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FERNANDO CORREIA PINA

AS TERMAS DA SULFÚRIA
CONTRIBUTOS PARA A HISTÓRIA DAS ÁGUAS DE
CABEÇO DE VIDE

2010

1
1. Introdução

Apesar do considerável número de trabalho publicados sobre as termas de


Cabeço de Vide, a sua história continua em grande parte por escrever.
Existe, assim, um razoável acervo de monografias técnicas de cariz hidro-
geológico sem uma correspondente contrapartida de estudos institucionais que
nos permitam reconstituir o percurso da Sulfúria até ao seu actual estatuto de
estância balnear de referência a sul do Tejo.
Ao facto não serão alheias as profundas e sucessivas reformulações políticas e
administrativas que durante mais de um século conduziram à dispersão de
fundos documentais de consulta incontornável para esse fim.
Propomo-nos, no presente trabalho, com recurso a documentos originais,
colmatar algumas das lacunas apontadas, reconstituindo, numa perspectiva
cronológica, a existência da Sulfúria desde os inícios do séc. XIX até meados
da década de sessenta do mesmo século, data da extinção do antigo concelho
de Cabeço de Vide e da sua anexação ao de Alter do Chão, período a que,
como mais adiante faremos, se poderá chamar, com propriedade, de
“nascimento da Sulfúria”.

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2. As águas antes das termas

“A fonte é um nascimento irresistível, um nascimento contínuo”.


Estas palavras de Gaston Bachelard podem muito bem servir de introdução ao
presente trabalho já que traduzem, de algum modo, o irreprimível interesse dos
homens, desde as épocas mais remotas, pela água e, de modo muito
particular, pelas nascentes, invariavelmente associadas aos mistérios da vida,
da morte e da regeneração.
Confirmando estas observações, existem no território nacional vestígios do
culto das fontes pelas populações autóctones desde a mais remota
antiguidade.
São vários os monumentos conhecidos, dedicados a divindades associadas a
nascentes minerais : a Fonte do Ídolo, em Braga, consagrada ao deus lusitano
Tongoenabiagus, o encontrado nas Caldas de Vizela, votadas a Bormanicus e
um outro, encontrado em Adaúfe, dedicado ao deus Endovélico. 1
Foram, porém, os romanos que manifestaram, pela primeira vez, um interesse
profundo e generalizado pelos empreendimentos hidráulicos com finalidades
higiénicas, sociais e terapêuticas, materializado num grande número de
aproveitamentos aquícolas numa escala até então sem precedentes2.
Citemos apenas, a título de exemplo do que atrás fica dito, o caso das Termas
de Caracala, ocupando uma área superior a onze hectares e dispondo de cerca
de 1600 lugares para os banhistas ou o da própria cidade de Roma que, no
séc. IV d.C., dispunha de onze estabelecimentos de banhos públicos, 856
banhos privados e cerca de 1352 fontes e cisternas para abastecimento
público, debitando mais de 1400 l. de água/dia por habitante.3
A aceitação universal do banho enquanto acontecimento central da vida
quotidiana pertenceu, de facto, à civilização romana e não haverá qualquer
exagero se afirmarmos que, no auge do império, os banhos constituíam a
materialização do ideal romano de vida urbana.
Para além das suas finalidades higiénicas, os banhos dispunham de
instalações para as práticas desportivas e recreativas. A sua natureza pública
dotou-os de um ambiente próprio, à semelhança de um clube ou centro
comunitário dos nossos dias.

3
As grandes termas apresentavam ainda uma vertente cultural e intelectual já
que algumas dispunham de bibliotecas e salas de leitura.4
Da época romana, como não podia deixar de ser, ficaram também no nosso
país abundantes testemunhos dessa paixão pela água5.
Datam desse período as termas de Lisboa, situadas no subsolo da Baixa, sob
as ruas das Pedras Negras, da Conceição e da Prata, as de Conimbriga, Vizela
e Chaves e, mais a sul, as do Milreu, de Monchique, de Bencatel e as de
Cabeço de Vide de cujos vestígios daremos notícia mais adiante.6
Estas últimas, à semelhança do sucedido com todas as outras, terão
certamente experimentado, com a desagregação do Império Romano, um
período de grande decadência do qual só viriam a recuperar no princípio do
passado século, por ocasião de um surto de renovado interesse pelo
termalismo então verificado.
Falámos atrás em decadência das termas e não no seu abandono ou
esquecimento e isto porque cremos que, de facto, a prática da utilização das
suas águas com fins medicinais não se terá perdido mas, sim, continuado, se
bem que de modo rudimentar.
Não dispomos, até agora, de quaisquer elementos que nos permitam avaliar da
sua utilização durante o período medieval. Porém, se tivermos em
consideração as propriedades terapêuticas das águas no tratamento das
afecções do foro dermatológico e a frequência e carga simbólica negativa de
que estas se revestiam no imaginário da Idade Média, é mais que provável que
o seu uso se tenha mantido com alguma intensidade, como se depreende da
designação de Fonte da Sarna, atribuída ao único nascente ainda em uso no
início do séc. XIX.7
Já na Época Moderna, a partir do séc. XVI, as nascentes minerais começaram
a ser conhecidas de modo mais intensivo e, para os séculos XVII e XVIII,
dispomos de evidências documentais que comprovam a frequência das termas
da Sulfúrea por forasteiros que a elas acorriam em demanda de alívio para os
seus padecimentos, como se depreende das Cartas de Guia passadas pela
Misericórdia de Fronteira aos transeuntes que se dirigiam, a pé ou a cavalo,
para as caldas de Cabeço de Vide.
O séc. XVIII marcou definitivamente o início daquilo a que, com propriedade,
poderemos chamar de termalismo científico, graças à fundação da Academia

4
das Ciências (1779) e ao começo da prática regular da análise das águas, de
que o professor Domingos Vandelli, da Universidade de Coimbra, foi percursor.
Do mesmo período (1726) data também a publicação da primeira obra de
grande fôlego sobre as águas medicinais portuguesas, o Aquilégio Medicinal,
da autoria do Doutor Francisco da Fonseca Henriques, médico de D. João V
que, ainda que sem fazer qualquer referência às propriedades terapêuticas das
águas, não deixou de referir duas nascentes do termo de Cabeço de Vide,
notáveis pela bondade do seu débito

No termo da Villa de Cabeço de Vide, Comarca de Estremoz, se acha huma fonte a que
chamão da Bica, cuja agoa he muy grossa, e não cose os legumes; mas he tão copiosa,
que entrando em huma ribeyra a que chmão do Pé da Vide, a faz tão abundante de
ágoas, que com ellas moem varios engenhos de farinhas, e trabalhão muytos pizoens,
sobejando ainda agoa para se regarem, e fertilizarem varias ortas, e pomares.

Ha mays no termo da dita Villa de Cabeço de Vide outra fonte, a que chamão a Fontinha,
tão abundante de agoa, que della se forma a ribeyra chamada do Vidigão, com a qual se
regão muytas ortas, e pomares, e moem varios engenhos de farinhas.8

Igualmente omissas em referências às águas sulfurosas são as Memórias


Paroquiais que no quesito correspondente registam apenas

[…] nem há nesta villa, nem no seu destricto fonte nem alagoa cellebre, nem agoas de
especial qualidade9

Chegamos, assim, ao século de oitocentos em que se iria verificar um interesse


generalizado pelo aproveitamento das nascentes com propriedades curativas,
interesse que se fez também sentir, de modo notável, em Cabeço de Vide.

3. O nascimento da Sulfúria

No dealbar do séc. XIX, as Termas da Sulfúria encontravam-se em estado


lastimoso, reduzidas a um charco imundo, continuando, contudo, o povo a
servir-se delas apesar de não terem sido ainda objecto de qualquer estudo
hidrológico, como anotou o médico espanhol D. Gabriel Mira nas suas
observações médicas sobre Cabeço de Vide, em finais de 1816

Esta poblacion esta situada en hun otero que quasi forma huna linea paralela com la sierra
de la Ciudad de Porto-Alegre que dista de este punto quatro leguas portuguesas, i en la
estacion del imbierno se cubre con mucha frecuencia de nieblas mui densas, i mui frias,

5
por qualquier parte que se entra en esta Villa se sube laera mui empinada; en su termino a
distancia de media legua nacen dos fuentes de agua potable, i de ellas correm dos
regatos de Norte al medio dia quedando la poblacion en medio, esta rodeada de olivares,
tiene algunas huertas con arboles frutales, a saver, narangeras, limoneros, i amecheras,
se cria en su territorio todo genero de legumbres, trigo, cevada, centeno, i produce vino
para el consumo de medio año, i no es de mala qualidade, las carnes son carnero,
chibato, porco, i gallina; los aires que mas reinam son Oriente, i Norte mui inclinado a
Poniente, las aguas que beben son cristalinas, i entre las fuentes de que facem uso se alla
huna vastamente sulfurea, que por no estar bien examinada no se describem sus virtudes
medicinales; el pan que comen por la maior parte es de toda farina, su comum alimento
son favas, freixon, chicharos, navos, i cove con pocos temperos, i mui poca gordura; el
travajo en que se ocupan estos indibiduos es en todo serbicio del campo, i esto lomesmo
hombres que mugeres, i rapaces; se aligeram mucho de ropa para travagar, i no se
acautelan como debian quando concluíen su exercício: de este conocimiento de cosas tan
precisas para la vida, i su conservacion, tire alguna utilidad para el curativo de las
molestias que con mas frecuencia atacan a estos moradores.10

Se bem que situadas numa propriedade privada, o acesso à então designada


Fonte da Sarna continuava, certamente por força de costume antiquíssimo, a
ser franqueado a quem da sua água necessitasse.
Assim as viria a encontrar o doutor Domingos Bernardino Velloso de Macedo,
Juiz de Fora de Cabeço de Vide, homem cuja visão e iniciativa se viriam a
revelar decisivas para o futuro das termas.
Foi, efectivamente, este magistrado que, à sua própria custa, mandou construir
uma casa com dezoito palmos de comprimento e nove de largura, coberta de
abóbada, para banhos, tendo anexa outra sala das mesmas dimensões que
servia de vestiário.11
Para os mesmos efeitos, aquele ministro fez ainda construir um pequeno
tanque, com a capacidade de dois palmos cúbicos, no fundo do qual nascia a
água que era depois canalizada para os banhos.
Por essa altura, à distância de dez passos da fonte então aproveitada
brotavam, junto à ribeira, outras duas nascentes. Estas três nascentes terão,
provavelmente, sido canalizadas, em épocas mais remotas, por uma única
conduta já que, em 1816, ali tinha sido posto a descoberto, a pouca
profundidade, um cano antigo, feito de telhas metidas em cal e areia, que se
encontrava entupido por uma grossa cadeia.12
Tiveram aquelas obras lugar em 1817, parcialmente financiadas pelo produto
das coimas feitas na coutada do concelho, cedidas pelo superintendente das
Reais Manadas13 e nelas foi utilizada pedra extraída do antigo castelo como se

6
deduz da carta com data de 26 de Agosto daquele ano enviada, do Quartel-
General de Estremoz para o Presidente da Câmara de Cabeço de Vide:

Anuindo à representação que Vossa Mercê me faz no seu ofício datado de 23 do corrente,
permito que faça uso da pedra do antigo muro para reparo da fonte de água medicinal que
existe na proximidade dessa vila.14

Ora, foi durante o decurso destes trabalhos que foram postos a descoberto os
vestígios arqueológicos que apontam para a origem romana dos
aproveitamentos hídricos da Sulfúrea.
Com efeito, durante os consertos da fonte, encontrou-se um grande bloco de
pedra mármore, com buracos rectangulares, um deles cheio de chumbo e outro
que apresentava ainda o fundo de um balaústre de jaspe. Daí concluíram
alguns autores estarem em presença de parte da base de uma balaustrada,
construída com alguma grandiosidade.
Para além deste espólio, as escavações entregaram ainda diversas moedas,
de cobre, de diversos períodos, entre as quais uma do reinado de D. Sebastião
e outra em que se podia claramente ler a palavra CAESAR e que tem sido
atribuída ao reinado de Augusto.15
Recordemos que os achados monetários junto de nascentes, atestados um
pouco por todo o antigo mundo romano e com particular relevo na Gália,
testemunham a prática generalizada das oferendas rituais às divindades das
águas.16
Estes vestígios e muitos outros já inventariados na mesma zona inclinam-nos a
considerar a presumível origem romana das termas da Sulfúrea que terão sido,
originariamente, um balneum.17
Ora, a construção das primeiras e modestas instalações balneárias decorreu
lentamente e não sem algumas dificuldades.
Apesar do empenho do Juiz de Fora e das contribuições do povo da localidade
e de muitos forasteiros, as verbas angariadas revelaram-se insuficientes para a
conclusão do empreendimento pelo que o doutor Domingos de Macedo apelou
para a participação da autarquia à qual propôs, na vereação de 19 de Julho de
1818

que tendo concorrido para se prontificar a fonte de água sulfúrea e nela um banho para o
uso da aplicação da dita água e tendo para esta obra concorrido com o possível todos os

7
moradores deste Povo e ainda os de fora, contudo, não chega para se concluir a dita obra,
tão útil a este público, para a qual ainda este concelho não havia concorrido e por isso
deveria concorrer o que ouvido pelos mais oficiais da Câmara determinaram se
aplicassem vinte e quatro mil reis dos bens do concelho para socorro da sobredita obra.18

Talvez em virtude do empenhamento da autarquia, as obras ficaram concluídas


ainda naquele ano, como se deduz do requerimento para preenchimento do
lugar de encarregado das águas que a seguir se transcreve:

Nesta [vereação] foi presente um requerimento de Manuel António da Aldeia em que pedia
se lhe dessem os botelhões da ribeira que estão juntos à Fonte Sulfúrea em que moraria
de graça pagando ao Concelho com a sua assistência e trazendo tudo com grande asseio
e recato, ficando também isento do Real serviço e dando-se-lhe licença para poder vender
todo o género de mantimentos, o que se lhe deferiu atendendo à utilidade da assistência
de que necessita a dita Fonte Sulfúrea, a fim de a mesma andar com bom asseio e reparo
e mesmo para resguardo da mesma se lhe concedeu licença para desfrutar os botelhões
de que faz menção que são os do freixo para baixo, sendo por isso obrigado a assistir em
todo o ano no monte da dita Tapada e em todo o tempo trazer com asseio a dita fonte e a
repará-la à sua custa assim como os mais edifícios a ela anexos quando se mostrar que
as ditas ruínas foram causadas pela sua omissão e descuido.19

Este documento é, a vários títulos, de grande interesse.


Dele se infere não só que as primitivas instalações estavam já em
funcionamento no início de 1819, mas também que existiam ainda, naquela
época, vestígios de antigas construções na área circundante das nascentes20.
Ora, para além deste seu empenhamento a nível local e face ao aumento da
frequência das termas e aos bons resultados alcançados pelos utentes, o
doutor Velloso de Macedo tomou ainda a seu cargo a iniciativa de oficiar o
Governo do Reino no sentido de desencadear uma mais directa intervenção do
poder central na matéria que tanta atenção lhe merecera.
Porém, o magistrado viria a ser nomeado para o lugar de Juiz dos Órfãos de
Barcelos, abandonando, definitivamente, a vila de Cabeço de Vide.
Não se perdeu, felizmente, nos meandros da burocracia a sua petição e, a 13
de Julho de 1819, a Secretaria de Estado dos Negócios do Reino despediu
para o Corregedor da Comarca de Avis, doutor Manuel Ferreira Tavares
Salvador, um aviso para que este elaborasse um relatório e mandasse
proceder à análise química das águas.

8
Deste relatório ficou registado o essencial no registo do provimento da
correição de 3 de Junho 1820, conservado no cartório da Câmara de Cabeço
de Vide, que a seguir reproduzimos

A água sulfúrea que vai produzindo bons efeitos em muita gente enferma que dela usa,
virá com o tempo a ser um poderoso motivo para felicitar esta povoação e por isso e
também pelos socorros que pode prestar à humanidade enferma merece particular
atenção desta Câmara.
Entre outras muitas providências que este negócio merece e que o zelo da Câmara deve
prestar, é necessária a de se fazer um livro em que se escrevam os nomes dos enfermos
que vêm buscar este remédio, declarando no respectivo assento quais são as moléstias
de que padecem e qual o efeito que nelas produziu o uso das águas, quer bebidas quer
tomadas em banho, para à vista desta colecção de factos se estabelecer um fundamento
fixo para a sua aplicação porque sendo a Ciência da Medicina na maior parte empírica e
resultante de experiências e averiguações de factos, só por estes factos bem observados
se poderá bem ajuizar do merecimento das referidas águas.
Além do regime médico acima notado e que deve ser arranjado pela Câmara de acordo
com os facultativos, deve a Câmara dispor de um regimento político e económico para ser
observado pelos que concorrerem ao uso das águas e por aquele que a Câmara destinar
para sustentar e fazer observar esse regimento e lembrem-se os vereadores que o bom
resultado depende sempre dos bons métodos com que os estabelecimentos são criados e
que se este estabelecimento for avante, como é de esperar que virá a ser, muito honrados
serão na posteridade se pelo seu zelo e cuidado concorrerem para que tudo se comece
logo em boa ordem.
Logo na primeira vereação serão chamados o Médico e o Cirurgião dos partidos e na
presença da Câmara e dos ditos facultativos será lido pelo escrivão este provimento de
que se fará termo por todos assinado o que o escrivão cumprirá sob pena de suspensão. 21

E logo na vereação seguinte assim se fez.


Como se verá, não foram a falta de visão nem de inteligência os entraves ao
progresso das termas...
Paralelamente a este relatório, o Corregedor solicitou ainda ao médico dos
partidos, doutor José Inácio da Costa, que coligisse os dados relativos aos
frequentadores das termas, suas moléstias e resultados obtidos e, uma vez na
posse destas estatísticas, remeteu-as para as instâncias competentes.
O Governo encaminhou-as então para a Academia Real das Ciências,
recomendando que aquela prestigiosa instituição procedesse, sem demora, à
análise das águas, tarefa de que foi incumbido o académico Francisco Xavier
de Almeida Pimenta que a tal propósito elaborou uma memória descritiva que

9
viria a ser publicada na História e Memórias da Academia Real das Sciencias
de Lisboa, em 1823, de onde extraímos o texto que de seguida se apresenta

[...] No tempo que me demorei em Cabeço de Vide observei constantemente todos os


enfermos, que ali concorreram, desejando poder observar toda a marcha, e andamento de
suas moléstias durante o uso das águas. Se eu quisesse referir tudo quanto ali ouvi de
maravilhoso, passaria por um crédulo engolidor de histórias, e milagres que me contaram.
Eram de tal maneira exageradas as suas virtudes pelo Médico, e Cirurgião da dita vila,
que eu lhes disse que não me admiraria se visse que um homem sem uma perna ou braço
se metia no banho, e nele lhe tornava a nascer outro, porque não eram menos difíceis que
este alguns casos que me contaram.
Seria todavia loucura em mim querer duvidar de todos os factos, que se me referiram,
porque a minha ignorância de poder conceber como sucedessem, e como se devem
explicar, não me deve servir de fundamento para duvidar de tudo, que me contaram
pessoas, que aliás devo julgar serem verdadeiras; entretanto a crítica é muito necessária
nestas matérias; e eu, não sendo incrédulo, sou difícil em acreditar aquilo de que não
posso conceber a razão.
Referindo-me pois ao que observei enquanto ali estive, devo dizer que examinando, e
inquirindo os doentes, achei grande parte dos que padeciam ciáticas, tomando quatro até
cinco banhos, experimentavam melhoras; alguns ficaram perfeitamente restabelecidos,
outros desaparecendo-lhe as dores na articulação da coxa com os ossos da bacia,
continuaram a sentir ainda uma tal ou qual lembrança de dor nos artelhos, que talvez se
dissiparia se eles continuassem com os banhos, que deixavam logo que podiam caminhar,
e retirar-se para suas casas. Os que vieram com reumatismos, tanto gerais como
particulares em uma ou outra articulação, obtiveram muitos alívios, e foram perfeitamente
curados alguns destes. Observei porém que nas mulheres que padeciam estas moléstias,
e falta de menstruação poucas melhoras conseguiam, e ainda quando sentiam algum
alívio era sempre passageiro.
Os doentes com membros contraídos por efeito de reumatismos ficaram pela maior parte
com os movimentos livres e desembaraçados. Uma mulher, que por efeito de uma queda
não podia mover a cabeça sem voltar todo o corpo, e que além da prisão sentia uma
violenta dor no pescoço, ficou ao terceiro banho restituída à sua antiga saúde, movendo
com facilidade e sem dor a cabeça.
Muitas úlceras antigas, principalmente nas pernas, se curaram com estes banhos, e
quando se não cicatrizavam de todo (principalmente as que mostravam mau caracter)
ficavam reduzidas a melhor estado, e menor circunferência. Vi um homem, que tinha uma
úlcera com aspecto canceroso, que ocupava parte da testa, os cantos internos das
pálpebras, e parte do nariz; não estava curado quando saí de Cabeço de Vide, mas a
úlcera estava reduzida à sexta parte do que era.
Nas afecções psóricas produz admiráveis efeitos, assim como todas as águas hidro-
sulfuradas; nas dispepsias, e obstruções de entranhas do ventre é também muito
proveitosa. Referirei um caso, que ali observei:
Um pastor de constituição atlética chegou ali marasmado, e parecendo um esqueleto
coberto com a pele. Nenhum alimento digeria, e tudo vomitava; no primeiro copo de água

10
que bebeu experimentou a melhora possível, que foi não o vomitar; bebeu mais, e não
vomitou nesse dia, nos seguintes continuando com o uso da água, continuou a digerir, e
conservar o alimento, e no fim de quinze dias estava nutrido, e já trabalhava segundo as
suas forças.
Nos cálculos urinários é excelente remédio; em Cabeço de Vide havia uma mulher, que
tinha sofrido a operação da extracção de uma grande pedra da bexiga, que saiu aos
pedaços, e lhe foi tirada por um Cirurgião de Estremoz; passados anos, foi acometida de
novo, e conheceu que tinha outra pedra; porém tendo morrido aquele Cirurgião, ficou
entregue à sua sorte, sem ter a quem recorrer, e esperando a morte todos os dias.
Em um violento ataque de dores, fazendo todos os esforços por urinar, saiu a pedra, que
me apresentou, e é como um ovo de pomba. Livre por algum tempo, começou a sentir que
se formava nova pedra, padecendo dores, peso na bexiga, e dificuldade em urinar.
Cheguei nesse tempo a Cabeço de Vide, e mandando-a logo usar de água mineral,
começou a sentir alívios, e no fim de três semanas não sentia o mais leve incómodo. Esta
virtude devida à soda tem sido atestada em outros casos, em que a tenho aconselhado a
alguns doentes, que se têm achado bem com as águas de Cabeço de Vide.
Não tive ocasião de poder observar os seus efeitos nas paralisias, porque enquanto ali
estive, só apareceu uma mulher hemiplégica, que poucos alívios tinha conseguido até ao
tempo que saí dali; todavia contaram casos de alguns, que se haviam restabelecido no
ano antecedente [...].

Apresentados relatório e memória, tudo apontava para que fossem postas em


prática as medidas de fundo já anteriormente preconizadas, tendo em vista o
desenvolvimento das termas cuja crescente frequência sem dúvida justificava.
Porém, a eclosão da revolução liberal de 1820, viria a inviabilizar todo o
processo, arredando a questão da Sulfúrea da esfera das preocupações do
governo revolucionário.
Não desistiram, apesar disso, os mais directamente interessados de levar
avante, com os seus próprios meios e recursos, o projecto em que tantas
esperanças tinham depositado.
Longe da agitação política, o doutor José Inácio da Costa continuava
diligentemente a recolher os dados estatísticos sobre a frequência das termas
e os resultados alcançados pelos pacientes.
Graças aos elementos então compilados sabemos hoje que, no ano de 1822, a
Sulfúrea foi frequentada por mais de mil aquistas, 512 dos quais colaboraram
no inquérito do médico partidista.22
Da análise desses dados facilmente se conclui, com base nas terras de origem
dos utentes, que a fama das termas se tinha afirmado já, naquela época,

11
principalmente a nível regional do Alentejo e da vizinha Estremadura
espanhola.
Outro facto que ressalta das observações e ao qual não podemos deixar de
fazer referência, é o da opinião maioritariamente favorável dos inquiridos
quanto aos efeitos dos tratamentos.
Tal como hoje, as águas eram particularmente procuradas por pacientes dos
foros reumatológico e dermatológico sendo, porém, numerosos os que
manifestaram diversos graus de alívio em patologias tais como as dispepsias,
conjuntivites, astenias, cardialgias e hemorroidal, entre outras.
Curiosamente, naquele período, apenas um de entre as várias centenas de
utentes recorreu às águas para tratamento de uma afecção das vias
respiratórias, a asma, tendo o paciente experimentado alívio grande na
intensidade dos ataques.
Foram, certamente, estas as razões que levaram a que a Câmara Municipal de
Cabeço de Vide, apesar do período de turbulência política que então se vivia,
abrisse, naquele mesmo ano de 1822, aos 19 dias do mês de Maio, concurso
para provimento do lugar de enfermeiro das termas

[...] Em esta [vereação] querendo providenciar sobre a votação do emprego de enfermeiro


dos banhos sulfúreos, determinaram que fossem chamados os pretendentes para a
conferência. Presentes os mesmos, José Joaquim de Matos, Manuel António da Aldeia e
Salvador Plácido Durão, este foi o que ofereceu a maior quantia que foi de 28.000 rs. pelo
presente ano, debaixo das condições de não exigir paga alguma das pessoas que ali
concorrem aos banhos e águas e somente o que cada um gratuita e voluntariamente lhe
quiser dar, sujeitando-se ao regulamento que sobre aquela administração se oferecer. E
logo o sobredito Salvador Plácido foi admitido pelo presente ano ao emprego de chaveiro
e enfermeiro do dito Estabelecimento e o mesmo pôs logo na mão do actual Procurador
do Concelho, Luís Garcia, os sobreditos 28.800 rs. em metal e os sobreditos oficiais da
Câmara determinaram que a sobredita quantia fosse logo empregue nos concertos que
naquele estabelecimento fossem necessários e que não deveria ter outra aplicação.23

Chegados a este ponto, convirá esclarecer alguns aspectos jurídicos que


entravavam o funcionamento das termas.
Com base em documentos já antes transcritos, poderia o leitor ser levado a
crer que o município de Cabeço de Vide tinha jurisdição sobre as termas, dado
que algumas importantes decisões relativas a elas foram tomadas e
sancionadas pelo executivo. Contudo, assim não acontecia como, aliás, ficou

12
claramente expresso em nota do Livro de Receita e Despesa da Câmara
Municipal de Cabeço de Vide, de 1822,

Não utilizando o Concelho os rendimentos do Estabelecimento dos Banhos das águas


sulfúreas, não é de razão que faça as despesas em benefício dele [...].

Qual era, então, o verdadeiro estatuto das termas?


A resposta é simples. As termas eram propriedade privada, se bem que o
costume tivesse consagrado a sua livre utilização, revelando o proprietário dos
terrenos, durante todo o processo que temos vindo a analisar, um notório
desinteresse pelas iniciativas das autoridades e do público em geral, não
autorizando nem impedindo as obras aí levadas a efeito.
Porém, se a omissão do legítimo proprietário era, no geral, entendida como um
consentimento, a verdade era que, por outro lado, o povo, a Câmara de
Cabeço de Vide e alguns beneméritos se arriscavam, com as melhores das
intenções, a semear em terra alheia...
Consciente desse facto, Ferreira Salvador tomou uma decisão que viria a
marcar definitivamente o destino da Sulfúrea – a compra da tapada onde se
situavam as nascentes, compra cuja escritura, celebrada em 14 de Dezembro
de 1822, se dá a seguir por transcrita

Saibam quantos este público instrumento de escritura de compra ou como em Direito


melhor lugar haja virem que sendo no Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo
de mil oitocentos e vinte e dois, aos catorze de Dezembro nesta vila de Cabeço de Vide,
em casas de morada do Major José Matias de Morais Moutoso desta vila procurador de
Dona Ana Perpétua Coelho de Figueiredo, da vila de Sabugosa, como se vê da
procuração ao diante transcrita, sendo ele aí presente e o Doutor Manuel Ferreira
Tavares Salvador, Ouvidor da Alfândega de Lisboa, como comprador, ambos de mim
reconhecidos, e das testemunhas ao diante nomeadas, e assinadas, perante as quais e
pelo procurador do sobredito que é a vendedora foi dito, que a mesma possui uma tapada
de semear pão situada nos subúrbios desta vila à Ladeira do Bolegão, a qual confronta
pelo Norte com a calçada pública, e com serventia para a fonte do mesmo nome, pelo
Levante com a ribeira, e pelo Meio-Dia com a tapada que é foreira à Misericórdia desta
vila a qual ele procurador por ordem, e em nome da sua constituinte tem vendido ao
sobredito Doutor Manuel Ferreira Tavares Salvador pela quantia de trezentos e sessenta
mil reis livres de sisa para a vendedora cuja quantia o dito comprador entregou ao
procurador do vendedor, que por esta mesma escritura dela lhe dá plena e geral quitação
e lhe confere a posse, e domínio, que a sua constituinte tinha na referida tapada, porque
para isso se acha autorizado competentemente pela procuração que apresentou do teor e

13
forma seguinte: Procuração bastante: Saibam quantos este público instrumento de
procuração bastante virem que no ano do Nascimento de mil oitocentos e dezanove aos
três dias do mês de Novembro do dito ano nesta vila de Sabugosa, e casas que servem
de Paço da Câmara da mesma aonde eu escrivão estava aí apareceu presente Dona Ana
Perpétua de Figueiredo desta mesma vila, do meu conhecimento, de que dou fé ser a
própria, e na presença das testemunhas ao diante nomeadas, e assinadas, e disse fazia
por este seu bastante procurador a António Pinho e Seixas da Gama da mesma vila, e a
cada um in solidum dá poder, quanto em direito se requer para que em nome dela
outorgante como se presente fosse possa em qualquer Juízo ou Tribunal deste Reino
defender, e requerer toda sua justiça em todas as suas causas movidas, e por mover
tanto cíveis como crimes em que for autora ou ré, e igualmente para poder assinar uma
escritura de venda de certos bens, que tem no Alentejo, e fazer a este fim o que for de
sua justiça e finalmente para tudo em geral, e com poder de substabelecer, fazendo citar,
demandar, penhorar, oferecer acções, libelos, artigos, embargos, excepções, contrariar,
dar provas, e suspeições, dar testemunhos, contraditar os das partes, jurar na sua Alma
todo o lícito juramento, e de calúnia, decisório e supletório deixá-lo na Alma das partes;
parecendo-lhe; assinar os termos, e autos necessários, protestos, e requerimentos,
apelar, agravar, embargar, e tudo seguir até maior alçada, e esta substabelecer, e dela
usar assinar termos de confissões, negações, e desistências, tirar sentença e dá-las à
sua execução, requerer sequestros, prisões, arrematações adjudicações, lançar nos bens
dos devedores na falta de lançador e deles tomar posse, requerer precatórias, assinar de
como as recebe, vir com embargos de terceiro senhor e possuidor, e jurá-los, variar de
acções, e intentar outras de novo, assinar termos judiciais nas causas crime, juntar
documentos, e recebê-los, reunindo a nova citação, e tudo feito e obrado por ele
procurador e substabelecidos in solidum, promete haver por firme e valioso por sua
pessoa, e bens assim o disse sendo testemunhas presentes o Padre Francisco Pereira
de Figueiredo, e José Cabral da Ponte desta vila, e a rogo da outorgante assinou o Padre
Manuel Simões Dinis da vila de Canas, meus conhecidos de que dou fé que assinaram, e
eu Manuel Inácio da Silva e Andrade tabelião que o subscrevi, e o assinei de meus sinais
público e raso de que uso tais são : lugar do sinal público : In veritatis testimonium:
Manuel Inácio da Silva e Andrade : a rogo o Padre Manuel Simões Dinis : Padre
Francisco Pereira de Figueiredo : José Cabral da Fonte : Substabeleceu a procuração
acima em o Senhor José Mathias de Morais Moitoso de Cabeço de Vide a quem dou
todos os poderes que na sobredita me facultam. Sabugosa vinte de Fevereiro de mil
oitocentos e vinte : António de Pinho Seixas da Gama : é o que continha a procuração,
que me foi apresentada, e aqui fielmente transcrevi, e pelo procurador da vendedora foi
dito que havia esta venda por celebrada com as condições já declaradas, e com a de ser
paga em metal a quantia retro declarada, o que tudo sendo ouvido pelo comprador a tudo
satisfez em parte, e prometeu satisfazer a tudo, e para mostrar que fazia esta compra
muito de sua livre vontade, e que desejava que esta fosse válida disse que havia pago a
competente sisa, o que fez certo pela certidão, que apresentou, que é do teor seguinte: o
Doutor Francisco José da Costa Amaral Juiz de Fora e direitos Reais nesta vila de
Cabeço de Vide e Alter Pedroso por S.M.F. que Deus guarde faço saber a todos os
senhores que a presente virem em como no livro, que de presente serve de se

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assentarem as compras e vendas dos bens de raiz nele a folhas cento e vinte e três verso
se acha o assento do teor seguinte : Aos catorze dias do mês de Dezembro de mil
oitocentos vinte e dois nesta vila de Cabeço de Vide, e no escritório do escrivão do meu
cargo foi apresentada uma petição pela forma e teor seguinte: Diz Manuel Ferreira
Tavares Salvador Ouvidor da Alfândega Grande da Cidade de Lisboa, que ele tem
comprado a Dona Ana Perpétua Coelho de Figueiredo da vila de Sabugosa, viúva de
António de Pinho Seixas da Gama pela pessoa de seu bastante procurador
substabelecido, o Major José Mathias de Morais Moitoso desta vila uma tapada com suas
oliveiras, e todas as suas mais pertenças nos subúrbios desta vila sita ao Borbolegão
pela quantia de trezentos e sessenta mil reis em que o dito procurador se há
convencionado, e porque quer pagar a competente sisa a fim de se lavrar a escritura de
seu contrato pede a Vossa Senhoria seja servido se lhe escreva a mesma sisa paga se
lhe passe certidão na forma da Lei, e estilo, e receberá mercê : E não se continha mais
em a dita petição do que tão somente o que para aqui copiei da própria, a qual vi
despachada pelo Doutor Juiz de Fora Francisco José da Costa e Amaral, e por comissão
do dito Juiz de Fora deferi o juramento dos Santos Evangelhos ao dito comprador para
que debaixo dele declarasse se na dita compra, e venda havia algum dolo, ou malícia
para pagar menos à Fazenda Nacional, e sendo por ele recebido debaixo do mesmo
declarou não ter comprado por maior quantia que em sua petição relata que é de
trezentos e sessenta mil reis de cuja quantia, por serem ambos o comprador e a
vendedora de fora pertence à sisa setenta e dois mil reis cuja quantia pôs logo o dito
comprador em depósito na mão do tesoureiro dos bens de raiz Joaquim António Parente,
que de como recebeu a dita quantia, e dela se obrigou a dar conta à Lei de Depositário, e
da cadeia, assinou comigo o dito ministro, e com o escrivão das sisas que esta passou :
eu Joaquim Manuel d´Andrade escrivão das sisas, que o escrevi, e assinei : Costa e
Amaral : Joaquim Manuel d´Andrade : Joaquim António Parente. É a fiel cópia da certidão
de sisa que pelo comprador me foi apresentada, e todo o relatado foi praticado na
presença das testemunhas. E declarou, ele vendedor, que a dita propriedade é livre, e
isenta, de vínculo, pensão, ou foro, e que não é obrigada a dar servidão a pessoa, ou
prédio algum; mas livre e desembaraçada, nem hipotecada, nem sujeita a ónus algum; e
que em nome de sua constituinte, promete fazer boa a dita venda a ele comprador, ou a
seus herdeiros ou qualquer outra pessoa, para que legitimamente possua e que desde já,
em nome de seus constituintes larga toda a posse que tem na dita propriedade, e a
transfere na pessoa dele comprador, podendo tomar dela posse judicial; mas a tome ou
não – nela o há por investido; para dispor dela como sua que é em virtude deste contrato,
que promete nunca rescindir nem anular, mas, o convencionado e declarado, e por mim
estipulado, na presença das testemunhas Timóteo José da Silveira da vila de Estremoz, e
Salvador Plácido Castilho de Queiroz Durão desta vila ambos por mim reconhecidos,
perante os quais e procurador da vendedora, e o comprador li o presente que disseram
estar conforme, e assinaram, e eu José de Sousa Gonçalves Leitão tabelião público nesta
vila que o escrevi.24

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Referimos mais acima, muito sucintamente, os motivos que levaram esse
homem de visão e grande benfeitor de Cabeço de Vide que foi o Doutor
Manuel Ferreira Tavares Salvador a comprar a propriedade onde se situam as
termas. Vejamos agora, mais detalhadamente, as razões que ele próprio
invocou, anos mais tarde, para fundamentar o seu gesto altruísta

[...] então me lembrei, que seria de grande proveito, que este prédio fosse comprado para
a Real Fazenda, não só para remover todas as dúvidas, que poderiam recrescer pela
edificação pública, em terreno alheio, e tolhimento de qualquer dono novo, ao uso das
águas, mas também para de alguma maneira atrair a este interessante objecto o real
ânimo de Sua Majestade, ou para que, pelo menos, ficasse removida mais uma
dificuldade, incorporando-se este prédio por tão justo meio nos próprios da Coroa.
Tudo isto não podia conseguir-se sem larga demora: o estado público de então, faria
talvez depender das Cortes esta solução.
Sua Real Majestade, ainda que fosse servido anuir a esta proposta, assim mesmo pela
natureza do negócio se havia de despender considerável tempo: o dono queria vender; os
concorrentes queriam comprar, e a demora traria consigo a perda da ocasião.
Nestas circunstâncias, me determinei a cortar por mim próprio todas as dificuldades, o que
fiz, comprando o prédio pelos 360$000 [trezentos e sessenta mil reis] para o passar
depois da minha mão à de Sua Real Majestade, e incorporá-lo nos próprios da Coroa,
sem receio, e com o vagar e formalidades que o negócio pedisse.
Assim o fiz; celebrei imediatamente a compra; paguei o preço a seu dono, ao público a
competente sisa; e logo se lavrou escritura na nota do Tabelião Leitão, da dita vila.
Feito já senhor do prédio, instei com o Médico José Inácio da Costa, para que pusesse em
ordem as suas observações; que me indicou, pedindo-lhe, que me as enviasse a Lisboa,
porque tudo eu queria fazer presente a Sua Real Majestade. Chegado que fui a Lisboa, no
princípio do ano de 1823; me apresentei ao Ministro de Estado dos Negócios do Reino,
expondo tudo o que havia acontecido; mas para que o negócio subisse à consideração de
El Rei Nosso Senhor, com a devida clareza, reduzi tudo a escrito, oferecendo o prédio
como tinha tencionado, e apresentando alguns apontamentos, não só para criar este
estabelecimento, mas ainda indicando os meios, que havia, para ter para isso dinheiro
suficiente, e para lhe ficar de futuro algum rendimento anual, para sua conservação, e
aumento. [...]
De todos estes meus trabalhos, porém, nada resultou, porque novas convulsões públicas,
tais quais, se observaram até ao meado do ano de 1823, impediam o tratar destes
objectos menores; até que aparecendo melhores dias foi Sua Real Majestade servido
resolver, que se incorporasse nos próprios da Coroa o prédio, que eu lhe havia oferecido;
o que assim se fez, lavrando-se a competente escritura, entre mim e o Procurador da Real
Fazenda, mandando-me o mesmo Real Senhor, satisfazer o dinheiro do preço da compra,
e sisa, tudo da mesma forma, que eu o havia pago.
Assim é hoje da Real Coroa, quanto pertence ao estabelecimento da Água Medicinal de
Cabeço de Vide, e para seu melhoramento, e proveito comum, não resta senão, que Sua

16
Real Majestade, se digne o lançar mais positivamente as suas paternais vistas, e pias
intenções, sobre este objecto de consolação de uma parte infeliz dos seus fieis vassalos,
que ali podem vir a ter remédio a seus males. [...]25

Deste modo, graças à generosidade dum forasteiro, a Sulfúrea encontrava-se,


finalmente, em situação susceptível de permitir o seu desenvolvimento.
E, na verdade, os efeitos práticos da sua corajosa e oportuna decisão fizeram-
se, desde logo, sentir.
Passados pouco mais de quinze dias sobre o acto da assinatura da escritura
de compra e venda do prédio, a Câmara Municipal de Cabeço de Vide surge-
nos já como entidade responsável pela administração do estabelecimento,
empenhada no seu melhoramento e tomando as medidas adequadas para a
regularização da sua gestão, como a acta de 1 de Janeiro de 1823 deixa
transparecer

Nesta [vereação] acordaram que por pertencerem à Administração desta Câmara, na


forma do Regimento, as Águas Sulfúreas e desejando aumentar a precisão delas sem
contudo terem fundos próprios e constando-lhe que o Capitão Miguel Ferreira dos Reis, na
qualidade de segundo vereador da Câmara que acabou, tinha tomado a seu cargo a tarefa
de pedir esmola aos concorrentes para as obras da dita fonte e águas, e desejando
outrossim saber, visto não haver documentos na Câmara por onde conste, se havia ainda
alguma porção para se empregar em benefício delas, mandaram chamar à sua presença
o dito Capitão Miguel Ferreira dos Reis que lhes respondeu que do seu trabalho e zelo
tinha conseguido dos concorrentes, segundo sua lembrança, a quantia de trinta e tantos
mil reis, o que melhor constaria de um caderno onde fazia o assento delas, caderno que
entregara ao Doutor Juiz de Fora e que este fizera receber a dita quantia, em metal, a
José Lopes Morato da qual passou recibo no dito caderno e a bem desta quantia e disse
que recebera o mesmo Morato de José Joaquim de Moura, de Évora, também a título de
esmola para as obras da fonte, 9.600 rs. e de um espanhol, D. José Hilário, que esteve
de quartel em casa de João Velez de Almeida, 6.400 rs.26

Ficamos, portanto, a saber que nesta data as obras de melhoramento


continuavam ainda, que o funcionamento das termas e o uso das águas se
encontravam já regulamentadas por um Regimento e que estas acolhiam já
utentes provenientes do país vizinho, como era o caso do benemérito D. José
Hilário.
Até aqui, tudo nos levaria a crer que, criadas como estavam as condições
necessárias ao seu progresso, as termas estariam, finalmente, no bom
caminho. Porém, como mais adiante se verá, muitos obstáculos se levantariam

17
ainda - conflitos de interesses pessoais e, sem dúvida, políticos que iriam
causar graves perturbações no seu normal funcionamento.
O primeiro destes incidentes, tal como ficou registado nas actas das sessões
da Câmara Municipal de Cabeço de Vide, viria a ocorrer logo na abertura da
época balnear de 1823, lançando os membros do executivo uns contra os
outros, num lamentável exemplo do que a política não deve ser.
Vejamos, então, o que de acordo com os registos da época que se terá
passado

Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1823. Aos 24 de Maio nesta vila de
Cabeço de Vide, em Casas da Câmara, onde se achavam os vereadores Joaquim António
Parente, João Velez de Almeida e o Procurador substituto Joaquim António de Azevedo,
logo mandaram ao porteiro Francisco António que trouxesse em pregão a quem mais
desse as chaves dos Banhos Sulfúreos, o que ele fez trazendo-as em pregão na forma do
estilo, não achando quem mais lhe desse que Basílio José Galhardo, da cidade de Elvas,
que lançou 72.000 rs. metálicos e deu fé não haver quem mais desse, dando por fiador a
Miguel Ferreira dos Reis, desta vila.
Nesta mesma vereação os oficiais da Câmara requereram ao Presidente da mesma que
entregasse as chaves das Águas Sulfúreas que em seu poder tem para se entregarem ao
novo arrematante, o que já por diversas vezes lhe tinham pedido pelo Contínuo desta
Câmara.
Respondeu que não as queria dar pelo que a Câmara se lhe dirigiu segunda vez dizendo-
lhe que entregasse as chaves, quando não irá a mesma pessoalmente, com um oficial de
carpinteiro, arrancar as fechaduras para se mandarem fazer chaves novas e não estarem
aquelas águas desarranjadas, sem fecho nas portas e que requeria um ofício ao Doutor
Juiz de Fora para que fosse servido mandar um dos seus escrivães conhecer na dita fonte
o que nela se fazia, o que de facto aconteceu, indo todos assistir ao arranque das ditas
fechaduras e mandaram fazer chaves novas para se restituírem as fechaduras aos seus
lugares e a nada disto o Presidente se resolveu, é sempre o mesmo.
E para contar fizeram este termo.27

Como se vê, a transição da administração das termas para a Câmara Municipal


que se verificara uns escassos cinco meses antes, em vez de se revelar um
meio para melhor servir o público, tornara-se já, nesse breve período, em
campo de batalha de interesses que pouco tinham a ver com as aspirações da
população e de quantos haviam dado o seu melhor para promover
condignamente as águas cujos resultados tantas expectativas geravam.
Superado este contratempo, a Câmara fez elaborar um novo regulamento que
entrou em vigor no seguinte mês, fazendo depender de receita médica o

18
acesso aos banhos cuja utilização ficava, deste modo, sob um controle mais
apertado.
Como contrapartida destas medidas de que eram, no fundo, os principais
beneficiados, os médicos dos partidos ficavam obrigados a elaborar e manter
um ficheiro dos utilizadores, sob pena de não lhes serem satisfeitos os
ordenados devidos em caso de incumprimento.
Se bem que estas medidas se afigurem aos nossos olhos perfeitamente
justificadas pela necessidade de uma racionalização da gestão das termas, o
facto é que, a curto prazo, elas se tornaram em instrumento de abuso por parte
dos clínicos que pretenderam chamar a si, na totalidade, a administração e os
proventos do estabelecimento, exorbitando largamente das suas funções e
competências e descurando, por outro lado, as obrigações a que estavam
estatutariamente sujeitos, como veremos,

Em esta mesma [vereação], sendo presente que o médico dos Partidos desta vila
arrogava a si a autoridade sobre a administração dos banhos e águas sulfúreas em toda a
sua extensão e verificando-se este facto pela informação do encarregado das chaves
daquele Estabelecimento, acordaram que para ser resolvido aquele abuso se ordenasse o
seguinte:

Que se estranhe ao médico a usurpação que pretende fazer de uma autoridade que só é
privativa desta Câmara ou daquele a quem ela a confia,

Que ao mesmo se advirta que a ele só pertence passar os competentes bilhetes a quem
lhos pedir, sendo moléstias da sua competência, devendo nos mesmos bilhetes marcar o
número de banhos de que cada doente deve usar cada dia, a extensão do tempo de cada
um, os que ao todo deve tomar, quantos gerais e quantos parciais, notando igualmente
nos mesmos bilhetes aquelas moléstias que pela sua qualidade e natureza só devem
entrar no banho em último lugar.

Acontecendo porém achar-se presente nas entradas dos banhos e observando que a
algum dos doentes que o consultar é nocivo entrar no banho naquela ocasião, lhe
designará o tempo em que dele deve usar, fazendo-o constar ao encarregado das chaves.

Que todas as vezes que julgar conveniente fazer alterações ou modificações na


quantidade, qualidade ou extensão dos banhos daqueles a quem estiverem sendo
aplicados, o fará saber por escrito ao sobredito encarregado com as precisas notações na
forma designada para o 1º bilhete.

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Finalmente, que o dito médico fique na inteligência que nenhuma outra competência tem
naquele estabelecimento além da sobredita aplicação na forma prescrita porque a
abertura e encerramento dos banhos compete à administração da Câmara.

Que isto mesmo se faça público por um edital em que se incorpore o já determinado sobre
este assunto em Câmara de 14 de Junho do corrente ano e que o encarregado daquele
estabelecimento igualmente o observe dando execução ao que pela Câmara ou pelo seu
Presidente lhe for determinado, aplicando os banhos na forma que nos bilhetes for
designado, a qualquer hora do dia em que o banho tenha água susceptível de se poder
usar, não sendo daquela em que já tenham entrado moléstias exceptuadas.28

Em consequência da usurpação feita à Câmara, e de faltas e omissões no


exercício do seu lugar, o médico José Inácio da Costa acabaria por ser preso
às ordens do Juiz de Fora, sendo, posteriormente, exonerado do cargo que
ocupava, em virtude da sua ignorância profissional e da absoluta repugnância
que o Povo tem de se tratar com ele.
Tentava-se assim, uma vez mais, remediar os abusos que os responsáveis
vinham cometendo e que, como veremos, continuariam a cometer.
Antes disso, porém, outras considerações se nos impõem.
Por essa altura, isto é, em Setembro de 1823, começa a manifestar-se o
interesse directo da Coroa na boa administração das águas das quais, a partir
do dia nove daquele mês, era legítima proprietária, em virtude da assinatura do
instrumento de doação, facto de que seria oficialmente dado conhecimento à
Câmara de Cabeço de Vide pela provisão régia de 20 de Setembro a seguir
transcrita

Dom João, por Graça de Deus Rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, daquém
e dalém Mar em África, Senhor da Guiné, etc.
Faço saber a vós, Juiz de Fora da vila de Cabeço de Vide que em virtude do Régio Aviso
de 4 de Agosto próximo passado, expedido a este Tribunal pelo Conselheiro, Ministro e
Secretário de Estado dos Negócios do Reino, para se celebrar escritura de venda do
prédio rústico em que se acham as Águas Medicinais nessa vila, de cujo prédio
denominado a Tapada da Fonte Sulfúrea era actual proprietário o Doutor Manuel Ferreira
Tavares Salvador e sua mulher, D. Ana José Rita Margarida da Cunha de Abreu Pinella
Tavares que o ofereceram à Real Fazenda para nele se construírem os indispensáveis
edifícios para bem e cómodo dos concorrentes, satisfazendo-lhe o preço do seu custo.
Tendo-se efectuado este contrato por escritura pública de 9 do corrente mês de Setembro
do corrente ano de 1823 entre o Conselheiro procurador da mesma fazenda e o sobredito
vendedor e procurador bastante da referida sua mulher, sou servido ordenar-vos que sem
perda de tempo tomeis posse, com todas as formalidades da lei e estilo, do mencionado

20
prédio e de todas as suas pertenças por parte da minha Real Coroa e Fazenda, para na
mesma ficar tudo incorporado, fazendo lavrar o respectivo auto com a precisa legalidade e
clareza, sendo no mesmo descritas todas as suas pertenças, limites e confrontações, o
qual remetereis ao Conselho da minha Fazenda, com duas certidões autênticas dele, para
serem remetidas às instâncias competentes, ficando na inteligência que os ditos autos
devem ser acompanhados de conta vossa em que miudamente dareis todas as notícias
que puderdes alcançar a respeito do dito prédio, suas vantagens e circunstâncias. 29

Não demorou, como se viu, a Coroa a tomar posse do imóvel, o que é bem
revelador do interesse manifestado por D. João VI pela situação das termas.
Tão pouco demorou a Câmara de Cabeço de Vide a remeter para a Secretaria
dos Negócios do Reino todos os elementos que lhe haviam sido solicitados, de
modo a permitir ao soberano uma eficaz apreciação da situação e a correcção
dos excessos até então verificados por parte de alguns membros da
governança da localidade, pertinazes em fazer do bem público um negócio
privado.
Para acautelar o escândalo da repetição de tão lamentáveis situações, o
monarca, por provisão de 15 de Julho de 1824, decidiu adoptar medidas mais
drásticas para exemplo dos prevaricadores

[...] em consulta da Mesa do meu Desembargo do Paço a que precedeu informação do


Provedor da Comarca de Évora e resposta do Procurador da minha Real Coroa, me foi
presente a representação dos oficiais da extinta Câmara Constituinte dessa vila em que
me expuseram os arbitrários e despóticos procedimentos praticados pelo Presidente que
então era da dita Câmara, João Ricardo Gomes Zuzarte Rosa, na ocasião de se fazer a
arrematação do cargo de Chaveiro dos Banhos Medicinais existentes nessa dita vila.
Atendendo, ao verificar-se o exposto na dita representação, como unanimemente
declarastes sendo ouvidos a Nobreza e o Povo, de cujas arguições o suplicado pretende
defender-se com invectivas contra o Juiz de Fora e os Representantes com factos alheios
à questão, hei por bem que o suplicado, João Ricardo Gomes Zuzarte Rosa, seja riscado
do meu Real Serviço na Governança dessa vila para que este exemplo contenha os
outros e sejam moderados e prudentes no exercício do cargo com que eu os honro e fique
assim punido o excesso e prevaricação do mesmo suplicado.
E autorizo-vos, para tratardes do melhoramento do edifício dos banhos, que me
apresenteis na vossa resposta o pedido para fazer mais outros dois e buscar mais água e
exigir o pagamento de 60 rs. por cada banho das pessoas que tiverem meios suficientes
para pagar este remédio.30

Como o leitor já decerto terá percebido, na origem destas frequentes tentativas


de usurpação de competências alheias encontrava-se o facto de não haver um
efectivo controlo das receitas das termas cuja frequência era, até à emissão da

21
provisão acima, supostamente gratuita. Deduz-se, contudo, do sucedido que as
verbas voluntariamente doadas pelos utentes constituiriam uma importância
não despicienda, o que motivaria a cupidez dos responsáveis pela sua
administração.
Para obviar a tal inconveniente a que, aparentemente, ninguém até então
quisera dar remédio, tomou a Real Fazenda a simples medida permitir à
Câmara tabelar o preço dos banhos, introduzindo deste modo um factor de
rigor antes inexistente na contabilidade das termas.
Para além desta prova de manifesto interesse no futuro das Águas Sulfúreas,
Sua Majestade autorizou ainda a construção de mais dois banhos e a
prospecção de água para reforço dos caudais disponíveis.31
Face a estas providências, a situação do estabelecimento experimentou
evidentes melhoras que se traduziram não só na nomeação, logo no ano
seguinte de 1825, de um tesoureiro dos bens da Sulfúrea32 mas também no
início das obras de construção dos novos banhos.
Dessas obras não ficaram quaisquer registos nos livros da receita e despesa
da Câmara mas temos testemunhos, como o que se segue, provas do
continuado interesse do povo comum no desenvolvimento das termas

[...] foi presente João do Rosário, rendeiro do campo que foi desta vila e apresentou duas
sentenças contra José Telles do Couto que importavam em 26.244 rs., quantia essa que
ofereceu em benefício do Estabelecimento dos Banhos Sulfúreos.33

Tudo parecia correr de acordo com o planeado e a estabilidade administrativa


começava a dar frutos quando, naquele mesmo ano, face ao não cumprimento
dos regulamentos, a Câmara se viu na contingência de mandar prender o
encarregado dos banhos.34
Este facto veio, mais uma vez, salientar a necessidade de uma regulamentação
interna mais efectiva, razão que terá levado a Câmara, poucos dias depois, a
fazer registar no seu livro de actas o instrumento que podemos, com
propriedade, considerar o primeiro regulamento das termas:

22
REGULAMENTO DOS BANHOS E ÁGUAS SULFÚREAS

Art.º 1º

Da maneira por que devem habilitar-se os doentes


para poderem ser admitidos ao uso das águas

1. Todo o doente que queira fazer uso das águas Medicinais desta vila, em qualquer forma
que seja, deve apresentar-se munido de atestado de Facultativo que lhas indique, sem o
que não será admitido a elas nem, em caso algum, as poderá usar de forma diferente
daquela em que lhe foram indicadas.

2. Se for de fora o Facultativo que a qualquer doente aconselhar estas águas, deve este
apresentar o seu atestado a qualquer dos Facultativos da terra ao qual pela natureza da
moléstia competir e sem que tais atestados vão rubricados por algum deles, não serão os
doentes que os tiverem admitidos ao uso das águas.

3. Todo o doente que quiser fazer uso das referidas águas em forma de banhos, quer no
estabelecimento deles quer em casa particular mandando buscar a água para eles, deve
antecipadamente ter pago na mão do tesoureiro do Estabelecimento, Joaquim António de
Azevedo, o imposto de 60 rs. por cada banho que houver de tomar, estabelecido pela
Provisão de 15 de Julho de 1824 para benefício do estabelecimento e do dito tesoureiro
receberá uma certidão do seu pagamento que apresentará ao escrivão João António da
Silva Froes o qual lançará a dita quantia em débito ao Tesoureiro e rubricará a nota dada
por este, sem a qual os doentes não serão admitidos aos banhos.

4. São exceptuados desta regra, na forma da citada Provisão, todos os doentes desta vila
e os que não tiverem meios de pagar aquele imposto e estes, em lugar daquela nota,
receberão do escrivão uma outra que os declare dispensados de a apresentar, a qual irá
assinada pelo Doutor Juiz de Fora ou por quem fizer as suas vezes.

5. Aos doentes que deixarem, por qualquer circunstância, de tomar alguns dos banhos
que tiverem pago, será restituída a importância dos que não tomaram.

6. Para usar das águas em forma potável é suficiente o atestado do Facultativo tendo os
requisitos acima expostos.

Art.º 2º

Das obrigações dos facultativos desta terra a respeito


dos doentes que concorrem às Águas Sulfúreas

1. Ambos os Facultativos desta vila, cada um nas moléstias de sua competência, são
obrigados a dar aos doentes que se lhes apresentarem e lhos requererem, escritos em
que declarem o uso que devem fazer das águas medicinais.

23
2. Nos escritos que derem aos doentes a quem aconselharem banhos, devem designar o
número deles e a duração de cada um e, nos daqueles que somente deverão usar as
águas em forma potável, a quantidade, a hora do dia, e por quanto espaço de tempo.

3. Devem ver e rubricar os escritos que lhes apresentarem alguns doentes de Facultativos
de fora e nem por estas rubricas, nem por aqueles escritos poderão exigir dos doentes
emolumentos alguns.

4. Nos escritos que passarem aos doentes afectados de moléstias contagiosas que
poderiam comunicar-se a outros, se com eles concorressem ou tomassem banho na
mesma água em que estes tivessem já entrado, deverão os facultativos declarar essa
qualidade por um sinal que convencionarão e que farão conhecer ao enfermeiro.

5. Ambos os facultativos são obrigados a formalizar um Mapa de cada um dos doentes a


quem tiverem dado escritos em que se declarem os nomes dos doentes, suas idades,
moléstias que padeciam e resultados que obtiveram com o uso das águas.

Art.º 3º

Das obrigações do Encarregado das Chaves

1. O encarregado das chaves é obrigado a conservar em asseio todo o Estabelecimento e


a verificar que ele não se deteriore.

2. Não pode admitir ao uso das águas doente algum que não lhe apresente atestado de
algum dos Facultativos da terra ou rubricado por algum deles, sendo de Facultativo de
fora, em que se aconselhe o uso delas, nem consentir que as use de forma diferente
daquela em que lhe foram aconselhadas.

3. Em todos os dias, ao nascer do Sol, é obrigado a abrir os banhos e designará o banho


grande para aqueles doentes de cujo sexo se apresentar maior número no acto de entrar
para eles a primeira vez e o banho pequeno para os doentes de cujo sexo houver menor
número e cada um deles ficará nessa ocasião servindo exclusivamente aquele sexo que
primeiro entrar nele.

4. Findos os banhos da manhã é obrigado a lançar fora a água que neles tiver servido, a
lavar os tanques e a prepará-los para receberem nova água para os banhos da tarde.
Estes começarão às 6 horas até ao fim do mês de Agosto e daí por diante às 5 e na
maneira de destinar esses banhos observará o encarregado o mesmo que para os da
manhã ficou disposto.

24
5. Quando os doentes houverem de entrar para os banhos, exigirá deles os bilhetes de
pagamento declarados no n.º. 3 do Art.º. 1º. E neles irá marcando os banhos que cada um
for tomando e findo o número dos que tiverem pago, deixará na sua mão esse bilhete para
o apresentar quando se lhe pedir.

6. Os doentes que padecerem de moléstias contagiosas, o que ha.-de constar dos bilhetes
dos Facultativos, só entrarão no banho quando já todos os outros que de tais moléstias
não padecerem tiverem tomado os seus banhos e nunca antes.

7. Dará ou consentirá que dos banhos se tire água para banhos particulares contanto que
os que os pretenderem se achem legitimados por escritos que tenham os requisitos acima
marcados. Esta água, porém, nunca será extraída da arca, que fica exclusivamente
reservada para se usar em forma potável e o encarregado das chaves fica obrigado a
subministrá-la aos doentes que dela carecerem, não consentindo que sejam eles a extraí-
la da arca, para o que conservará esta constantemente fechada, não podendo porém
dificultá-la a qualquer que ali a queira beber ou transportá-la para esse fim.

Art.º 4º

Das Penas

1. Os doentes que não se habilitarem para o uso das águas na forma que acima fica
estabelecida, não serão admitidos ao uso delas.

2. Ao Facultativo que faltar a qualquer das obrigações que lhe ficam impostas se
suspenderá o vencimento do seu ordenado.

3. O encarregado das chaves, quando transgrida por qualquer forma o presente


Regulamento, será preso por 8 dias, nos quais à sua custa, a Câmara encarregará o
exercício do seu emprego a uma pessoa que bem o desempenhe.35

Estavam, finalmente, criadas todas as condições para que as termas


entrassem, como hoje diríamos, em velocidade de cruzeiro mas, a recepção do
Aviso de 3 de Novembro, da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino,
viria, uma vez mais, lançar a instabilidade ao nomear para a direcção das obras
da Sulfúrea o bispo de Elvas, D. Frei Joaquim de Meneses e Ataíde que
delegou essa responsabilidade em João dos Santos Monteiro, morador em
Cabeço de Vide, cidadão de reconhecida honra, probidade e patriotismo cuja
competência nos parece indiscutível atendendo ao facto do mesmo se ter
mantido nesse cargo e, mais tarde no de chaveiro das termas apesar das
grandes alterações políticas entretanto verificadas.

25
Ora, durante o período de que agora nos ocupamos (1826/1827) as obras de
construção e prospecção das águas lá foram continuando não sendo, porém,
os melhores os resultados alcançado. Não obstante, continuava a ser visível o
interesse da Coroa pela evolução das termas, como se verifica pela Portaria de
26 de Junho do último daqueles anos, ordenando que a Câmara passe a
indagar as águas termais descobertas no distrito desta vila, consultando hábeis
professores que declarem a sua denominação e mais esclarecimentos
necessários36.
No ano seguinte, o interesse do poder central pela Sulfúrea viria a manifestar-
se no envio de um inquérito destinado a avaliar a evolução da situação das
mesmas desde 1823 até então.
O regresso de D. Miguel a Portugal e a consequente fuga do bispo de Elvas
para Gibraltar, onde veio a falecer, vieram interromper temporariamente as
obras que só voltariam a ser reatadas em 1830, no seguimento de uma
exposição sobre o estado das termas enviada pelo Juiz de Fora de Cabeço de
Vide ao Conselho da Fazenda, que o rei absoluto despachou da seguinte forma

Dom Miguel por Graça de Deus rei de Portugal e dos Algarves daquém e dalém Mar em
África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia,
Pérsia e da Índia, etc.
Faço saber a vós, Presidente e mais Vereadores da Câmara da Vila de Cabeço de Vide
que em consulta do Conselho da Fazenda na data de 17 de Agosto de 1829 me foi
presente a carta do Juiz de Fora da mesma vila a respeito do estado de ruína em que se
achava o prédio rústico denominado Tapada da Fonte Sulfúrea, desde que fora cometida
a administração das obras do dito prédio ao Bispo de Elvas por aviso de 3 de Novembro
de 1825 e das providências que se faziam indispensáveis para o seu melhoramento.
Tendo em consideração todo o exposto na mesma consulta e porque desejo promover os
estabelecimentos públicos em benefício da Humanidade sofredora que tão digna se faz da
minha Real Comiseração e Piedade, houve por bem pela minha Real Resolução de 17 de
Agosto do corrente ano [1830], tomada na sobredita consulta e conformando-me com o
parecer do Conselho determinar:

1. Que se aplicasse para esta obra e sua manutenção o rendimento da referida Tapada
da Fonte Sulfúrea assim como o produto das condenações das rezes extraviadas nas
Reais Manadas, visto constar que por costume antigo se aplicavam a alguma obra de
interesse público.
2. Que o existente rendimento da referida Tapada, que mostrou ser a quantia de
83.780 rs., se empregasse nos trabalhos que era de primeira necessidade fazerem-se

26
já, os quais, segundo as informações, importavam pouco mais ou menos em 120.000
rs.
3. Que se observasse o que fora ordenado pela Provisão da Mesa do Desembargo do
Paço de 15 de Julho de 1824 sobre o receber-se por cada banho o subsídio de 60 rs.
4. Finalmente que esta administração e inspecção fosse encarregada a essa mesma
Câmara, como anteriormente acontecia, com a proibição de fazer escavações para
descobrir a nascente da água ou obter maior porção dela, o que se praticara durante a
administração do dito Bispo, com ruína das mesmas águas.
Em virtude pois do que determinei pela citada Resolução, sou servido encarregar-vos
da inspecção das obras do prédio rústico denominado Tapada da Fonte Sulfúrea,
procedendo a respeito dela na forma ordenada pela sobredita Régia Resolução em
todos os seus artigos que terão plena execução, dando a mesma Câmara conta a este
Conselho, de 3 em 3 anos, do estado e melhoramento das obras que lhe foram
cometidas, das receitas que houverem e das despesas que tiver feito.37

A estas determinações veio juntar-se, logo no seguinte mês de Agosto, nova


provisão do Supremo Tribunal do Conselho da Fazenda confirmando as
competências originalmente cometidas à Câmara Municipal de Cabeço de Vide
pela provisão de 15 de Agosto de 1824.
Esclareciam-se, assim, todas e quaisquer dúvidas que ainda pudessem
subsistir quanto à tutela e moldes de funcionamento da estância balnear.
Entretanto, tal como viera, D. Miguel voltara a partir para o exílio, gorado
definitivamente o seu projecto de restauração do absolutismo régio.
Porém, as tribulações dessa época parece não se terem feito reflectido de
modo tão negativo como sucedera em anteriores ocasiões no progresso das
Termas da Sulfúrea e os bons resultados colhidos da estabilidade
administrativa levaram a autarquia vidense a dirigir ao Governo Civil do distrito
uma representação que viria a ser remetida à Câmara dos Deputados

pedindo que lhe seja concedida a propriedade de uma Tapada que há naquele concelho
pertencente à Fazenda Nacional onde existem uns banhos sulfúreos, os quais por sua
óptima qualidade, sendo bastante frequentados pelos povos vizinhos precisam de
melhoramentos, que se não podem concluir sem que o rendimento da dita Tapada lhes
seja aplicado e cumpre-me dizer a V.ª Ex.ª que a pretensão da mencionada Câmara é
digna de toda a consideração, porquanto além de ser exacto tudo quanto a mesma alega
a respeito dos sobreditos banhos, acresce que a Fazenda Nacional pouco prejuízo pode
sofrer em uma semelhante concessão, visto que a propriedade pedida está avaliada na
diminuta quantia de cem mil reis.38

27
Poucos meses volvidos, a propriedade viria, com efeito, a ser cedida à Câmara
39
Municipal de Cabeço de Vide, por carta de lei de 12 de Novembro de 1839
como decorre do seu artigo terceiro

É concedida à Câmara Municipal de Cabeço de Vide a tapada sita no respectivo


Concelho, onde estão os banhos de águas sulfúreas
§ único. A Câmara Municipal de Cabeço de Vide será obrigada a conservar sempre os
banhos em bom estado; e o Conselho de Distrito, sobre proposta da Câmara, determinará
o preço que deverão pagar as pessoas que deles se aproveitarem

Apesar de oficialmente clarificada a situação jurídica da propriedade, a


administração do estabelecimento continuou a ser matéria de falta de
consenso, aproveitado por indivíduos menos escrupulosos que, sem
capacidade para o cargo, continuavam a requerê-lo directamente ao poder
central, como aconteceu em 1844, tendo o então Governador Civil, dado
parecer negativo ao Ministério do Reino, atendendo a que o peticionário

escasseia dos conhecimentos químicos, e mais recursos científicos para bem exercer tal
lugar, acrescentando ainda, e documentos tenho neste Governo Civil que provam menos
filantropia no suplicante, que não a bem da Humanidade, mas meio lucrativo o fazem
implorar uma semelhante graça.40

É certo que para o período que, agora nos ocupa, a documentação escasseia
até ao meio do século, surgindo-nos então o funcionamento das termas muito
melhor organizado, com contabilidade montada e supervisionada pelas
instâncias competentes.
Também sintomática da crescente projecção da Sulfúrea a nível nacional é a
multiplicação de estudos sobre as águas verificada durante a década de
1840/1850. Neste período foram dados à estampa quatro trabalhos relativos às
águas de Cabeço de Vide.41
A administração do estabelecimento, confiada à autarquia, viria,
inclusivamente, a revelar-se de grande utilidade para a Câmara que, por
diversas vezes, recorreria aos lucros da exploração das termas para se
financiar, como sucedeu em 1851, ocasião em que o município contraiu junto
do estabelecimento das termas um empréstimo gratuito de 217.567 rs.42 Por
essa altura, as termas dispunham já de dois enfermeiros, vencendo

28
anualmente 2400 rs., cada um, pelos serviços prestados aos doentes que
tinham já à sua disposição banhos de água fria e quente.43
A melhoria das condições sanitárias foi, com toda a certeza, um dos factores
que mais terá contribuído para a crescente afluência de aquistas então
verificada o que, por seu turno, iria motivar os responsáveis locais para a
construção de novas instalações mais adequadas à crescente procura das
águas, iniciativa secundada pelo Governador Civil do distrito que, em 31 de
Dezembro de 1852, oficiava ao Ministério do Reino

Não posso deixar de tratar, neste logar, de três vertentes de águas medicinais, que se
encontram neste Distrito, e cujas virtudes estão experimentadas. Muito proveitoso seria
que destas águas se mandasse fazer uma análise competente, que não há; e depois
desta análise se estudassem os meios de melhor e devidamente aproveitá-las. As águas
nascidas em, e conhecidas com o nome de, Cabeço de Vide, estão sendo presentemente
muito visitadas para banhos em moléstias cutâneas, e são também aplicadas com
proveito aí mesmo em Lisboa, nas doenças crónicas do estômago. Estas águas ainda há
pouco tempo tinham menos crédito, por constar que por desleixo se achavam misturadas;
hoje porem parece terem-se reabilitado44.

Essa decisão, tomada durante o ano de 1852, produzia já os seus efeitos no


ano seguinte, dado que, nas contas de receita e despesa desse ano, nos surge
averbado um mandado de pagamento, no valor de 600 rs., aos peritos que
orçaram a despesa da obra projectada no Estabelecimento dos Banhos.45
Despesas similares surgem também assinaladas no ano seguinte de 1854: um
pagamento de 17840 rs. em que importou uma fornada de cal de obra, para
melhoramentos do estabelecimento ou ainda um outro, de 42000 rs., relativo à
segunda fornada de cal d´obra, para o melhoramento do Estabelecimento dos
Banhos.46
Porém, e ainda de 1854, a notícia mais interessante que até nós chegou
relativamente à expansão da actividade das Termas da Sulfúrea é, por razões
óbvias, a que a seguir se oferece e, também ela, contida numa ordem de
pagamento do tesoureiro das termas

Pelo mandado de pagamento n.º 16 da despesa feita com um sinete amarelo que há-de
servir para pôr a legenda no lacrar das garrafas que se lacrarem para exportação.47

Como se pode ver, há já mais de um século e meio que as águas da Sulfúrea


eram objecto de exportação em quantidade para venda nas farmácias das

29
principais cidades do país tendo sido, além disso, premiadas nas exposições
universais de Paris e do Rio de Janeiro.48
Os melhoramentos nas infra-estruturas balneares continuaram no ano
seguinte, apesar das dificuldades financeiras experimentadas pela comissão
administrativa. Face à escassez dos meios disponíveis, a referida comissão
contratou com a Confraria das Almas de Cabeço de Vide um empréstimo, com
a aprovação do Conselho Administrativo do distrito que

tendo em vista a importância, e utilidade das obras projectadas, e constantes da


respectiva planta, e orçamento, as quais são indispensáveis para que destes banhos se
faça uso com proveito das pessoas a quem são aplicadas, atendendo a que só por meio
de um empréstimo poderão levar-se a execução, pois que quaisquer outros meios de que
se lance mão nunca serão suficientes, autorizam a Comissão Administrativa do
estabelecimento de banhos de Cabeço de Vide para receber por empréstimo ao juro da
Lei até à quantia de quatrocentos mil reis da confraria das Almas da mesma vila,
hipotecando-lhe para segurança dos juros e amortização do capital os rendimentos dos
ditos banhos, e o Estabelecimento em que eles se acham montados com seus pertences,
e quaisquer benfeitorias que de futuro venham a receber49

O contrato de empréstimo veio, efectivamente, a ser celebrado no cartório do


tabelião Mariano Pedro Garcia, em 5 de Maio de 1855, entre os membros da
comissão administrativa do estabelecimento dos banhos sulfúreos, Joaquim
António de Azevedo, José Joaquim de Oliveira e Manuel Joaquim Aires e os
seus pares da Confraria das Almas, José de Sousa Gonçalves Leitão, Joaquim
António de Azevedo e Timótio da Silva Froes.50
Graças à escritura então lavrada sabemos, pela relação dos bens hipotecados,
que o edifício dos banhos se compunha, então, de onze casas.
Alcançado o empréstimo pretendido, a Comissão Administrativa dos Banhos
voltaria, um mês depois, a dirigir ao mesmo Conselho Administrativo novo
pedido de autorização
para que a Junta de Paróquia da Igreja Matriz da dita vila lhes faça venda de algumas
campas de sepulturas que na mesma Igreja existem, e que a dita comissão pretende
aplicar para tanques dos banhos visto não resultar prejuízo a ninguém pois que se ignora
a que famílias pertencem e ser de conveniência para mais breve conclusão das obras do
referido estabelecimento. Acordam os do Conselho Administrativo do Distrito , atendendo
às razões ponderadas pela Comissão administrativa do Estabelecimento dos banhos,
atendendo a que a Junta de paróquia convém na venda que se pretende efectuar, e
atendendo igualmente a informação favorável do respectivo Administrador do Concelho,
em conceder a autorização que se pede precedendo porém à venda o chamamento por

30
Edital de todas as pessoas que se julgarem com direito às campas para que o venham
deduzir no prazo que se designar devendo o produto desta venda ser aplicado para se
ladrilhar a Igreja obra que o seu mau estado urgentemente reclama.51

Igualmente importante foi o contributo das misericórdias do distrito que, a


instâncias do próprio Governador Civil contribuíram com donativos no montante
de 144.200 reis.52
A memória destes trabalhos de beneficiação do balneário ficou condignamente
assinalada numa lápide ainda existente, onde se pode ler:

REINANDO EM PORTUGAL O SENHOR D. PEDRO 5º, PROMOVEU E MANDOU REEDIFICAR,


AUGMENTAR E MELHORAR ESTE ESTABELECIMENTO SULFÚRICO O CONSELHEIRO DIOGO
ANTÓNIO PALMEIRO PINTO, GOVERNADOR CIVIL DO DISTRITO DE PORTALEGRE, MANDANDO
ADOPTAR A PLANTA OFERECIDA PELO CIDADÃO CAETANO SILVESTRE D´ALMEIDA,
COMMETENDO-LHE A DIRECÇÃO DA OBRA, D´ACORDO COM UMA COMISSÃO ESPECIAL,
COMPOSTA DOS CIDADÃOS JOAQUIM ANTÓNIO D´AZEVEDO, JOSÉ JOAQUIM D´OLIVEIRA E
MANUEL JOAQUIM AYRES. ANNO 1855.53

Porém, nesse mesmo ano, o decreto de 14 de Outubro viria a extinguir o


concelho de Cabeço de Vide, incorporando-o no de Alter do Chão. A anexação,
contudo, não parece ter sido obstáculo ao dinamismo do estabelecimento dado
que, alguns anos mais tarde, em 1866, o Conselho Administrativo do Distrito
acusava a recepção de um

Officio da Comissão Administrativa do estabelecimento dos banhos sulphureos de Cabeço


de Vide, Concelho de Alter do Chão, datado de 28 de Junho último, no qual pede
auctorização para comprar umas oito moradas de casas, proximas ao estaelecimento,
como indispensaveis aos melhoramentos de que careçe.
Ouvido o Conselho Administrativo do Distrito respondeu o Exmo. Governador Civil declarar-
se incompetente para conceder a licença pedida, podendo com tudo a Comissão, por
intervenção da respectiva Câmara, visto o estabelecimento ser muicipal, dirigir-se ao
Governo de Sua Magestade, a quem compete conceder a mencionada licença, nos
termos da Carta de Lei de 22 de Junho ultimo.54

Chegámos, assim, aos meados do século XIX, limite cronológico deste trabalho
ao qual esperamos, logo que as circunstâncias o permitam, poder vir a dar
continuidade, concluindo desse modo a breve e forçosamente imperfeita
monografia histórica das Termas da Sulfúrea, para cuja escrita se revelam
doravante imprescindíveis, mais que as do pesquisador de bibliotecas e
arquivos, as palavras do discurso arqueológico.

31
Antecipando, porém, o trabalho futuro, aqui se oferece ao leitor um último
documento que assinala o fim de um longo ciclo de iniciativas das autarquias
de Cabeço de Vide no sentido de garantir, definitivamente, àquela localidade e
aos seus habitantes os benefícios decorrentes da exploração do seu mais
precioso recurso. Trata-se da escritura de registo das nascentes da Sulfúrea a
favor da Junta de Freguesia de Cabeço de Vide

Aos dezassete dias do mês de Fevereiro do ano de mil novecentos e trinta e quatro nesta
vila de Fronteira e Secretaria da Câmara Municipal deste Concelho, foi-me apresentada às
quinze horas uma nota do manifesto de quatro nascentes de água de natureza sulfurosa
situadas nos subúrbios de Cabeço de Vide, a qual é do teor seguinte: “ José Alves de
Matos, casado, comerciante, de cinquenta e seis anos de idade, natural de Cabeço de
Vide, onde reside, Concelho de Fronteira, ao abrigo do artigo 4º do Decreto número
quinze mil quatrocentos e um de dezasseis de Abril de mil novecentos e vinte e oito,
manifesta na qualidade de Presidente da Junta de Freguesia de Cabeço de Vide e a favor
da mesma Junta, para assegurar o seu direito à exploração, quatro nascentes de água de
natureza sulfurosa existentes: uma, numa propriedade conhecida por Horta da Azenha da
Sulfúrea, por nela existir uma azenha situada nos subúrbios de Cabeço de Vide, Concelho
de Fronteira, pertencente aos herdeiros de Dona Ana Mota Dona, e que confronta do
Norte com a Ribeira de Vide; do Sul com a herdade da D´Ordem; do Nascente com a
tapada de Noé [?] Velez Basófia; do poente com a horta de Rafael Mendes Calado. Estas
nascentes distam trinta metros da referida azenha, medidos do quinal voltado para o Norte
e nessa direcção, e vinte e três metros da Ribeira de Vide medidos na perpendicular à sua
margem esquerda; as outras três nascentes que se manifestam, num terreno conhecido
por Tapada da Sulfùrea situada também nos subúrbios da vila de Cabeço de Vide, e que
pertenceu à extinta Câmara Municipal desta vila, à qual foi cedida pelo Estado por carta
de Lei de trinta de Julho de mil oitocentos e trinta e nove, e que confronta do Norte com
azinhaga pública; ao Sul com a Ribeira de Vide e levada da azenha da Bica; Nascente
com azinhaga do Bolgão e Ribeiro do Fernandinho; ao Poente com a horta de Rafael
Mendes Calado, Tapada de André Campos e dita de Joaquim António Velez. Para
identificar e localizar melhor as últimas três retro citadas nascentes, acrescento mais, que
uma delas, conhecida publicamente por nascente da Capa se acha situada no Páteo da
Sulfúrea no ângulo do lado da Ribeira da Vide, fronteira ao Estabelecimento da Sulfúrea, à
distância deste de nove metros e meio. Outra das últimas três mesmas retro citadas
nascentes, conhecida publicamente por Nascente da Ermida de Nossa Senhora da
Saúde, encontra-se também situada no mesmo Páteo, no meio da parede fronteira ao
supracitado Estabelecimento, e à distância deste de nove metros e meio. A terceira das
últimas três retro citadas nascentes está situada entre a margem esquerda da Ribeira de
Vide e levada da Azenha da Bica, a vinte metros de distância do Estabelecimento da
Sulfúrea [...]. 55

32
Bibliografia e Notas

1
VASCONCELOS, José Leite de. Religiões da Lusitânia, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
imp. 1989, vol. II
2
HODGE, A. Trevor. Roman Aqueducts & Water Supply. London: Duckworth, 2002
3
The History of Plumbing [http://www.theplumber.com/eng.htm], Maio 2000
4
YEGüL, Fikret. “Bath and Bathing in Classical Antiquity”, [http://www.vroma.org/~bmcmanus/baths.htm],
Maio 2000
5
Sobre a ocupação romana do território em questão v. CARNEIRO, André. Povoamento romano no
actual concelho de Fronteira, Colibri, 2004.
6
ACCIAIUOLI, Luiz de Menezes Correa. Le Portugal Hydromineral, Lisbonne, Direction Generale des
Mines et des Services Geologiques, 1952-1953, 2 vol.
7
PIMENTA, Francisco Xavier de Almeida. «Investigações sobre a Natureza, e Antiguidade das Águas
Minerais de Cabeço de Vide, Comarca de Avis», História e Memórias da Academia Real das Sciencias de
Lisboa, Lisboa, 1823, Tomo VIII, Parte II
8
HERIQUES, Francisco da Fonseca. Aquilegio Medicinal, Lisboa Occidental, Na Officina da MUSICA,
MDCCXXVI. [http://books.google.pt]
9
Memórias Paroquiais, vol. 8, nº 14, p. 83 a 88 [http://digitarq.dgarq.gov.pt?ID=4239371]
10
MIRA, Gabriel. «Observaciones Medicas, hechas por el Medico D. Gabriel Mira, en la Villa de Cabeza
de Vide», Jornal de Coimbra, Lisboa, Na Impressão Régia. 1817, Num. LI, Parte I, f. 167
11
PIMENTA, op. cit.
12
idem. Sobre canalizações romanas em argila v.t. PONTE, Salete da [red.], Villa Rustica S.Pedro de
Caldelas-Tomar, Tomar, Centro de Estudos de Arte e Arqueologia, 1988
13
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE. Registo de Leis, Ordens, Alvarás, etc., 1803-1820, f. 206
14
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE, Livro de Registo de Leis, Ordens, Alvarás, etc., 1803-
1820, f. 206 v.º
15
PIMENTA, Francisco Xavier de Almeida, op. cit.
16
DIEZ DE VELASCO, Francisco. Termalismo e Religión. La sacralización del agua termal en la
Peninsula Ibérica y el norte de África en el mundo antiguo, [http://www.ull.es/proyectos/aguarel/libro3.htm],
Maio 2000
17
Para além das evidências arqueológicas dos sítios de São Pedro, da Horta da Torre e da Herdade de
Santo Cristo, comprovativas, as duas últimas, de aproveitamentos hidráulicos do período romano, convirá
ainda referir a hipótese adiantada por alguns autores segundo a qual uma lápide dedicada às Ninfas,
encontrada em Monforte, estaria, provavelmente, relacionada com as nascentes da Sulfúrea . cf.
Encarnação, José da. Inscrições Romanas do Convento Pacensis: subsídios para o estudo da
romanização, Coimbra, Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras, 1984, inscr. N.º 569
18
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE, Livro de Actas das Vereações, 1811-1812, f. 193 v.º
19
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE, Livro de Actas das Vereações,1811-1812, f. 204 v.º
20
Sobre as estruturas preexistentes v. CARNEIRO, op. cit.., p. 94 e ss.
21
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE, Livro de Actas das Vereações, 1822/23, f. 8
22
SALVADOR, Manuel Ferreira Tavares. Mappa Geral dos Enfermos, que no anno de 1822, concorreram
a fazer uso da ágoa medicinal sulfuria da villa de Cabeço de Vide[...],Lisboa, Na Nova Typografia Silviana,
anno de 1824, p. 5
23
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE, Livro de Actas das Vereações, 1820-1823, f. 90
24
CARTÓRIO NOTARIAL DE CABEÇO DE VIDE. 1.º ofício. Livro de Notas do tabelião José de Sousa
Gonçalves Leitão, 1816-1822, ff. 4vº. e ss. Escritura pela qual D. Ana Perpétua Coelho de Figueiredo da
Vila de Sabugosa por seu procurador o Major José Matias de Morais Moitoso desta vila, vende ao Doutor
Manuel Ferreira Tavares Salvador, Ouvidor da Alfândega de Lisboa uma tapada denominada da Fonte
Sulfúria sita nos subúrbios desta vila.
25
SALVADOR, Manoel Ferreira Tavares. Op. cit., p. 5
26
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE. Livro de Actas das Vereações, 1820-1823, f. 115 v.º
27
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE. Livro de Actas das Vereações, 1820-1823, f. 150
28
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE. Livro de Actas das Vereações, 1820-1823, f. 160 v.º
29
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE. Livro de Registo de Leis, Ordens, Alvarás, etc., f. 111
30
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE. Livro de Registo de Leis, Ordens, Alvarás, etc. f. 129 v.º
31
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE. Livro de Actas das Vereações, 1824-1830, f. 25
32
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE. Livro de Actas das Vereações, 1824-1830, f. 46
33
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE. Livro de Actas das Vereações, 1824-1830, f. 52
34
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE. Livro de Actas das Vereações, 1824-183, . f. 66
35
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE. Livro de Actas das Vereações, 1824-1830, f. 57
36
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE. Livro de Actas das Vereações, 1824-1830, f. 120

33
37
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE. Livro de Registo de Leis, Ordens, Alvarás, etc., 1818-
1834, f. 201
38
GOVERNO CIVIL DE PORTALEGRE. Correspondência expedida para diferentes autoridades, 1837-
1839, f. 316, Mç. 005
39
SERRAS, Augusto. Cabeço de Vide: vila: memórias de um povo de hoje e de ontem, 2ª ed., Cabeço de
Vide, Junta de Freguesia de Cabeço de Vide, 1997, p. 135. Na escritura de registo de manifesto das
nascentes da Sulfúria, exarada em 17 de Fevereiro de 1934, o instrumento de cedência da tapada da
Sulfúria à C. M. de Cabeço de Vide é referido com a data de 30 de Julho de 1839.
40
GOVERNO CIVIL DE PORTALEGRE, 1ª. Repartição, Correspondência com o Ministério do Reino,
1843-1844, of. 24, f. 87
41
GUEIFÃO, António de Oliveira. Memoria da Agua Mineral de Cabeço de Vide, Lisboa, Na Imprensa
Nacional, 1842; ASSUMPÇÂO, Francisco d´. «Noticia de Algumas Águas Minerais na Provincia do
Alentejo», Gazeta Médica, Lisboa, 1845; GUSMÂO, F. A. Rodrigues de. «Hidrologia de Cabeço de Vide»,
Gazeta Médica, Lisboa, 1846; LOPES, P. J. «Cabeço de Vide», Gazeta Médica, Lisboa, 1846.
42
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE. Livro da Receita e Despesa do Estabelecimento dos
Banhos desta villa de Cabeço de Vide, 1847-1854, f. 51 v.º
43
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE. Livro da Receita e Despesa do Estabelecimento dos
Banhos desta villa de Cabeço de Vide, 1847-1854. f. 36
44
GOVERNO CIVIL DE PORTALEGRE.Correspondência expedida para o Ministério do Reino,1862-1867,
f. 236 vº.
45
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE. Livro da Receita e Despesa do Estabelecimento dos
Banhos desta villa de Cabeço de Vide, 1847-1854. f. 55
46
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE. Livro da Receita e Despesa do Estabelecimento dos
Banhos desta villa de Cabeço de Vide, 1847-1854. f. 57
47
CÂMARA MUNICIPAL DE CABEÇO DE VIDE. Livro da Receita e Despesa do Estabelecimento dos
Banhos desta villa de Cabeço de Vide, 1847-1854. f. 58
48
SERRAS, Augusto, op. cit., p.142
49
CONSELHO ADMINISTRATIVO DO DISTRITO DE PORTALEGRE. Actas, 1854-1856, sessão nº. 47, f.
101
50
CARTÓRIO NOTARIAL DE CABEÇO DE VIDE. 3.º ofício. Livro de notas do tabelião Mariano Pedro
Garcia, 1853-1856, f.39 e ss. Escriptura de dívida de 400$000 reiz que a Juro de Ley, toma a Comissão e
Administradores do Estabelecimento dos Banhos sulfurios desta villa
51
CONSELHO ADMINISTRATIVO DO DISTRITO DE PORTALEGRE. Actas, 1854-1856, sessão nº. 57, f.
127
52
GOVERNO CIVIL DE PORTALEGRE. 1ª. Repartição. Correspondência expedida para autoridades
diferentes, 1846-1861, f. 110 vº. e ss.
53
SERRAS, Augusto, op. cit., p. 136
54
CONSELHO ADMINISTRATIVO DO DISTRITO DE PORTALEGRE. Actas, 1862-1867, f. 236 vº.
55
CÂMARA MUNICIPAL DE FRONTEIRA. Livro para registo dos manifestos de minas, nº 1, 1906-1942, f.
4 vº

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