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Da Sedução à Fantasia e suas Conseqüências na Noção Freudiana de

Realidade

Pedro Heliodoro de Moraes Branco Tavares, Dr.


Psicanalista – Psicólogo [CRP 12/04085]
Doutor em Psicanálise e Psicopatologia – Université Paris VII – Denis Diderot
Doutor em Teoria Literária – Universidade Federal de Santa Catarina

Tel. (48) 9991 14 30

pedrohmbt@hotmail.com

Publicado originalmente em Psicologia: Vivência e Produção, Lages, v. 01, p. 01-05,


2004.

Ao tomar as neuroses, tendo a histeria como seu modelo primeiro, o que


despertava o interesse de Freud mais do que o simples tratamento era saber de
suas origens (SOUSA, p.107). Em sua primeira teoria sobre a etiologia das neuroses
já há algo de revolucionário e extremamente controverso: A origem do mal era
certamente de caráter sexual, disso ele estava convencido. Em 1896, aparece seu
escrito Zur Ätiologie der Hysterie a ser lido ante a Verein für Psychiatrie und
Neurologie; texto contendo sua primeira teoria sobre a causação da histeria: a teoria
da sedução ou do trauma.

Segundo tal teoria os pacientes sofreriam de reminiscências, teriam tido na


infância alguma espécie de experiência sexual, junto a adultos estranhos, babás ou
mesmo outras crianças (FREUD, 1896).Estas vivências em si não teriam de imediato
um caráter traumático, isso aconteceria, numa associação póstuma de outra
vivência, que de alguma forma se remeterá a primeira.

“Chegamos a saber que nenhum sintoma histérico pode advir de uma única
experiência real, mas que, em todos os casos, a lembrança de experiências
mais antigas despertadas em associação com ela atua de forma conjunta na
causação dos sintomas”1 (Idem, P.432, o grifo é meu)

A apresentação destas conclusões terá conseqüências funestas para seu


autor. Em primeiro lugar as críticas despertadas pelos colegas médicos, que se
tornam emblemáticas justamente pelo eminente estudioso da sexualidade na época,
autor de Psychopathia Sexualis, publicada dez anos antes (ROUDINESCO & PLON,
p.441) Richard von Krafft-Ebing, presidente da seção, teria dito que aquilo soava
como um conto de fadas científico (in SOUSA, p.116)

Outra conseqüência foi o esvaziamento de sua clínica, colocando o ainda


jovem médico e pai de família em dificuldades financeiras. Sem falar que não tinha
meios de comprovar suas teorias, já que sendo as atribuídas vivências primeiras,
rechaçadas ao inconsciente, não teria como garantir suas ocorrências. Mas talvez a
maior dificuldade fosse de ordem psíquica para Freud, pois apesar de o texto falar
em estranhos, babás e outras crianças, ele observa na clínica e em sua vida familiar
que os mais freqüentes e poderosos “sedutores” seriam os pais das crianças. Tal
hipótese implicaria em denunciar uma boa parte dos pais de família vienenses,
inclusive o seu próprio, como seviciadores sexuais de menores, ou pior ainda, de
seus filhos.

No entanto, parece que a supracitada crítica de Krafft-Ebing já trazia certos


indícios do rumo do pensamento de Freud. Em sua correspondência com Wilhelm
Fliess, refere-se em 6 de abril à importância das fantasias histéricas, ainda que
sugerindo que estas são erguidas sobre fatos realmente ocorridos. ”As fantasias
provém de coisas que foram ouvidas, mas só posteriormente entendidas, e todo o
material delas, é claro, é verdadeiro” (in SOUSA, p.117, o grifo é meu)

1
“Wir haben erfahren, daß kein histerisches Symptom aus einem realen Erlebnis allein hervorgehen kann,
sondern daß alle Male die assoziativ geweckte Erinnerung an frühere Erlebnisse zur Verursachung des
Symptoms mitwikt.”
A concretização de uma mudança aparecerá somente em 21 de setembro,
em uma nova carta onde se encontra a célebre confidência “...agora quero confiar-
lhe, de imediato, o grande segreedo que foi despontado em mim nestes últimos
meses. Não creio mais em minha Neurótica.”(Idem, p.119)

Este fato provocará sérias mudanças na clínica freudiana, sobretudo no que


diz respeito à idéia de “realidade”. Freud, continua em uma busca do verdadeiro, no
entanto esta verdade não será mais buscada numa Wirklichkeit e sim numa Realität,
ou seja, não se trata de buscar o empírico, o evento em sua essência e sim a força
de verdade que a partir dos eventos se criam no sujeito. Isto, posto que este sujeito
é sobre-determinado por seu inconsciente que não é capaz de distinguir verdade e
ficção. A propósito é nesta interseção entre verdade e ficção que passa a se
estabelecer o sujeito freudiano.

”Pelo trabalho da análise o sujeito passa a fazer parte da fantasia que o


constitui. Esta construção é uma ficção desta análise, porém é onde a ficção
tem peso de causação, causação do sujeito”(MASCARELLO, p.88)

Como assinalam Laplanche e Pontalis em seu libreto sobre a fantasia ou


fantasma, como preferem chamar a partir de Lacan, a partir da revisão sobre sua
teoria da sedução, a própria questão da realidade precisa ser revista. ”Visto que o
real, em uma de suas modalidades, falta e revela nada mais ser que”ficção” é
preciso buscar alhures um real que funde esta ficção”2 (1985, p.41)

Fazendo referência a estes mesmos autores franceses, Renato Mezan (1989)


assinala a problemática da “teoria” e da “ficção” no verbete do célebre Vocabulaire
de la Psychanalyse, destinado ao esclarecimento do conceito Metapsicologia3.

“Não me parece útil nem fiel ao espírito da Psicanálise, opor o ficcional ao


teórico, como se o primeiro fosse puramente imaginativo, e o segundo
cientificamente rigoroso; nem, como se tronou freqüente em certos meios,
inverter a valoração e declarar que o ”teórico” é pernicioso, porque denota
intelectualização e favorece as resistências contra à psicanálise, enquanto o
“ficcional” estaria próximo do afetivo, sendo, portanto, “não saturado” e em
última instância, mais verdadeiro”(MEZAN, 1989)

2
“Puisque le réel, dans une de ses modalités, fait défaut et se révèle n’être que “fiction” , il faut chercher ailleurs
un réel qui fonde cette fiction”
3
“Metapsicologia: termo criado por Freud para designara Psicologia que fundou, considerada em sua dimensão
mais teórica. A metapsicologia elebora um conjunto de modelos conceituais mais ou menos distantes da
experiência, como a ficção de um aparelho psíquico dividido em instâncias, a teoria das pulsões
etc.”(LAPLANCHE & PONTALIS, 1967)
Este par de opostos (ficção e teoria) são ao longo da história da psicanálise
objeto de polêmica posto que levantam o debate sobre o caráter científico da
psicanálise. Sua Metapsicologia, tratando de objetos como o inconsciente, as
pulsões, o recalcamento, o eu, o isso, o narcisismo, não seria um conto de fadas
científico? Não seriam castelos construídos no ar? Não seria uma revalorização dos
saberes ocultos ou ocultistas? O método de instigação, especulação e construção
freudianos, seguindo o raciocínio de Roudinesco (1999), se colocam sim em ruptura
com o saber oficial da época no sentido de dar um estatuto racional a fenômenos
outrora marginalizados pela ciência oficial. Se os sonhos, os atos falhos, os delírios
eram excluídos do saber oficial pela ciência por seu caráter aparentemente
irracionais, Freud busca uma aproximação teórica destes, longe de qualquer
ocultismo, e sim pela via da razão. O mesmo acontece no campo da fantasia, termo
que não tem um tratamento unívoco ao longo de seu tratamento na teoria. Segundo
Mascarello (2002), faz-se necessãria sua aproximação em três níveis:

1 – No sentido corrente, “são os “sonhos diurnos”, cenas, episódios,


romances ficções, que o sujeito constrói e conta a si mesmo em estado de
vigília.”
2 – A partir da expressão “fantasia inconsciente” que “serve para designar
[tanto] um devaneio pré-consciente que o sujeito constrói e do qual poderá ou
não tomar consciência, [quanto] elemento precursor(escalão prévio), dos
sintomas histéricos em conexão com os sonhos diurnos.”
3 – “Numa relação direta e exclusiva como o inconsciente, ligada ao desejo,
como ponto de partida para a formação do sonho e outras formações do
inconsciente (sintoma, ato-falho e chiste).”

No sexto capítulo da Traumdeutung, no subcapítulo A Elaboração Secundária


[Die Sekundäre Bearbeitung], Freud se propõe a uma explanação sobre a
problemática dos sonhos diurnos. Ao utilizar isto que seria um neologismo no
alemão – Tagtraum [Sonho do dia / diurno] - , puxa uma nota de rodapé que, sem
maiores esclarecimentos assinala em francês e inglês, respectivamente o seguinte:
“rêve, petit roman – day-dream, story”(1900 p.495). Uma possível elucidação seria a
analogia que é feita entre os sonhos diurnos e as Phantasien (fantasias/fantasmas),
que estariam tanto na gênese dos sintomas histéricos (FREUD, 1908) assim como
na das criações literárias.(FREUD, 1907). Se nas colocações da Traumdeutung,
fantasia e devaneios ou sonhos diurnos, parecem ora se tratarem de sinônimos, ora
como uma analogia da primeira ao que seria o segundo na vigília, em seu artigo Der
Dichter und das Phantasieren [O escritor imaginativo e o fantasiar] (Idem), tal
analogia seria a seguinte: Os devaneios ou sonhos diurnos formariam o enredo ao
argumento da fantasia.

“O escritor imaginativo suavisa o caráter dos sonhos diurnos egoístas por


meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer puramente
formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas
fantasias.”(idem, p.223)4

É curioso observarmos portanto esta aproximação que Freud tem dos


ficcionistas. Ele recorre a sua própria teoria para dar conta do que motiva as
poesias, romances, dramas e tragédias destes, e vai buscar nelas as metáforas ou
modelos para suas construções metapsicológicas e até mesmo seu modelo de
sujeito. Lembrando a supracitada citação de Laplanche e Pontalis, Freud precisa
buscar um real que funde a ficção. Este real estará expresso no modelo do Édipo,
por um lado e de Hamlet por outro. Isto é o que faz Roudinesco (1999) denominar o
homem, na noção freudiana como “homem trágico”, em oposição ao “homem
comportamental”, da psicologia e da psiquiatria.

“Esse homem trágico, encontramos sua estrutura em Édipo e Hamlet. Assim


como o tirano de Sófocles sofre seu destino como um flagelo que o torna
outro de si mesmo, o príncipe de Shakespeare o internaliza como uma
imagem repetitiva do mesmo. Tragédia do desvelameto de um lado, drama do
recalcamento , do outro.”5 (p.153)

Ai cabe fazer uma ponte com o que Garcia-Roza, coloca como o enigma que
a psicanálise se coloca em sua busca da verdade, a verdade do desejo. “O enigma
se apresenta no fato de que somos dois sujeitos, um dos quais nos é inteiramente
desconhecido” (1990, Introd.) Em psicanálise portanto, a verdade desvelada à Édipo
e o engano manifesto por Hamlet, não são excludentes, são complementares. A
verdade deste sujeito do inconsciente, na clínica psicanalítica, se apresenta não nos
enunciados do discurso e sim em seus erros e tropeços. Quando o sujeito “se
engana”, a partir dos atos falhos, está na verdade se revelando ou des-velando. Os
atos falhos do consciente são portanto, como afirma Lacan (1954 p.302), atos bem

4
“Der Dichter mildert den Charakter des egoistischen Tagtraumes durch Abänderungen und Verhüllungen und
besticht uns durch rein formalen, d. h. ästhetischen Lustgewinn, den er uns in der Darstellung seiner Phantasien
bietet.”
5
“Cet homme tragique, on en trouve la structure dans Œdipe et Hamlet. Autant le tyran de Sophocle subit sa
destinée comme un fléau qui le fait autre que lui-même, autant le prince de Shakespeare l’intériorise comme une
fugure répétitive du même.”
sucedidos, “(...) nossas palavras que tropeçam, são palavras que confessam, Eles,
elas, revelam uma verdade de detrás”

A fantasia como o que dá corpo ao mito ou drama de cada sujeito é a partir


deste entendimento o que há de mais verdadeiro no sujeito na concepção freudiana,
é a via de realização de seu desejo.

Referências bibliográficas

- ASSOUN, Paul-Laurent – Introdução à Epistemologia Freudiana, Imago,


Rio de Janeito, 1983

- FREUD, Sigmund – Der Dichter und das Phantasieren (1907) in


Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet, Frankfurt am Main ALEMANHA;
Fischer Verlag, 1999

- FREUD, Sigmund – Die Traumdeutung (1900) in Gesammelte Werke –


Chronologisch geordnet, Frankfurt am Main ALEMANHA; Fischer Verlag, 1999

- FREUD, Sigmund – Hysterische Phantasien und ihre Beziehung zur


Bissexualität (1908) in Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet, Frankfurt am
Main ALEMANHA; Fischer Verlag, 1999
- FREUD, Sigmund – Zur Ätiologie der Hysterie (1896) in Gesammelte
Werke – Chronologisch geordnet, Frankfurt am Main ALEMANHA; Fischer Verlag,
1999

- GARCIA-ROZA, Luiz alfredo – Palavra e Verdade na filosofia antiga e na


psicanálise, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1990

- LACAN, Jacques – O Seminário – Livro 1, Os Escritos Técnicos de


Freud, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, (1954), 1975

- LAPLANCHE, J. & PONTALIS J.- B. – Fantasme Originaire, Fantasme


des Origines, Origines du Fantasmes, Hachette, Paris, 1985

- LAPLANCHE, J. & PONTALIS J.- B. – Vocabulário da Psicanálise, Martins


Fontes, 1982

- MASCARELLO, Tania V. N. – Fantasma: Algumas Pontuações in Anais


do 7º Recorte de Psicanálise, (?)

- MASCARELLO, Tania V. N. – Questões sobre os termos: Fantasia e


Fantasma – Primeira aproximação conceitual (Notas de Aula - Inédito), 2002

- MEZAN, Renato – Metapsicologia/Fantasia (1989), in Figuras da Teoria


Psicanalítica, Escuta/Edusp, São Paulo, 1995

- ROUDINESCO, Elisabeth & PLON, Michel, Dicionário de Psicanálise,


Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997

- ROUDINESCO, Elisabeth, Pourquoi la Psychanalyse?, Flammarion, Paris,


1999

- SOUSA, Fernando A. B. - Da sugestão à transferência: um itinerário


freudiano, (inédito), 2001

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