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ESCOLA SUPERIOR DE EDUCAÇÃO JOÃO DE DEUS

CURSO DE PROFESSORES DO ENSINO BÁSICO- 1º CICLO

COMENTÁRIO AO TEXTO
"A CULTURA DO DESASSOSSEGO, OU A VIDA COMO EDUCAÇÃO"
de Ruben de Freitas Cabral

Disciplina : Orientações de Aprendizagem

Trabalho realizado por


Filipa Isabel Albuquerque Abreu Carvalhão

Lisboa, 2000
“Passávamos, jovens ainda, sob as árvores altas e o vago

sussurro da floresta. Nas clareiras, subitamente surgidas do acaso do

caminho, o luar fazia-as lagos e as margens, emaranhadas de ramos,

eram mais noite que a mesma noite. A brisa vaga dos grandes bosques

respirava com som entre o arvoredo. Falávamos das coisas impossíveis;

e as nossas vozes eram parte da noite, do luar e da floresta. Ouvíamo-

las como se fossem de outros.”

Fernand

o Pessoa, Livro do Desassossego

2
1.
Este nosso trabalho tem como objectivo fundamental o
comentário do texto de Ruben de Freitas Cabral, «A cultura do
desassossego, ou a vida como educação», capítulo terceiro da obra “O
Novo Voo do Ícaro” (1)
. Não querendo elaborar um comentário global,
optámos por encetar um diálogo com o texto, ao ritmo da sua própria
leitura.

2.1.
A cultura do desassossego não resulta automaticamente de uma
vida desassossegada. A vida actual e os seus ritmos constituem uma
vida desorientada, a acção que se esvai num movimento, ou melhor,
numa mera agitação.
Daí a metáfora da viagem. Somos seres em viagem, in fieri.
Inacabados, numa clara alusão à filosofia existencialista (2)
. Mas
também no seio da própria complexidade que funciona aqui, não só
como estimulo, mas, na sua correspondência com o caos, como modelo
epistemológico na compreensão da própria realidade e da própria vida.
Aceitar a complexidade, apesar daquilo que nos traz de confuso,
inextricável, desordem, ambiguidade e incerteza, é condição de
inteligibilidade do mundo actual (3)
.

2.2.
Mas a metáfora da viagem completa-se com a ilustração do
protagonista dessa viagem: o astronauta. Este opõe-se ao terráqueo,
aquele que está preso à dimensão rasteira da realidade. Diz um
provérbio chinês que, “enquanto o sábio aponta para a lua, o tolo olha
3
para a ponta do dedo”. O terráqueo é aquele que apenas olha para o
dedo, para a realidade mais imediata e se regula pelo senso comum. O
terráqueo é o produto normalizado de uma educação que o domesticou,
que o estandardizou. O terráqueo foi ensinado. Mas o astronauta, o que
voa, o que vê o espaço aberto diante de si, foi elevado a aprender. Só
este compreende a cultura da leveza, da fluidez, das formas que
evoluem; o terráqueo não voa, perdeu o sentido da leveza: ele
protagoniza a cultura da gravidade, entendida aqui como o resultado da
força que nos prende à terra e também o carácter sisudo de uma
cultura grave e séria. Por isso o terráqueo está dominado pelo “peso da
existência da gravidade unidireccional” (4)
.

2.3.
Mas o astronauta e o terráqueo também ilustram o confronto
entre duas culturas: a da modernidade presa “no universo dos mundos
fechados” (5)
e a da pós-modernidade aberta para “um universo de
mundos” consciente da complexidade e da diversidade das opções. A
questão que aqui se coloca, de seguida, à educação, é saber como
educar para esta imprevisibilidade, perdida a falsa segurança das
narrativas da modernidade, como desenvolver currículos que interajam
com o desassossego, com a imaginação, com a necessidade de inventar
o próprio viver. Ou, como o autor resume lapidarmente: "Como gerir o
hoje e o amanhã com o saber de outrem? De facto, como ensinar o
conhecimento?" . Donde, no mesmo sentido, as questões que se
(6)

colocam à escola nos seus múltiplos aspectos: finalidade, projecto,


actores. E também a necessidade de reflectir a vida e não construir
uma realidade teoricamente perfeita, mas desajustada em relação ao
mundo.

3.

4
É neste contexto de inquietação que se parte para uma reflexão
sobre as variáveis que se deverão ter em conta na educação para o
século XXI (pp. 22 e ss.).

3.1.
A educação para o século XXI deve centrar-se na pessoa humana.
Esta é a realidade fundamental que faz da escola um "espaço de
penetração no desconhecido"; ou, diríamos nós, partindo da pessoa
humana, colocamo-nos perante uma realidade ante-predicativa,
anterior a essa distinção funcional professor/aluno/currículo; donde a
possibilidade e a urgência em definir a escola como comunidade,
espaço de partilha. Por isso, dissolve-se a hierarquia do poder, de um
poder assente num discurso autoritário que se impõe por ser
acriticamente recebido. A escola deverá ser mais o espaço da inovação
que da transmissão dos saberes. O problema é que “ensinámos mais
aos nossos filhos como chegar às soluções ‘correctas’ do que a
encontrar soluções inovadoras”. (7)
A escola passa a ser projecto, ou, utilizando um conceito actual na
gestão dos recursos humanos, concebe-se como uma organização que
aprende. Os professores, no seio desta nova realidade, despem-se das
suas funções tradicionais o que pode levar a um momento inicial de
desorientação. Quando o professor se vê investido, tal como o aluno,
em alguém que aprende, não se pode esconder mais no discurso, por
vezes esotérico, do seu saber academicamente disciplinado e fundado.
De consumidor do currículo, funcionalizado, o professor passa a ser o
gestor do currículo, na intenção de que a escola e toda a comunidade
educativa seja fundamentalmente o espaço de construção social do
conhecimento. Aprender e construir o conhecimento, duas atitudes
novas e imprescindíveis no seio da escola pós-moderna, ao mesmo
tempo que se vêem dissolver as fronteiras dos saberes espartilhados ou
se assiste à rápida desvalorização dos saberes que tradicionalmente se

5
reproduzem na instituição escolar. (8)
O professor coordena o processo
de aprendizagem. Ou, diríamos nós, o professor é agora não o sóbrio e
único detentor do saber, mas o facilitador da aprendizagem. Pelo que
pesa sobre a formação dos professores uma enorme responsabilidade
que aponta para a aquisição de novas competências, nomeadamente
ao nível do trabalho de grupo e da gestão de conflitos. O professor é
também um aprendiz. (9)
Por isso também, o produto da escola não é o aluno, como se
fosse o resultado final de uma linha de montagem num modelo
"fordista" de organização do trabalho e da produção, mas a própria
proposta de trabalho. O que se procura não é o produto, mas um
processo partilhado de construção do conhecimento.

3.2.
Mas, do mesmo modo que se alargam e aprofundam as funções
da escola, também esta se enriquece com a irrecusável entrada em
cena de outros actores, nomeadamente, a família. Mas a família não é
vista apenas na sua componente de ambiência humana. A família é
também convidada a intervir no próprio processo de desenvolvimento
curricular. No entanto há aqui que contar com os obstáculos que
resultam de se ter que lidar com as representações familiares sobre a
escola, construídas com base em experiências nem sempre
gratificantes. Isto é, existe alguma desconfiança em relação à escola.
Pelo que a escola do século XXI deve também contribuir para incrustar
uma nova imagem da escola.

3.3.
O autor propõe, então a gestão do possível, como o maior desafio
que se nos coloca. E é o maior desafio, porque não pode partir de

6
horizontes muito definidos, porque se trata de lidar com projectos e não
com planos. Pelo que “a educação deixou de ser uma variável
controlada, para passar a ser um problema fundamental da própria
vida” (10)
. Num cenário de completa abertura ao futuro, conhecimento é
mais o que se conquista que aquilo que se transmite, tal como a
realidade é mais aquilo que se indica, que aquilo que se descreve.
Como lembrava o faraó Ouahânkh Khety III em testamento deixado ao
seu filho Mérikaré, cerca de 2100 antes da nossa era, “sê criativo, disso
nascerá a tua própria alegria interior” . A dificuldade está em
(11)

abandonarmos um atitude determinista que em nós é ancestral porque


é a mais cómoda.

3.4.
Mas uma escola que se pretende como projecto não deve estar
imune a imperativos de ordem ética que estão bem para lá duma moral
consensual e relativista. Por isso o autor aponta claramente para um
horizonte de valores absolutos: “proponho como horizontes éticos da
educação e da escola os valores absolutos da democracia, justiça e da
liberdade.” (12)
. E de novo regressamos à ideia inicial - a da viagem. Mas
agora com a consciência do desafio que se tem pela frente, mas
também a da necessidade de um roteiro que será o projecto educativo
duma escola. E, diferentemente do plano que se move num futuro
fechado e medido como condição da própria actividade de planear, o
projecto antecipa processos e indica horizontes.

7
NOTAS:
(1) - Adiante designado abreviadamente por Cabral, seguido da
indicação da página respectiva.
(2) - “O homem primeiramente existe, descobre-se, surge no mundo;
e só depois se define. (...) Porque o nós queremos dizer é que o
homem primeiro existe, ou seja, que o homem, antes de mais nada, é
o que se lança para um futuro, e o que é consciente de se projectar
no futuro.” SATRE, O existencialismo é um humanismo, Lisboa, Ed.
Presença, 1970 (3ª ed.), pp. 216-7.
(3) - Veja-se a este propósito a crítica de Edgar MORIN àquilo que ele
designa como o ‘paradigma da simplificação: “Vivemos sob o domínio
dos princípios de disjunção, de redução e de abstracção cujo conjunto
constitui aquilo a que chamo o ‘paradigma da simplificação’. O
paradigma da simplificação mutilou os nossos conhecimentos, os
homens e a nossa sociedade. face aos consideráveis
desenvolvimentos das ciências e das tecnologias, este paradigma
conduz-nos a um impasse.” Edgar MORIN, Introduction à la pensée
complexe, Paris, ESF Éditions, 1991.
(4) - Cabral, p. 20.
(5) - Cabral, p. 21.
(6) - ibid.
(7) - Alain VILLEMEUR & Didier WILLIAME, Reencantamento do Mundo,
Lisboa, Instituto Piaget, 1999, pp. 202.
(8) - “Se o ensino deve assegurar não apenas a reprodução das
competências, mas também o seu progresso, será,
consequentemente, preciso que a transmissão do saber não esteja
limitada à das informações, mas que ela englobe a aprendizagem de
todos os procedimentos capazes de melhorar a capacidade de
conectar campos que a organização tradicional do saber isola
ciosamente.” Jean-François LYOTARD, A condição pós-moderna,
Lisboa, Gradiva, 1989, pp.106.

8
(9) - Cf. AAVV, O professor aprendiz - criar o futuro, Lisboa,
Departamento do ensino secundário, 1995, 146 pp.
(10) - Cabral, pp. 23.
(11) - Cit. in Alain VILLEMEUR & Didier WILLIAME, Reencantamento do
Mundo, Lisboa, Instituto Piaget, 1999, pp.17.
(12) - Cabral, pp. 24.

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