta, o levam, na vida real, a sentir por vezes um certo pudor: “Coro
envergonhado de o pensar que podem ter percebido (confundo assim, mais uma vez, ficção com
realidade)” (p.164).

Conduzindo o leitor por um percurso autoconsciente, a narrativa narcísica revela-lhe que, embora o
mundo possa parecer ser o horizonte imediato da ficção, o discurso ficcional produz os seus
objectos, as suas entidades. Pode criar uma forma de conhecimento do mundo mas cria também a
própria realidade que parece descrever. O efeito de linguagem, que é um constructo textual,
transforma-se na causa da linguagem, no ser absoluto, conduzindo à anarquização das fronteiras
ontológicas: as entidades ficcionais saltam para o mundo real (casualmente, Jorge Fonseca cruza-se
com a Ágata do Diário, num café) e o Narrador-leitor sente-se permanentemente um voyeur que
espia a intimidade do par amoroso (António Luís e Ágata), protagonistas da sua ficção.

O efeito de real é desnudado ao ser denunciado como tentativa de criação da ilusão referencial. Por
exemplo, a atenção exaustiva ao pormenor, nomeadamente a descrição minuciosa dos movimentos
e pensamentos de Hipólito, o gato, feita em paralelo com as conversas entre o biólogo e o
historiador, e a utilização das notas de rodapé como processo de autenticação, é uma estratégia do
Narrador autoconsciente, utilizada no sentido de desvelar a condição linguística do texto, o carácter
de criação construída da ficção, mostrando-a como produção e simulação, jogo, arte.
Um dos traços mais inequivocamente pós-modernos do romance de Abelaira, de resto anunciado
pelo título, é a subversão do mundo construído a partir de uma lógica disjuntiva — deste modo ou
daquele — e a contraposição de um universo ficcional constituído por mundos mutuamente
inclusivos, de lógica aditiva — deste modo e daquele e daquele e daquele… “«Todos os possíveis
coexistindo.»” — escreve António Luís, num certo momento do Diário, pensando em Leibniz —
“«Se fosse romancista, escreveria mil, dez mil romances (tantos quantos os imagináveis), todos eles
glosando a mesma intriga, cada um desenvolvendo uma das inúmeras virtualidades dessa intriga. O
conjunto de todas elas definiria o universo total da intriga (esgotava-a). Poderia até servir-me dum
romance famoso, extraindo dele as potencialidades que o autor desprezou ou desconheceu. Quantas
combinações, quantos romances esconde a Chartreuse? Stendhal diminuiu a história, reduzindo-a a
uma única dimensão.»” (p.60)

Ao explorar a pluralidade de mundos joga-se com a existência paralela de modos de ser,


caracterizados por estatutos ontológicos instáveis e ambíguos. Além disso, o constante jogo de
glosas, o método de permanente refutação, as informações parentéticas, o uso da ironia por parte do
Narrador, instituem o império da dúvida e da interrogação, não permitindo ao leitor distinguir a
factualidade da não factualidade. É a esta prática que se está a referir Jorge Fonseca quando “sente
outra vez a tentação do abismo, a tentação estética de explorar as múltiplas possibilidades da
história, a beleza da mentira”. (p.179) Estamos no mundo dos possíveis, não havendo melhor
escolha, melhor intriga, melhor mundo, o que nos leva a pôr em causa o sentido consensual da
realidade, contribuindo para a questionação do real e do real histórico.

Aliás, o romance incorpora a par do argumento autoreflexivo, o argumento historiográfico e o


Narrador, orientado pelos princípios teóricos formulados no romance, concebe uma teoria da
história como possibilidade, uma possibilidade textualizada — porque a História é sempre uma
narrativa, uma textualização do passado —, uma possibilidade que pensamos ter acontecido,
quando o mais importante é o que, podendo ter acontecido, não aconteceu. A páginas tantas do
Diário, António Luís escreve: “«O estudo minucioso de todas, absolutamente todas as
possibilidades, só ele poderá constituir a verdadeira, a completa história de Portugal — a história
que não deveremos apenas reduzir aos factos acontecidos.»” (p.61). Na tentativa de explorarem
todas as possibilidades históricas, Jorge Fonseca e Diogo Anselmo vão ficcionalizando um Portugal
deste modo ou daquele: com ou sem Descobrimentos, com ou sem Salazar, com ou sem 25 de Abril
e questionam a vida política portuguesa do presente. Desmistificam o discurso historiográfico
oficial, evocando e subvertendo matrizes narrativas da História de Portugal, questionam a natureza
e o estatuto da nossa informação sobre o passado, avaliando ironicamente o discurso da História
canónica. Por isso o Diário afirma: “as possibilidades históricas são tão lógicas como as geometrias
não-euclidianas e, num mínimo, devem existir, como os seres matemáticos, no platónico mundo das
ideias — ainda que se possa hesitar acerca da natureza dessa existência.” (p.61)

Apesar do autocentramento narcísico da narrativa, verifica-se que ela não põe de lado o real, isto é,
os discursos sobre o real. E corporiza-se assim um paradoxo a que Linda Hutcheon chamou
metaficção historiográfica[18], ou seja, uma narrativa de ficção que, conscientemente, reflecte sobre
o seu estatuto ficcional, pondo em evidência a figura do narrador e o acto da escrita, que interrompe
violentamente as convenções do género, que expõe a própria ficcionalidade da história que constrói,
mas sem cair na mera absorção técnica e negando simultâneamente a possibilidade duma distinção
clara entre História e ficção, na medida em que aquela só é passível de ser conhecida através da
narrativa.

Em Ensaio sobre a Cegueira, é dado ao leitor conhecer um mundo possível[19], alternativo ao


mundo actual, que o leva a abandonar as leis deste último e a sua enciclopédia e a adoptar
temporariamente outra perspectiva ontológica, ou melhor, a mergulhar numa indeterminação
ontológica de tipo pós-moderno.

Este é o primeiro romance de Saramago que não fornece ao leitor qualquer informação sobre o
espaço e o tempo em que decorre a acção. Estamos em plena atopia, em total acronia, dados que
contribuem para a constituição da alegoria que edifica o romance, como para a sua constituição
contribui o facto das personagens não terem nome próprio: elas são apenas o médico, a mulher do
médico, a rapariga dos óculos escuros, o primeiro cego, o rapazinho estrábico, o velho da venda
preta…

Um homem subitamente cega ao volante do seu automóvel, no meio do trânsito. A sua cegueira em
breve se revela contagiosa, o que conduz à criação por parte das diligentes autoridades de uma
quarentena para os atingidos pelo mal branco (p.194). Este espaço concentracionário é um mundo
possível de segundo grau, que aos poucos se revela um microcosmos em muito semelhante ao
mundo que os cegos conheciam e que o leitor conhece. “O mundo está todo aqui dentro”(p.102),
proclama, não por acaso, a mulher do médico, isto é, a única reclusa não cega (ela apenas simulara a
cegueira para poder acompanhar o marido). É como se um mundo possível de segundo grau,
encaixasse num outro de primeiro grau, como num jogo de caixas chinesas. B. McHale afirma de
resto que a narrativa pós-moderna “tend to encourage trompe-l’oeil, deliberately misleading the
reader into regarding an embedded, secondary world as the primary, diegetic world.”[20]

A indeterminação ontológica acentua-se neste mundo encaixado, a qual é verbalmente formulada


pela mulher do médico ao constatar chocada: “tão longe estamos do mundo que não tarda que
comecemos a não saber quem somos, nem nos lembrámos sequer de dizer-nos como nos
chamamos, e para quê, para que iriam servir-nos os nomes” (p.64)[21]. Este desnorte ontológico é
causa e consequência de um outro traço próprio da condição pós-moderna, a perda de referências, a
desagregação de valores hierarquizados, como por exemplo vida/morte.

A descrição da quarentena prolonga-se; os cegos vão descendo um a um os degraus da degradação e


da abjecção e ao mesmo tempo vai-se progressivamente desvendado o carácter alegórico da
cegueira e desta caixa chinesa. Os próprios cegos descortinam a dimensão parabólica da sua
cegueira ao relatarem uns aos outros como cada um perdeu a visão, numa estratégia narrativa
metaficcional, também ela pós-moderna. O velho da venda preta, já então cego de um olho, sentira
a órbita vazia inflamada, tirou a venda para se certificar e cegou do olho são — “Parece uma
parábola, disse uma voz desconhecida, o olho que se recusa a reconhecer a sua própria ausência”
(p.129). Outra personagem conta a sua história: tendo ouvido falar da epidemia, fechou os olhos
para experimentar-se; quando os abriu estava cego. “Parece outra parábola, falou a voz
desconhecida, se queres ser cego, sê-lo-ás.” (p.129)

Assim aparece metaficcionalmente revelado o carácter alegórico do romance. Tem-se assistido a


um ressurgimento da alegoria no romance pós-moderno, o que é compreensível se atentarmos no
carácter dual da alegoria, visível na sua própria etimologia, do grego allhgoria, formado de alloz,
outro e de agoreuw, eu falo; isto é, na alegoria quando falo duma coisa, falo doutra ou, dito de outro
modo, a alegoria é um sistema de relação entre dois mundos. É, portanto, fácil aproximá-la e pô-la
ao serviço da dominante ontológica da poética pós-moderna. “The fictional world of an allegorical
narrative is a tropological world, a world within a trope.” — nota McHale — “Its ontological
structure is dual, two-level, one level (or frame) that of the trope” — no caso, a quarentena dos
cegos — “the other that of the literal”[22]— no caso, o mundo do exterior em que uma cegueira
virótica fez deles cegos. A alegoria adequa-se ao jogo de caixas chinesas ao gosto da narrativa pós-
moderna.

A voz desconhecida que fez das palavras dos cegos duas parábolas: “o olho que se recusa a
reconhecer a sua própria ausência” e “se queres ser cego, sê-lo-ás”, não será a mesma que, no final
dessa cena, sempre sem se identificar — trata-se apenas de um cego — declara: “já éramos cegos
no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos” (p.131)?[23]
Outra polaridade se desfaz — cego/não cego — neste clima de oscilação ontológica que a alegoria
alimenta e torna saliente. Esta cegueira não será a alegoria da nossa condição pós-moderna num
mundo que, não se reconhecendo cego, se quer cego e é cego, num mundo de cegos onde a
esperança morreu? A mulher do médico dirá da caixa chinesa onde está encarcerada: “a cegueira
também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança.” (p.204) Este é um mundo
vazio de sentido, um mundo auto-rasurado, branco. A cegueira é várias vezes designada por mal
branco, por maré branca, porque as suas vítimas vêem tudo branco e não encontram um sentido:
“não há estrelas no céu branco” (p.106) — lembra o narrador a propósito de um dos cegos perdido
na sua desorientação.

Quando na sequência de um fogo, os cegos são libertados da quarentena, o mundo com que se
confrontam é de fim dos tempos: toda a população da cidade igualada na cegueira, isto é, a
humanidade, por extensão metonímica, e sentem-se regressados à horda primitiva (p.245),
incapazes de encontrar uma qualquer forma de organização social. É um mundo que em tudo
prolonga e confirma o mundo sem sentido da quarentena.

O mundo que os cegos vão vendo através dos olhos da mulher do médico e sofrendo na experiência
da fome, da sede, do frio, do odor nauseabundo, da perda da dignidade, da abjecção é o de um
quadro apocalíptico assustador, que leva a mulher do médico a sentir-se “a que nasceu para ver o
horror”(p.262). Consciente da debilidade oscilante do novo/velho universo em que se move, ela
sintetiza do seguinte modo a sua condição, ao fim e ao cabo alegoria da nossa condição pós-
moderna:
não me perguntem o que é o bem e o que é o mal, sabíamo-lo de cada vez que tivemos de agir no
tempo em que a cegueira era uma excepção, o certo e o errado são apenas modos diferentes de
entender a nossa relação com os outros. (Ensaio... p.262).

Trata-se de sujeitos descentrados, entregues a uma relativização ética, mergulhados numa realidade
caótica, que os situa fora de um qualquer sentido da história, na incerteza radical.

Porém, há alguém que nunca deixou de ver. Neste mundo de trevas brancas, a mulher do médico
transporta a luz, por isso ela será a voz da lucidez, manifestada desde logo no fingimento da sua
cegueira. Ela é a lucidez (atente-se na raíz etimológica da palavra), aquela que proclamará: “meu
Deus, a luz existe e eu tenho olhos para a ver, louvada seja a luz” (p.223) e também aquela que
reconhece o caos em que os cegos estão mergulhados e o recusa[24]. Através da lucidez do seus
olhos, os cegos vão conscencializando a oposição a esta condição histórica rasurada de um sentido,
de um futuro.

Perante a cidade cega, ela abertamente reclama a urgência de um sentido para a vida, o qual só
poderá ser obviamente o da luz, que permitirá aos cegos reaverem a sua dimensão humana. O
caminho, entende ela, é encontrar um princípio organizativo para agir: a vida é organização, a morte
desorganização, como acontece no corpo (p.281) — “organizar-se já é, — cito — de uma certa
maneira, começar a ter olhos” (p.282).

Ela é uma voz profética no sentido em que anuncia uma nova/velha ordem em que a vida, a lucidez,
a visão são valores humanos estáveis. Face à experiência do apocalipse, ela imagina-se num
tribunal, numa espécie de juízo final, mas ”recusa-se a ser julgada e a aceitar aquilo que entende ser
uma ameaça escatológica do fim dos tempos, embora reconheça que urge agir porque parece que “O
tempo está a acabar, a podridão alastra, as doenças encontram as portas abertas, a água esgota-se, a
comida tornou-se um veneno” (p.283). A cegueira, — alegoria, como vimos da condição pós-
moderna — ela entende-a como mais uma escatologia a rejeitar[25]. É assim que, perante o
imaginado tribunal ela apela ao poder da acção humana, gritando: “Abramos os olhos, (…) É uma
grande verdade a que diz que o pior cego foi aquele que não quis ver” (p.283).

O anjo da história de Saramago é uma mulher cega, que vê, ao contrário do anjo da história de
Benjamin[26], cujos olhos estão escancarados para o passado, que vê com lucidez, mas que é cego
para o futuro que recusa, pois as ruínas do passado fascinam-no mais que qualquer luz do futuro.
Ela é um anjo lúcido que ilumina as ruínas e os mortos do passado e do presente, que vê o futuro. É
uma mulher, que ao enterrar um cadáver nas ruínas do presente, lança um grito messiânico
assustador: “Ressurgirá”. Não aquele corpo, explica ela, mas a ordem: “Que ordem, perguntou a si
mesma, e a si mesma deu a resposta, A ordem que quer os mortos no seu lugar de mortos e os vivos
no seu lugar de vivos” (p.288). A essa nova/velha ordem ela conduz, pela sua lucidez resistente, os
cegos, os quais, no final do romance, recuperam um a um a visão, recuperam a vida e a
humanidade. É uma inversão do anjo de Benjanmin.
Poderá ela então ser entendida como o anjo do progresso? Um anjo moderno portador de luz? É
seguramente um anjo que acredita no futuro e na sua capacidade para desvendar a história e dar-lhe
um sentido; um anjo que diz, nas últimas linhas do romance: “Penso que não cegámos, penso que
estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que vendo, não vêem”, o que, se por um lado enfatiza a
indeterminação ontológica da nossa condição pós-moderna — habitantes nós também de uma das
caixas chinesas —, simultaneamente reafirma o húmus originário, o grau zero da construção de um
sentido (para o) futuro: “Se eu voltar a ter olhos, olharei verdadeiramente os olhos dos outros, como
se estivesse a ver-lhes a alma” (p.262).

Ensaio sobre a Cegueira confirma-se então como romance metapós-moderno, isto é, um romance
que pensa a condição pós-moderna recorrendo a estratégias pós-modernas, mas que lê e rejeita o
discurso pós-moderno como a alegoria da nossa cegueira.

O que aqui trouxe são traços, apenas traços pós-modernos, leituras pós-modernas do romance
português actual. Eu não falei em romance pós-moderno português…

Notas

1 VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade — Niilismo e Hermenêutica na cultura pós-moderna, Lisboa: Editorial
Presença, 1987, p.9.
2 VATTIMO, Gianni. A Sociedade Transparente, Lisboa: Edições 70, 1991, p.19.
3 LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-moderna, Lisboa: Gradiva, s.d.
4 Cf. LODGE, David. The Modes of Modern Writing: Metaphor, Metonym, and the Typology of Modern Literature,
Ithaca, New York: Cornell University Press, 1977.
FOKKEMA, Douwe. Literary History, Modernism and Postmodernism, Amsterdam and Philadelphia: John Benjamins,
1984 (tradução portuguesa: História Literária — Modernismo e Pós-modernismo, Lisboa: Vega, s.d.).
ELAM, Diane. Romancing the Postmodern, London: Routledge, 1992.
5 Idem, p.12.
6 Procurando rebater as objecções ao eventual carácter contraditório da aproximação entre ontologia e pós-modernismo,
que decorreria do facto de ser essência do próprio discurso pós-moderno a negação da possibilidade de qualquer
fundamentação ontológica, Brian McHale contrapõe: “an ontology is a descritpion of a universe, not of the universe;
that is, it may describe any universe, potentially a plurality of universes. In other words, to “do” ontology in this
perspective is not necessarily to seek some grounding for our universe; it might just as appropriately involve describing
other universes, including “possible” or even “impossible” universes — not least of all the other universe, or
heterocosm, of fiction.” (McHALE, Brian — Postmodernist Fiction, London and New York: Routledge, 1987, p.27).
7 Fokkema coloca a questão nos seguintes termos, ao falar na “preferência modernista por construções hipotéticas,
especificando as principais convenções sintácticas e composicionais, a saber: a) a apresentação do texto como não
definitivo e incompleto; b) a dúvida epistemológica a respeito da possibilidade de representar e explicar a realidade; c)
o cepticismo metalinguístico quanto à possibilidade de exprimir adequadamente qualquer conhecimento que se julgue
ter alcançado sobre o mundo e, por fim, d) o respeito pela individualidade do leitor, ou a ideia de que a leitura é um
assunto privado em que nem mesmo o escritor se deve intrometer.” (História Literária — Modernismo e Pós-
modernismo, idem, p.35).
8 Idem, p.66.
9 ELAM, Diane. Idem, p.13.
10 Por isso, um sociólogo como Boaventura Sousa Santos entende que os modelos de desenvolvimento a considerar
numa sociedade semi-periférica, como para ele é a portuguesa actual, devem subordinar-se a uma dupla exigência: “(1)
na formulação dos objectivos de desenvolvimento deve proceder como se o projecto da modernidade não estivesse
ainda cumprido ou não tivesse sequer sido posto em causa; (2) na concretização desses objectivos deve partir do
princípio (…) de que o projecto da modernidade está historicamente cumprido e que não há a esperar dele o que só um
novo paradigma pode tornar possível.” (SANTOS, Boaventura Sousa. Pela Mão de Alice — O social e o político na
pós-modernidade, Porto: Edições Afrontamento, 1994, p.84).
11 Isso explicaria a hesitação que Douwe Fokkema revela, em 1991, em classificar Memorial do Convento de José
Saramago como um romance pós-moderno. “How to decide whether «Memorial do Convento» by José Saramago is or
is not a postmodernist novel?”- este o título de um artigo seu sobre o assunto (Cf. Dedalus, nº1, Dezembro de 1991,
pp.293-302). O autor acaba por propor uma reformulação do título inicial: não se trataria tanto de decidir se aquele
romance é ou não pós-moderno, mas de defender a possibilidade e a vantagem de fazer dele uma leitura pós-
modernista, acabando finalmente por preferir apresentar a questão em termos ainda mais mitigados, ao dizer: “How can
we defend our preference for a postmodernist reading of «Memorial do Convento»?” (Idem, p.296). De resto, num
artigo do mesmo ano, Maria Alzira Seixo acentua por seu turno o carácter ambíguamente pós-moderno dos romances de
Saramago, na medida em que neles existe sempre “un sens bien déterminé où situations et personnages convergent vers
un centre d’explication fictionnelle: la raison du peuple ou celle des artistes, la sanction du futur” (“Modernités
Insaisissables — Remarques sue la fiction portugaise contemporaine”, Dedalus, nº1, Dezembro de 1991, pp.303-313).
Ora este centro de explicação ficcional parece-me apontar para uma totalidade coerente que penso não poder escapar a
uma legitimação ideológica moderna.
12 JORGE, Lídia. A Costa dos Murmúrios, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988.
13 ABELAIRA, Augusto. Deste Modo ou Daquele, Lisboa: O Jornal, 1990.
14 SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira, Lisboa: Editorial Caminho, 1995.
15 WESSELING, Elisabeth. Writing History as a Prophet — Postmodernist Innovations of the Historical Novel,
Amsterdam and Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 1991, em especial o capítulo VII, intitulado
“Alternative Histories”.
16 SANTOS, Maria Irene. “Bondoso Caos: A Costa dos Murmúrios de Lídia Jorge”, Colóquio-Letras, Dezembro-
Janeiro-Fevereiro. 1989, p.64.
17 Cf. HUTCHEON, Linda. Narcissistic Narrative — The Metafictional Paradox, London and New York: Routledge,
1984.
Waugh, Patricia. Metafiction: The Theory and Practice of Self-Conscious Fiction, London and New York: Routledge,
1993.
18 HUTCHEON, Linda. A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction, New York and London: Routledge,
1991.
19 A respeito da recuperação do quadro conceptual dos mundos possíveis aplicado à teoria literária da ficcionalidade,
designadamente à explicação do estatuto lógico-semântico da ficção, consultar o exaustivo trabalho de RONEN, Ruth.
Possible Worlds in Literary Theory (Cambridge University Press, 1994).
20 McHALE, Brian, Idem, p.115
21 A propósito daquilo a que chama “chinese-box worlds” B. McHale diz: “Each change of narrative level in a
recursive structure also involves a change of world. These embedded or nested worlds may be more or less continuous
with the world of the primary diegesis”. (Idem, p.113)
22 McHALE, Brian. Idem, p.141.
23 “O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que
cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos, Quem está a falar, perguntou o médico, Um cego,
respondeu a voz, só um cego, é o que temos aqui.” (p.131)
24 Ela diz: “Chegou a altura de decidirmos o que devemos fazer, estou convencida de que a gente está cega, pelo menos
comportavam-se como tal as pessoas que vi até agora, não há água, não há electricidade, não há abastecimentos de
nenhuma espécie, encontramo-nos no caos, o caos autêntico deve ser isto” (p.244).
25 Pese embora a leitura que Antoine Compagnon faz da pós-modernidade como sendo “moins la fin de l’histoire que
la fin des eschatologies”. (COMPAGNON, Antoine. “D’une fin de siècle à l’autre”, Dedalus — Revista Portuguesa de
Literatura Comparada, nº1, Dezembro de 1991, p.369.
26 Como é sabido, uma das poucas ideias consensuais dentro do pensamento pós-moderno reside na oposição às ideias
modernas de progresso e de história. Tal facto explica o fascínio exercido sobre este pensamento pela metáfora
encontrada por Walter Benjamin, na IXª das suas célebres Teses sobre a Filosofia da História (1940), para o progresso
histórico como uma sequência de presentes destruídos. Ouçamo-lo:
“Existe um quadro de Klee que se intitula Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar do
local em que se mantém imóvel. Os seus olhos estão escancarados, a boca está aberta, as asas desfraldadas. Tal é o
aspecto que necessariamente deve ter o anjo da história. O seu rosto está voltado para o passado. Ali onde para nós
parece haver uma cadeia de acontecimentos, ele vê apenas uma única e só catástrofe, que não pára de amontoar ruínas
sobre ruínas e as lança a seus pés. Ele quereria ficar, despertar os mortos e reunir os vencidos. Mas do Paraíso sopra
uma tempestade que se apodera das suas asas, e é tão forte que o anjo não é capaz de voltar a fechá-las. Esta tempestade
impele-o incessantemente para o futuro ao qual volta as costas, enquanto diante dele e até ao céu se acumulam ruínas.
Esta tempestade é aquilo a que nós chamamos progresso.” (BENJAMIN, Walter. “Teses sobre a Filosofia da História”,
Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa: Relógio d’Água Editores, 1992, p.162).
O progresso histórico não é para Benjamin uma edificação constante, mas antes pelo contrário uma incessante
destruição, decorrente da subordinação do presente a um projecto de plenitude futura. Paradoxalmente, diz ele, o
pensamento racionalista moderno é o anjo da destruição ao definir como imperativo categórico da sua ideologia do
progresso a necessidade de concluir o projecto. Os milhões de mortos da história recente, alerta ele, são só um sinal de
um desvio.

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