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1- Introdução: o comunismo como problema filosófico

Para compreender o que seja o comunismo enquanto problema da Filosofia


contemporânea talvez seja útil começar por analisar o solo em que nascem as
ideias que se reivindicam desta perspectiva. Assim, serão apresentadas
algumas das novas circunstâncias que permitiram uma reconstituição, em
moldes diferentes das gerações anteriores, do comunismo como problema
filosófico. São, no fundo, dimensões interligadas apenas separadas para
facilitar esta análise.

A primeira destas circunstâncias é obviamente o facto de ter escapado à


declaração de óbito que, tanto em Filosofia como na política “concreta”, lhe foi
feita. Se assim não fosse, o comunismo seria uma página acabada da história
da Filosofia. Mas o facto é que, desmentindo os seus vários coveiros, o
comunismo continua a mobilizar inteligências, a reinventar-se como conceito e
a condensar esperanças. Como problema filosófico, o comunismo está vivo.
A segunda destas circunstâncias ajuda a compreender melhor a dimensão
desta nova vida. Parte do novo comunismo filosófico vive hoje em dia na forma
de uma autêntica moda filosófica: produzindo best-sellers e dando lugar a
debates com plateias a transbordar, criando ídolos mediáticos e polémicas
seguidas atentamente e replicadas por milhares de agentes sociais. Como
problema filosófico, o comunismo vive num debate intenso.
E é esta mesma circunstância que, de um outro ponto de vista, poderá ser
encarada como uma dificuldade. Isto porque a forma “moda” implica tanto de
popularidade como de efemeridade. A moda implica uma novidade permanente
e um apelo mediático forte feito de frases feitas para fazer efeito. No ritmo
rápido da moda pouco se aprofunda antes que o olhar se volte para outro lado.
E, para além do mais, esta forma implica uma captura pelo sistema de poder
vigente. As modas são também o mercado. Neste caso, o mercado de ideias.
Suprema ironia capitalista: porque o comunismo também vende no mercado
das ideias, em vez de censurá-lo, há que aproveitar enquanto dura na certeza
de que cairá brevemente sob o peso de uma novidade de embalagem mais
cativante segundo o espírito dos tempos. Como problema filosófico, o
comunismo será problema filosófico se conseguir ser mais do que um moda.

Carlos Carujo Página 1 Setembro de 09


Este apelo da moda não virá apenas do refinamento das propostas filosóficas
neo-comunistas calibradas na linguagem mais avançada da Filosofia
contemporânea, nem apenas da conjuntura teórica de enfraquecimento dos
paradigmas concorrentes. Mas há que ter em conta que, por exemplo, os
relativismos pós-modernos mais agressivos em que parte da esquerda
filosófica se tinha refugiado entraram em crise: a narrativa da ausência de
grandes narrativas entrou em declínio mas deixou marcas na forma de
problematizar de alguns destes filósofos comunistas que recusam um
programa máximo.
Mas talvez seja da teimosia da realidade que venha afinal o maior apelo da
moda: a crise do capitalismo colocou na ordem do dia a discussão e fez
entrar o discurso do neo-liberalismo numa crise aguda de hegemonia. Se esta
crise fez virar para o comunismo muitos olhares esfomeados de imediatismo,
também é verdade que as realidades do capitalismo como a exploração do
trabalho e a alienação são tão profundas que estão por definição para além da
última moda. Problematizando mais uma vez o mesmo: o que dirá o facto de se
ter constituído como moda um pensamento que tem inerente uma denúncia da
moda enquanto modo da realidade aparecer no capitalismo face à desigual
dureza do próprio sistema económico vigente? O comunismo como problema
filosófico não é apenas a moda desta crise mas é a possibilidade de pensar o
capitalismo e para além dele.
E ser mais do que moda implica também que não esteja enraizado apenas
numa forma de subjectivação reactiva. O comunismo será uma moda menor se
for uma peça de pronto-a-vestir talhada para uma certa forma conformista de
ser ou para uma forma fácil de ser inconformista. Neste sentido, o novo/velho
problema filosófico chamado comunismo não sobreviverá às provas do tempo
se for apenas um discurso de universitários que tentam reescrever a sua
biografia através de uma elaborada racionalização desculpabilizante do seu
passado militante seguido avidamente por jovens contestatários à procura de
novas e brilhantes ideias que lhes permitam também uma racionalização
conveniente e tranquilizadora da sua rebeldia adolescente. Como problema
filosófico, o comunismo deverá ser mais do que uma subjectivação linear e não
criativa.

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Outra circunstância na qual o comunismo se constitui na actualidade como
problema filosófico liga-se intimamente à primeira apresentada. Sendo que este
conceito não poderia ser um problema filosófico actual se fosse meramente
assunto passado da história das ideias, também não pode ser um problema
filosófico se for um debate histórico sobre uma realidade política
acabada. Claro que quem se dê por tarefa criar um novo conceito de
comunismo ou aprofundar criticamente os já existentes precisará de ter um
balanço do “socialismo realmente existente” e das razões da sua falência.
Será, do ponto de vista político, muito importante fazer este debate e o
contributo das filosofias não será desprezável mas um problema filosófico não
pode viver só do jogo de interpretações contrastantes da história. Mais, é
porque a realidade política afastou esse problema do centro dos debates sobre
o comunismo, porque há uma esmagadora maioria de críticas de vários
matizes e porque os balanços apologéticos são minoritários, que o comunismo
pôde ir além desta querela histórica. Como problema filosófico, o comunismo
tem a sua história mas não é debate histórico.
E isto leva-nos à quarta circunstância que marca este debate actual. O
comunismo é hoje um conceito mais em aberto, mais indefinido, diriam
alguns, com a herança mais disputada. Antes da queda do socialismo real,
grande parte daquilo que o conceito significava estava além da possibilidade de
discussão. Existia um largo consenso sobre o sentido da palavra e, de um lado
da barricada, existia a teoria filosófica oficial do comunismo, um diamat
profundo, que atravessava até os comunismos mais heterodoxos. Este
fechamento estratégico colocava dificuldades extremas a quem se quisesse
situar no interior da esfera do comunismo mas quisesse ir um pouco mais além
do que fazia o materialismo diálectico engelsiano-hegeliano vigente.
Do outro lado da barricada existia uma coligação de esforços cegos e raivosos
para ligar o comunismo às práticas estalinistas, criminalizando a própria
possibilidade de o pensar. Aliás, tanto o fechamento do lado comunista como a
sua criminalização por parte dos seus inimigos jurados assentava na realidade
dos blocos políticos realmente existentes. Isto levava a uma espécie de
“campismo” por parte de muitos dos filósofos comunistas: dever-se-ia cerrar
fileiras contra o inimigo e silenciar críticas mais profundas. Quem não as

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silenciou, experimentou sempre a acusação de dar trunfos ao inimigo em
tempo de guerra, de “objectivamente” ajudar o outro lado.
Tendo desaparecido o consenso profundo que se ancorava na situação política
do século passado, desaparecendo muitas das fidelidades caninas que
suscitava (sem que esta expressão tenha necessariamente conotação positiva
ou negativa), o caminho está aberto para que venham à baila diferentes ideias
do que se seja o comunismo, com diferentes graus de adesão, com
modalidades diferencias de ligação à prática. Hoje, como problema filosófico, o
comunismo é um conceito não fechado.
O que mais uma vez nos remete para outra circunstância, ou melhor para outra
consequência desta mesma circunstância: é porque não é nome de uma
facção política única nacional e internacionalmente definida que o comunismo
pode ser um conceito tão abrangente. E, para além dos aspectos que já foram
referidos, isto leva a uma relação diferente com a prática política. Assim, não
estamos agora, geralmente, perante pensadores directamente engajados num
partido e submetidos ao seu centralismo democrático, ditando a partir da
filosofia as regras do jogo que outros terão de seguir ou sofrendo ao praticar
filosofia enquanto membro do partido as regras do jogo ditadas por outros.
Escrito por outras palavras, a figura “oficial” do filósofo comunista desvaneceu-
se e o “filósofo comunista” já não é o camarada que se outorga uma autoridade
ortodoxa feita de palavras esdrúxulas nem o distante companheiro de
caminhada que vive na torre de marfim académica pensando coisas afastadas
da realidade mas pelo menos pronto para dar a sua solidária em tantas causas.
As novas circunstâncias permitem aos filósofos comunistas, ou melhor àqueles
de entre eles que assim o queiram, todo um outro papel relativamente à prática
e toda uma outra ousadia relativamente à possibilidade de estabelecer
programas políticos definidos já não a partir das necessidades políticas
colectivas do partido mas agora inteiramente a partir da própria estrutura do
seu pensamento filosófico. Como problema filosófico, o comunismo não é
propriedade de um partido o que só o responsabiliza mais enquanto
pensamento com implicações concretas.
A sexta circunstância nasce daí: não sendo linha oficial de partido, o novo
pensamento filosófico comunista não deixa de nascer de e de implicar
militâncias. Pela própria natureza da ideia comunista, o comunismo

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meramente académico não faz sentido. Enquanto conceito político o
comunismo filosófico será sempre estratégico ou táctico, pensará sempre um
sujeito revolucionário, apontará sempre exigências práticas. E, como forma de
militância transformadora da realidade o novo comunismo filosófico procura
responder à nova realidade das militâncias políticas com a bagagem da
filosofia. Uma nova realidade que se define pela negativa como uma militância
não pertencente à esfera partidária e que se define pela positiva quer pelas
suas causas, do ecosocialismo, ao feminismo, ao movimento alterglobalização,
quer pelas novas formas de reivindicação que diferenciam as novas gerações
militantes. Como problema filosófico, o comunismo procura responder à
militância actual.
Claro que, ao utilizar esta bagagem filosófica como material preferencial, estes
pensadores correm sempre o risco de não ser compreendidos ou de parecer
procurar apenas revestir uma militância já pronta com um vocabulário que a
justifique. E apesar parte desta militância procurar uma filosofia globalizante
que se constitua como narrativa integradora das várias lutas sociais “anti-
capitalistas”, todos estes agentes sociais escrutinarão necessária e
criticamente, muitas vezes de um ponto de vista não-filosófico, o seu trabalho
confrontando-o com as suas práticas, expectativas e programas. Se não é
filosofia de partido, esta nova filosofia comunista também não pode ser filosofia
de cátedra uma vez que as suas ideias, propostas práticas e estratégias terão
de sobreviver fora do meio protegido onde foram criadas. E a dureza da crítica
a que são sempre submetidas será talvez uma boa ferramenta que estes
pensadores têm ao seu dispor para se auto-corrigirem. Isto porque, como
problema filosófico, o comunismo não faz da filosofia um argumento de
autoridade.

Ao salientar a existência de novas circunstâncias para pensar o comunismo


arriscamo-nos parecer negligenciar as divergências e debates anteriores
através de procedimentos discursivos redutores.
Convém pois esclarecer que não se tratam de blocos monolíticos (novo e velho
comunismo) nem aqui interessa fazer a sua valoração simplificada (sendo
assim um bom e o outro mau). Desta forma, não se pretende fazer a apologia
dos novos comunismos mas apenas traçar muito genericamente um roteiro de

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alguns dos pontos de ancoragem do seu pensamento. Não se pretende
também fazer a crítica negativista ou redutora do passado rico da tradição do
pensamento comunista. Não será necessário lembrar que mesmo o chamado
materialismo dialéctico, a versão marxista-hegeliana do pensamento de Marx,
encaixou, mais fácil ou dificilmente, vários pontos de vista filosóficos: desde o
Marx kantiano, ao Marx espinozista, ao Marx da Filosofia analítica etc. Marx
teve já várias vidas filosóficas.
Por outro lado, também não se pode ser simplista ao de dizer que as críticas ao
marxismo que tentam descobrir outras vias comunistas sejam um achado
contemporâneo. Foi mesmo a obsessão profunda de muitos dos filósofos de
esquerda depois de Marx: ultrapassá-lo.

Esta resenha tem um intuito sobretudo informativo apesar de não conseguir


escapar à tentação de misturar algum comentário às ideias dos autores.
Apesar disso, nasceu de um conjunto de perguntas que vão mais além no
sentido de uma avaliação deste fenómeno. Se uma breve resposta pode ser
encontrada na conclusão, fica ao leitor o trabalho de concluir de forma mais
efectiva…
Estas perguntas são as seguintes:

Que comunismo é este que regressa e se pretende para além das experiências
do socialismo real e mesmo muitas vezes para além de Marx? Será este
regresso conjuntural, fenómeno de moda, jogo de palavras, sem inscrição nas
dinâmicas reais massivas e profundas? O facto de ser moda significa que este
comunismo se adaptou e se tornou num comunismo light para consumo rápido
de uma minoria intelectual ou significa uma vitória manhosa que ilude que
vence a lógica mediática no seu próprio jogo criando sementes de rebeldia?
Será moda porque consegue responder aos anseios de um conjunto alargado
de militantes sociais órfãos de uma utopia e à procura de um aggiornamento
unificador e mobilizador? De que forma marcará este fenómeno a realidade
política?

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