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De Leonardo Moreira
Personagens:
Ator
Atriz
Outra atriz
Observações:
1
...
I. O ATOR
Ator -
Atriz -
Outra -
Atriz -
Outra -
Melhor assim.
Atriz -
Outra -
2
...
Silêncio
Atriz -
Outra -
O quê?
Atriz -
Outra -
Atriz -
Isso.
Outra -
Isso, o quê?
Atriz -
Outra -
Atriz -
Outra -
3
...
Atriz -
Outra -
Continuamos a encenação?
Atriz -
Sempre.
Silêncio
Outra -
Atriz -
Outra -
Atriz -
Outra -
Atriz -
Outra -
Atriz -
Tive.
4
...
Outra -
Atriz -
Outra -
Atriz -
Não.
Outra -
Atriz -
Outra -
Atriz -
Outra -
Atriz -
5
...
Outra -
Bebe.
Atriz -
Silêncio.
Atriz -
Outra -
Atriz -
Outra -
Atriz -
Outra -
Atriz -
Outra -
Atriz -
Não?
6
...
Outra -
Não.
Atriz -
Outra -
Me dá a arma.
Atriz -
Pra quê?
Outra -
Atriz -
Outra -
Eu não quero que ele sofra: matar um cavalo com a pata quebrada.
Outra -
III. A ATRIZ
Atriz-
7
...
8
...
9
...
10
...
mais carro nem dinheiro pra sustentar essas cadelas. E então ele
me disse que estava apaixonado. Eu perguntei quem era ela e se
era porque eu fiquei gorda. Ele não disse nada, só mastigou o último
pedaço bem devagar. Eu quis tanto encher um balão ali, naquela
hora, porque então eu não ia duvidar de que alguma coisa podia ser
mais insignificante que eu.
Ator -
Corta.
Atriz -
Ator -
Atriz -
Ator -
Atriz -
Ator -
11
...
Atriz -
Ator -
Atriz -
Ator -
Atriz -
Ator -
Atriz -
Ator -
Ficção. Minha vez: Adão e Eva estão no paraíso. Eva lhe oferece o
pecado original, que é uma maçã. Deus os expulsa do paraíso.
Atriz -
12
...
Ator -
Ficção.
Atriz -
Ator -
Atriz -
Ficção.
Ator -
Verdade.
Silêncio.
Atriz -
Ator -
Atriz -
Quem é ela?
Ator -
Atriz -
13
...
Ator -
Silêncio
Atriz -
Ator -
Talvez.
Silêncio
Atriz -
V. A OUTRA
Outra -
A história é essa. “A Rainha disfarçada bateu à porta, e Branca de
Neve enfiou a cabeça e disse: Não posso deixar ninguém entrar. Os
sete anões me proibiram isso. Pior para mim, disse a velha, pois
terei de voltar para casa com minhas maçãs. Mas, olhe, eu lhe dou
esta de presente. Não tenho coragem de comer, respondeu Branca
de Neve. Será que está com medo? gritou a velha. Olhe vou parti-la
em duas metades; você come a parte de fora e eu comerei a de
dentro.”
14
...
Meu pai tinha uma segunda família e minha mãe sabia e disfarçava
seus dias pintando frutas com aquarela. Eu nunca conheci a outra
mulher do meu pai, mas sempre a imaginei como a minha mãe
vestida em lantejoulas, com batom e os cabelos tingidos. Minha mãe
não era assim, era daquelas mulheres que se casam e nunca mais
soltam os cabelos. Eu achava que a amante do Pai só podia ter o
mesmo olhar que a minha mãe, mas com os cabelos com
permanente e a boca colorida. Porque, no fundo, é assim que eu
acho que as amantes deveriam ser.
Mas eu sei que isso é só como as coisas são num palco, ou num
filme, ou nos livros. De verdade, a outra é só a segunda, a que
engole seu orgulho com o café da manhã, ciumenta da vida que Ela
tem. O ciúme: eu sempre pensei que essa minha alegria fosse pra
disfarçar. Como quando eu via as aquarelas da minha mãe e eu as
frutas eram a outra família imaginária do meu pai. a platéia enxerga
ciúme nesse meu sorriso inventado? Será que alguém ainda
acredita no que uma atriz diz com a voz impostada, mesmo que seja
verdade?
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...
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...
não podia deixar ninguém entrar. E ela deve ter imaginado, pelo tom
de desprezo da minha voz, que eu tingia os cabelos. E ela disse: foi
ele mesmo quem me deu seu telefone. E então eu não sabia mais o
que dizer. E ela me ofereceu a maçã envenenada, me perguntando
o que eu queria pro jantar. E eu disse bife acebolado, porque eu
imaginei que quando ela colocasse o prato com cebolas sobre a
mesa, ele talvez pudesse me escolher, talvez ele pudesse comer as
cebolas e mostrar que, na verdade, eu era a primeira e que ela
nunca mais beijaria os lábios do homem que era meu, porque ali
tinha o meu cheiro de cebola. Ela – a gorda, a primeira - concordou,
com a solidariedade de quem concorda em dividir sua única maçã
com uma desconhecida.
(Pausa)
Ator -
Outra -
Ator -
Por favor.
Silêncio
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...
Ator -
Por favor.
Outra -
Me dá a deixa.
Ator -
Outra -
Ator -
Outra -
Ator -
Outra -
Ator -
Outra -
O quê?
Ator -
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...
Outra -
Eu só não consigo.
Ator -
Outra -
Ator -
Não.
Outra -
VII. O ATOR
Ator -
Escuta, vou te contar o meu sonho: devo ter lido isso em algum
lugar: nunca tive imaginação para tanto: “do alto de mais de trinta
andares, alguém atira pela janela meus sapatos e minha gravata.
Não tenho tempo pra pensar, estou atrasado. Me atiro também da
janela, como que em perseguição. Ainda no ar, alcanço os sapatos.
Primeiro o direito, eu o calço; depois, o esquerdo. No ar, enquanto
caio, tento encontrar a melhor posições pra dar um laço nos
cadarços, como meu pai me ensinou. Com o sapato esquerdo, falho
uma vez, mas repito e consigo. Olho pra baixo, já vejo o chão bem
perto. Mas antes, a gravata. Estou de cabeça pra baixo e, com um
puxão brusco, minha mão a apanha no ar e, depois, com meus
dedos apressados, dou as voltas para o nó: a gravata está posta.
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...
Percebe? Eu sei que esse sonho quer dizer alguma coisa, só não sei
o quê. Mas eu sei, eu tenho certeza de que não é uma coisa boa. E
eu nem acredito em nenhuma dessas merdas de premonições,
revelações... Mas, sei lá, essa história de me jogar do prédio atrás
da gravata, me deixou preocupado.
Eu nunca acreditei em Deus, e isso pra mim sempre foi uma espécie
de liberdade. Porque eu podia fazer o que eu sempre achei certo e
não ter que justificar merda nenhuma, nem aqui nem no Inferno.
Porque o Inferno só existe pra gente se justificar, não é. Eu não
acredito em nada, mas de uns tempos pra cá, tem esses sonhos: eu
devo ter lido em algum lugar.
Outro dia, sonhei que fazia a barba do meu pai, antes dele morrer.
Eu usava uma navalha dessas bem afiadas e eu pensava que se eu
não fosse muito cuidadoso, eu ia poder sentir o sangue dele no meu
rosto. E ia ser uma merda. Então, o barbeava bem devagar e,
enquanto eu estava passando a navalha no seu bigode, ele me
disse: que um homem só morre com dignidade se morre vestindo
uma camisa branca.
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Trecho de um texto de Gonçalo M. Tavarez.
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...
Outra -
Atriz -
21
...
Outra -
Incômodo nenhum.
Atriz -
Outra -
Como assim?
Atriz -
Outra -
Ator -
Por favor.
Atriz -
Outra -
Atriz -
Outra -
Atriz -
22
...
Ator -
Foi.
Outra -
Ator -
Obrigado.
Atriz -
Ator -
Ótimo.
Atriz -
Outra -
Atriz -
E o seu, querido?
Ator -
Chega. Corta.
Atriz -
Ator -
23
...
Outra -
Ator -
Outra -
Ator -
Eu cansei. Disso.
Outra -
Atriz -
Outra -
Ator -
Outra -
Atriz -
24
...
Outra -
A Outra o abraça e fala bem baixinho no ouvido dele, pra que toda a
platéia escute: Será que é possível morrer de verdade numa peça de
mentira?
Atriz -
Ele tenta fugir, mas ela é mais rápida. Um tiro pelas costas. Ele cai
no meio do palco. Silêncio.
Atriz -
Continuamos?
Outra -
Sempre.
Outra -
Atriz -
Outra -
Atriz -
Outra -
25
...
Atriz -
Outra -
Atriz -
Outra -
Atriz -
Outra -
Atriz -
Não.
Outra -
Atriz -
Outra -
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...
Atriz -
Outra -
Atriz -
Outra -
Atriz -
Ainda.
Outra -
Ainda.
Atriz -
Outra -
...
Atriz -
Eu adoro os começos.
Outra -
Eu prefiro os finais.
Atriz -
27
...
Outra -
Atriz -
Melhor assim.
Outra -
X. Aplausos
Atriz -
Outra -
Atriz -
Outra -
Atriz -
Outra -
Atriz -
Aplausos e black-out.
[B.O. FIM]
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