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Através do Espelho e o que Alice encontrou lá.

Apresentação

Quem.

"... Os primeiros a misturar artes cênicas com tecnologia por aqui foram os integrantes da
Cia. Phila7. “Capitaneada pelo diretor Rubens Velloso, a Phila7 tem desenvolvido um
trabalho notável não somente sobre o palco, mas também no que se refere à pesquisa e
ao embasamento conceitual dos seus trabalhos. Eles amadureceram muito a visão sobre a
união entre artes cênicas e tecnologia nos últimos tempos com a série Play on Earth”,
opina Araújo..." (TEATRO NA REDE - Revista da Cultura)

O PHILA7 surgiu no início de 2005 com o objetivo de pesquisar novas linguagens e diferentes
mídias. Desde seu primeiro trabalho, tem na imagem e na tecnologia ferramentas para o
desenvolvimento de novos caminhos para as artes cênicas. Formado por um coletivo de artistas de
diferentes áreas, tendo o corpo presencial e a virtualidade como foco central, o PHILA7
experimentou relações de contaminação de diversas linguagens artísticas, e agora propõe seu novo
espetáculo: “Através do Espelho e o que Alice encontrou lá” (“Through the Looking Glass – and what
Alice found there” – Lewis Carroll - 1896)

O quê.

“A literatura fantástica será possível no ano 2000, submetido a uma crescente inflação
de imagens pré-fabricadas? Os caminhos que vemos abertos até agora parecem ser dois:
1) Reciclar as imagens usadas, inserindo-as num contexto novo que lhes mude o
significado. O pós-modernismo pode ser considerado como a tendência de utilizar de
modo irônico o imaginário dos meios de comunicação, ou antes como a tendência de
introduzir o maravilhoso, herdado da tradição literária, em mecanismos narrativos que
lhe acentuem o poder de estranhamento. 2) Ou então apagar tudo e começar do zero.”
(Seis Propostas para o Próximo Milênio de Ítalo Calvino)

Através do Espelho e o que Alice encontrou lá, de Lewis Carroll, é um romance inglês moderno
extremamente complexo que propõe as mais variadas interpretações por abordar em seu contexto
assuntos de diferentes temáticas.

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Os dois romances de Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas e Alice através do espelho,
publicados em 1865 e 1872, são extremamente intrigantes e capazes de mexer muito com a
imaginação de seus leitores. Não se deve afirmar com certeza que estes livros sejam
necessariamente livros infantis. Pois não há nada por trás dos enredos e personagens que não esteja
rigorosamente referenciado, seja através de dados da própria existência de Carroll, seja através de
inúmeras alusões literárias, científicas, lógico-matemáticas, etc.

Na história original de Carroll, o maior atrativo é o “logos fantástico”, o “nonsense”, a


capacidade que o autor tem de imprimir ao texto o processo de pensar por imagens.

Nossa intenção é construir, em processo, uma livre adaptação da obra de Carroll, um


espetáculo experimental com o uso de diferentes linguagens estéticas, voltado ao público jovem no
Espaço Mezanino do SESI.

Porquê.

“a imagem virtual torna-se, continuamente, atual, como em um espelho que se apodera


do personagem, tragando-o, e deixa para ele, por sua vez, apenas uma virtualidade (...) A
troca perpétua do virtual e do atual, definem um cristal (...) o atual e o virtual coexistem,
e entram em um estreito circuito q ue nos conduz constantemente, de um a outro”
(Deleuze)

O tema de entrar através do Espelho em um mundo imaginário, tornou-se freqüente na


atualidade, principalmente nas novas mídias: Vídeo-Clips, filmes de ficção, universos virtuais da web,
etc. Tais mídias são mais que espelho e ferramentas do utilizador, são interfaces que permitem a
passagem para existências virtuais (como o outro lado do espelho de Alice). Esse ponto de passagem
é o que nos interessa, num contexto onde o limiar entre o “real” e “virtual”, animado e inanimado, o
“eu” unitário e o “eu” múltiplo são difíceis de definir.

Sempre tendo o teatro como foco central, o Phila7 experimentou relações de contaminação
de diversas linguagens artísticas até chegar à construção de espetáculos onde a presença física (de
atores e público) e a imagem, habitavam efetivamente um mesmo espaço. A presença do ator ao
vivo e em imagem significam um continuum em dois estados diferentes.

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Assim como Alice atravessou o espelho, vivemos numa cultura em que a metalinguagem vai
se tornando um aprendizado, onde somos “imagem entre imagens” em construção.
Experimentamos o mundo de muitos lugares, somos interfaces, mediadores.

Portanto, com “Através do Espelho e o que Alice encontrou lá” pretendemos


recontextualizar o vasto universo simbólico de Carroll no mundo contemporâneo, através de uma
poética cênica pós-dramática.

“Evidencia-se que a chance do teatro pós-dramático não é a imitação da estética das


mídias nem a simulação, mas o real e a reflexão. Como “máquina de imagem”, sua
possibilidade específica de reprodução da realidade, apesar de todas as ampliações
possíveis, permanece radicalmente limitada. Como “discurso”, em contrapartida, ela
realiza um procedimento insubstituível, que também lhe permite ignorar e superar os
limites que o cinema e as mídias revelam.”1

1
LEHMANN, Hans-Thies, Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p.371.
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Sinopse
“Desconfiai do trivial,
Na aparência singelo
E examinai, sobretudo o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
Não aceite o que é de hábito
Como coisa natural.” (Bertold Brecht)

Três Alices :
Alice 1, uma jovem qualquer nos dias de hoje;
Alice 2, descendente direta de Alice Liddell;
Alice 3, do livro de Carroll.

Alice1 deixa uma mensagem escrita no espelho do seu quarto: As coisas não fazem mais
sentido. Vou desaparecer por um tempo. Por favor, não se preocupem. Beijos, Alice. A irmã de Alice,
Lorina, com a intenção de encontrá-la e descobrir o que não faz sentido, cria um blog chamado
Wonderland. Rapidamente a busca pelo paradeiro de Alice e as dúvidas postadas por Lorina geram
um grande número de adeptos que resolvem adotar, como nicknames, os personagens dos Livros de
Lewis Carroll. Motivados pela grande intensidade de discussões postadas em Wonderland, a irmã de
Alice, junto com outros blogueiros, resolve construir um lugar para encontros, uma espécie de clube.
Um lounge. Também chamado Wonderland.

O dia marcado para a inauguração do espaço é também a data estabelecida por Alice1, através
de uma mensagem postada no blog, para sua primeira aparição após longa ausência. Alice1 está em
Londres e combina uma conversa, via vídeo-conferência (skype, MSN, etc.) com sua irmã e seus
amigos da rede. Ela traz para o encontro uma amiga (Alice2), descendente direta de Alice Liddell (a
musa de Carroll). Alice2 deseja, ardentemente, comprar a edição original do livro Alice no país das
Maravilhas num leilão da Sothebys. As tensões acontecem no cruzamento dos desejos, dúvidas,
vontades, possibilidades, frustrações, trazidas à superfície pelos habitantes de Wonderland, tanto na
rede quanto no espaço concreto.

A compra do livro original, transformado em objeto simbólico pelos blogueiros, traz à tona
Alice3 (Alice ficcional de Lewis Carroll, Alice imaginária de cada um de nós). Um jogo de xadrez
alucinado, um game virtual interativo, onde as regras na lógica do jogo são quebradas para que o
cheque-mate da Rainha estabeleça um novo sentido, como Carroll propõe.

“Queremos compreender algo que já esteja diante de nossos olhos. Pois parecemos, em
algum sentido, não compreender isto.” (Wittegenstein)
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Proposta de dramaturgia e encenação

“Toda a multiplicidade implica elementos atuais e elementos virtuais. Não há


objeto que seja puramente atual. Todo o atual se envolve por um nevoeiro de
imagens virtuais. Esse nevoeiro levanta-se de circuitos coexistentes, mais ou
menos extensos, sobre os quais as imagens virtuais se distribuem e correm. É desta forma
que uma partícula atual emite e absorve virtuais mais ou menos próximos, de diferentes
ordens. () Dada a identidade dramática dos dinamismos, uma percepção é como uma
partícula: uma percepção atual envolve-se de uma nebulosidade de imagens virtuais que
se distribuem sobre circuitos em movimento, cada vez mais afastados, cada vez mais
largos, que se fazem e que se desfazem. São recordações de diversas ordens: são ditas
imagens virtuais na medida em que a sua velocidade ou a sua brevidade as disponha aqui
sob um princípio de inconsciência.” (Deleuze)

1. A Casa do Espelho

A escolha de Alice através do espelho como próxima montagem do Phila7 não é de forma
alguma casual. A estrutura dos livros de Carroll - com paradoxos de linguagem, inversão dos
sentidos, quebra do senso comum, jogos de poder, relações entre bi e tri dimensionalidades e o
mundo para além do enquadramento do espelho - durante longo tempo pertenceu ao mundo dos
sonhos e do fantástico. Hoje pertence a uma esfera sensível que, aos poucos, vem à superfície
propor um novo olhar à contemporaneidade.

As redes midiáticas, as relações entre presença física e presença na imagem, as potências dos
processos, as relações de espaço e tempo e os vários sentidos da linguagem, estabeleceram novos
padrões que nos permitem penetrar em realidades complexas, também através das artes.
Teatralidades, Imagéticas e espaços conectados. Wonderland é aqui.

2. O Jardim das Flores vivas

E tem o mesmo sorriso antigo


Que tiveram para o primeiro olhar do primeiro homem
Que as viu aparecidas e lhes tocou levemente
Para ver se elas falavam...
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Estamos cansados da árvore. Não devemos mais crer nas árvores. Toda cultura arborescente
esta fundada nelas, da biologia à lingüística. Ao contrário, nada é belo, nada é amoroso, nada é
político, a não ser os caules subterrâneos e as raízes aéreas, a adventícia e o rizoma. Qualquer ponto
de um rizoma pode ser conectado com qualquer outro, e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou
da raiz, que fixam um ponto, uma ordem.

Nas palavras de Gilles Deleuze e Guattari no livro “Mil Platôs”: “Contra os sistemas centrados
(e mesmo policentrados), de comunicação hierárquica e ligações preestabelecidas, o rizoma é um
sistema a-centrado não hierárquico e não significante, sem General, sem memória organizadora ou
autômato central, unicamente definido por uma circulação de estados”.

O múltiplo, só quando é efetivamente tratado como substantivo, como multiplicidade, deixa


de ter qualquer relação com o Um, como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou
espiritual, como imagem e mundo.

A encenação se inicia com a inauguração do espaço físico de Wonderland no dia do


ressurgimento de Alice1. Um espaço midiático sem divisão entre público e atores. Todos são
blogueiros de Wonderland.

Assim se estabelece uma forma reconhecível no dispositivo dramático. Define-se uma


atmosfera de base para o aparecimento dos fluxos estéticos. Um teatro pós-dramático; “que se
apresenta como um ponto de encontro das artes e assim desenvolve – e exige – um potencial de
percepção que se distingue do paradigma dramático (e da literatura em geral)”, segundo Lehman.
Uma dramaturgia construída com a quebra da hierarquia dos vários dispositivos de linguagens. Os
novos paradigmas se estabelecem na visão do todo e não na leitura, por camadas, de cada linha de
expressão.

[Um dispositivo]... “é antes de mais uma meada, um conjunto multilinear, composto por
linhas de natureza diferente. (...) Desenredar as linhas de um dispositivo, em cada caso, é
construir um mapa, cartografar, percorrer terras desconhecidas, é o que ele [Foucault]
chama ‘trabalho no terreno’ É preciso instalarmo-nos sobre as próprias linhas; estas
não se detêm apenas na composição de um dispositivo, mas atravessam-no, conduzem-
no, do norte ao sul, de este a oeste, em diagonal” (Deleuze)

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3. Insetos no espelho
“- Uma garota tão jovem
- Disse o cavalheiro sentado diante dela (ele estava vestido de papel branco)
- Devia saber para onde vai, mesmo que não soubesse o próprio nome!”
(Lewis Carroll – Através do espelho e o que Alice encontrou lá)

Nesta perspectiva, o trabalho dos atores, assim como de toda a equipe, necessita da imersão
nas novas relações e mutações do contemporâneo, sempre em processo. Mais do que “representar”
ou “atuar”, devemos “estar”. Cada momento do processo pressupõe vários fluxos ou “estados”:
psicológicos, biológicos, emocionais, físicos e imateriais. Os atores são levados a compreender que o
personagem imerge a cada momento com as várias linhas constitutivas da cartografia do ser. O
verbo to be expressa na sua dupla forma verbal o sentido que procuramos. To be and not to be, esta é
a questão!

4. Tweedledum e Tweedledee

A encenação tem como ponto de partida a presença de atores e público num espaço
cenográfico construído com as características de uma sala de estar (um lounge). Este espaço,
gradualmente, se contamina de outros espaços, se expande através de conexões midiáticas.
Instauram-se os dispositivos. Projeções videográficas, conexões de rede, áudio e luz se agregam
organicamente à cena.

Numa parede do lounge projeta-se um buraco metafórico, conectando a cena ao espaço


fictício de um quarto londrino. Alice1 aparece e dialoga com os outros personagens e os espectatores
(espectadores atores, de acordo com Augusto Boal em “Teatro do Oprimido”, que, ao se
identificarem com a situação, tem a consciência de que ela deve se transformar). Alice1 está lá e aqui
ao mesmo tempo. Tempo real. Junto a ela, surge Alice2 reivindicando o livro de origem, a matriz. A
partir daí, do texto original, surge a terceira Alice, ficcional, que viajou através do espelho para uma
outra lógica dos sentidos. Estas três personagens-vetores provocam oscilações estéticas no espaço.
Para esta encenação, o ator e sua imagem em tempo real são formas de presença em estados
diferentes da matéria (carbono e silício). Ele trafega de um estado ao outro sem pulverizar o
personagem, trazendo alternativas de leitura para uma mesma situação. Para isso, torna-se
fundamental a parceria com o coletivo BijaRi e seu trabalho videográfico. Um trabalho de
mapeamento de imagens nos possibilitará inserir o material imagético em vários suportes,
expandindo a percepção da imagem para além da simples tela branca.
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5. Lã e Água.
“- Você pode olhar em frente e dos lados, se quiser
- Disse a ovelha
- Mas não pode olha r em volta de você... a não ser que tenha olhos atrás da ca beça.”
(Lewis Carroll – Através do espelho e o que Alice encontrou lá)

A construção do dispositivo-texto. Uma dramaturgia onde a palavra seja usada no sentido de


palavra-valise (espécies de “caixas” que podem conter diversos significados, indo além da lógica
lexical ou semântica). O projeto propõe a criação do blog Wonderland que, já durante os ensaios, nos
dará um dos vetores do texto. Daí surgirão as falas pertinentes ao mundo de Alice, pois o blog é uma
construção real que vai tomar parte na ficção. Outro vetor é o próprio texto de Carroll. Os jogos de
linguagem, os vários sentidos das palavras na construção dos paradoxos, já trazem consigo múltiplas
possibilidades de entendimento.

O surgimento de Alice3 (a ficcional), presente em carne e osso na encenação, reivindicando um


esforço coletivo para o retorno do livro leiloado, sua pedra de formação, introduz na dramaturgia o
objeto simbólico, o livro original de Lewis Carroll. A experiência dramatúrgica do Phila7 facilitará o
trânsito natural do texto nos vários estados de expressão em que se encontram os personagens. Um
jogo dramatúrgico entre os paradoxos de linguagem e o contemporâneo.

6. Humpty Dumpty e o Leão e o Unicórnio

“Contrariamente se assim era, então poderia sê-lo; e se assim o fosse


então seria; mas como assim não é, então não será. É lógico.”
(Lewis Carroll – Através do espelho e o que Alice encontrou lá)

A relação entre a arquitetura da luz e a projeção de imagens, trabalhadas como um mesmo


elemento de percepção, torna possível o trânsito entre espaços e estados físicos dos personagens,
através da interferência concreta de um elemento no outro. Cria-se a sensação de que estamos em
vários lugares ao mesmo tempo e existirmos, múltiplos, a cada momento. Uma dobra de superfície
no espaço-tempo.

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7. Fui eu mesmo que inventei

“ – Então eu devia ter dito “ é assim que se chama a canção?”


- Não, não devia: isso é outra coisa. A canção se chama “Modos e Meios”. Mas isso é só
como ela se chama.
- Mas qual é a canção, afinal? - Disse Alice.”
(Lewis Carroll – Através do espelho e o que Alice encontrou lá)

Alice é um processo, um espaço de experimentação, um work-in-process. O corpo, a palavra, a


imagem, os espaços, a luz, são mutáveis, são permeáveis, pretendem estar sempre em expansões
cognitivas e de sentidos. Todos os elementos trafegam por este espaço heterotópico, impregnado de
multiplicidades. Uma rede complexa e bela de experiências.

8. A Rainha Alice

“Dorme, dorme, queri da, a tua calma sesta.


Há tempo para dormir, não começou a festa:
Depois vamos ao baile, ao findar o pudim
As rainhas, Alice, e todos lá, enfim!”
(Lewis Carroll )

O homem é capaz de evocar não apenas o que é palpável e está presente, mas também o que
está longe, no tempo ou no espaço, o que é abstrato ou mesmo imaginário. Como no mundo de
Alice, o importante é trabalhar com as várias opções dos sentidos, pois é a partir daí que a escolha é
minha com os outros, e não um caminho a seguir já traçado até algum lugar. Talvez quando
enxergarmos o outro como uma outra possibilidade do que s omos, cheguemos a algum lugar, do
contrário companheiros, bem vindos ao deserto do real.

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Proposta para trabalho de atores

To be and not to be.


“Creio na solução futura destes dois estados, em aparência tão contraditórios, o sonho e
a realidade, numa espécie de realidade absoluta...”
André Breton (Primeiro Manifesto)

No mundo atual, onde a tecnologia midiática inegavelmente provoca novos padrões de


comportamento, um outro entendimento de presença surge (não só traduzido por uma relação de
fisicalidade, mas também pelo uso da imagem, do hipertexto, da velocidade de comunicação, etc.),
gerando outras personas que estabelecem padrões contemporâneos de subjetividade. O teatro, do
ponto de vista do Phila7 e em conformidade com a definição de teatro pós-dramático postulada por
Hans-Thies Lehmann, não deve e não pode ficar numa construção purista alheio a essas novas
condições.

A idéia clássica de espaços de representação, do contato direto de um ator com seu público,
característicos da tradição teatral, pode ser entendida como cultura arbórea, ou seja, fixa num
mesmo tronco. Contudo, todos os sistemas contemporâneos de comunicação e pensamento tendem
para o rizomático, em que uma idéia constrói pontos de relação aleatórios e abertos. Trazer para
dentro do espaço do teatro outros espaços e, ao mesmo tempo numa inversão de vetor, levar o
espaço do teatro para fora - condição essa tornada possível porque a noção de presença hoje
também se aplica à imagem e aos espaços virtuais que determinam sua “concretude”- não define
mais uma única realidade, mas várias, que aparecem e se formam de maneira diversa.

“Assim como, no cotidiano, aprendemos com a televisão e o vídeo a nos contentar


com um mínimo de continuidade e unidade, a seguidamente mudar o foco da atenção
entre um momento de ação na tela da TV e a realidade do dia-a-dia(...), também no
novo teatro(...), os atores alternam contatos privados com representação, níveis de
realidade diversos com universos de imagem.”[1].

Nesta perspectiva, seguindo o pensamento de Hans-Thies Lehmann,

“Trata-se muito mais da presença autêntica dos atores individuais, que não aparecem
como meros portadores de uma intenção exterior a eles – seja ela proveniente do
texto ou do diretor da encenação. Antes, os atores desenvolvem em uma delimitação
previamente dada uma lógica corporal própria: impulsos latentes, dinâmica energética
do corpo e do sistema motor.”[2]

[1]
LEHMANN, Hans-Thies, Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 369.
[2]
LEHMANN, Hans-Thies, Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p.49
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A simples mudança do termo “interpretar” para “estar” já coloca o ator sob uma nova
perspectiva, assim como a mudança de “representar” para “interpretar” – considerando, por
exemplo, as teorias de Brecht - representou uma modificação na forma do ator encarar seu ofício. O
primeiro e mais importante passo nesta direção é justamente a predisposição em “estar” imerso
nesta linguagem.

A psicologia como parâmetro de aprofundamento nos personagens representa apenas uma


das inúmeras vertentes que buscamos nesta nova linguagem, que considera o homem como ser
múltiplo e complexo. O personagem “está” e, portanto carrega consigo sua história (psicológica,
ideológica, política, social, etc.), mas esta não é, definitivamente, fundamental para o entendimento
de seu caminho no espetáculo, uma vez que não estamos mais tratando de uma narrativa linear,
onde um fato leva a outro e a resolução dos conflitos conduz o espectador ao desenlace. Trata-se de
uma linguagem em que a complexidade de relações imagéticas, sensoriais, verbais, leva o ator a um
aprofundamento de entendimento do homem como esse ser múltiplo. Acreditamos que essa
multiplicidade de personas e suas inúmeras relações permitem ao ator e espectador uma leitura
profunda e complexa, que perpassa pelo sensível.

O ator deve desenvolver a cena sempre pensando no presencial e no virtual,


simultaneamente. Ele tem que continuar dando conta de todo o corpo visível, do gesto teatral, da
emissão vocal e da dimensão do espaço físico. Mas também tem que se preocupar com o
enquadramento, e tudo mais que se refere ao streaming de vídeo. Este ator, objeto desta linguagem
híbrida, "filho do carbono e do silício", é um pesquisador e criador de linguagem. Essencialmente, um
ator-criador.

A proposta de trabalho com os atores em “Através do Espelho” parte desses princípios para
desenvolver, com o coletivo formado entre os integrantes do Phila7 e os participantes do núcleo
experimental do SESI, métodos e técnicas claras para o enfrentamento destas questões.
Possibilitando assim a expansão destas linguagens, não só no sentido da construção de um
espetáculo profissional, mas também criando condições para que o público possa, através de
poéticas artísticas, eliminar distâncias, fronteiras e construir processos de reflexão que não se
limitem mais a um número pequeno de pessoas, mas que possam, através de teatralidades,
imagéticas e espaços conectados, falar e dialogar com o mundo.

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Concepção de cenário, figurino, iluminação e música

Universos “sem lugar”

“Existem países, cidades, continentes, planetas, universos “sem lugar”, os quais seria
impossível encontrar num mapa, e histórias sem cronologia. Esses lugares, esses tempos,
nascem na cabeça dos homens, nas suas narrativas, nos seus sonhos, no vazio de seus
corações. São a doçura das utopias. Mas eu acredito que existem em todas as sociedades
algumas utopias que ocupam um lugar real, um lugar que podemos situar num mapa, que
têm um tempo determinado, um tempo que podemos fixar e medir segundo o calendário
de todos os dias.” (Deleuze – As Heterotopias)

O artista contemporâneo concorre com a mídia como poder de invenção, se alimenta dela e a
subverte. Faz da cultura midiática uma nova pele. Nesse sentido, é notável a evolução dos
dispositivos em torno da projeção e desterritorialização das imagens.

Dando ênfase aos aspectos formais, técnicos, espaciais, que configuram o sentido, o conceito
de dispositivo se tornou decisivo para se pensar uma série de campos emergentes, entre eles a
cenografia. O dispositivo cenográfico de “Através do Espelho” deve ser entendido como um diálogo
constante entre o espaço físico e os projetos de luz e vídeo, buscando uma unidade visual para a
criação deste universo vertiginoso de imagens.

Aproveitando a estrutura arquitetônica do espaço Mezanino, a cenografia criará um lounge,


um ambiente imersivo, onde o espectador se encontra “dentro” do espaço cênico, coabitando com
os atores. Almofadões, puffs, computadores, web-cams, projetores e alguns poucos objetos cênicos
criam um espaço despojado e tecnológico. Nas paredes, cartazes com referências ao universo jovem
e a estética pop, espelhos e espaços projetáveis. Esta configuração de palco será a base cenográfica
de “Através do Espelho”. Os espelhos podem ser trabalhados de modo que a repetição da mesma
imagem refletida ao infinito crie, num só tempo, a ilusão de um espaço contínuo, e também a poética
de diversos espaços simultâneos. Este grande lounge, aos poucos, transforma-se em um território
transitório, uma câmara neutra entre o passado e o devir. Neste terreno imaterial de suspensão
temporal, onde tudo é grande e pequeno e perdemos a noção de proporção das coisas, onde se
suspende o tempo presente, a cenografia é anti-espetacular e sintética, irredutível, para conter a
potência destes paradoxos.

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Do mundo de Alice surgem novas estéticas híbridas para a representação de
imagens/metáforas: a sugestão de um tabuleiro de xadrez ocupando o palco, portas que se abrem
para outros espaços, um espelho d’água, túneis, labirintos e precipícios são apenas alguns exemplos
de efeitos cenográficos. Aqui a criação videográfica e o desenho de luz assumem grande importância
na composição visual. Apesar de possuírem linguagens e técnicas particulares, devemos
compreender a projeção de vídeo e a iluminação como uma coisa só, interdependentes, usando os
mesmos suportes.

Na arte contemporânea, as instalações deslocaram as projeções para objetos tridimensionais,


sobre o corpo, em espaços públicos, conjuntos arquitetônicos, (colunas, escadas, tetos), em
materiais diversos. O mapeamento do espaço para projeção de imagens, assim como a pesquisa no
campo da ciência ótica e as leis de refração da luz, são essenciais para as diferentes atmosferas de
“Através do Espelho”. A iluminação não tem apenas a função de revelar espaços, mas também criá-
los.

“Começamos a ver as formas e as sombras e a luz refletida pelas figuras nos rostos das
pessoas. É muito sutil, mas os espectadores começam a misturar-se nas projeções.” (Gary
Hill)

Esta ambiência espacial e visual se completa com a composição de uma trilha original, uma
delicada camada sonora, onde os conceitos de composição musical transcendem a idéia redundante
de reforçar o que a cena já diz. A partir de referências da música pop e eletrônica, da voz dos atores,
ruídos e silêncios incidentais, a trilha irá, a um só tempo, aguçar a sensibilidade e a reflexão crítica.

Os figurinos serão compostos de elementos cotidianos do vestuário do jovem contemporâneo,


e definidos durante os ensaios, juntamente com os atores. Linguagens como o Grafite, tatuagem,
ícones digitais surgem naturalmente como possíveis padronagens. Desta forma, referências do
universo da moda urbana devem naturalmente compor a vestimenta de alguns personagens.

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Proposta de texto base para material didático

1. Carroll & Alice

. Referências histórico-linguísticas e socioculturais


. Teorias científicas presentes na obra
. O sentido do nonsense
. A Palavra-valise
. Alice e o problema do tamanho

2. Máquina-Alice

. Análises interpretativas, fragmentos e reflexos do pensamento


contemporâneo
. A Educação sem Fim
. O paradoxo em Lewis Carroll
. Imagem, mito e narrativa
. Ser-Espelho
. Tempo, performação e co-presença
. Teorias dos Dispositivos
. A comunicação interpessoal mediada por Tecnologia
. O hyperespaço dos heterônimos

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1. Carroll & Alice

Lewis Carroll foi o pseudônimo do escritor Charles Lutwigde Dodgson nasceu em Daresbury,
Cheshire, Inglaterra. Estudou na Universidade de Oxford, onde permaneceu por quase 50 anos. A
partir de 1861 foi ordenado diácono da Igreja Anglicana, foi nomeado professor de matemática em
Oxford em 1861. Carroll não se casou e passou praticamente toda sua vida em Christ Church,Oxford.
Era de uma extraordinária timidez principalmente com os adultos. Tinha poucos amigos e cultivou
suas amizades especialmente entre as meninas entre 8 e 12 anos de idade, das quais tirou inúmeras
fotos. A lógica e a fotografia foram, para ele, paixões absorventes. Como Dodgson publicou obras de
geometria, álgebra e matemática. Como Lewis Carroll, foi um mestre em jogos de linguagem e
paradoxos semânticos. A estória infantil Alice no País das Maravilhas (1865) e sua seqüência, Através
do Espelho e o que Alice Encontrou por Lá (1872), logo tornaram-se clássicos. Outras obras de Lewis
Carroll são: The Hunting of the Snark (1876) e o romance pouco conhecido Sylvie and Bruno (1889).

Cabe aqui narrar como Lewis Carroll conheceu a menina que seria sua inspiração para a escrita das
histórias de Alice. Com 24 anos conheceu Henry Liddell, que acabara de se tornar reitor em Oxford,
pai de Alice Liddell (a Alice das histórias) e suas irmãs, A primeira vez que Lewis conheceu Alice foi
em 1856, quando a menina contava com 4 anos de idade. Ficou encantado e passou a fotografar toda
a família Liddell, além de outros amigos – um hobby q ue colocou Charles Dodgson entre os maiores
fotógrafos da Era Vitoriana. Foi com esse estreitamento de relações com a família do reitor que, em
1862, Lewis levou as irmãs para um passeio de barco no lago próximo ao colégio, onde as entreteve
inventando estórias insólitas. Alice pediu-lhe que escrevesse tudo. Esse agradável passeio rendeu o
primeiro esboço da história de Alice. Escrito de próprio punho, o autor entregou a Alice, em 1864, As
aventuras de Alice sob a terra. O caderno passou pelas mãos de várias pessoas em visita à reitoria até
que o romancista Henry Kingsley insistiu com a sra. Liddell para que a obra fosse publicada. Charles
procurou um ilustrador para sua história – que havia ampliado para ir ao prelo - e, finalmente, em
1865, foi publicada As aventuras de Alice no País das Maravilhas. A tiragem inicial de dois mil
exemplares de 1865 foi removida das prateleiras, devido a reclamações do ilustrador John Tenniel
sobre a qualidade da impressão. A segunda tiragem esgotou-se nas vendas rapidamente. Seis anos
depois foi publicada a seqüência do “Pais das Maravilhas”, Através do espelho e o que Alice encontrou
lá. A obra de Carroll se tornou um grande sucesso, tendo sido lida por Oscar Wilde e pela rainha
Vitória e tendo sido traduzida para mais de 50 línguas. Alice alçou o pseudônimo Lewis Carroll à
posição de destaque na história da literatura, marcada pelo pioneirismo no tratamento das situações
e também pelo uso até certo ponto incomum do recurso do nonsense.

Referências histórico-linguísticas e socioculturais


As histórias de Carroll possuem referências histórico-lingüísticas, e muitas vezes, é necessária a
decodificação para uma compreensão perfeita de sentido do que é dito. Carroll usou elementos
típicos dos contos de fadas para chamar a atenção das crianças, como animais que falam e a
presença de reis e rainhas, além da cronologia indefinida. Porém, as histórias de Alice não podem ser
consideradas contos de fadas, pois abordam questões históricas em suas narrativas, como por
exemplo, críticas à sociedade inglesa do período vitoriano. A obra reproduz vários aspectos comuns
à cultura inglesa da época vitoriana. Até mesmo na Inglaterra é provável que o leitor de Alice não seja
capaz de compreender todos os significados propostos por Carroll, considerando os costumes do
século XIX, as menções ao folclore regional, as piadas que só eram entendidas em Oxford e as
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alusões à sociedade daquele período. A inversão do sentido presente na obra pode ser caracterizada
como crítica, considerando-se a Inglaterra de meados do século XIX como um dos países onde mais
se afirmava a racionalidade, ou ao menos um princípio lógico para justificar tudo na sociedade, até
mesmo questões difíceis de serem justificadas, como os privilégios e a miséria.

Teorias científicas presentes na obra


Na época de Carroll, era uma curiosidade comum desejar saber o que aconteceria se alguém caísse
em um buraco que passe pelo centro da terra. Estudando sobre a travessia até o centro da terra feita
pela toca do coelho, percebe-se a referência feita à teoria de Galileu sobre a relação entre velocidade
e aceleração. Em alguns trechos nos quais ocorre queda livre, ele teria, de certa forma, antecipado a
“experiência de pensamento” em que Einstein usou um elevador imaginário em queda para explicar
certos aspectos da teoria da relatividade. As mudanças de tamanho sofridas por Alice também fazem
alusão ao princípio do telescópio, o qual fascinava Carroll imensamente. Estudiosos da obra de Lewis,
usando a teoria da relatividade, comparam o chá maluco, em que são sempre 6 horas, com a porção
do modelo do cosmo de De Sitter, em que o tempo permanece eternamente imóvel.

O sentido do nonsense
O nonsense de Carroll continha um elemento extra na formação do texto: a matemática. A obra de
Carroll foi constituída através de jogos de linguagem, baseados na Lógica, nos quais os capítulos só
terminam quando as proposições se esgotam. Carroll usou de seus conhecimentos matemáticos e
lógicos para construir proposições em Alice no País da Maravilhas, sendo muitas vezes o significado
particular da frase superado pela forma. Abstrações, (re)construções de imagens e da linguagem: é
justamente com essas características q ue Carroll trabalha. Para conseguir desconstruir a lógica do
mundo em que vivemos e poder construir uma outra “realidade” Lewis Carroll teve de inovar: criou
uma definição. A essa definição, de um novo mundo, chamou nonsense. Literalmente “sem sentido”,
“absurdo”. Lewis Carroll é o “pai do nonsense”. O País das Maravilhas é um lugar de absurdos, de
contrariedades, ilógico – fazendo questão de deixar claro que essas anormalidades só são
anormalidades do ponto de vista do leitor, da visão de quem não vive no País das Maravilhas.
Obviamente, a idéia do insólito já existia nas mentes humanas, porém, não possuía um “nome”, algo
que a fizesse tomar um lugar na abstração que é o nosso pensamento. Lewis Carroll foi o
responsável em dar “formato” para o que se denominou nonsense em literatura.

A Palavra-valise
Em Através do espelho, ao conversar com um grande ovo, a menina pergunta os significados de
algumas palavras estranhas, as quais foram encontradas em um poema – “sacalaxurgos”,
“miserágeis”, “esfregachugos” e “elasticojento”. Sobre esta última palavra, a personagem-ovo,
chamada Humpty Dumpty, declara: Bem, ‘elasticojento’ é uma mistura de elástico com nojento.
Elástico é o mesmo que ativo. Você entende, essa é uma palavra braquilógica, como se fosse uma
maleta em que você guarda ao mesmo tempo os artigos de toalete e uma muda de roupa íntima. Há
dois significados empacotados em uma palavra só.

Tais expressões não são palavras formadas por aglutinações ou justaposições, como “planalto”, ou
“couve-flor”. As palavras do poema, como explica Humpty Dumpty, são palavras-valise, espécies de
caixas que podem guardar significados absurdos, indo além da lógica lexical ou semântica. A
expressão palavra-valise ou portmanteau (do francês: porte/carregar + manteau/casaco)
17
normalmente é empregada para designar um aglomerado de palavras que se aglutinam em torno de
significados diversos. Entretanto, as interrogações de Alice parecem não ser bem respondidas pela
criatura Humpty Dumpty, o qual, em uma outra passagem do livro, explica: “(...) algumas palavras
têm muito mau gênio, percebe? Em particular os verbos; são eles os mais orgulhosos. Você pode
fazer o que quiser com os adjetivos, mas com os verbos... Todavia, eu consigo governar toda a
tropa!” Lembremos aqui que o autor Lewis Carroll construiu, em 1871, uma insólita narrativa, na qual
a menina adentra no mundo invertido do espelho, procurando sentido nas imagens e palavras que
encontra pelo seu caminho. O principal argumento que faz a trama ser desenvolvida está ancorado
nos diálogos que Alice tece com as personagens impossíveis de Carroll.

Alice e o problema do tamanho


As mudanças de tamanho mexem com o psicológico da personagem, levando-a a explorar suas
capacidades, enquanto impõe novas circunstâncias a cada capítulo, fazendo o romance progredir. O
problema do tamanho lida com o crescimento e os obstáculos encontrados no caminho para a
maturidade. A personagem busca se superar diante de cada obstáculo desenvolvendo a postura de
uma heroína, e nem mesmo a sua constante crise de identidade a impede de continuar questionando
e desejando mudar seu tamanho para ultrapassar portas e adentrar recintos novos.

2. Máquina-Alice
Análises interpretativas, fragmentos e reflexos do pensamento
contemporâneo
. A escrita é inseparável do devir (...) G. Deleuze

Proporcionar arte que se responsabilize por semear “terrenos férteis” à imaginação é quase uma
urgência. Buscar uma educação “q uestionadora” e crítica, é fundamental. Paulo Freire, em sua
Pedagogia do Oprimido (1987) constata que a essência da educação problematizadora é o diálogo. Só
podemos estimulá-lo através de uma conscientização crítica dos envolvidos. Para participar como
sujeitos do processo histórico, diz Freire, é preciso construir no cotidiano a práxis do homem (ação e
reflexão). O cotidiano re-inventado e diversificado é convite à re-invenção do mundo.

Procuramos tocar aqui em conceitos ligados, não somente a Carrol e Alice, mas também às
inquietações da arte contemporânea, de forma que estes pressupostos sobre significação da
linguagem possam levar o leitor-espectador a adquirir uma experiência poética transformadora.

A Educação sem Fim


A rigor em toda aprendizagem, antes do aluno há o artista. Assim a escola nunca teria gra us, nunca
teria fim. É preciso falar de uma escola que ainda não freqüentamos, mas que já está estabelecida há
muito tempo próxima de nós; ali, nos quintais, nas varandas do mundo, no meio-fio das calçadas, no
contato imediato com a melhor parte do humano que há em nós, mas ainda do lado de lá como no
espelho de Alice (Alice no Pais dos Espelhos). Talvez com toda razão de Alice, estamos tentando ver
18
pelo lado errado do espelho da vida, na medida em que "enxergamos" a cultura esquecemo-nos que
ela esta sendo constantemente sendo reinventada, exatamente porque as transformações devem
ser necessárias e freqüentes. O tempo cultural exige como premissa a transformação do estar-no-
mundo.

É nesse sentido que nos inclinamos a defender uma causa de educar, que seja e esteja engajada
perante outros fenômenos, aberta a outras linguagens sem perder a razão. Talvez abrir o conceito de
educar com todas as suas metáforas, permitindo exercer um aprendizado que venha do acordo que
sentimos quando esse poder é exercido enquanto ato espontâneo, tomando para si a parte mais
delicada do encargo educativo: o apelo não só a princípios e normas, mas também a sentimentos e
arte. O discurso sobre qualquer assunto educacional requer uma posição filosófica. Nesse caso, todo
professor, toda escola, toda beleza, e todo fenômeno lúdico impõem-se pela força do conceito, para
posteriormente se estabelecer como um dado operante. Essa condição prediz que filosofar não é
uma simples arte de formar, inventar ou de fabricar conceitos, pois devemos considerá-los
necessariamente formas de cultura, e não achados de gabinetes ou produtos mercadológicos.

Guatarri (1986:55) aponta: “um processo de singularização da subjetividade pode ganhar uma
imensa importância, exatamente como um grande poeta, um grande músico ou um pintor, que, com
suas visões singulares da escrita, da música ou da pintura, podem desencadear uma mutação nos
sistemas coletivos de escuta e de visão.”

O paradoxo em Lewis Carroll


Era uma vez uma coincidência que saiu a passeio em companhia de um pequeno acidente. Enquanto
passeavam encontraram uma explicação, uma velha explicação, tão velha que já estava toda encurvada
e encarquilhada, que mais parecia uma charada.

O que é um “paradoxo”?

J. F. Mora, em seu Dicionário de filosofia (Bittencourt, 1994; Mora, 1982), responde:

Etimologicamente paradoxo significa contrário à opinião (doxa), isto é, contrário à opinião recebida e
comum. O paradoxo maravilha porque, propondo-se a ser como se diz que é, parece assombroso na
medida em que diferencia do senso comum ou do “bom senso”, que é o que afirma um sentido
determinável em todas as coisas. O paradoxo, ao contrário, vai contra o senso comum, e afirma a
existência dos dois senti dos ao mesmo tempo.

Estabelecida, em princípio, uma definição do termo, podemos seguir adiante. Será interessante,
acredito, rastrear a questão do “paradoxo”, desde a sua origem até sua influência na cultura inglesa
deste século e no pensamento psicanalítico de Donald Winnicott, com o auxílio de Gilles Deleuze
(Deleuze, 1969) em seu fundamental livro Lógica do sentido (Deleuze, 1969) especialmente no
prólogo “De lewis Carroll aos estóicos”, onde ele escreve:

(...) o lugar privilegiado de Lewis Carroll provém do fato de que ele faz a primeira grande conta, a
primeira grande encenação dos paradoxos do sentido, ora recolhendo-os, ora renovando-os, ora
inventando-os, ora preparando-os. O lugar privilegiado dos Estóicos provém de que foram iniciadores de
uma nova imagem do filósofo, em ruptura com os pré-socráticos, com o socratismo e o platonismo; e
esta nova imagem já está estreitamente ligada à constituição paradoxal da teoria do sentido...este livro
19
é um anseio de romance lógico e psicanalítico.

Assim é, então, que podemos falar deste personagem paradoxal em si mesmo, Lewis Carroll.

O paradoxo é o eixo central do “comentário mais ambicioso, do ponto de vista teórico, sobre a obra
de Carroll, que é do filósofo Gilles Deleuze”, comenta Sebastião de Uchoa Leite (Leite, 1980), que
escreve por sua vez:

Deleuze concede a Carroll o lugar privilegiado de ter feito a primeira mise em scène dos paradoxos do
sentido na literatura, de ser o inventor da literatura de superfície, pois através do paradoxo se destitui a
profundida de e as coisas se mostram na superfície. O humor é esta arte de superfície, contra a velha
ironia, arte das profundidades e das alturas. Por isso Carroll, elegendo o paradoxo como sua arte básica,
é o autor da supe rfície, como os estóicos foram os filósofos da superfície, também eles adeptos dos
paradoxos. Ao contrári o do senso comum que afirma um sentido único, o paradoxo afirma dois sentidos
ao mesmo tempo. Daí que as inversões/reversões de Alice (na ordem do tempo, reversões de
proposições, reversões de causa e efeito, etc.) surgem como um paradoxo da identidade infinita e
conduzem à contestação da identidade pessoal de Alice, tema que atravessa suas aventuras. Segundo
Deleuze, a descida de Alice nas profundidades do poço dá lugar a movimentos laterais de expansão, a
profundida de se faz superfície, os animais dão lugar às figuras de carta, sem espessura. Não há
aventuras de Alice, diz Deleuze, mas uma aventura: sua ascensão à superfície (por isso, crê o filósofo,
duvidosamente, desistiu de do título inicial da obra Alice´s adventures under ground ). A obra de Carroll
joga permanentemente com a dualidade dos sentidos, com a proliferação indefinida dos mesmos, com a
criação de jogos sem regras definidas e contraditórias entre si, etc. O não sentido na filosofia do absurdo
se opõe à ausência de sentido, produzindo um excesso de sentido. É o que Deleuze entende por non-
sense identificando-o, portanto, ao para doxo...

Imagem, mito e narrativa


Gostaríamos de começar lembrando a etimologia de imagem: imago, forma contrata de imitago -
imitare que pode ter o sentido de “reproduzir ou tentar reproduzir fielmente algo, procurar
reproduzir o estilo, inspirar-se em, copiar”, como “produzir com a intenção de passar a cópia por
verdadeira, falsificar, plagiar, ter a falsa aparência de, assemelhar-se a”, ou seja, tanto traduzir com
fidelidade, quanto simular, copiar, parodiar, etc. É importante perceber esse caráter dúplice de
imitar: é, ao mesmo tempo, reproduzir fielmente e falsificar, parodiar.
No mito de Narciso se interconectam os temas da visão, da repetição, da imagem, do reflexo, mas
também de uma certa desmesura. Narciso era o amante e o objeto amado. A imagem também é
sempre segunda (“imagens são superfícies que pretendem representar algo” Vilém Flusser). E essa
obsessão pelo duplo é o que opõe, por exemplo, a tradição metafísica que se funda no um, na
unidade, na identidade, a um pensamento do múltiplo, que se funda na diferença, no corpo, no
rastro imotivado, no rizoma.
Enquanto olha sua própria imagem, Dionisos-Zagreu é despedaçado pelos Titãs e devorado.
Com o corpo destruído, o deus das transformações está pronto para a série infinita de
reencarnações. Narciso é dessa linhagem.
Vale lembrar ainda o Estádio do espelho, texto que dá conta da concepção de Lacan sobre a
constituição do ‘eu’; texto, aliás, umbilicalmente ligado às reflexões de Freud sobre o
Narcisismo (Sobre o narcisismo: uma introdução, de 1914). As conseqüências de uma tal
investigação são a destruição de uma idéia de essência humana, de um centro primordial, de

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uma natureza divina, e a elaboração do sujeito enquanto vazio, cheio de ficção, ou seja, o
sujeito não é apenas a consciência do cogito cartesiano, é também o inconsciente, o corpo, é
múltiplo como Fernando Pessoa que chegou a ser 72, sendo quatro deles grandes poetas, ou
Mário de Andrade que era 350, ou o Dionisos dos gregos. Para concluir, há também as
estórias de Machado e Guimarães, ambas intituladas “O espelho”, essa superfície polida que
reflete a luz que incide sobre si, objeto mágico, ligado à série que iniciamos com imagem e
que se desdobra nos espectros, nos fantasmas, no simulacro, etc. O espelho povoa a
literatura: basta lembrar aqui duas narrativas, a de Branca de Neve (Sneewittchen), história
recolhida pelos irmãos Grimm, e Alice no país das maravilhas e Alice através do espelho, de
Lewis Carrol, um matemático que adorava fotografar meninas em poses sensuais.
Poderíamos ler aqui dois problemas: a questão da representação e a da essência do ‘eu’, ou
seja, da ontologia desenvolvida pela metafísica ocidental.

Ser-Espelho
Espelhos: com saber ninguém descreveu ainda:
o que sois em essência.
Rilke

Que é isso, um espelho? A pergunta esfíngica nos desafia e ameaça. O espelho, metáfora para o que
faz a reflexão? Ou a “reflexão” é que é metáfora para o que faz o espelho? O que é re-fletir? O
dobrar-se sobre si mesmo, “quebrar para dentro”, um tipo de olhar que deixa de procurar “lá fora”
(no “mundo exterior”) o que só pode ser encontrado “aqui dentro” (no “mundo interior”), quando
me encontro com uma imagem única e especial, a imagem de “mim mesmo” – mas trata-se de uma
imagem que “o mundo me dá” ou de uma que “eu mesmo faço”? O entender a si mesmo em seu
próprio trabalho – tanto no trabalho de ler como no trabalho de escrever: o livro é um espelho.
Espelho que reflete o pensamento: mas o do escritor e/ou o do leitor? Que imagem de mim mesmo,
em último caso, este livro/espelho me devolve? Não dizemos que um texto é bem escrito quando
consegue refletir exatamente o pensamento do autor (quando há algum)? E que um pensamento é
verdadeiro apenas quando ele efetivamente reflete a realidade, de algum modo? Isto é, quando
consegue espelhar a vida – tal como ela é; mas: a vida efetivamente vivida ou o ainda-não-vivido da
vida?

O espelho me dá meu duplo – mas é só a casca, mera aparência exterior: o espelho não tem
“profundidade”, como todos podem notar, ele não é mais que pura superfície, em sua fina e estreita
bi dimensionalidade. Seja côncavo ou convexo, tudo continua sendo apenas “dobra” (plie) da
superfície. A imagem no espelho não sou “eu” (je), é uma cópia, cópia da cópia que eu (moi),
enquanto o tal e tal, devo ser de “mim mesmo”. “Onde está meu verdadeiro éthos?”, perguntava
Aristóteles. Como eu seria se eu fosse “eu mesmo”? Reflito. Pondero. Imagino. É tudo espelho; e
tudo espelho.
Queremos sempre saber o que há “por trás” dos espelhos (das palavras, dos olhos, do tempo, dos
véus dos fenômenos, dos véus celestes). Aprisionados, num infernal jogo de espelhos. O texto é um
espelho, através do qual procuro “o pensamento” do autor (quando há algum), e o que me interessa
nesse pensamento não é de modo algum o “eu profundo” do autor ele mesmo, mas sim o modo
como ele retrata, figura, reflete, representa, ou seja, espelha, a realidade, o mundo. O meu mundo.
Procuro o (meu) mundo no pensamento (alheio); e esse pensamento, tenho de procurá-lo na
linguagem usada para expressá-lo. Mas no mundo o que procuro é sempre a mim mesmo. E aí o
labirinto de espelhos parece fechar-se sobre si próprio.
21
Um livro é um espelho. Literatura como espelho. Filosofia como espelho. Linguagem como espelho
(de mim/do mundo). As muitas imagens de mim que um espelho me dá e “a” imagem de mim que
todos os espelhos me dão. Ou pior: as imagens que nossa linguagem nos impõe. Witt-genstein: “Uma
imagem nos mantinha presos. E não pudemos dela sair, pois residia em nossa linguagem, que parecia
repeti-la para nós inexoravelmente”.

Tempo, performação e co-presença


É preciso estar atento nesse contexto para as “dramaturgias” do tempo real apontadas pelos
reality shows e performances em rede, que surgem entre a encenação e o acontecimento, como
experiência diferencial de tempo e espaço. Os dispositivos de criação de co-presença e co-
realidades, estou aqui e lá, propiciados pelas web-cams e dispositivos de tele presença, abrem um
campo vastíssimo para estéticas e dramaturgias on-line, ou melhor cenas e situações virtuais,
ambientes de co-presença que provocam distúrbios perceptivos. “Johannes Birringer nomeia novos
espaços de performação, intensamente alimentados por dados --em tempo real—que colocam os
performers e a audiência em espaços simulados de improviso e presentificação. As telas digitais, de
cristal líquido, os espaços da cave, os artistas plugados e sintonizados na rede , passam a substituir
os espaços materializados das Artes Plásticas.”

As salas de instalações são amplificadas para se conectarem a espaços vivos produzidos pela
tele-presença, numa ficcionalização do presente e do espaço, que produz o tempo real da cena e da
experiência compartilhada. Quais as qualidades desse “tempo real”? Tempo produtor de
experiências e imagens fluídas, que estão sempre passando, abertas ao acaso e ao acontecimento,
mas também passíveis de controle e monitoramento. Temos uma percepção exacerbada da
experiência da simultaneidade. A possibilidade técnica da experiência de um continum espaço-
temporal, por blocos de espaço e tempo, que d uplicam o aqui e agora. Eu estou aqui nesse quarto,
mas posso me conectar, posso consumir, posso me instalar com certa facilidade em outros
ambientes. A câmera de vigilância e web-cam são a forma mais simples de experimentar isso, o
consumo de ambientes simultâneos através de câmeras e canais abertos, não mais como simples
janelas, mas como espaços de visualização e ação nesse mundo ampliado, em um presente dilatado.

Teorias dos Dispositivos


A retomada da teoria dos dispositivos, formulada nos anos 70, e revista em novos termos, é usada na
análise de inúmeras obras que vêm problematizar a projeção e a percepção clássicas, criando outra
relação com o espectador interator e distintas experiências de espaço e tempo.
No campo da arte, foi Jean Louis Baudry, um teórico do cinema, quem disseminou o conceito
de dispositivo, no ensaio intitulado Le Dispositif (1975) que tratava da teoria do espectador
cinematográfico. Pensar o cinema como dispositivo significava apontar as características que
regulam a relação do espectador com a obra, relações mentais, relações espaciais, temporais.
O dispositivo não se reduzindo ao aparato técnico e colocando em operação um modelo
mental. A sala de projeção cinematográfica, segundo Baudry funcionou a partir do mesmo modelo da
Câmara Escura, origem da fotografia, dispositivo que evitava que o observador percebesse sua
posição como parte da representação.

22
Para Jonhatan Crary 2, esse tipo de dispositivo separa o ato da visão do corpo físico do
observador, as sensações do observador sendo desqualificadas diante de verdades pré-
estabelecidas, certezas da razão e um mundo verdadeiro. Como na alegoria da Caverna de Platão, a
câmara escura e depois a sala de cinema configurou a experiência do espectador clássico,
introspectivo, distanciado e com autonomia frente ao mundo exterior 3. Dispositivo a serviço da
perspectiva clássica, marcado pelo voyerismo, pela pulsão escópica e pela produção de um certo
imaginário.

Essa teoria do dispositivo, formulada originalmente nos anos 70 no contexto da discussão entre
cinema e psicanálise e teorias do estruturalismo migrou para outros contextos e recebeu diferentes
formulações, como na teoria da “caixa preta” de Vilem Flusser 4, na descrição do filme-dispositivo
proposto por Jean-Louis Comolli, dentro da conceituação do cinema-verité, na formulação de Anne
Marie Duguet sobre os dispositivos na videoarte (presente nas obras de artistas tão diversos quanto
Nan June Paik, Bruce Naumann, Bill Viola, Antoni Muntadas, etc.) e de forma mais ampla no
pensamento de Michel Foucault e Gilles Deleuze, além de outros autores de campos muito diversos.

Se na arte conceitual “a idéia é o motor da obra”, em algumas obras e proposições


contemporâneas, o dispositivo é o disparador ou o condicionador de narrativas e sensações.
A todo instante somos demandados como performers e atores. Que personagem viver? Somos
demandados a observar e cuidar de nossa performance social, privada, a viver identidades prontas
mas também experimentar que “eu sou um outro”, oscilações e demandas paradoxais que
denunciam o lugar vazio do sujeito, a preencher. Quem sou eu, não está dado, estou me
performando.
Os dispositivos explicitam configurações sociais e relações assimétricas. Podemos sublinhar duas
dinâmicas complementares na constituição das estéticas da comunicação ou da chamada mídia-arte.
De um lado o devir midiático das artes, quando a arte contemporânea se apropria dos meios e
dispositivos para extrair deles seu potencial estético, incorporando ou subvertendo-os em
proposições artísticas (instalações, performações, ambientes multisensorias, etc.). De outro, um
devir estético das mídias, com a desterritorialização e circulação das imagens, que migram para os
mais diferentes suportes, criando um cinema- mundo ou mídia-mundo.

2
CRARY, Jonhatan. Techniques of the Observer, On vision and modernity
in the Nineteenth Century. Cambridge Mas., MIT, 1996
3
Tema desenvolvido em Percepção e Verdade:da filosofia ao cinema, Ivana Bentes. Dissertação de mestrado defendida na
Escola de Comunicação da UFRJ. 1994
4
FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma Filosofia da Fotografia.
Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002.
23
O pensamento em torno dos dispositivos dá visibilidade aos elementos estruturantes das obras, sua
relação com o espaço, a forma como mobiliza o corpo do participador, os modelos mentais que
conjura, tornando-se ao mesmo tempo objeto e discurso.

A comunicação interpessoal mediada por Tecnologia

Turkle nos fala da Identidade na Cultura da Simulação. A presença do computador e a sua utilização,
ou os diversos modos de utilização, são fatores de reformulação da Identidade do homem e da
máquina: o contato com a tecnologia e os paradigmas tecnológicos têm influenciado a definição do
que é humano e das suas características fundamentais, i.e. as características que definem o ser
humano enquanto tal (Wilson, 2002). Diferentes pessoas estabelecem formas diferentes de relação
com o computador dando diversos significados e sentidos ao objeto.
Segundo Turkle, este pode ser encarado numa das três hipóteses: ferramenta, espelho, porta para o
outro lado do espelho. Cada uma das três posições perante o computador gera nos indivíduos um
sentimento que mistura uma visão moderna e pós-moderna, as quais se relacionam,
respectivamente, com uma idéia mecânica e de cálculo e uma idéia fragmentada e de simulação. No
caso do computador ser encarado como ferramenta, o indivíduo distingue-o de si como algo
estranho, oposto, sublinhando aquilo que de mais específico o ser humano tem (e que o afasta das
máquinas); no caso de espelho, o indivíduo aproxima-o de si, relacionando-se com ele como um igual,
ou quase, do gênero de relação que se estabelece com um confidente ou uma companhia, o que está
na origem de desenvolvimentos tecnológicos ao nível de amigos ou companhias robóticas. Um
aspecto essencial das reflexões de Turkle é considerar a tecnologia como possibilitadora do
anonimato e da construção de uma nova Identidade: a cultura do computador (que de seguida se
denominará da simulação), da qual a Internet é parte fundamental, proporciona uma flexibilidade
identitária com hipótese de alternância de identidades ou, simplesmente através do anonimato,
permite ao indivíduo expressar-se mais livremente. Aqui o anonimato é visto como estado libertador
do sujeito - os indivíduos deixam de estar sujeitos à pressão da representação física, que por vezes
não coincide com a sua auto-representação.
O nome “Cultura da Simulação”, adotado por Turkle, surge porque a manipulação do computador e
do que ele envolve (Internet, Ciberespaço, RV, etc.) implica trabalhar com hipóteses simuladas: tanto
de ações e representações de objetos no ecrã –do ambiente de trabalho às manipulações a texto e
imagem permitidas por software; como de representações de identidades– caso dos MUD (Multi-
User Dungeons), espaços virtuais sociais onde os utilizadores se encontram e interagem
virtualmente. A cultura da simulação oferece a possibilidade de uma “visão de uma Identidade
múltipla mas integradora”, elástica nas inúmeras hipóteses de personalidades e de representações
do “eu”, que se podem criar e viver como uma espécie de alter-ego, heterônimos ou apenas
fantasias, fornecendo oportunidades de auto-expressão (Turkle, 1997).
Vidas reais distinguem-se das virtuais mas ambas podem coexistir: um indivíduo pode ter mais
do que uma personalidade em simultâneo. A relação da vida real com a virtual pode ser encarada
com diferentes graus de fusão, podem mesmo ser estanques uma da outra, ser antagônicas, ou
haver uma linha sequencial entre uma e outra. E, na construção das personalidades, a representação
de gênero, tipo e até espécie abre todas as possibilidades. Nos contextos virtuais gerados pelo
computador, nas redes ou comunidades, milhares de utilizadores partilham experiências,
sentimentos e sensações, constroem-se mesmo relações. Geram um mundo em tudo semelhante ao
real, mas com outro tipo de possibilidades, nomeadamente onde existe uma maior flexibilidade de
existências e outras (menores) consequências das ações. Podendo existir o aliciamento do divórcio
do real, o que representaria um perigo, uma espécie de alheamento da existência para uma vida
virtual que obedece a outras regras, o mais comum é uma vivência a dois ou mais níveis (de real e
24
virtual). Turkie nos esclarece sobre a importância de manutenção da dimensão emocional na
comunicação interpessoal.

O hyperespaço dos heterônimos


No caso das estéticas interativas, Alice e os seus avatares, os «interfaces», são a solução. Ou seja, a
experiência contemporânea e o rápido desenvolvimento da Internet e das tecnologias da informação
tem vindo a demonstrar a necessidade de análise do efeito dessa interatividade e da construção
(mediada) dos «interfaces», associada à construção da realidade virtual e da vertigem da simulação
do sujeito maquínico. Objetivamente, e dentro duma tradição do pensamento que remonta à
caverna platônica, se o Espelho de Alice e os heterônimos pessoanos são a continuidade
(interseccionista) de um «fora» e de um «dentro»; então, a mimetologia tecnológica, ao impor uma
figura única e aparentemente neutra (a da interatividade) e, consequentemente, uma fusão, desloca
essa constante reversibilidade para um ininterrupto stream of consciousness colectivo (ciberespaço,
«aldeia global»), num fluir constante de imagens.

Um ponto que importa refletir diz respeito à criação heteronímica em relação com o problema da
constituição do sujeito (de discurso). Neste contexto, teremos de dar resposta às seguintes
questões: O que é cada um dos heterônimos, um autor? Um personagem virtual? Uma figura da
Consciência? Um lugar (tópos) em que a Obra acontece? Um dispositivo de linguagem? Ou a estas
outras, paradigmáticas da modernidade literária: O que deu origem à gênese da obra? Qual o
conteúdo a atribuir a conceitos tão díspares quanto «escorregadios» como os de inventividade,
sinceridade,
fingimento, virtualidade, simulacro, simulação, etc.? Como escreveu Deleuze, «a linguagem é ela
própria um duplo último que exprime todos os duplos, o maior simulacro».

Numa palavra, estas figuras-dispositivo não podem ser retiradas do contexto de referência
(simbolicamente significativa) que as produziu e que, ao longo das nossas investigações, temos
vindo a designar por «quadratura do círculo heteronímico», isto por pensarmos serem elas como que
átomos de uma mesma molécula (ou, se se preferir, multiplicidades virtuais) que se integram.

Dissemos que cada um dos heterônimos é uma figura-dispositivo. Mas, que entender por
dispositivo? Ouçamos Deleuze acerca desta noção foucaultiana: [Um dispositivo] é antes de mais
uma meada, um conjunto multilinear, composto por linhas de natureza diferente. (…) Desenredar as
linhas de um dispositivo, em cada caso, é construir um mapa, cartografar, percorrer terras
desconhecidas, é o que ele [Foucault] chama ‘trabalho no terreno’ É preciso instalarmo-nos sobre as
próprias linhas; estas não se detêm apenas na composição de um dispositivo, mas atravessam-no,
conduzem-no, do norte ao sul, de este a oeste, em diagonal

A heteronímia é, assim, uma máquina de produzir multiplicidades e virtualidades.

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