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Corporativismo, Pluralismo e Conflito Distributivo no Brasil*

Bruno P. W. Reis

“For where Rousseau seemed to hold that because factions and leadership must be
avoided in the perfect state, it was therefore unnecessary to provide institutions for
dealing with them, Madison evidently believed that precisely because it could not
be avoided in an optimal state, it was necessary to provide institutions for dealing
with them.”
(Robert A. Dahl, After the Revolution? Authority in a Good Society,
New Haven, Yale University Press, 1970, p. 83.)

1. EM TORNO DO CONCEITO DE “CORPORATIVISMO”

1.1. Pluralismo e Corporativismo

N o debate que se vem produzindo contemporaneamente no Brasil em torno do tema


da modernização das relações entre capital e trabalho no País (e de ambos com o
Estado), o uso depreciativo da palavra “corporativismo” talvez seja uma das poucas
quase-unanimidades estabelecidas. Não há unanimidade, porém, quanto ao que se quer
dizer com o termo. Há dois sentidos mais ou menos estabelecidos na literatura nacional
para o conceito, ambos pejorativos, assim descritos por Fábio Wanderley Reis, que tem
insistentemente discordado da postura dominante:

*
A primeira versão do presente trabalho – intitulada “Inflação, Conflito Distributivo e Corporativismo:
Elementos para uma Reforma Institucional das Relações entre Capital e Trabalho no Brasil” – foi
elaborada nos primeiros meses de 1993, quando eu ainda não era membro da UFMG, graças a uma bolsa
fornecida pelo “Programa de Extensão e Pesquisa sobre a Reforma Institucional Brasileira”, iniciativa da
Universidade financiada pela Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa – Fundep/UFMG. Quero
agradecer aos responsáveis pelo programa, profs. Olavo Brasil de Lima Jr., Celson José da Silva e
William Ricardo de Sá, tanto pelo apoio recebido quanto pela autorização para publicar o trabalho
independentemente. Elaborado em circunstâncias um tanto desfavoráveis, que me impediam de dedicar ao
trabalho o tempo devido, o texto encontra-se consideravelmente modificado na presente versão, embora as
conclusões e as linhas gerais da argumentação tenham sido mantidas. Devo ainda agradecer ao prof. Luiz
Werneck Vianna, do Iuperj, pela generosidade e o incentivo de sempre, bem como ao prof. Fábio
Wanderley Reis, do DCP/UFMG, e a dois pareceristas anônimos de Dados, pelas críticas que ajudaram a
melhorar sensivelmente o texto. A responsabilidade, porém, pelo conteúdo do trabalho é, naturalmente,
exclusivamente minha.
2

“A idéia de corporativismo acha-se estreitamente ligada, entre nós, com os traços


ditatoriais do Estado Novo e com o fascismo, e a expressão ‘corporativismo’ significa
antes de mais nada controle autoritário por parte do estado – apesar de que seja também
usual um outro sentido (não menos negativo) da palavra, que se refere à defesa egoísta de
interesses estreitos, particularmente de categorias ocupacionais.” (F. Reis, 1989b, pp. 51-
2.)

Reis aponta o notável contraste dessa condenação unânime do corporativismo observada


no Brasil com a atitude adotada alhures, mencionando particularmente o “ânimo positivo
com que presentemente se fala da necessidade de concertación corporativa em alguns
países hispano-americanos” (F. Reis, 1989a, p. 92).

Independentemente do que se passa no Brasil, todavia, o tema do corporativismo é


efetivamente problemático, a começar pelo fato de que – assim como quase todos os
“ismos” – é apresentado ora como um fenômeno (um tipo específico de articulação e
representação de interesses privados junto ao estado), ora – e, a meu ver, um tanto
indevidamente – como uma corrente teórica específica, crítica da chamada teoria política
“pluralista”, rótulo tradicionalmente associado ao mainstream da Ciência Política
produzida nos Estados Unidos. A própria expressão “pluralismo”, a propósito, é também
objeto de confusão semelhante, e um problema relativamente grave que essa dupla
confusão acarreta é que – em parte como conseqüência de divergências existentes entre
autores das duas “correntes” – começou-se a conceber pluralismo e corporativismo como
fenômenos não simplesmente diferentes, mas antes opostos, muitas vezes concebidos em
grandes linhas como as duas formas polares e opostas de mediação política entre o estado
e as classes sociais confrontadas no âmbito do mercado. Veremos que essa oposição não é
tão óbvia como se poderia supor, e que, submetidos os conceitos a um escrutínio mais
rigoroso de seus significados e origens, as diferenças entre ambos tornam-se bastante mais
sutis do que usualmente se concebe – a ponto de se poder observar que, conforme o autor
que se consulte, pluralismo e corporativismo muitas vezes parecem quase sinônimos.

Antes, porém, de prosseguir nesse inventário semântico, talvez caiba uma rápida menção à
forma como tem sido posta usualmente a distinção entre pluralismo e corporativismo.
Pois, em razão das ambigüidades acima referidas associadas à própria significação do
termo, há diferenças relevantes entre os diversos autores que lidam com o corporativismo,
que vão desde a afirmação de que pluralismo e corporativismo constituem “paradigmas”
analíticos alternativos, até a afirmação de que são apenas os extremos ideais de um
continuum dentro do qual se movem e se enquadram os diversos tipos empiricamente
observáveis de relações entre o estado e o mercado. Para os que consideram existir uma
ruptura teórica entre o pluralismo e o corporativismo, o papel teórico desempenhado pelo
3

estado em cada esquema conceitual costuma ser o ponto crucial que distingue o
arcabouço pluralista do corporativista: afirma-se uma passagem do estado passivo
pluralista ao estado ativo dos teóricos do corporativismo (entre estes o estado passaria a
ser o núcleo da análise).1

Um outro ponto, talvez mais importante do que tentar precisar o “lugar” do estado nesta
ou naquela abordagem, era levantado já em 1964 – ou seja, uma década antes de Philippe
Schmitter (1974) ressuscitar o tema do corporativismo –, quando Theodore Lowi
afirmava que os autores comumente identificados com o “paradigma” pluralista não
costumavam levar devidamente em conta a estratificação social. Para Lowi, a fragilidade
básica da abordagem pluralista estava em não reconhecer que nem todas as coalizões eram
equivalentes (Lowi, 1964, pp. 679-80). Mais recentemente, também Suzanne Berger fez
um breve histórico da evolução do enfoque pluralista na Ciência Política da segunda
metade do século. Segundo o seu relato, na visão pluralista dos anos 50 os grupos de
interesse se formavam como emanações espontâneas da sociedade, através de uma natural
aglutinação de interesses convergentes (Berger, 1981, p. 5). Não se problematizava a
questão da produção de uma convergência entre os propósitos dos membros e propósitos
organizacionais, presente na literatura moderna pelo menos desde 1911, quando Robert
Michels (1966, esp. parte 6, pp. 333-71) enunciou a sua famosa “lei de ferro da
oligarquia”, mas que só viria a retomar impulso a partir da segunda metade da década de
60, quando Mancur Olson (1965) deu expressão formal àquele problema ao trazer para a
Ciência Política o individualismo metodológico típico da economia, num trabalho pioneiro
cujos reflexos hoje ocupam um dos ramos mais frutuosos da produção teórica da ciência
social contemporânea. Mas, além do problema da formação de um grupo e da
racionalidade da adesão a ele – cerne das preocupações de Olson –, Berger (1981, p. 7)
insiste também na relevância do problema da autenticidade da representação, pelo grupo,
do interesse de seus membros – formulado por Michels com toda a clareza no início do
século, mas infelizmente ignorado por boa parte da literatura “pluralista”.

Todas essas críticas, dirigidas sobretudo a partir de meados da década de 70, contra as
formulações teóricas típicas dos autores chamados “pluralistas” por outros autores que
lidavam de alguma forma com o tema do corporativismo fizeram com que a disputa fosse
muitas vezes referida como um debate entre “pluralistas” e “corporativistas”. Some-se a
isto a carga ideológica ponderável que ambas as expressões carregam, e a confusão está

1
Para um detalhamento das diversas abordagens do tema, um levantamento recente encontra-se em
Araújo e Tapia (1991).
4

armada. O “pluralismo”, associado ao regime democrático, e, sobretudo, à democracia


americana, é visto por autores, digamos, “críticos” como propaganda ideológica do
sistema americano. Do outro lado, porém, o “corporativismo” está tradicionalmente
associado a nada menos que o fascismo, o que faz os chamados “corporativistas”
contorcerem-se em neocorporativismos, corporativismo “social” oposto a “estatal” etc.

Algumas das razões das grandes dificuldades envolvidas na tentativa de se estabelecer uma
polarização tout court entre pluralismo e corporativismo ficam evidentes se nos damos ao
trabalho de uma consulta ao Dicionário de Política, editado por Bobbio, Matteucci e
Pasquino (1986). Pois ali os verbetes sobre pluralismo (Bobbio, 1986a) e corporativismo
(Incisa, 1986) são surpreendentemente convergentes.2 Em sua origem, ambos os conceitos
estão apoiados na defesa dos “corpos intermédios” na política, e opõem-se à redução da
política à relação direta entre o estado e o indivíduo.

De maneira próxima àquela que comumente se encontra nos textos sobre o tema, assim
Ludovico Incisa, autor do verbete sobre o corporativismo, define o seu objeto:

“O corporativismo é uma doutrina que propugna a organização da coletividade baseada na


associação representativa dos interesses e das atividades profissionais (corporações).
Propõe, graças à solidariedade orgânica dos interesses concretos e às fórmulas de
colaboração que daí podem derivar, a remoção ou neutralização dos elementos de conflito:
a concorrência no plano econômico, a luta de classes no plano social, as diferenças
ideológicas no plano político.” (Idem, p. 287.)

Incisa indica-nos também aquela que pode ser a raiz da avaliação negativa que hoje se faz
da idéia de corporativismo. Nos primórdios da Revolução Industrial, com o
desmantelamento do aparelho corporativo remanescente da Idade Média, “tem-se em vista
remover todo o interesse intermediário entre o interesse particular do indivíduo e o
interesse geral do estado e considera-se o espírito de corporação incompatível com o
processo de modernização do sistema político” e com a industrialização. No plano
político, o modelo corporativo passa a se apresentar, portanto, “como alternativa do
modelo representativo democrático” (idem, 1986, p. 287).

Podemos, sem dúvida, detectar nessas rápidas amostras do verbete sobre corporativismo
muito dos traços “organicistas” comumente apontados como típicos do “princípio”
corporativista e, apressadamente, opostos ao pluralismo, freqüentemente identificado com
2
David Nicholls (1974, pp. 54-5) também mostra como a doutrina pluralista levou, muitas vezes, à defesa
de variadas formas de corporativismo e mesmo de formas corporativas de gestão da indústria, tendo
alguns desses “pluralistas” inclusive vindo a se tornarem simpatizantes do fascismo.
5

princípios individualistas e/ou liberais. Norberto Bobbio, porém, autor do verbete sobre o
pluralismo, não se esquece de apontar na doutrina dos corpos intermédios, de
Montesquieu, “uma das fontes históricas do pluralismo moderno”, que é, segundo Bobbio,
ao mesmo tempo antiestatal e antiindividualista. Rejeita, simultaneamente, a
centralização de todo o poder nas mãos do estado e a atomização individual da sociedade.
Busca uma sociedade articulada em torno de núcleos de poder que se situem abaixo do
estado e acima dos indivíduos (Bobbio, 1986a, pp. 928-9). (Nunca podemos esquecer que
mesmo o pluralismo democrático americano é usualmente referido como “teoria dos
grupos”.) Atacando ainda os críticos da doutrina dos corpos intermédios – os ardorosos
modernizadores vitorianos que ajudaram a opor o corporativismo ao modelo
representativo democrático –, Bobbio prossegue:

“A supressão dos corpos intermédios como proteção do interesse geral contra o predomínio
dos interesses particulares baseava-se em duas hipóteses destinadas a não se
concretizarem: a fusão de todos os indivíduos que constituíam o corpo da nação na vontade
geral e da vontade geral na expressão genuína do interesse comum, e a lenta mas
inexorável limitação dos poderes do estado, à medida que fosse ocorrendo a transição
(segundo as falazes previsões do evolucionismo positivista) das sociedades militares do
passado à irreprimível sociedade industrial.” (Idem, p. 929.)

Creio ser quase dispensável chamar a atenção do leitor para a gritante afinidade entre o
princípio corporativista e o pluralismo tal como compreendido por Bobbio. Ambos têm
em comum a preocupação básica de fugir à contraposição exclusiva entre o indivíduo, de
um lado, e o estado, do outro, evitando, simultaneamente, tanto o estatismo quanto o
individualismo. Um caso particularmente notável é o da doutrina social católica, que, ao
mesmo tempo, tem destaque como propagadora do corporativismo e é apresentada como
uma das principais variantes do pluralismo (Incisa, 1986, p. 288; Bobbio, 1986a, p. 932).
À parte as pretensões de neutralização total de conflitos embutidas em alguns enunciados
do princípio corporativista, é de fato uma tarefa árdua traçar uma linha que distinga
claramente a prática dos sistemas corporativistas tal como existem nas democracias
européias contemporâneas, de um lado, do ideal pluralista tal como definido por Bobbio,
do outro. Um exemplo eloqüente dessas afinidades encontra-se em Alan Cawson, quando
este, dedicando-se a tentar mostrar o que o corporativismo não é – excluindo assim,
curiosamente, algumas das principais mazelas comumente associadas ao “corporativismo”
brasileiro –, termina por apresentar uma caracterização do corporativismo de óbvio e
profundo parentesco com a noção de pluralismo aqui exposta por Bobbio:
6

“Clearly the argument that policy is determined and implemented in negotiation between
the state and interest organisations presupposes that state agencies exercise power in their
own right, which means that the state system must be to a greater or lesser extent
autonomous. If it lacks autonomy and is ‘colonised’ by private interests, then there is no
corporatism. Conversely, if the state is completely autonomous and independent, and
interest organisations in society are subordinate to state agencies in each sphere of
public policy-making, then there is no corporatism.” (Cawson, 1986, p. 19, grifos meus.)

Portanto, ainda que se admita alguma diferença de ênfases, as convergências apresentadas


entre o modelo pluralista e o modelo corporativista são notáveis. Estaria a distinção em
que o primeiro é um associativismo “livre” e o segundo um associativismo “controlado”
pelo estado? Mas, neste caso, seremos forçados a admitir que não existem nas
democracias contemporâneas os casos extremos que nos permitiriam o estabelecimento de
uma distinção polar entre os dois tipos, apenas variações de grau relativamente sutis ao
longo de um continuum. Ou será que decisivo é o “princípio” definidor de cada um? Uma
concepção competitiva versus uma concepção organicista da sociedade. Ora, ambos são,
em certa medida, “organicistas”, na medida em que rejeitam a oposição pura e simples
entre o estado e o indivíduo, e ressaltam o papel dos grupos contraposto à “pulverização”
social eventualmente derivada de concepções extremadamente individualistas da
sociedade.

Uma pista importante para se detectar precisamente o que, afinal, está em jogo nesta
discussão pode ser encontrada na distinção que Incisa traça entre um corporativismo
tradicionalista (católico) e um outro corporativismo dirigista (fascista). Para Incisa,

“[...] enquanto o corporativismo tradicional é essencialmente pluralista e tende à difusão


do poder, o corporativismo fascista é monístico (não é por acaso que está filosoficamente
ligado ao idealismo), tenta reduzir à unidade, àquela unidade dinâmica que é ambição do
sistema, todo o complexo produtivo. No corporativismo tradicional, as corporações se
contrapõem ao estado; no corporativismo fascista, as corporações estão subordinadas ao
estado, são órgãos do estado.” (Incisa, 1986, p. 289, grifos meus.)

Conclui ainda Incisa que o corporativismo dirigista (fascista) constitui, em relação ao


corporativismo tradicional (católico), uma ruptura radical, “embora não seja difícil
construir sua genealogia fazendo-o derivar, por meio do nacionalismo, do corporativismo
tradicional” (idem, p. 291). Ora, se Incisa pode afirmar que “o corporativismo tradicional
é essencialmente pluralista e tende à difusão do poder”, e que nele “as corporações se
contrapõem ao estado”, então a distinção que resta forte é entre regimes autocráticos e
regimes democráticos, entre a possibilidade ou não do indivíduo optar livremente por sua
filiação associativa, entre a maior ou menor presença de critérios “adscritivos” de inserção
7

na sociedade – e não mais entre o corporativismo e o pluralismo simplesmente. Resta


também a contaminação da palavra “corporativismo” pelo fantasma do fascismo, o que
acabou por engendrar uma contraposição diametral indevida com o pluralismo, fonte de
inúmeras confusões e disputas mal colocadas.

Transportando esta discussão para a análise do caso brasileiro, talvez possamos constatar
que temos em nosso sistema político mais resquícios de traços fascistas – ou, mais
genericamente, autocráticos – do que propriamente corporativistas, e aqui as palavras são
importantes, pois a condenação unânime do “corporativismo”, a persistir, certamente
poderá criar sérios obstáculos à construção de um adequado mecanismo institucional de
intermediação de interesses no País. Em certa medida, como lembra Fábio W. Reis em
diversos trabalhos (cf., por exemplo, F. Reis, 1991b, pp. 147-50), a tarefa mesma de
construir a democracia parece envolver necessariamente o problema de se construir o
“corporativismo adequado”, isto é, formas de aglutinação de interesses privados e sua
legítima representação junto ao estado, como condição mesma da adesão desses atores
privados às regras que dão vida ao estado democrático.

Impõe-se reconhecer, portanto, que há, sim, uma ruptura radical e uma enorme diferença
de princípios entre os regimes democráticos contemporâneos e regimes autocráticos de
corte fascista. Mas é extremamente problemática a sua transposição tout court para uma
polaridade pluralismo-corporativismo. Para enfrentarmos de maneira rigorosa esta questão
é preciso reconhecer que o pluralismo e o corporativismo têm origem comum, e pelo
menos em uma de suas versões – a católica – são rigorosamente idênticos; são,
simplesmente, a mesma coisa, combatendo os mesmos inimigos: o arbítrio estatal, de um
lado, e o temor de uma eventual pulverização social decorrente de uma leitura extremada
do princípio individualista, de outro. Talvez a polarização se tenha instalado no debate
contemporâneo, afinal, em virtude do reconhecimento tácito, unânime, da universalidade e
da inevitabilidade da presença de “corpos intermédios” entre os indivíduos e o estado em
qualquer sistema político moderno, à exceção (possível) dos sistemas totalitários, o que
afasta o debate do problema da justificação da presença desses corpos e o leva para o
tema do papel a ser por eles desempenhado. Constatada, para o bem ou para o mal, sua
irremediável existência em um regime democrático, ao estudioso realista somente restaria
discutir a natureza jurídica dessa existência, se entidade de direito público ou privado, se
órgão do estado ou associação livremente constituída. Daí que eventualmente se acabe
reduzindo a dicotomia a duas palavras que já significaram a mesma coisa (a defesa da
presença dos corpos intermédios na política), atribuindo-lhes conteúdo positivo ou
8

negativo conforme associações de idéias – eventualmente mesmo espúrias – que estas


palavras nos inspirem.

Mas convém ainda ressaltar que mesmo aí as distinções não são fáceis, e inúmeras
ambigüidades permeiam toda a história da constituição dos sistemas de intermediação de
interesses atualmente existentes mesmo em muitas das melhores democracias
contemporâneas. Por exemplo, os sistemas de intermediação de interesses existentes hoje
na Europa Ocidental são pluralistas ou corporativistas? Creio que muitos de nós
estaríamos prontos a afirmar que são pluralistas, tendo em vista seu caráter evidentemente
democrático, para qualquer parâmetro de comparação histórica. Mas Schmitter fez
questão de negá-lo expressamente, e o nome que se vem consagrando na literatura para
designar o sistema de intermediação de interesses vigente nas democracias européias é
“neocorporativismo”.3 Mais: o papel inevitavelmente central do estado na constituição de
todos os sistemas de intermediação de interesses hoje vigentes na Europa foi
enfaticamente destacado por Claus Offe em artigo sugestivamente intitulado “A
Atribuição de Status Público aos Grupos de Interesse” – atribuição esta inevitável para a
eficácia e, acima de tudo, para a legitimação da participação desses grupos na formulação
de políticas. Ao fim e ao cabo, todas as distinções entre corporativismo e
neocorporativismo, corporativismo estatal e corporativismo social etc. referem-se, como
veremos, não aos sistemas em si mesmos, mas sim ao contexto em que operam, se
democrático ou fascista, se sob regimes de maior liberdade de organização ou sob regimes
ditatoriais ou autoritários.4 Em uma palavra, resta como variável crucial o grau de
adscrição social presente no sistema, isto é, a medida da liberdade de escolha de sua

3
Se levamos em consideração as raízes da expressão “pluralismo” tal como explicitadas por Bobbio, a
negativa de Schmitter parece assentar-se em bases um tanto problemáticas. É possível, todavia, que ele
estivesse reservando o termo “pluralismo” apenas para processos de barganha de interesses “à
americana”, nos quais inexistem sistemas estruturados que atribuam status público a grupos promotores
de interesses privados (como se dá tipicamente na Europa) e a barganha concentra-se sobretudo em
lobbies informais que se dão nos gabinetes da administração pública, longe dos olhos do público. Se for
esse o caso, porém, não me parece justificável, em princípio, a presunção desfavorável a priori em
relação ao corporativismo, quando contrastado com esse “pluralismo”.
4
A formulação original deste argumento encontra-se na crítica da distinção schmitteriana entre
corporativismo social (societal) e corporativismo estatal, levada a cabo por Fábio W. Reis (1988, p. 39).
A crítica de F.W. Reis encontra-se detalhada um pouco mais abaixo (nota 5), quando me refiro
rapidamente à contribuição de Schmitter. Uma ilustração exemplar desse argumento pode ser
encontrada em Domenico Settembrini (1986, p. 1191), que afirma que a práxis reformista da social-
democracia supõe uma política de “colaboração institucionalizada e permanente entre o estado, as
empresas e os trabalhadores”, de inevitável teor corporativista. E prossegue: “a Sozialpartnerschaft [...]
possui na Áustria um precedente no modelo do fascismo de Dollfuss (1933-1934), a que se assemelha
externamente, dele se distinguindo claramente apenas pela democraticidade.” (Grifo meu.)
9

própria filiação associativa de que desfruta o indivíduo nascido nesta ou naquela


sociedade. Podem, é claro, sob o ponto de vista estritamente legal, restar traços
autoritários em um sistema engendrado sob regime ditatorial que depois atravessa um
período de democratização. Pode-se certamente afirmar que este é, em larga medida, o
caso do Brasil, onde a liberdade de organização é hoje plena, mas remanescem na
legislação dispositivos de inspiração autoritária que, formalmente, ainda subordinam os
sindicatos à tutela governamental. Mais importante que isso, porém, talvez seja constatar
que, de maneira largamente independente da legislação específica em vigor, as extremas
desigualdades e as profundas clivagens socioeconômicas que historicamente compõem o
cenário brasileiro introduzem por si mesmas fortes elementos de adscrição na estrutura
social do País, que vêm a se constituir em graves obstáculos à democratização efetiva das
relações sociais no Brasil.

1.2. Algumas das Várias Acepções de “Corporativismo”: Um Breve Levantamento

Assinaladas, portanto, algumas das limitações mais evidentes relacionadas à discussão do


tema do corporativismo, quando posta nos termos pró-pluralismo/antipluralismo, cabe
prosseguir num breve apanhado das principais contribuições ao estudo do corporativismo
nas últimas duas décadas. Poderemos constatar que muitas vezes autores diversos se
reportam a fenômenos bastante variados quando falam de corporativismo.

Alguns, como Howard Wiarda (1974), chegam ao ponto de considerá-lo uma “terceira
via” de desenvolvimento, alternativa tanto ao capitalismo quanto ao socialismo. Tomando
o estado como a variável independente em sua análise, Wiarda define o corporativismo
ibero-americano como um fenômeno principalmente “cultural”. Ângela Araújo e Jorge
Tapia (1991, pp. 6-7) destacam algumas das limitações mais imediatamente evidentes
desse enfoque: em primeiro lugar, ele não explica a existência de estruturas corporativistas
em outros contextos culturais; em segundo lugar, não explica a inexistência delas em
países latino-americanos como Colômbia e Equador.

Araújo e Tapia (idem, p. 8) mencionam também os que pensam em “sociedades


corporativistas”, como é o caso, por exemplo, de Rogowski e Wasserspring (1971), que
concebem corporativismo como um tipo de comportamento – e não de estruturas políticas
– que busca prioritariamente o bem-estar dos grupos sobre o bem-estar dos indivíduos. É
uma acepção freqüentemente encontrada na imprensa brasileira, que denuncia o
10

“corporativismo” dos sindicatos ou de determinados estamentos burocráticos do País.


Independentemente da duvidosa propriedade de se usar o termo com esse sentido, creio
que a esta altura do texto já ficou suficientemente claro que não é disso que estou tratando
no presente trabalho.

Aqui procuro tratar do fenômeno que Araújo e Tapia designam como “corporativismo
estrutural”, concebido como uma série de instituições políticas destinadas a processar,
dentro do aparelho estatal, os conflitos de interesses que têm lugar no âmbito da
sociedade civil – ou melhor, do mercado – e que termina por atribuir status público a
grupos representantes de interesses privados específicos. O ponto de partida da literatura
recente ligada a esse assunto é o já mencionado artigo de Philippe Schmitter (1974), que
assim define corporativismo:

“[...] um sistema de representação de interesses cujas unidades constituintes são


organizadas em um número limitado de unidades singulares, compulsórias, não
competitivas, hierarquicamente ordenadas e funcionalmente diferenciadas, reconhecidas ou
licenciadas (quando não criadas) pelo estado, às quais é concedido monopólio de
representação dentro de sua respectiva categoria em troca da observância de certos
controles na seleção de seus líderes e na articulação de demandas e suporte” (Schmitter,
1974, apud Araújo e Tapia, 1991, p. 9).

Central no trabalho de Schmitter é também a distinção, por ele introduzida, entre


“corporativismo estatal” e “corporativismo social”. O primeiro se refere a instituições
corporativas criadas pelo estado – geralmente um estado autoritário – e, por isto mesmo,
controladas por ele. Típico de sociedades hierarquizadas e desmobilizadas, o
corporativismo estatal submeteria a legitimidade dos múltiplos interesses privados a um
suposto “interesse nacional”. É muito comumente utilizado para caracterizar as
instituições corporativistas brasileiras, bem como as dos demais países latino-americanos
onde existam. O corporativismo social, por outro lado, é supostamente aquele que emerge
mais espontaneamente da mobilização e organização da sociedade (“de baixo para cima”),
ficando preservada a autonomia dos atores envolvidos perante o estado. Seria típico dos
países de capitalismo avançado e das economias de bem-estar, e seu fundamento jurídico
repousaria no âmbito do direito privado.

Embora largamente utilizada em trabalhos sobre o assunto, a distinção acima


absolutamente não está isenta de aspectos problemáticos, e tem ensejado freqüentes
simplificações que conduzem a uma caricatura pobre dos eventos que tiveram lugar –
tanto aqui como nas democracias mais avançadas – na história da construção dos sistemas
11

de intermediação de interesses existentes.5 Preliminarmente, cabe o alerta de que o termo


“corporativismo social” não se refere a um tipo qualquer de corporativismo que seja
inerente a uma determinada sociedade. É importante lembrar que não há nenhum
componente cultural nesse conceito, uma vez que Schmitter pretende lidar com o que
Araújo e Tapia chamaram de corporativismo estrutural, que se debruça sobre as diferentes
instituições que processam, em diferentes sociedades, os interesses divergentes dos
diversos grupos (ou classes) sociais.

Feita esta advertência conceitual preliminar, podemos ir mais ao cerne da questão e


lembrar que muitos autores contestam a suposta espontaneidade da gênese das instituições
do chamado “corporativismo social” dos países avançados. Claus Offe, por exemplo,
como já foi mencionado, é um dos que ressalta fortemente o papel do estado na
conformação dos grupos de interesse. Ele aborda, também, a complexa questão do caráter

5
De fato, e a despeito de sua generalizada utilização na literatura contemporânea, a distinção entre
corporativismo “social” e “estatal” parece assentada em bases um tanto precárias, e uma sólida crítica à
construção de Schmitter pode ser encontrada em Fábio W. Reis:
“Dada a ressonância alcançada pela distinção de Schmitter, é curioso observar que ele não
estabelece uma diferença real entre os dois casos de corporativismo enquanto tal, isto é, enquanto
casos de corporativismo. Se se toma a passagem em que a distinção é diretamente confrontada e
elaborada [Pike e Strich, eds., 1974, pp. 102-6], vê-se que Schmitter se refere insistentemente
seja: 1) ao processo pelo qual se atinge um ou outro tipo, chegando à formulação sintética de que
‘as origens do corporativismo social (societal) se encontram na decadência lenta e quase
imperceptível do pluralismo avançado [países de maior tradição liberal-democrática], enquanto as
origens do corporativismo estatal se encontram na morte rápida e altamente visível do pluralismo
nascente [casos como Portugal, Brasil, Grécia, Itália fascista]’ (idem, p. 106); seja 2) às
características mais ou menos autoritárias do sistema político como um todo em que cada tipo
estaria ‘embebido’ ou ao qual estaria ‘associado’ (idem, p. 105) – apesar de que o próprio
Schmitter denuncie na literatura a tendência de fazer ‘submergir’ o corporativismo em ‘alguma
configuração política mais ampla tal como o «estado orgânico» ou o «regime autoritário»’ (idem,
p. 91). Estruturalmente, ou seja, enquanto sistema de representação de interesses em que o estado
se articula com unidades de representação que são limitadas em número, compulsórias, não-
competitivas, hierarquicamente ordenadas, funcionalmente diferenciadas e monopolizadoras (de
acordo com a definição geral de corporativismo, idem, p. 93), não se indicam diferenças entre os
dois tipos, de sorte que os rótulos correspondentes se mostram, ao cabo, apenas designações
alternativas para algo como um corporativismo que anda em boas companhias e outro que anda
em más companhias, o que afeta a respeitabilidade de cada um.” (F. Reis, 1988, p. 39.)
Outra crítica à tipologia de Schmitter pode ser encontrada em Cohen e Pavoncello (1987), que mostram
como a noção de “corporativismo social” contradiz a própria definição geral de corporativismo
apresentada por Schmitter, pois, se o corporativismo é definido como um “sistema em que o estado
controla os grupos de interesse [...], como pode o corporativismo social ser um subtipo do
corporativismo?” (idem, p. 119, tradução minha). Para Cohen e Pavoncello, o fator crucial que
determinará o controle ou não dos grupos pelo estado será o controle, por este último, dos recursos
necessários à manutenção daqueles - o que ajuda a explicar o maior controle comumente exercido sobre
organizações de trabalhadores quando comparado àquele exercido sobre associações patronais. Sendo
assim, eles procuram manter “descrições institucionais de sistemas de intermediação de interesses
analiticamente separadas de questões de poder” (idem, p. 118, tradução minha).
12

público ou privado dos grupos de interesse, demonstrando ser esta uma questão muito
mais árdua do que nos faz crer a absorção apressada da tipologia de Schmitter. Não
obstante, ele salienta a pobreza da análise que concebe o corporativismo basicamente
como forma de controle, uma vez que não apenas classes sociais (tal como concebidas em
grandes clivagens fundamentais, como burguesia e proletariado, por exemplo), mas
também os múltiplos “receptores de políticas” (“policy takers”) potenciais, tais como
contribuintes, aposentados, estudantes etc., são clientes potenciais de estruturas
corporativas. Offe não chega, porém, a aceitar inteiramente as premissas da escola
pluralista norte-americana e a atribuir idêntico peso analítico à atuação de todo e qualquer
grupo de interesse, já que ele não deixa de reconhecer que o corporativismo,
inegavelmente, produz fortes impactos sobre a dinâmica do conflito de classes (Offe,
1989b, p. 247), que permanece como o conflito central na obra de Claus Offe – apesar de
algumas “hesitações” recentes (Offe, 1989a). Além disso, Alan Cawson (1986, p. 45) nos
lembra que é necessário distinguir o relacionamento “lobbístico” entre grupos de pressão e
governos – a que basicamente se reportava a teoria pluralista americana – do
relacionamento institucional entre estado e grupos corporativos.

As diferenças de enfoque, porém, não vão muito além disso. Não se deve exagerar a
dimensão da “ruptura” teórica eventualmente existente entre os estudiosos que hoje se
dedicam ao fenômeno do corporativismo e o núcleo das reflexões dos autores chamados
“pluralistas” dos anos 50 e 60, pois mediante uma análise um pouco mais detida das
contribuições de alguns autores ao tema específico do corporativismo podemos ilustrar
facilmente os vínculos e a continuidade existentes no aparato teórico utilizado. Alfred
Stepan (1980, p. 74, apud Araújo e Tapia, 1991, p. 12), por exemplo, que utiliza a
distinção de Schmitter entre corporativismo estatal e social, introduz dois subtipos na
categoria do corporativismo estatal: o inclusivo e o excludente. É interessante observar
que Stepan faz questão de se referir a políticas inclusivas ou excludentes, e não mais a
regimes. Isto porque ambas as características podem se aplicar a um mesmo sistema em
diferentes momentos históricos, o que nos faz perceber que já não se trata mais de
características de um determinado “modelo” institucional de corporativismo, mas sim de
implicações distintas que um mesmo sistema pode produzir conforme mudem as
circunstâncias políticas em que opera. Kenneth Paul Erickson, em seu capítulo dedicado à
gestão de Almino Afonso à frente do Ministério do Trabalho em 1963, traça uma
excelente ilustração da possibilidade de se utilizarem instituições corporativas
13

supostamente controladoras e autoritárias contra a própria finalidade para a qual elas


haviam sido, presumivelmente, criadas (Erickson, 1979, cap. V, pp. 117-37).6

Mas é outro o aspecto decisivo sob o qual a contribuição de Stepan pode se mostrar
interessante aqui. Trata-se do fato de que a descrição por ele feita da lógica de
funcionamento do corporativismo estatal (inclusivo/excludente) pode claramente apoiar-se
na clássica descrição do processo político elaborada por E.E. Schattschneider em seu The
Semi-Sovereign People. Com um esquema interpretativo bastante semelhante ao dos
estudos identificados como “pluralistas”, Schattschneider concebe a política como um
jogo de pressões e contrapressões exercidas por representantes de interesses em conflito,
jogo este que tem os seus parâmetros – e mesmo o resultado – fundamentalmente
determinados por dois fatores: a “clivagem” e a “abrangência” (“scope”) do conflito. A
clivagem diz respeito, basicamente, à definição da “agenda” política, que irá determinar os
termos da polarização política básica (quem está “de um lado” e quem está “do outro
lado”). Para Schattschneider, o desenvolvimento de um conflito inibe o desenvolvimento
de outros, o que faz com que a definição de alternativas, ao delimitar o leque das escolhas
possíveis, seja freqüentemente mais importante que a própria escolha entre elas
(Schattschneider, 1975, pp. 63-6). Já a abrangência do conflito é relevante porque, dada a
clivagem prevalecente, o resultado do conflito poderá pender para um lado ou para o
outro, dependendo da medida em que o sistema político trouxer para dentro da arena uma
maior ou menor parcela da população, ou seja, dependendo do âmbito ou da abrangência
social do conflito político.

O interesse da elaboração de Schattschneider para os propósitos do presente trabalho


reside em que a alternância de momentos inclusivos e excludentes na dinâmica do
corporativismo estatal, tal como descrita por Stepan, pode perfeitamente ser interpretada à
luz das categorias introduzidas por ele, de maneira objetiva, generalizável e parcimoniosa.
Momentos inclusivos e excludentes alternam-se ao sabor das conveniências e da
capacidade dos diferentes grupos políticos em diferentes momentos históricos. E não há
necessidade de se entrar no terreno um tanto pantanoso das peculiaridades culturais de
cada povo e outras variáveis dessa natureza, de difícil especificação e duvidosa
fecundidade no estabelecimento de nexos causais. Ressalte-se, portanto, que esta visível
afinidade entre o estudo de Stepan e o arcabouço teórico de Schattschneider pode se

6
Fábio Wanderley Reis (1977) também constrói um argumento semelhante, em crítica dirigida à
antinomia entre “representação” e “cooptação” tal como elaborada por Simon Schwartzman (1975).
14

constituir em uma breve porém fundada contestação à caracterização dos estudos


corporativistas como um “paradigma analítico” alternativo à “escola pluralista”.

Registre-se ainda que Stepan não parece ser um caso isolado. Para ficar em apenas um
trabalho, mencione-se a contribuição de Ruth e David Collier ao tema, em que os autores
concebem essas tensões (inclusão/exclusão) do corporativismo como resultado da
preponderância de “incentivos” ou de “constrangimentos” à participação política em
diferentes momentos do processo político de cada país, diluindo, como Stepan, a distinção
a priori entre corporativismos inclusivos e excludentes, e interpretando a dinâmica do
corporativismo em termos muito próximos aos da análise de autores chamados
“pluralistas” (Collier e Collier, 1979, apud Araújo e Tapia, 1991, pp. 12-3).

Antes mesmo de Stepan ou de Collier e Collier, porém, Guillermo O’Donnell (1976) já


havia chegado a conclusões interessantes sobre o tema, corroborando decisivamente as
implicações aqui extraídas das contribuições de Stepan e de Collier e Collier. Por trabalhar
especificamente com o corporativismo presente nos “estados burocrático-autoritários”
latino-americanos, O’Donnell evita a tentação de elaborar tipologias complexas do
conceito de corporativismo. Ao fazê-lo, porém, ele termina por ressaltar – de forma
bastante iluminadora para os propósitos do presente trabalho – uma ambigüidade básica
que é inerente ao conceito, independentemente da construção de tipos ideais polares.
Mesmo reportando-se especificamente ao caso do corporativismo “burocrático-
autoritário” latino-americano (habitualmente qualificado, e com boas razões, de
controlador e retrógrado), O’Donnell constata o que chamaria de natureza “bifronte”
desse corporativismo:

“[O corporativismo que corresponde ao estado burocrático-autoritário] é um


corporativismo ‘bifronte’, porquanto contém simultaneamente dois componentes que é
necessário distinguir com cuidado. Um deles é ‘estatizante’, no sentido de que consiste na
‘conquista’ por parte do estado, e conseqüente subordinação a este, de organizações da
sociedade civil. O outro é ‘privatista’, na medida em que consiste, pelo contrário, na
abertura de áreas institucionais do próprio estado à representação de interesses
organizados da sociedade civil.” (O’Donnell, 1976, p. 3.)

O’Donnell prossegue com a afirmação de que esse caráter “bifronte” do corporativismo


no estado burocrático-autoritário, aliado ao impacto diferenciado dessas estruturas
corporativas sobre as diversas classes sociais (seu caráter “segmentário”, segundo a
terminologia de O’Donnell), termina por fazer com que o resultado básico dessas
estruturas, em um estado burocrático-autoritário, seja o controle sobre o setor popular.
15

Nas democracias políticas dos países centrais, segundo O’Donnell, o corporativismo seria
quase exclusivamente “privatista”, e desapareceria o seu caráter “bifronte”, anulando-se,
com isto, o efeito basicamente controlador exibido nos estados burocrático-autoritários.
Um dos principais méritos da formulação de O’Donnell reside em que ela, ao afirmar o
caráter “bifronte” do corporativismo nos estados burocrático-autoritários, chama a
atenção do leitor para a existência de uma dimensão “privatista” nesse processo também
entre nós, não se restringindo a detectar exclusivamente a dimensão “controladora” das
estruturas corporativistas de intermediação de interesses, mesmo sob a vigência dos
regimes “burocrático-autoritários” latino-americanos.

O’Donnell, contudo, parece idealizar o corporativismo das democracias centrais quando


lhe nega o caráter “bifronte”. Pois não é pacífico, absolutamente, que os arranjos
corporativistas existentes na Europa Ocidental, por exemplo, estejam isentos do
componente “estatista” do corporativismo “bifronte” aqui delineado por O’Donnell.
Talvez seja este um tributo que o trabalho de O’Donnell paga à influência do corte
abrupto estabelecido por Schmitter entre o corporativismo “estatal” e o “social”. Como
vimos anteriormente, porém, há autores, como Claus Offe, que têm contestado fortemente
a crença em um corporativismo “de baixo para cima”, mesmo para o caso do
“corporativismo social”. Para Offe – segundo afirma Suzanne Berger (1981, p. 16,
tradução minha) –, “a iniciativa e o incentivo para o estabelecimento de arranjos
corporativos repousa sobre o estado”, mesmo no caso do corporativismo europeu, o que
implica necessariamente a presença do componente “estatista” do corporativismo tal como
o descreve O’Donnell. Segue-se que o corporativismo, em qualquer caso, é
necessariamente “bifronte”, e “segmentário” onde quer que se trate de uma sociedade
dividida em classes sociais. Como nos lembra Offe, há uma assimetria básica nos arranjos
corporativos, quaisquer que sejam eles, pois as restrições ao trabalho são sempre maiores
que ao capital. O que não quer dizer que a existência de arranjos corporativistas seja
necessariamente prejudicial às classes sociais menos favorecidas – antes pelo contrário, e o
próprio O’Donnell (1979, pp. 310-1) chama atenção para a ligação direta com o estado
usualmente desfrutada pelo grande empresariado na ausência de formas institucionais
eficazes de controle.7 Pois os detentores do capital possuem óbvias vantagens
comparativas em relação às organizações trabalhistas no que diz respeito à capacidade de
influenciar a formulação de políticas públicas, disparidade esta que pode eventualmente ser
atenuada na presença de instituições corporativistas formais.

7
Antes dele, Fernando Henrique Cardoso (1972, esp. pp. 98-100) também já assinalava a existência dos
“anéis burocráticos” que uniam o estado à burguesia no Brasil.
16

Não pode ser esta característica “bifronte”, portanto, a responsável decisiva por um
eventual caráter especialmente autoritário e controlador de que se revistam as estruturas
de intermediação de interesses existentes entre nós, no Brasil. Na realidade, se despida de
algumas idealizações, a forma de abordagem do problema proposta por O’Donnell termina
por associar fortemente os efeitos de uma estrutura corporativa à natureza do regime
político sob o qual ela opera. E isto, uma vez aceito, produzirá efeitos cruciais sobre o
diagnóstico da situação brasileira atual, com implicações relevantes para os propósitos do
presente trabalho.

Inevitavelmente, porém, a incorporação dos sindicatos impõe também os limites de sua


atuação. Conforme a descrição de Adam Przeworski (1989), a essência do chamado
“acordo social-democrata” – que tem caracterizado as economias européias pelo menos
desde a metade do século – exclui, naturalmente, qualquer ameaça à ordem burguesa ou à
prevalência do regime de propriedade privada. Resumindo, a continuidade do sistema
capitalista está fora de discussão. Em troca, garante-se um certo nível mínimo de
qualidade de vida e de conforto material. Claus Offe sintetizou bem o ponto:

“Qualquer atribuição de status significa que, por um lado, os grupos auferem vantagens e
privilégios, mas, por outro, têm de aceitar certas limitações e obrigações restritivas. Em
um caso típico, o acesso a posições decisórias no governo é facilitado por meio do
reconhecimento político de um grupo de interesse, mas a organização em questão torna-se
sujeita a obrigações mais ou menos formalizadas, como por exemplo o comportamento
responsável e previsível e a abstenção de demandas não-negociáveis ou táticas
inaceitáveis.” (Offe, 1989b, pp. 240-1.)

De qualquer maneira, é importante lembrar que a detecção de traços autoritários em


procedimentos que aparentemente são inerentes ao corporativismo – incluindo as
melhores democracias contemporâneas – está intimamente associada a pelo menos duas
idealizações bastante recorrentes entre teóricos da política. Uma delas é a que Bobbio
(1986b, p. 11) aponta ao afirmar que a generalização de práticas corporativistas não
significa exatamente uma crise da democracia, mas sim daquela “tradicional imagem do
estado soberano colocado acima das partes”, típica da doutrina democrática “que não
estava disposta a reconhecer qualquer ente intermediário entre os indivíduos singulares e a
nação no seu todo”, e a que já me referi acima. Nas sociedades contemporâneas, afirma
Bobbio (idem, p. 127), “o contrato social não é mais uma hipótese racional, mas um
instrumento de governo continuamente praticado”. A segunda idealização – esta apontada
por Alessandro Pizzorno (1981) – é a suposição usual de uma rígida distinção entre as
funções do governo, dos partidos e dos grupos de interesse (principalmente destes dois
últimos). Esta distinção esteve muito presente na literatura dos anos 50 e 60, mas,
17

segundo Suzanne Berger, não se pode sustentar completamente. Pelo contrário, Berger
(1981, pp. 8-11) afirma que a politização dos grupos exerce um poder estabilizador no
sistema político, em face das crescentes tarefas governamentais de regulação social.8

Corroborando esta tese, os autores que lidam com o neocorporativismo europeu do pós-
guerra parecem ser unânimes em afirmar que a estabilidade do sistema político nos “trinta
anos gloriosos” que se seguiram à guerra na Europa Ocidental se deveu, sobretudo, à
intermediação de interesses pelo estado e a seu papel de regulador do mercado. Um deles,
Manfred Schmidt (1982), testa estatisticamente diversas hipóteses explicativas das taxas
de desemprego relativamente elevadas observadas na década de 1970, e somente para
duas variáveis ele encontra correlação significativa com as taxas médias de desemprego
observadas entre 1974 e 1978:
(1) uma correlação positiva de 0,63 com a taxa média de desemprego observada
no período imediatamente anterior (1960-1973); e
(2) uma correlação negativa de 0,67 com a presença de estruturas corporativas.
O que redunda em associar o desemprego, basicamente, a dois componentes: um
“estrutural” relativamente constante (que explicaria a correlação positiva elevada com o
desemprego passado) e outro que é a ausência de estruturas corporativas de
intermediação de interesses. A conclusão de Schmidt é que o corporativismo,
efetivamente, resulta em uma suavização do impacto dos ciclos econômicos – o que,
naturalmente, não significa afirmar que ele possa evitar sistematicamente os efeitos de
crises econômicas e as conseqüências não-intencionais de intervenções governamentais em
uma economia de mercado.9

8
A propósito da questão da divisão de papéis entre partidos e grupos de interesse, Pizzorno (1981, pp.
249-63) mostra como o problema da identificação dos interesses, que se coloca a partir da diluição dos
estamentos, inicialmente se afirma mediante a divisão geográfica da representação de interesses (típica
da arena parlamentar), para logo em seguida ter de se desdobrar com base em novos critérios, por meio
das organizações de interesse – muito embora considere que os partidos políticos continuem sendo
sempre a solução para o problema da identidade política em sociedades pós-estamentais.
9
As outras variáveis testadas por Schmidt são renda per capita, índice de aumentos salariais, taxa de
crescimento econômico, taxa de inflação, participação percentual da PEA na população total, presença
ou não de mão-de-obra estrangeira, integração ou não com o mercado internacional, presença ou não de
um forte welfare state, grau de participação da esquerda nos governos (ministérios) ao longo do período
(1974-1978), tempo de governo da esquerda no período, existência ou não de um partido relativamente
dominante no período, coesão ou não da direita e, finalmente, votação da esquerda entre 1970 e 1978.
Nenhuma dessas variáveis apresentou correlação significativa com o desemprego observado entre 1974
e 1978 nos 21 países pesquisados (Alemanha Ocidental, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá,
Dinamarca, Estados Unidos, Finlândia, França, Holanda, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Japão,
Luxemburgo, Noruega, Nova Zelândia, Reino Unido, Suécia e Suíça).
18

Esse efeito estabilizador acabou, certamente, por desempenhar um importante papel no


compromisso democrático que se instalou na Europa Ocidental após a guerra –
diagnóstico que se corrobora pela revivescência neofascista ao cabo de apenas uma
década de hegemonia ideológica neoliberal no Velho Mundo. A propósito, pode ser
ilustrativo lembrar a tese de John Logue (1979, apud Draibe e Henrique, 1988, p. 64),
segundo a qual o welfare state é vítima de seu sucesso, muito mais do que de eventuais
fracassos. Para Logue, a satisfação quase generalizada dos interesses materiais básicos das
populações da Europa Ocidental diminui o incentivo à obtenção de novos benefícios, e
torna o eleitorado cada vez menos propenso a arcar com novos impostos destinados a
financiar esses benefícios. Este argumento certamente é útil para se compreenderem os
problemas eleitorais da esquerda européia hoje, além de dar bem a medida dos limites da
onda neoliberal dos dias que correm. Pois, fundamentalmente, o que vem acontecendo é a
implementação de políticas de restrição da atuação econômica do estado dentro de
estruturas estatais que – mesmo no caso da Grã-Bretanha, que atravessou mais de uma
década sob Margaret Thatcher – ainda podem ser chamadas de estados de bem-estar
social, para qualquer parâmetro abrangente de comparação histórica.

Se a existência de estruturas corporativistas de intermediação de interesses pode,


portanto, ser vista como algo geralmente benéfico para a administração dos conflitos
distributivos no interior da sociedade, por outro lado não se podem, absolutamente,
minimizar os delicados problemas institucionais envolvidos na criação dessas estruturas.
Claus Offe, novamente, talvez seja o autor que tenha ido mais precisamente ao cerne da
questão:10

“Organizações de massa míopes, tacanhas, irresponsáveis ou ilegítimas devem ser


reprimidas. E o que é mais importante, demandas distributivas e de políticas sociais devem
ser conciliadas com os imperativos do crescimento, da modernização econômica e da
competitividade.
“Esse diagnóstico leva ao seguinte dilema: em uma economia industrial avançada, as
organizações de interesse têm o poder de interferir na execução da política pública de
forma altamente antifuncional; daí a necessidade de ‘impedir a sua entrada’. No entanto,
ao mesmo tempo, essas organizações representativas são absolutamente indispensáveis à
política pública, porque detêm um monopólio de informação relevante para a política
pública e, o que é fundamental, uma grande capacidade de controlar seus membros.
Portanto, elas devem ser transformadas em componentes integrantes dos mecanismos
através dos quais a política pública é formulada. Sua função positiva potencial é tão
significativa quanto seu potencial de obstrução. A partir dessa perspectiva, o segredo
consiste em utilizar a primeira e ao mesmo tempo evitar que a política pública seja exposta
ao segundo.” (Offe, 1989b, pp. 234-5, com pequenas alterações na tradução.)

10
Também em Fritz W. Scharpf (1988), a configuração do aparato institucional é o elemento decisivo
para a solução do problema de coordenação entre governo e sindicatos.
19

Baseada na constatação da ocorrência de uma série de mudanças desde a década de 1970


(não apenas na conjuntura política, mas principalmente no próprio processo de produção),
hoje ganha fôlego entre os analistas a hipótese de um processo de decadência do
“macrocorporativismo” e afirmação do “mesocorporativismo” (Schmitter, 1989, apud
Araújo e Tapia, 1991, pp. 23-4).11 Se esse processo, contudo, gerar fortes desequilíbrios
em favor de determinados setores ou regiões, poderão se criar novamente condições
políticas favoráveis à reafirmação de estruturas macrocorporativas. Caso contrário, será
grande o risco de uma rápida erosão da legitimidade das estruturas políticas vigentes,
abrindo as portas para uma contestação eventualmente violenta do status quo.
Independentemente dessa eventualidade, Offe (1989b) e Schmitter (1989, apud Araújo e
Tapia, 1991, p. 24) já advertem para o risco que a fragmentação de demandas, por si só,
pode oferecer para a coesão social.

Para que um “corporativismo estável” seja alcançado, porém, Offe vê uma série de
obstáculos que podem nos ajudar a avaliar as dificuldades que se apresentariam à tarefa de
edificação de um sistema corporativo adequado no Brasil:

“No mínimo, para ser estável, o corporativismo não [apenas] deve gerar consenso
continuamente; antes de mais nada, precisa pressupor o consenso, ou seja, uma sólida e
incontestada aceitação de determinado modo de representação e acomodação de interesses.
“Isso requer, primeiramente, uma certa tradição e organização dos sindicatos que resulte
em sua disposição de aceitar as regras da ‘parceria social’ (Sozialpartnerschaft); [assim]
‘países com um movimento trabalhista voltado para o conflito não são tão adequados para
o corporativismo liberal’ [Lehmbruch, 1977, p. 115]. Além das tradições políticas da
classe trabalhadora do país, a atitude de ‘parceria social’ parece ser reforçada pela
doutrina organizacional do sindicato ‘unitário’ (Einheitsgewerkschaft), em contraste com a
organização segundo filiação partidária ou segundo o ramo de atividade [...]. Em segundo
lugar, essa condição de aceitação inconteste pode ser mantida se as forças opositoras que
não estão dispostas a seguir as regras das estruturas políticas corporativistas forem

11
“Macro”, “meso”, e “microcorporativismo” são conceitos que nos últimos anos vêm obtendo aceitação
crescente entre os estudiosos do corporativismo, principalmente depois da publicação de Alan Cawson,
ed. (1985). Em linhas gerais, esta conceituação se origina da preocupação em dar vazão teórica à
constatação de que o corporativismo é mais disseminado do que permitiria supor a atenção exclusiva à
existência de padrões de intermediação de interesses em escala nacional, abrangendo a economia como
um todo (arranjos “macrocorporativos”). Há situações em que essa intermediação não existe em escala
nacional, mas sim em escala regional ou, principalmente, setorial (“mesocorporativismo”). Na
formulação e implementação de uma política industrial, por exemplo, é bastante provável o recurso a
arranjos mesocorporativos, nos quais se fariam representar os diversos setores envolvidos. Já
“microcorporativismo” se reportaria à interação de agências governamentais e grandes empresas
monopolistas, com capacidade para determinarem sozinhas o destino de um setor. Distinguir-se-ia do
clientelismo tout court pelo fato de que aqui o estado manteria sua autonomia na relação, não havendo
“aprisionamento” da agência pela empresa. Uma rápida distinção entre os três conceitos pode ser
encontrada em Araújo e Tapia (1991, pp. 19-21).
20

privadas de alguns de seus direitos políticos e civis. Finalmente, as disposições


corporativistas poderiam obter uma aceitação de facto se os objetivos de prosperidade e
crescimento fossem alcançados em um grau que tornasse irrelevante a busca de princípios
legitimadores e o conflito acerca dos mesmos.” (Offe, 1989b, pp. 263-4.)

2. IMPRESSÕES SOBRE O CASO BRASILEIRO

Seguindo o que foi exposto, portanto – e principalmente se se leva em consideração o


trecho de Alan Cawson (1986, p. 19) supracitado –, a conclusão surpreendente a que se
chega é a de que a história sindical brasileira, a rigor, nunca foi “corporativista” no sentido
em que o termo é utilizado aqui. Ao contrário, o que temos a impressão de observar, no
Brasil, é uma contínua oscilação: o Estado ora parece estar aprisionado por alguns poucos
interesses privados particularmente poderosos, ora parece desfrutar de uma autonomia
quase irrestrita para fazer o que bem lhe aprouver. Todavia, mais do que uma oscilação
real, o que verificamos são os sintomas das tensões experimentadas por um sistema
político precariamente institucionalizado em uma sociedade que se moderniza
aceleradamente, conforme a clássica descrição do “pretorianismo de massas” feita por
Samuel Huntington (1975).

Com o objetivo de fazer uma exposição bastante breve desse tema tão complexo e
multifacetado, pode-se começar por dizer que o processo de modernização, tal como
costuma compreendê-lo a teoria sociológica, é deflagrado basicamente por um processo
de racionalização de diversas esferas da vida social que encontra um de seus sintomas mais
visíveis na disseminação quase que total do uso da moeda como um meio universal de
troca, e pela conseqüente introdução do princípio mercantil de regulação das relações
sociais, que deflagra uma progressiva erosão de ordenamentos sociais tradicionais de
natureza estamental. Descrito de maneiras bastante variadas, esse processo tem lugar de
destaque em todas as principais matrizes do pensamento sociológico do último século,
quer recorramos a Weber ou a Durkheim, a Parsons ou a Marx ou a Comte. Esse
fenômeno histórico de limites desconhecidos – que moldou drasticamente o destino do
Ocidente e que hoje alcança praticamente todo o globo –, ao incorporar um princípio de
igualdade fundamental entre os homens, liberou uma força ideológica de caráter
emancipador capaz de subverter padrões milenares de submissão hierárquica ao cabo de
apenas umas poucas gerações. Naturalmente, o preço dessa efervescência social no que
diz respeito às possibilidades de manutenção da ordem e da paz social é extremamente
elevado. O impulso de incorporação política inerente à modernização invariavelmente se
21

choca com os interesses daqueles habituados a exercer a dominação – e isso sem contar o
sempre delicado problema da construção de canais adequados para a expressão dessa
participação popular, descartado o exercício direto e cotidiano do poder pela massa
reunida em praça pública (ou em redes de computadores). E se esse processo é deflagrado
exogenamente, como foi o caso dos países coloniais do Terceiro Mundo, então ele será
certamente ainda mais traumático. Apenas para ilustrar com extremos, basta lembrar que o
mesmo processo de modernização sociopolítica que a Inglaterra vinha atravessando ao
longo de quase mil anos (e não sem muito sofrimento), os jovens países africanos nascidos
após 1945 foram chamados a consumar a golpes de caneta – ou melhor, de baionetas – da
noite para o dia.

Ora, num cenário como este, a radicalização da disputa política – e agora com seu alcance
exponenciado pela ampliação da arena política – é uma decorrência natural e inevitável. E
a aparentemente infindável alternância, ou mesmo a mescla, entre regimes autocráticos e
populismo demagógico é apenas um sintoma da incapacidade dos governos de atender
simultaneamente aos dois imperativos cruciais do sistema político democrático: o de
“produção” de poder e o de “distribuição” de poder. Assim, ou o governo concentra todo
o poder (como durante a vigência de regimes autoritários), resolvendo o problema de
produção de poder a expensas do objetivo de distribuição do mesmo, ou então,
alternativamente (durante os interlúdios populistas), ele se vê paralisado por múltiplas e
contraditórias demandas no varejo da barganha política, tornando-se incapaz de
“produzir” poder (F. Reis, 1989c, pp. 161-7).

Nesse contexto, instituições corporativas de intermediação de interesses podem vir a


cumprir a dupla função de incorporar ao processo decisório setores sociais anteriormente
excluídos, ao mesmo tempo que canalizam institucionalmente essa incorporação.
Naturalmente, isto significará o estabelecimento de controles e limites à atuação das
organizações, como ressalta Offe, mas na medida em que se trata de buscar precisamente
a edificação de mecanismos de articulação de interesses entre o estado e a sociedade, é
inevitável que essa articulação – ao envolver compromissos e concessões de parte a parte
– produza, simultaneamente à maior sensibilidade do estado em face dos grupos de
interesses, algum constrangimento à liberdade de ação destes últimos (F. Reis, 1991a, p.
52).

Nem por isso, todavia, se deve concluir que o formato específico assumido pelas
instituições corporativas no Brasil não tenha incorporado traços autoritários próprios.
Instalada como foi a maior parte de nossa legislação trabalhista na década de 1930, sob
22

uma atmosfera intelectual antiliberal de alcance mundial, e ainda sob um governo com
notórias afinidades com o fascismo, as instituições sindicais brasileiras foram criadas
embebidas em uma concepção fortemente organicista da sociedade, que deslegitimava
interesses privados e individuais em prol de um suposto bem coletivo, salvaguardado,
evidentemente, pelo Estado. Isto, naturalmente, não deixou de produzir efeitos sobre a
legislação então produzida, que impôs uma disciplina particularmente rígida sobre o
comportamento dos grupos de interesse, com enormes prerrogativas reservadas ao
Estado.

Porém, em vez de me deter sobre a discussão das instituições específicas que porventura
tenham sido criadas no Brasil dos anos 30 e 40 (ou sobre o que efetivamente resta delas
nos dias de hoje), gostaria de abordar uma ramificação frutífera do tema aqui abordado –
o processo de institucionalização política da representação de interesses privados
conflitantes – que se encontra no estudo da dinâmica política do conflito distributivo no
Brasil e suas implicações sobre o desempenho econômico do País, particularmente no que
toca à análise da inflação crônica com que recorrentemente nos defrontamos, cujo
combate ganhou especial relevo na agenda de política econômica do governo brasileiro
nos últimos 15 anos (e cujo espectro está longe de ter sido exorcizado no transcorrer
deste primeiro ano do Real). Em outro trabalho (B. Reis, 1994), abordo esse problema a
partir do diagnóstico da existência de uma afinidade lógica entre, de um lado, um processo
inflacionário crônico como o vivido no Brasil de hoje e, de outro, o problema da
consolidação institucional de uma ordem racional-legal em sociedades de instituições
frágeis (as sociedades em processo de modernização, “pretorianas”, segundo Huntington,
tal como foi sucintamente descrito acima).12

Em seu nível mais abstrato, o argumento daquele trabalho – para dizê-lo em poucas
palavras – se baseia em duas premissas fundamentais:
(1) a estrutura de preferências dos atores envolvidos no conflito distributivo pode
ser adequadamente descrita pela configuração que na teoria dos jogos recebe o nome de
“dilema do prisioneiro”;
(2) na ausência de instituições sólidas (ou seja, nas “sociedades pretorianas” de
Huntington, com baixo “grau” de governo), o poder público fracassa na tarefa primária

12
Segundo a caracterização de Huntington (1975, p. 208), sociedades pretorianas são, grosso modo,
aquelas em que não existem “instituições políticas efetivas, capazes de mediar, refinar e moderar a ação
política dos grupos”; nas quais o processo de modernização incorporou à arena política estamentos
anteriormente excluídos, mas sem que se consolidassem instituições aptas a processar consensualmente
as disputas decorrentes dessa incorporação.
23

que lhe foi atribuída por Hobbes, isto é, torna-se incapaz de constranger eficazmente os
diversos atores envolvidos a adotarem estratégias cooperativas.13
Resumindo bastante o argumento, pode-se afirmar que, se forem verdadeiras estas
premissas, será alta a probabilidade da generalização de uma estratégia egoísta,
maximizadora no curto prazo, pelos agentes envolvidos no conflito distributivo em
sociedades pretorianas, criando condições propícias à produção de um resultado
subótimo, embora racional, a inflação. Naturalmente, deve-se admitir que pretorianismo
por si só não implica inflação, isto é, não é condição suficiente para a instalação de um
processo inflacionário crônico. Mas, excetuado o caso muito particular do surto
inflacionário observado em Israel nos anos 80 (que certamente mereceria uma análise mais
cuidadosa do que seria possível nestas páginas), a fragilidade político-institucional parece
ser, praticamente, condição necessária à emergência de um processo inflacionário crônico
e relativamente acelerado – digamos, uma inflação de taxas mensais persistentemente
acima dos 10% ao mês. Nesses casos, a estabilização monetária torna-se uma tarefa
particularmente difícil, pois trata-se de convencer os agentes a abrir mão de ganhos
imediatos em favor de ganhos (talvez até maiores) no futuro – só que, por definição, se há
instabilidade política ou fragilidade institucional não há horizonte seguro no médio e longo
prazos, e todos os agentes optam por estratégias que privilegiem ao máximo os ganhos
imediatos. Por isso é necessário tratar com extremo cuidado as expectativas dos agentes
econômicos cruciais, que em contextos como esses se comportam de maneira
excepcionalmente “nervosa”.14

13
Talvez valha a pena observar que Robert Dahl (1971, pp. 5-9) também contempla a situação de
incorporação precipitada de novos atores sem a prévia institucionalização das “regras do jogo” como um
possível caminho hipotético rumo à “poliarquia”, porém o pior caminho, provavelmente malfadado. Se
se puder justapor a teoria de Huntington sobre o diagrama de Dahl, pode-se dizer que este “caminho”
fracassa porque, ao incorporar novos atores e não lograr estabelecer regras estáveis, o processo de
modernização reinstaura o “dilema do prisioneiro” típico do estado de natureza hobbesiano, que
provavelmente já havia sido contornado anteriormente com a ordenação estamental da sociedade que
ora entra em crise.
14
Esse é um aspecto relevante do Plano Real que talvez não tenha sido suficientemente destacado: o
governo foi extremamente cauteloso com as expectativas dos agentes. Renegou abertamente os
“choques” (congelamentos, confiscos ou quaisquer outras medidas desta natureza, que tivessem de ser
tomadas “na calada da noite”) e anunciou previamente todos os seus passos na fase de transição do
cruzeiro para o real – incluindo o período em que a URV foi usada como indexador oficial. De fato, fez
o que pôde para oferecer um horizonte claro para os agentes no mercado. Todavia, se, por um lado, a
estratégia da “moeda indexada” parece ter se mostrado um instrumento bastante mais eficaz que o
congelamento de preços para uma redução duradoura do patamar inflacionário (que, no Brasil, em
virtude da indexação generalizada, é extremamente rígido para baixo), por outro lado nada impede que
a inflação volte a subir lentamente a partir de diversos choques externos, uma vez que as “reformas
estruturais” no setor público, que poderiam imprimir um caráter mais duradouro à estabilização,
24

Com base na caracterização do Brasil como um caso de sociedade pretoriana, pode-se


utilizar a teoria delineada acima para estudar a experiência inflacionária brasileira,
especialmente na última década, quando a inflação ultrapassou a marca dos 100%
anuais.15 A experiência dos anos 80 é particularmente interessante porque foi uma época
em que, em um prazo relativamente curto, praticamente se tentou “de tudo” em matéria de
política econômica antiinflacionária, sem que, no entanto, nenhuma das tentativas lograsse
reduzir a inflação de maneira duradoura.

Minha aposta é que uma das variáveis cruciais que impediram o governo não só de
derrotar a inflação, mas praticamente de governar nesse período foi o vácuo institucional
que se abriu a partir da aceleração da abertura no governo do general Figueiredo. De lá
para cá, nenhuma força política conseguiu construir uma hegemonia que possibilitasse a
formação de um consenso mínimo em torno de um novo formato institucional
internamente consistente para o País. A Constituição de 1988, elaborada no interior dessa
fragmentação política, é uma colcha de retalhos excessivamente detalhista e carente de
articulação interna, fruto dos inúmeros lobbies, em torno de pequenos problemas, que se
formaram durante o trabalho constituinte, ocupando o vazio deixado pela ausência de uma
condução política hegemônica.16 E, finalmente, as intervenções crescentemente violentas
do governo na economia com vistas a controlar a inflação – principalmente os sucessivos
congelamentos de preços efetuados a partir de 1986 –, ao aumentarem enormemente a
incerteza na economia, colaboraram decisivamente para a explosão inflacionária que se

parecem – por motivos estreitamente relacionados aos problemas políticos nacionais expostos no
presente trabalho – cada vez mais incertas; e a desindexação geral de preços e salários na economia,
crucial para o fim da rigidez para baixo do patamar inflacionário, não se pôde ainda completar.
15
No trecho que segue, utilizo algumas passagens do meu trabalho anteriormente referido (B. Reis, 1994).
16
Naturalmente, nada disso quer dizer que durante o regime militar o problema institucional estivesse
“resolvido”; apenas chamo atenção para o vácuo político que se foi instalando no Brasil a partir do
fenecimento da ditadura, e do aumento do grau de incerteza – inclusive institucional – da economia a
partir desse fenômeno. Se a teoria aqui esboçada estiver correta, isto terá trazido efeitos danosos sobre a
dinâmica do conflito distributivo, com conseqüente crescimento da inflação. Acerca deste ponto, a
propósito, Albert Hirschman (1985, p. 73) lembra que, além do conflito, também o grau de
permeabilidade do governo a demandas colabora diretamente com a inflação, e nada assegura que
regimes militares sejam mais intransigentes nesse ponto. Pelo contrário, a experiência mostra que nos
regimes militares os favores se multiplicam e a inflação se mantém a despeito da repressão ao
movimento sindical. Talvez por servir também para a acomodação de interesses, a inflação brasileira,
mesmo durante o regime militar, nunca esteve abaixo de 15% anuais. Como vimos acima, esta análise
de Hirschman encontra clara corroboração nos bastante conhecidos trabalhos que Fernando Henrique
Cardoso produziu nos anos 70 sobre os “anéis burocráticos” já referidos (ver, por exemplo, Cardoso,
1972).
25

observou desde então.17 (O paradoxo fatal aos choques heterodoxos consiste em que eles
intervêm brutalmente no mercado e esperam que as pessoas ignorem esta possibilidade ao
formarem suas expectativas.)

O ponto a que pretendo chegar, portanto, é a afirmação de que o processo inflacionário


crônico comumente observado em sociedades pretorianas pode corresponder
precisamente a um equilíbrio subótimo resultante do dilema do prisioneiro com que se
defrontam os grupos participantes do conflito distributivo.18 E que a inflação é mais
violenta e perversa em sociedades pretorianas simplesmente porque estas, por definição,
possuem reduzido “grau de governo”, isto é, a precariedade de suas instituições políticas
não permite que o poder público seja bem-sucedido em sua tarefa de forçar os atores à
cooperação. Se isto for correto, pode-se afirmar que, uma vez instalado um processo
inflacionário crônico em uma sociedade pretoriana, ele se mostrará particularmente
resistente a terapias antiinflacionárias convencionais, e sua solução duradoura estará
necessariamente vinculada ao processo de institucionalização da vida política do país.19

Antes de prosseguir, todavia, é necessário caracterizar o Brasil como um caso de


sociedade pretoriana, pois, escudados no fato de que não há, no momento, “tanques na
rua”, e tampouco, aparentemente, disposição para quarteladas no interior das Forças
Armadas, alguns talvez queiram negar acuidade à caracterização da sociedade brasileira
como “pretoriana”. Entendo, todavia, que tal negação seria prematura em um contexto
como o brasileiro, independentemente da atual disposição dos militares para intervirem

17
Uma exposição mais fundamentada e formal deste argumento acerca da influência dos sucessivos
choques econômicos sobre as expectativas dos empresários e seus efeitos nefastos sobre a inflação pode
ser encontrada em José Márcio Camargo (1990, esp. pp. 19-21).
18
Talvez seja oportuno esclarecer que quando me refiro a “conflito distributivo” não penso
exclusivamente no conflito entre capital e trabalho em torno da determinação de lucros e salários.
“Conflito distributivo”, aqui, é qualquer disputa entre grupos ou setores da economia em torno da
apropriação da maior parcela possível da renda nacional. Entre estes setores deve-se incluir também o
governo, de forma que, quando relaciono a inflação ao conflito distributivo, não excluo de saída as
teorias mais ortodoxas da inflação, baseadas no déficit público e nas diversas formas de seu
financiamento.
19
O programa de investigação “sociológica” da inflação que John Goldthorpe (1978) propõe serve como
uma descrição surpreendentemente boa do argumento acima. Segundo Goldthorpe, a Sociologia
compreende a inflação como “a expressão monetária do conflito distributivo”. Ele aponta a ignorância
da tradição weberiana por parte dos economistas que invectivam contra explicações “sociológicas” e
afirma que o argumento sociológico acerca da inflação acaba sendo mais “econômico” que muitas teses
monetaristas (que imputam ao governo um comportamento irracional, não otimizador), pois atribui o
fenômeno ao acirramento do conflito distributivo decorrente de atitudes perfeitamente racionais dos
agentes em um mundo, de certo modo, “pós-estamental”, no qual se afirmam e se universalizam os
direitos da cidadania.
26

violentamente no processo político. Afinal, temos em vigor uma Constituição que mal
completou meia década, e absolutamente não temos clareza sobre o que restará dela em
um futuro próximo. Praticamente não existem no Brasil instituições decisórias ou
administrativas cujos procedimentos ou atribuições não sejam objeto de disputa. Assim,
pode-se afirmar com segurança que nossa famosa “crise de governabilidade” – tão
freqüentemente propalada na imprensa e lamentada pelos sucessivos governos federais –
reside muito menos no teor da legislação em vigor do que em sua instabilidade intrínseca,
que faz com que o sistema legal seja, em boa medida, inócuo, incapaz de afetar, para o
bem ou para o mal, a dinâmica viciosa da vida política brasileira. E este é o traço
fundamental do pretorianismo tal como definido por Huntington. É este o principal
sintoma daquilo que ele chama de baixo “grau de governo” (que, diga-se de passagem,
nada tem a ver com o “tamanho do estado”).

Uma objeção mais forte, contudo, pode ser formulada: a caracterização do Brasil como
pretoriano tem de se aplicar a épocas em que a inflação, embora existisse, esteve sempre
abaixo dos índices apresentados na década de 1980. Por que teria ela escapado ao
controle naquele momento e não antes?

Diante desse problema, o primeiro esclarecimento a fazer consiste em lembrar que o


desenvolvimento institucional não é um caminho de mão única, mas comporta idas e
vindas. Alguns anos de estabilidade institucional significam um avanço no processo de
institucionalização que, todavia, pode ser praticamente “zerado” por um eventual
rompimento das regras do jogo. O principal fermento da institucionalização é o tempo.
Por isto, quanto mais tempo durar um determinado arranjo institucional, mais difícil se
tornará sua remoção (o que talvez ajude a explicar a particular violência com que foi
efetuado o golpe militar no Chile em 1973).

Isto posto, torna-se perfeitamente possível reconhecer – sem ter de abandonar em nenhum
momento a caracterização da sociedade brasileira como pretoriana – que o Brasil já viveu
momentos de maior institucionalização de sua vida política, o que, conseqüentemente,
propiciava ao País um maior “grau de governo”, nos termos de Huntington. Mas isto ao
preço da exclusão (ou da repressão) política de amplos setores da sociedade, que a mera
continuidade dos processos de incorporação e mobilização política trazidos no bojo da
paulatina modernização das relações sociais vem desafiar. Para mencionar apenas um
traço que diz respeito mais diretamente ao conflito distributivo, o sistema de
intermediação de interesses implantado nas décadas de 1930 e 1940 seguramente permitia
aos governos do período que vai de 1946 a 1964 maior controle sobre querelas
27

distributivas do que ele dispõe hoje, ao mesmo tempo em que era, inicialmente, objeto de
razoável consenso na população em torno de sua legitimidade.20 Embora continuasse
legalmente em vigor, a partir de 1964 ele foi virtualmente substituído pela repressão aos
sindicatos e a arbitragem dos salários pelo governo federal. Com a abertura, a contestação
aberta ao sistema vigente ganhou força a partir dos últimos 15 anos – especialmente nas
plataformas do “novo sindicalismo”, que engendrou o Partido dos Trabalhadores – PT e a
Central Única dos Trabalhadores – CUT. O resultado é que, de dez anos para cá, temos
vivido um estado de perfeita anomia no que diz respeito ao conflito distributivo, com uma
legislação trabalhista e uma lei de greve anacrônicas e que caíram em desuso, sem que se
tenha obtido consenso algum em torno de um novo arranjo institucional para a
administração das relações entre capital e trabalho no Brasil.

Isto nos coloca, imediatamente, diante da necessidade óbvia de um reordenamento


institucional das relações entre capital e trabalho no Brasil, de modo a nos proporcionar
um novo arcabouço jurídico para a administração do conflito distributivo que venha a
substituir com êxito o contestado modelo atual – ou, pelo menos, operar nele as mudanças
que se julgarem necessárias. Devemos, portanto, passar à consideração das condições de
possibilidade da adoção das políticas necessárias a uma administração adequada do
conflito distributivo, e a referência clássica no estudo de políticas públicas é, ainda, o
trabalho de Theodore Lowi (1964).

Partindo da análise da experiência histórica dos Estados Unidos, Lowi elabora uma
tipologia que divide as políticas públicas em três grandes tipos básicos (políticas
“distributivas”, “regulatórias” e “redistributivas”). Estas três grandes áreas de políticas,
segundo Lowi, configuram diferentes arenas de poder, cada uma com sua própria
estrutura política característica, seus processos e sua elite peculiar (idem, p. 689).
Wanderley Guilherme dos Santos (1982, p. 168) nos oferece, de cada uma dessas arenas,
uma definição bastante sintética e precisa, suficiente para os propósitos do presente
trabalho:

“Simplificando a apresentação e a discussão de Lowi, podemos entender como distributiva


aquele tipo de política que distribui bens e serviços quase que individualmente, sem
conflito, porque a curto prazo a quantidade disponível dos ditos bens e serviços parece
infinita. A política regulatória lida com conflitos entre dois ou mais segmentos da
sociedade – como dois ramos industriais, por exemplo – e implica ganhos e perdas

20
A respeito da concordância dos trabalhadores brasileiros com o espírito “organicista” da legislação
trabalhista em vigor durante o período que vai de 1946 a 1964, ver Kenneth Paul Erickson (1979, pp.
57-8).
28

relativos. Finalmente, a política redistributiva é tipicamente uma decisão de soma zero, e


21
lida com os principais conflitos sociais, isto é, conflitos entre classes.”

Buscando interpretar, à luz da contribuição de Lowi, o impasse jurídico-político que se


observa nas relações entre capital e trabalho no Brasil desde o início da década de 1980, o
que se pode constatar é que o País, tendo excluído da agenda política durante tantos anos
a pauta redistributiva, exacerbou o hábito – tradicional em seu sistema político – de tratar
principalmente de questões distributivas e tem adiado sistematicamente o enfrentamento
de questões redistributivas colocadas pela inexorável obsolescência da legislação
trabalhista concebida na década de 1930. De fato, em virtude do ritmo vertiginoso de
urbanização e industrialização registrado no Brasil em meados deste século, já em 1964
esse problema se manifestou de forma dramática, pela emergência de formas associativas e
movimentos reivindicatórios que não encontraram na legislação em vigor os canais
institucionais adequados para se expressarem.22 A inevitável radicalização que se seguiu
acabou desaguando na interrupção violenta do processo democrático e na instalação no
poder de um regime autoritário que, por quase duas décadas, controlou com mão de ferro
os conflitos trabalhistas no Brasil. Naquele contexto, foi menos oneroso para as elites
arcar com a solução autoritária do que deflagrar, pela segunda vez em 30 anos (e agora
sob um regime constitucional democrático), um processo de reordenamento institucional
das relações entre capital e trabalho no País, processo este que dificilmente deixaria de ter
importantes conseqüências redistributivas.

Com a exaustão do regime militar e a reintrodução das principais franquias democráticas


ainda sob o governo do general Figueiredo, a questão trabalhista foi retomada
praticamente nos mesmos termos em que fora deixada em 1964 (inclusive com a reentrada
em cena quase que imediata das centrais sindicais), tornando evidente que a solução
autoritária nada havia feito, ou podido fazer, senão empurrar para um futuro indefinido a
agenda redistributiva com que se defrontava o Brasil no início dos anos 60. Menos de 20
anos depois, a mesma elite que patrocinara o golpe de estado em 1964 se deparava
novamente com alguns dos mesmos desafios de então. Assim, tendo congelado por tanto
tempo a pauta redistributiva, vemo-nos em dificuldades quando um problema crônico,
porém dramático, como a inflação exige que a encaremos de frente.

21
Para as definições originais, ver Lowi (1964, pp. 690-1).
22
A polêmica que então se travou em torno do estatuto legal do Comando Geral dos Trabalhadores – CGT
é bastante ilustrativa a esse respeito: “ilegal” para o marechal Castelo Branco, o CGT era apenas
“extralegal” para o ministro Almino Afonso.
29

Conforme foi ressaltado anteriormente, após a reinstalação do regime democrático, a


ausência de um grupo hegemônico e coeso que pudesse definir uma agenda e liderar um
processo de reconstrução institucional – que removesse tanto o chamado “entulho
autoritário” quanto os eventuais dispositivos indesejáveis remanescentes da época anterior
a 1964 – impediu que se encaminhasse com sucesso um novo formato institucional para as
relações entre capital e trabalho no Brasil. E ainda conforme vimos acima, segundo Lowi
as disputas na arena redistributiva aproximam-se das condições de um jogo de soma zero
com dois atores, no qual há um ganhador e um perdedor, envolvendo, portanto, coalizões
estáveis e ensejando a formação de estruturas políticas dificilmente removíveis, pois
refletem o impasse ou o equilíbrio das relações interclasses na sociedade como um todo.
Assim, o máximo que foi possível obter durante o trabalho constituinte em 1987/88 foram
políticas regulatórias, frutos de variadas coalizões ocasionais (que muitas vezes se
formaram em torno de um único ponto para se desfazer em outro), o que acabou
emprestando à Constituição de 1988 aquele caráter fragmentário freqüentemente aludido.
Enquanto isso, persiste a vigência de uma legislação trabalhista que é, em grande medida,
letra morta, e convivemos com uma preocupante incapacidade do governo de intervir
eficazmente nas relações econômicas e, logo, na dinâmica persistentemente concentradora
do conflito distributivo no Brasil.23

Portanto, embora seja verdade que se podem encontrar algumas das raízes mais visíveis da
inflação brasileira em determinadas políticas distributivas e regulatórias tradicionais entre
nós (respectivamente o empreguismo e o protecionismo, por exemplo), parece-me que
uma solução do problema da inflação está a requerer a implementação de políticas de
caráter efetivamente redistributivo, uma vez que o governo, com ou sem negociação, terá
necessariamente de arbitrar perdas a largos setores da economia em favor de outros, e de
maneira duradoura. Assim, o resultado daquele vácuo de poder que se observou no Brasil
após o fim do regime autoritário é a expressão mais crua do dilema do prisioneiro que
descreve as preferências e as estratégias racionais de atores imersos em um conflito
distributivo não regulado (pois não há mais qualquer legislação trabalhista que tenha sua

23
A dinâmica concentradora do conflito distributivo no Brasil nos últimos anos é descrita em Amadeo e
Camargo (1990, pp. 86-9). As seções 4 e 5 desse trabalho (pp. 77-108) – onde se descreve o mecanismo
que os autores chamam de “filosofia do repasse”, que permite uma espécie de “pacto inflacionista” entre
trabalhadores e empresários dos setores oligopolizados da economia, capazes de repassar via preços seus
aumentos de salários para os demais setores – foram posteriormente transformadas em um artigo
publicado duas vezes (Amadeo e Camargo, 1991a e 1991b). A base empírica dos resultados obtidos
pelos autores, bem como sua tese do “pacto inflacionista”, foram posteriormente contestadas por
Macedo e Piva (1992), mas ambos os trabalhos confirmam o processo de concentração de renda em
curso no País, ainda que por meio de mecanismos diversos.
30

autoridade consensualmente reconhecida pelos atores), ou seja, é a generalização de


estratégias egoístas e a obtenção de um estado de equilíbrio subótimo, embora racional: a
inflação crônica.

O problema mais grave, porém, é que a adoção de políticas redistributivas não se reduz a
uma mera questão de “vontade política” – para usar o consagrado chavão de todo
discurso oposicionista. Pois, segundo Lowi, cada tipo de política tem sua própria arena e
requer uma estrutura decisória característica. E a estrutura política da arena redistributiva
é, como sabemos, extremamente rígida, refletindo e cristalizando os impasses entre classes
sociais que derivam diretamente dos conflitos observados na sociedade como um todo.
Acerca desse tema – das condições de possibilidade da adoção dos diferentes tipos de
políticas tal como definidos por Lowi –, uma contribuição importante é o trabalho de
Robert Salisbury (1968, pp. 166-8), que afirma que o tipo de política que tende a ser
adotado varia em função do grau de integração ou de fragmentação tanto do padrão de
demandas quanto do sistema decisório. Introduzindo, além dos três delineados por Lowi,
um quarto tipo de política – a arena “auto-regulatória”24 – Salisbury (idem, p. 171) monta
um diagrama 2x2 no qual cada um dos seus quatro tipos de políticas é relacionado a um
cruzamento específico entre o grau de integração do sistema decisório e o do padrão de
demandas. Assim, uma política redistributiva requer que ambos exibam elevado grau de
integração, enquanto políticas distributivas, ao contrário, são típicas de situações em que
tanto o sistema decisório quanto o padrão de demandas são bastante fragmentados. Nas
situações híbridas, encontraríamos políticas regulatórias (sistema decisório integrado e
padrão de demanda fragmentado) e auto-regulatórias (sistema decisório fragmentado e
padrão de demanda integrado).

Figura 1

Sistema Decisório Sistema Decisório


Fragmentado Integrado
Padrão de Demandas distribuição regulação
Fragmentado
Padrão de Demandas auto-regulação redistribuição
Integrado
Fonte: Salisbury (1968).

24
Novamente segundo Santos (1982, p. 169), política auto-regulatória “significa que o grupo que
demanda terá direito de ‘legislar’ sobre seus próprios assuntos – o direito de certos grupos profissionais
de conceder licença para o exercício daquela profissão, por exemplo.”
31

Apenas dois anos depois de publicado esse trabalho, todavia, Salisbury publicou, em co-
autoria com John Heinz, um novo artigo em que ele reformula de maneira importante sua
contribuição inicial. Uma tese básica desse segundo artigo é que

“[...] há uma distinção fundamental a ser feita entre decisões que alocam benefícios
tangíveis diretamente a pessoas ou grupos, como as políticas de gastos geralmente fazem
[caso das políticas distributivas ou redistributivas], e decisões que estabelecem regras ou
estruturas de autoridade que guiarão futuras alocações [caso das políticas regulatórias ou
auto-regulatórias].” (Salisbury e Heinz, 1970, p. 40, tradução minha.)

Em seguida Salisbury e Heinz reconhecem que o significado empírico do conceito de


integração/fragmentação do sistema decisório não é claro, o que tenderia a provocar
associações arbitrárias de determinadas características do sistema decisório com arenas
específicas. Uma das mais presumíveis, segundo ilustração dos próprios autores, seria, por
exemplo, a afirmação genérica de que o Poder Legislativo é um sistema decisório
fragmentado, ou então, inversamente, que o Executivo, por ter um chefe único, é
integrado. Contudo, a experiência nos mostra que podemos perfeitamente, conforme a
natureza da decisão, ou mesmo em razão de contextos políticos específicos, ter no
Legislativo um órgão coeso ou dominado por sólidas maiorias, que decidem com rapidez
e facilidade; bem como, inversamente, governos heterogêneos, constituídos por coalizões
nem sempre estáveis, que se vêem paralisados pela permanente necessidade de barganhas
internas, sejam estes governos parlamentares ou não.25 Salisbury e Heinz (idem, p. 41)
afirmam, então, que a questão não é o grau de integração alcançado pelo sistema
decisório, mas antes quão difícil ou custoso é o processo de se alcançar a coalizão
requerida para a tomada de decisão. Com base nesse ponto reformulam o argumento
anterior de Salisbury, substituindo o grau de integração/fragmentação do sistema decisório
pelo custo de se alcançar uma decisão. E com isto mudam os resultados. “Invertem-se” no
diagrama 2x2 de Salisbury as posições originalmente esperadas das políticas distributivas e
regulatórias. Assim, quando o padrão de demanda é fragmentado, teremos decisões
distributivas se o custo da decisão for baixo; e regulação se o custo da decisão for
elevado. Complementarmente, com padrão de demanda integrado, teremos políticas
redistributivas se o custo da decisão for baixo, e auto-regulatórias se o custo da decisão
for elevado. O argumento subjacente é simples, e intuitivamente mais persuasivo – sob um
certo prisma – que o esquema anterior: pois simplesmente alega-se que com custos

25
Segundo conhecido trabalho de Sérgio Abranches (1988), o caso brasileiro constitui precisamente um
exemplo sui generis da possibilidade de regimes presidenciais apoiarem-se habitualmente em governos
de coalizão, o que faz com que a hipótese apresentada por Salisbury e Heinz (1970) adquira para nós
especial interesse.
32

reduzidos se toma a decisão alocativa (distributiva ou redistributiva) e, com custos


elevados, decisões estruturais, isto é, delegações de autoridade, com resultados
regulatórios ou auto-regulatórios (idem, p. 49).26 Por outro lado, não deixa de parecer
estranho que políticas distributivas requeiram baixo custo de tomada de decisão. Posto
assim, o argumento dá a entender que seria mais fácil adotar políticas regulatórias que
distributivas – o que, convenhamos, é bastante contra-intuitivo.

Figura 2

Alto Custo da Tomada de Baixo Custo da Tomada


Decisão de Decisão
Padrão de Demandas regulação distribuição
Fragmentado
Padrão de Demandas auto-regulação redistribuição
Integrado
Fonte: Salisbury e Heinz (1970).

De qualquer maneira, dadas as enormes dificuldades com que se irá deparar qualquer
tentativa de se elaborar uma tipologia generalizável de políticas públicas, as contribuições
de Salisbury, a despeito de suas inevitáveis limitações, constituem o núcleo do que há de
melhor na literatura sobre o tema. E, transposta a discussão novamente para a análise do
caso brasileiro, o que se pode constatar é que as enormes dificuldades enfrentadas pelo
governo na busca da estabilização da economia não deixam de constituir uma parcial
corroboração do esquema teórico de Salisbury e Heinz. Desde o fim do regime militar o
quadro político-partidário nacional tem se mostrado cada vez mais fragmentado, elevando
para níveis estratosféricos o custo da formação das maiorias necessárias à tomada de
qualquer decisão. Se Salisbury e Heinz estiverem certos, este simples fato já ajudaria a
explicar a referida tendência da Assembléia Nacional Constituinte de 1987/88 por decisões
regulatórias e sua dificuldade de tomar decisões com implicações redistributivas. No que
diz respeito à estabilização econômica duradoura, então, que necessariamente traria
conseqüências fortemente redistributivas pela simples queda da inflação, o nível de
dificuldade de formação de maiorias hegemônicas coesas tem se transformado em um
sério entrave. (Vide as dificuldades enfrentadas pelo governo de Fernando Henrique
Cardoso logo nos primeiros meses de seu mandato, quando jogou todas as suas fichas nas
reformas constitucionais, presumivelmente indispensáveis para a manutenção, a longo
prazo, da estabilização monetária.) Tende-se, ao contrário, para decisões que Salisbury e
26
Sou grato à Prof.ª Maria Regina Soares de Lima por ter-me sugerido o trabalho de Salisbury e Heinz.
33

Heinz chamam de “estruturais”, “delegativas”, de regulação ou auto-regulação de diversos


setores, uma vez que não se consegue uma maioria parlamentar suficientemente sólida
para tomar uma posição firme na inevitável atribuição de perdas que o jogo de soma zero
típico da arena redistributiva reclama.

Para a viabilização da retomada da agenda redistributiva no Brasil, portanto, de acordo


com o que se pode inferir da contribuição de Salisbury e Heinz, impõe-se, de um lado, a
redução do custo de formação das maiorias necessárias à tomada de decisões e, do outro,
a integração do padrão de demandas do sistema. Logo, no que diz respeito a algumas das
principais questões que se colocam diante de nós quando tentamos elaborar um novo
formato institucional para as relações entre capital e trabalho – e destes com o Estado –
no Brasil, creio que algumas conclusões podem ser avançadas.

De saída, pode-se afirmar que a ressurreição das centrais sindicais na última década não
pode senão ser saudada como uma bem-vinda novidade nas relações trabalhistas no País,
pela evidente integração que promovem no padrão das demandas dirigidas ao sistema
político. Invariavelmente acusada por seus adversários de “xiita” e causadora de
problemas, a CUT na verdade pode se constituir em um passo decisivo para o
estabelecimento de um sistema corporativista saudável de processamento das demandas
operárias no País. Principalmente por ter nascido intimamente ligada a um partido político,
o PT, a CUT já nasceu desempenhando um papel institucional poderoso no cenário
nacional. E o estilo freqüentemente intempestivo, natural nos primeiros tempos, tende a
ser progressivamente substituído por uma visão mais estratégica, dando à Central
possibilidades de atuar de maneira bastante eficaz em barganhas políticas.27 Michael
Wallerstein (1989, pp. 44-5) lembra que a centralização sindical, ao mesmo tempo em que
é requisito para a eficácia das greves (ou das reivindicações trabalhistas em geral), também
implica a “domesticação” do movimento trabalhista: diminui o número de greves, contêm-
se demandas salariais. Acaba sendo, portanto, condição importante para o sucesso de uma

27
Certamente o grande perigo que paira sobre a CUT hoje é o risco de se tornar uma “central dos
funcionários públicos”, uma vez que ela já controla todos os sindicatos dessa área. O sindicalismo de
classe média, apesar do discurso mais radical, é intrinsecamente conservador, pois, sendo de extração
social mais elitizada, tem, naturalmente, mais a perder com mudanças. É fundamental que a CUT não
se deixe aprisionar por seus interesses, e que mantenha a hegemonia operária em seu interior, se quiser
ser uma força realmente mudancista.
34

política de rendas que busque coordenar a evolução dos preços relativos ao longo de um
processo de estabilização monetária.28

Se se trata de procurar compensar, de alguma maneira, as desigualdades extremas com


que se depara a sociedade brasileira, é difícil imaginar como fazê-lo – principalmente se
levamos em conta a maneira como se deu o processo em outras partes do mundo –, senão
através da ação do Estado. Assim, o desmantelamento puro e simples de qualquer
instituição estatal de intermediação de interesses, longe de favorecer os objetivos das
organizações representativas dos setores populares, na verdade reduz drasticamente suas
condições de perseguir com sucesso a realização de seus interesses. (Ver, a respeito, F.
Reis, 1991a, pp. 50-1.) Não porque o Estado seja, idealisticamente, a encarnação dos
interesses mais elevados da Nação ou qualquer outra balela deste tipo, mas simplesmente
porque, realisticamente, a extinção de instâncias formais de intermediação de interesses no
seio do Estado conseguirá apenas vedar qualquer acesso de grupos menos privilegiados
aos centros mais relevantes de decisões políticas. Não há muitas alternativas, portanto,
para um adequado processamento das demandas do setor privado junto ao Estado no
Brasil, senão aproveitar as instituições que já possuímos e transformá-las topicamente,
conforme as necessidades e a evolução dos acontecimentos no seio da sociedade civil.
Alternativamente, o que se poderia esperar – caso se optasse por uma desregulamentação
do tema – seria a colonização do Estado pelos interesses da burguesia, por intermédio dos
anéis burocráticos descritos por Fernando Henrique Cardoso. Naturalmente, o Estado, por
meio da Justiça do Trabalho, não tem de ser o árbitro “de tudo”, e assuntos privados entre
trabalhadores e patrões na maioria das vezes deveriam ser resolvidos entre eles. Mas
também é inegável que muitas vezes essas disputas redundam em demandas de natureza
política que serão dirigidas ao governo, e é bom que existam instituições adequadas à
tarefa de processá-las à vista do público – caso contrário, as barganhas serão feitas
clandestinamente.

Resta a conclusão, portanto, de que as origens, por assim dizer, “pouco recomendáveis”
das nossas instituições corporativas não devem ser tomadas como uma maldição, um
pecado original que condena todo o arcabouço jurídico existente sobre o assunto à
execração eterna. Primeiramente porque, como vimos, o caráter “bifronte” do
corporativismo destacado por O’Donnell demonstra que ao mesmo tempo que o estado

28
Algumas considerações recentes em torno da importância, bem como de algumas limitações básicas, do
papel a ser desempenhado por uma política de rendas num processo de estabilização monetária como o
vivido pelo Brasil hoje podem ser encontradas em Carvalho (1995, esp. pp. 148-9).
35

expande tentáculos na direção dos movimentos organizados da sociedade civil,


interferindo e controlando os limites de sua atuação, ele também se torna necessariamente
mais poroso às demandas desses grupos incorporados ao sistema. O caso da gestão de
Almino Afonso à frente do Ministério do Trabalho em 1963, analisado por Kenneth Paul
Erickson, é um exemplo famoso da forma como as instituições podem ser voltadas contra
os seus presumíveis propósitos iniciais. O fato de o ministro ter sido substituído ao fim de
poucos meses no cargo afirma claramente os limites dessa “reviravolta” em um sistema
centralizado como aquele. Mas também o fato de o próprio processo democrático ter sido,
por sua vez, interrompido poucos meses após a queda de Almino Afonso demonstra
eloqüentemente a vulnerabilidade do sistema de dominação e controle sob um regime
democrático. E este é o meu ponto, aqui. Reformas podem – e devem – sempre ser feitas,
onde quer que pareça necessário ou conveniente aos atores interessados, e desde que
esses atores consigam formar a maioria necessária para a adoção das reformas
pretendidas. Mas não há razão para apostar no sucesso de uma completa remoção da
estrutura existente ou de sua substituição por um aparato institucional de representação de
interesses inteiramente novo. Diante do processo de crescente reconhecimento dos
interesses privados como forças sociais legítimas na arena política nacional – a “revolução
dos interesses” detectada por Werneck Vianna (1989, p. 94) na política brasileira recente
– mal se reconhece hoje a armadura institucional das relações entre capital e trabalho
forjada há 50 anos, após algumas tantas alterações legais efetivamente realizadas e o
simples desuso de algumas outras determinações. Sem querer diminuir a importância de
algumas reformas que ainda estão por ser feitas, hoje muito do que há por reformar se
destinaria, principalmente, a adequar a legislação ao que já ocorre efetivamente nas
relações trabalhistas no Brasil.
36

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41

RESUMO
Corporativismo, Pluralismo e Conflito Distributivo no Brasil

O artigo parte de uma discussão conceitual sobre “corporativismo” e “pluralismo”,


procurando mostrar que a redução de ambos a princípios polares e opostos de
organização social – freqüente na literatura – traz consigo simplificações graves que
prejudicam uma adequada compreensão dos problemas envolvidos na construção de
instituições políticas destinadas a processar publicamente a intermediação de interesses
privados conflitantes. Numa segunda parte, o artigo tece considerações sobre o caso
brasileiro, detendo-se um pouco sobre o problema da inflação acelerada e suas relações
com uma precária institucionalização das disputas distributivas no país. O artigo inclina-se
pela conclusão de que o processo de institucionalização da democracia no Brasil inclui a
tarefa de se construir um “adequado” corporativismo entre nós, ao invés de simplesmente
se extinguirem as precárias instituições corporativas existentes.

Bruno P. W. Reis é professor-assistente do Departamento de Ciência Política da


Universidade Federal de Minas Gerais e doutorando em Ciência Política pelo Iuperj. Já
publicou nesta revista o artigo “O Conceito de Classes Sociais e a Lógica da Ação
Coletiva” (Dados, vol. 34, nº 3, 1991), sendo sua publicação mais recente o artigo “Kant,
Burke e os ‘Efeitos Perversos’: Considerações sobre o Papel da Tradição no Argumento
Racionalista”, in Antonio F. Mitre (org.), Ensaios de Teoria e Filosofia Política em
Homenagem ao Prof. Carlos Eduardo Baesse de Souza (Belo Horizonte, DCP/UFMG,
1994). Atualmente desenvolve tese de doutorado sobre as relações entre a política e a
inflação no Brasil, mais exatamente sobre as vicissitudes econômicas a que estão sujeitos
países em processo de modernização acelerada.

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