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“SHAOLIN À BRASILEIRA”
ESTUDO SOBRE A PRESENÇA E A TRANSFORMAÇÃO DE ELEMENTOS
RELIGIOSOS ORIENTAIS NO KUNG-FU PRATICADO NO BRASIL
SÃO PAULO
2004
1
RODRIGO WOLFF APOLLONI
“SHAOLIN À BRASILEIRA”
ESTUDO SOBRE A PRESENÇA E A TRANSFORMAÇÃO DE ELEMENTOS
RELIGIOSOS ORIENTAIS NO KUNG-FU PRATICADO NO BRASIL
SÃO PAULO
2004
2
Para meus pais, Carlos Antônio e Brigitte.
Para todos os praticantes de Kung-Fu.
iii
3
AGRADECIMENTOS
iv
4
SUMÁRIO
RESUMO......................................................................................................................09
ABSTRACT..................................................................................................................10
1. INTRODUÇÃO - “Kung-Fu Brasileiro: Chutes à Moda Chinesa na Terra
do Futebol” ................................................................................................................ 11
2. DOS BRONZES DE SHANG AOS TURISTAS DE SHAOLIN: As Artes da
Guerra e a “Religiosidade Marcial” no Contexto Histórico Chinês.......................20
2.1 Considerações Preliminares...................................................................................20
2.2 Uma “linha do tempo” para a arte marcial chinesa.................................................20
2.2.1 Primórdios: de Shang à Era dos Reinos Combatentes.......................................24
2.2.2 O Budismo e a "origem religiosa" das artes marciais chinesas...........................25
2.2.3 O Mosteiro de Shaolin – considerações preliminares..........................................29
2.2.3.1 Fundação, patrocínio e tensões políticas..........................................................30
2.2.3.2 Dinastia Tang: o “primeiro sangue” de Shaolin..................................................31
2.2.3.3 Expressões da marcialidade em Shaolin durante a passagem
Ming-Qing......................................................................................................................33
2.2.3.4 Considerações sobre o engajamento militar dos monges de Shaolin
no período Ming tardio...................................................................................................34
2.2.3.5 O mosteiro de Shaolin como centro difusor de
sistemas marciais..........................................................................................................37
2.2.3.6 Qielan Shen – o bastão de guerra nas mãos da divindade...............................41
2.3 Dinastia Qing e séc. XX - outros estilos e a prevalência da "matriz Shaolin"..........45
2.4 Arte marcial chinesa e modernidade........................................................................49
2.4.1 A visão dos imigrantes chineses acerca dos “velhos métodos”............................51
2.5 Um enfoque complementar: a "arqueologia" dos termos definidores na arte
marcial chinesa..............................................................................................................53
2.5.1 A verificação do elemento religioso nos termos identificadores da
marcialidade na China...................................................................................................55
2.6 Interpretação dos conteúdos do capítulo.................................................................57
5
3. UMA ESPADA NA BAGAGEM: Imigração Chinesa e Transplantação do
Kung-Fu de Shaolin para o Brasil...............................................................................59
3.1 Considerações Preliminares.....................................................................................59
3.2 Fontes sobre Imigração Chinesa no Brasil...............................................................60
3.2.1 Imigrantes e Mestres de Kung-Fu..........................................................................61
3.2.2 Hipóteses para a Ausência do Elemento Marcial nos Trabalhos sobre os
Chineses no Brasil..........................................................................................................62
3.3 Panorama Histórico da Imigração Chinesa para o Brasil.........................................63
3.3.1 Expansão Colonial e Séc. XIX – Portugal como Ponte entre Brasil e China........67
3.3.2 Segunda Metade do Séc. XX - "Fase 2" da Imigração Chinesa para o Brasil......69
3.4 Interpretação dos Conteúdos do Capítulo...............................................................74
4. DE BRUCE LEE À INTERNET: Representação e Auto-Representação no
Kung-Fu Brasileiro......................................................................................................77
4.1 Considerações Preliminares...................................................................................77
4.2 Anos 70 do Séc. XX - O "Primeiro Sangue" do Kung-Fu no Brasil.........................78
4.2.1 "Tranqüilo e Infalível como Bruce Lee"................................................................78
4.2.2 “Kung-Fu” – A Televisão Brasileira como Porta de Entrada para os
Monges de Shaolin........................................................................................................80
4.2.3 "The Shaolin Temple" - Beijing adere ao Cinema de Kung-Fu.............................82
4.2.4 Shang-Chi, Yin, Yang e o “Kung-Fu Mental”……………….……………….……....83
4.2.5 Livros sobre Kung-Fu nos Anos 70.......................................................................84
4.2.5.1 "A Sabedoria Kung Fu"......................................................................................85
4.2.5.2 "Kung Fu - Curso Básico de Bastão".................................................................88
4.3 Produtos Culturais Recentes: Passagem para a Auto-Representação...................89
4.3.1 Revistas Especializadas.......................................................................................90
4.3.1.1 "Pragmatismo" x "Tradição" nas Revistas Especializadas Brasileiras..............90
4.3.1.2 “Oriente”............................................................................................................90
4.3.1.3 "Kiai", “Kung Fu Defesa Pessoal" e "Trump!"...................................................93
4.3.2 Apostilas Publicadas por Academias...................................................................96
4.3.2.1 “Kung Fu: Versão Curta de uma História Muito Longa”....................................97
4.3.2.2 Apostila da Associação Sino-Brasileira de Kung-Fu Wu Shu
de Florianópolis..........................................................................................................101
vi
6
4.3.3 Livros Recentes sobre Kung-Fu Publicados no Brasil......................................104
4.3.3.1 "Kung-Fu Shaolin do Norte - Técnicas Básicas 1º e 2º Kati".........................105
4.3.3.2 "Os Segredos do Kung-Fu"............................................................................107
4.3.4 Sites Brasileiros sobre Kung-Fu........................................................................109
4.3.4.1 Sites Institucionais..........................................................................................111
4.3.4.2 Sites pessoais................................................................................................114
4.4 Interpretação do material apresentado................................................................118
5. OS BUDAS DA ACADEMIA: Interpretação Acadêmica da Iconografia
no Universo Semântico do Shaolin Do Norte.......................................................121
5.1 Considerações preliminares................................................................................121
5.1.1 Uma Aproximação Teórica...............................................................................121
5.1.2 A cor e a Moldura do Kung-Fu Praticado no Brasil..........................................122
5.2 "As 18 Câmaras De Shaolin": Construindo um Espaço para a Prática
de Kung-Fu...............................................................................................................124
5.2.1 Um Salão Para o Dragão.................................................................................125
5.2.2 Sobre o Pó e os Cheiros das Academias........................................................126
5.2.3 A Arca de Shaolin............................................................................................127
5.2.4 O Gabinete do Venerável Mestre....................................................................129
5.3 A Iconografia Religiosa.......................................................................................130
5.3.1 Vencendo a Barreira dos Ideogramas.............................................................131
5.4 Elementos Iconográficos de caráter Religioso encontrados em Academias......131
5.4.1 Camiseta do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu...........................................132
5.4.1.1 A Frente da Camiseta: o Brasão...................................................................133
5.4.1.2 As Costas da Camiseta: o Dragão................................................................141
5.4.2 “Placa da Ética e da Ancestralidade”...............................................................144
5.4.3 O Altar..............................................................................................................151
5.4.3.1 Um Conjunto Semântico de Prevalência Confucionista................................154
5.5 Interpretação das Informações do Capítulo........................................................154
6. “PARA CONHECER O FILHOTE DO TIGRE...”: Apresentação e Leitura dos
Resultados da Pesquisa de Campo......................................................................156
6.1 Considerações Preliminares...............................................................................156
vii
7
6.2 O Universo da Pesquisa....................................................................................156
6.3 O Modelo da Pesquisa.......................................................................................160
6.4 A Construção dos Questionários – Perguntas e Temas....................................161
6.4.1 Entrevistado de Primeira Geração – Grão-Mestre Chan Kowk Wai...............161
6.4.2 Entrevistado de Segunda Geração – Mestre Lee Chung Deh........................166
6.4.3 Entrevistados de Terceira Geração - Professores Brasileiros........................172
6.4.4 Entrevistados de Quarta Geração – Alunos Brasileiros.................................178
6.5 – Interpretação do material apresentado...........................................................184
7. SÍNTESE DOS RESULTADOS DA PESQUISA.................................................185
8. CONCLUSÃO......................................................................................................191
REFERÊNCIAS........................................................................................................206
viii
8
RESUMO
O cruzamento das informações permitiu concluir que a arte marcial chinesa praticada no
Brasil, principalmente em seu entendimento filosófico, ético e religioso, vem adquirindo
características cada vez mais locais. A fim de compreender o porquê dessa
transformação e de projetar um cenário futuro do nosso objeto de estudo, fizemos uso de
um constructo teórico baseado na chamada “Teoria da Transplantação Religiosa”, de
Martin Baumann, e na chamada “Construção Social da Realidade”, de Peter Berger e
Thomas Luckmann.
9
ABSTRACT
This research investigated the transformations observed, through a time frame, the non-
physical contents (especially the religious) regarding the semantic universe of an oriental
martial art transplanted to Brazil. The martial art researched was Northern Shaolin Style
Kung-Fu, which had originated in China and was introduced in Brazil in 1960, by Chinese
master Chan Kowk Wai. The main difference regarding the other oriental martial arts
transplanted to Brazil is the coexistence of the founding ethnical and transcultural aspects.
This “double paternity transplant” – defined by traditional corporal techniques and non–
corporal transcultural elements – determined the specific characteristics regarding the
embracing, understanding, representation and meaning of History, creation myths and
religiosity involved in the martial arts.
The crossing of information allowed us to conclude that the Chinese Martial Art practiced
in Brazil, mainly in its philosophical, ethical and religious understanding, is getting more
and more local characteristics.
To understand why this transformation happens and project a future scenario of our study
aim, we used a theoretical construct based on Martin Baumann’s “Theory of Religion
Transplantation” and Peter Berger and Thomas Luckmann’s “Social Construction of
Reality”.
10
1. INTRODUÇÃO – “KUNG-FU BRASILEIRO: CHUTES À MODA CHINESA NA
TERRA DO FUTEBOL”
Bruce Lee, Jackie Chan, “O Tigre e o Dragão”, “Matrix”, “Kill Bill”, “Tekken”. Nos últimos
quarenta anos, a arte marcial chinesa (conhecida no Ocidente como “Kung-Fu”) saltou
das telas dos cinemas de Hong Kong para conquistar o mundo. As pessoas podem até
não conhecer a fundo esse conjunto de práticas corporais e filosóficas – saber de onde
veio ou qual sua História, por exemplo – mas certamente já tiveram em mente o
“arquétipo Kung-Fu”: a figura de um oriental sorridente, franzino e conhecedor de uma
venerável e terrível arte que, vez por outra, lhe permite despejar socos e chutes “a torto e
a direito” contra facínoras de todos os gêneros.
Apesar de não possuir Chinatowns e nem uma colônia chinesa das mais expressivas em
termos numéricos,2 o Brasil conheceu o moderno Kung-Fu praticamente ao mesmo tempo
em que os demais países do Ocidente.3 Por aqui, como em quase todos os lugares fora
da China e da grande faixa histórica de concentração de chineses ultramarinos (Sudeste
Asiático), a aproximação entre sociedade e marcialidade chinesa se deu,
fundamentalmente, a partir da indústria do entretenimento do século XX (literatura
popular, cinema e televisão).
Quem, com mais de quarenta anos, não assistiu a pelo menos um episódio da série
televisiva “Kung-Fu” - aquela, em que um monge tristonho vagava pelo Velho Oeste
dando conselhos aos bons e “porradas” na bandidagem - ou foi convidado para as
famosas “sessões Faixa Preta” no cinema? Nos anos 70, o sucesso dos filmes de Bruce
Lee – ator sino-americano que viria a se tornar uma espécie de “James Dean da
pancadaria” – levou imigrantes chineses conhecedores da arte marcial de seu país a
1
Letra em <http://www.thesonglyrics.com/d_song_lyrics/carldouglas_lyric1.html>
(c. 02.02.2003).
2
Acredita-se que, atualmente, vivam no Brasil entre cem mil e duzentos mil imigrantes chineses e
descendentes (algo entre 0,05% e 0,11% do total da população do país). Em outros países americanos, como
os Estados Unidos, Peru e Cuba, essa população é bem mais significativa.
3
Informações de caráter histórico, porém, apontam para um conhecimento “remoto” do termo Cong-Fu:
jesuítas franceses o utilizaram para descrever exercícios físicos e respiratórios praticados na China do séc.
XVIII.
11
abrirem academias em cidades brasileiras como São Paulo. Hoje, apesar de não haver
um registro do número total de praticantes brasileiros, pode-se dizer que o Kung-Fu é
praticado em pontos tão remotos dos grandes centros urbanos quanto o Acre e Rondônia.
O que vai, porém, na cabeça dos praticantes brasileiros de Kung-Fu - além da técnica
marcial pura e de imagens inspiradoras - a respeito de sua arte marcial? É impossível
esquadrinhar todo o pensamento de um indivíduo, quanto mais de um grupo deles.
Podemos, no entanto, nos arriscar a examinar de perto o “dragão verde e amarelo” e
chegar a alguns resultados interessantes. Nossa área é a das Ciências da Religião: o que
dizer, pois, do pensamento religioso desses praticantes? A bem da verdade, não
desejamos saber se esse aluno é evangélico, aquele católico e um terceiro, judeu ou
budista. Buscamos, sim, saber como se dá o contato entre o conjunto semântico da
religiosidade brasileira – com sua peculiar característica de inclusão – e os elementos
religiosos chineses (taoístas, budistas e confucionistas) presentes na arte marcial.
Nossa atenção se voltou para um cenário que inclui uma base étnica - o mestre fundador
chinês - e alunos brasileiros. Normalmente, em suas academias, esses transmissores de
informações tradicionais oferecem, também, conteúdos ligados às religiões de seu país
de origem, principalmente através da iconografia e de histórias que são ouvidas e, com
maior ou menor fidelidade, replicadas pelos “jovens gafanhotos”. Que valor esses
praticantes dão aos elementos religiosos chineses presentes no Kung-Fu? Qual sua
leitura a respeito, por exemplo, dos altares, da queima de incenso e das placas votivas
encontradas nas academias? Eles chegam a superar a barreira semântica dos
ideogramas? De que forma se referem ao passado histórico da arte praticada? E os
mestres chineses, conseguem transmitir, em português, conceitos tão abstratos para a
mente ocidental quanto o do Tao e o da iluminação Chan? Essa “religiosidade ancestral”
é de corte popular ou erudito? Nossa proposta, nessa dissertação, foi buscar respostas a
esses questionamentos.
12
brasileiros, com ramificações (a partir do Brasil) na Argentina, Estados Unidos, Canadá e
Espanha. A fim de se obter um quadro mais representativo do pensamento de
professores e alunos brasileiros, entrevistamos praticantes em Florianópolis (SC) e
Campo Grande (MS) – locais distantes da “base de operações” de Chan Kowk Wai, a
cidade de São Paulo. A captação de conteúdos semânticos originários da China e de uma
“visão étnica” se deu a partir de entrevistas com dois mestres chineses, um de São Paulo
(o próprio Chan Kowk Wai) e um de Curitiba (Lee Chung Deh, responsável direto pela
introdução do estilo na Região Sul).
Antes de chegar às entrevistas, porém, buscamos nos ocupar de quatro elementos que
julgamos indispensáveis para a investigação do universo semântico dos praticantes
brasileiros de Kung-Fu:
13
A investigação das fontes de representação/auto-representação, por sua vez, permitiu
desvendar o papel dos produtos da “cultura de massa” na formação do pensamento ético-
filosófico e religioso do Kung-Fu no Brasil. Esta leitura desvendou o contínuo processo de
recriação e institucionalização de conteúdos “milenares” – uma espécie de “reconstrução
do velho mestre” e de seus aforismos - uma vez que possibilitou observar como os
conteúdos de fontes populares influenciam os praticantes e, também, como os praticantes
participam na eleição, produção, entendimento e replicação desses conteúdos.
O trabalho se justifica, pois, tanto pelo aspecto histórico quanto pelo de observação de
como elementos culturais de uma determinada sociedade se comportam quando
transplantados para uma sociedade de características religiosas e de visão de mundo
muito diferentes. Há que se observar o trabalho, ainda, pelo viés da chamada
“religiosidade fragmentária”, isto é, pela análise de como elementos religiosos de uma
determinada cultura acabam “contrabandeados” para dentro de outra a partir de
atividades aparentemente não relacionadas a qualquer forma de religiosidade. Vale notar,
ainda, que o trabalho ajuda a abrir um filão, uma vez que em nosso país não há estudos
sobre a marcialidade originária da China dentro das Ciências da Religião e, de modo
geral, nas chamadas Ciências Humanas. Por fim, há que se considerar que a pesquisa
pode levar temas de reflexão aos próprios praticantes, uma vez que eles serão
confrontados com uma abordagem diferente da que estão acostumados, que é baseada,
sobretudo, em uma tradição oral enriquecida por informações externas de fontes que,
normalmente, não explicitam a origem de seus dados.
14
pelo mestre chinês que introduziu a arte marcial no Brasil; a segunda, formada por outro
mestre chinês, formado no Brasil pelo mestre anterior e que foi o grande responsável pela
difusão do Shaolin do Norte fora de São Paulo; a terceira, formada por dois professores
brasileiros do mestre chinês de segunda geração; e a quarta, formada por seis alunos
brasileiros desses professores.
O segundo bloco, formado pelo capítulo quatro (“De Bruce Lee à Internet: representação
e auto-representação no Kung-Fu brasileiro”), buscou examinar produtos brasileiros
decorrentes da “invasão da arte marcial chinesa” verificada na primeira metade da década
de 70. Procuramos determinar a origem das primeiras informações “filosóficas” sobre arte
marcial chinesa que chegaram ao Brasil, assim como o momento de substituição de
conteúdos “alienígenas” sobre Kung-Fu por conteúdos locais, ou seja, informações
derivadas do entendimento de brasileiros que se tornaram praticantes. Ainda dentro
desse bloco, buscamos examinar o resultado da replicação de informações dentro do
universo brasileiro de Kung-Fu, procurando compreender como se dá a transmissão de
dados e também a consolidação de certos mitos e tradições da arte marcial chinesa.
O terceiro bloco, formado pelo capítulo cinco (“Os Budas da Academia: interpretação
acadêmica da iconografia religiosa encontrada no universo semântico do Shaolin do
Norte”), buscou identificar os elementos gerais e os de caráter religioso encontrados nas
academias brasileiras de Shaolin do Norte, conferindo a esses conteúdos uma leitura
acadêmica. Em um primeiro momento buscamos apresentar um “cenário médio” das
academias de Shaolin do Norte para, a seguir, identificar e “traduzir”, a partir de uma
15
leitura acadêmica, os elementos religiosos orientais presentes nesses ambientes. Os
dados obtidos nessa parte da pesquisa funcionaram para identificar traços do Budismo,
Taoísmo e Confucionismo dentro da iconografia do estilo Shaolin do Norte e, também,
como um referencial para determinar o grau de transformação sofrido por esses
conteúdos dentro do universo semântico dos praticantes brasileiros.
O quarto bloco, formado pelo capítulo seis (“Para conhecer o filhote do tigre...” –
Apresentação e leitura dos resultados da pesquisa de campo), trouxe um conjunto de
informações obtido a partir da sistematização dos conteúdos das entrevistas; esse
conjunto foi construído a partir da apresentação e cruzamento dos dados obtidos junto
aos mestres chineses, professores brasileiros e alunos.
16
Essa hipótese geral só pôde ser confirmada/negada a partir da verificação das seis
hipóteses particulares, que são:
4
Faz-se necessário, para o melhor entendimento da hipótese, observar que o conceito “arte marcial” não
decorre mais apenas de um suposto “olhar oriental”. É, hoje, um conceito de caráter transcultural.
17
estátua do espírito tutelar Kuan Kung, por exemplo, perderia seu caráter devocional e
passaria à condição exclusiva de peça necessária à legitimação do ambiente marcial.
A verificação das hipóteses particulares foi feita a partir do cruzamento dos dados
bibliográficos e empíricos obtidos na pesquisa. A verificação da hipótese geral foi feita a
partir de uma leitura de conjunto, por uma lente derivada do constructo teórico adotado,
das respostas às hipóteses particulares.
18
tipo de encapsulamento da realidade dos praticantes de Kung-Fu brasileiros dentro da
realidade-padrão local.
19
2 – DOS BRONZES DE SHANG AOS TURISTAS DE SHAOLIN: AS ARTES DE
GUERRA E A “RELIGIOSIDADE MARCIAL” NO CONTEXTO HISTÓRICO CHINÊS
5
Literatura Wusia em <http://edu.ocac.gov.tw/taiwan/kungfu/e/1-11.htm> (c. 10.06.2003).
6
Os dados da tabela se baseiam em <http://www-chaos.umd.edu/history/time_line.html> (c. 12.08.2004)
20
entre reinos, intrigas palacianas e a capacidade de manter linhas de suprimento para as
frentes de batalha também participaram desse processo – elas estão ligadas,
fundamentalmente, ao princípio enunciado por Carl Von Clauzewitz no início do século
XIX (logo após a derrota de Napoleão Bonaparte), segundo o qual “a guerra é uma
simples continuação da política por outros meios”.7
*
Tabela 1 – Cronologia das Dinastias e do período republicano chinês
Dinastia Dinastia/Período Republicano
7
CLAUZEWITZ, C., “Da Guerra”, 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1996, 921 p., p. 27.
*
Iniciamos a contagem de tempo por Shang, o período histórico mais antigo confirmado pela arqueologia.
Em termos míticos, a origem da civilização chinesa se inicia cerca de 1.300 anos antes, com os imperadores
“fundadores” Shen-nung, Huang Ti, Fu-hsi, Yao, Shun e Yü. Ver THORWALD, J., “O Segredo dos Médicos
Antigos”, 10ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1990, 319 p., p. 224-225
21
A partir de pesquisas mais específicas em relação ao nosso objeto é possível traçar uma
“linha do tempo” que representa a evolução histórica das artes marciais chinesas ao longo
dos últimos 30 séculos (tabela 2). Ela é composta por “grandes eventos” documentados
ou resgatados pela arqueologia. Para facilitar a aproximação e estabelecer uma unidade
temática, optamos por apresentar essa “linha do tempo” e, então, fazer a análise dos
dados. Como será possível observar, há uma forte presença, nessa cronologia, do
mosteiro budista de Shaolin (a tabela foi dividida nas fases “Pré-Shaolin”, “Shaolin” e
“Pós-Shaolin”). Ela se justifica pelo fato de que um estilo decorrente da “tradição Shaolin”
(o Shaolin do Norte) ocupa uma posição central em nosso objeto de pesquisa. Além
disso, há que se considerar que o mosteiro ocupou, de fato, um locus estratégico no
desenvolvimento marcial chinês, principalmente em relação à tradição do moderno Kung-
Fu. Procuramos não omitir, porém, outros desenvolvimentos marciais, principalmente em
relação ao período abrangido pelos sécs. XVI a XVIII, que é chave para a construção da
atual arte marcial chinesa.
722 a Registro de práticas marciais no “Livro dos Ritos” e nos “Anais da Primavera e
Pré- 481 a.C. Outono”. Lao Tzu escreve o clássico taoísta Tao-Te-Ching. Na obra, condena o uso
Shaolin das armas.
403 a “Era dos Reinos Combatentes”. Sun Tzu escreve a obra “Os 13 Momentos”.
221 a.C.
Registros sobre o shoubo e jueli, formas de luta e pugilismo. Aproximação entre
206 a.C. a conceitos taoístas, confucionistas e budistas nas práticas religiosas e corporais.
220 d.C. “Origem religiosa” do Kung-Fu.
22
495 Fundação, próximo de Luoyang (Henan), do mosteiro de Shaolin.
610 a 621 Bandoleiros atacam Shaolin: início da relação entre os monges e a marcialidade. Os
monges de Shaolin participam da campanha de Li Shimin contra Wang Shichong,
que foi determinante para a implantação da Dinastia Tang.
Séc. XVIII Desenvolvimento, em Henan e Shanxi, dos estilos Hsing I Chuan e Pa Kua Chuan.
Criação da Tiandihui (“Sociedade do Céu e da Terra”). Disseminação da lenda dos
“monges fundadores da Tríade”. Segundo a tradição marcial, incêndios destroem os
mosteiros de Shaolin em Henan e Fujian.
1917 Mao Tsé-Tung escreve o ensaio “Um Estudo sobre a Cultura Física”.
Séc. XXI O governo da China inicia campanha para transformar o Wu-Shu em esporte
olímpico.
23
2.2.1 – Primórdios: de Shang à Era dos Reinos Combatentes
As mais antigas representações marciais chinesas possuem três mil anos: aparecem em
vasilhas de bronze datadas de cerca de 1000 a.C. (na passagem da Dinastia Shang para
Chou) e mostram homens em situação de combate.8 De acordo com Draeger & Smith,9 a
origem das artes marciais pode ser traçada até a Dinastia Chou (1122 a 255 a.C.).10
Referências às artes marciais praticadas pela nobreza – arco-e-flecha, esgrima e
pugilismo – aparecem no “Livro dos Ritos”, nos “Anais da Primavera e Outono” (722 a 481
a.C.) e em obras da chamada “Era dos Reinos Combatentes” (464 a 221 a.C.).
8
Cf. HOLCOMBE, C., “Theater of Combat: A critical look at the Chinese Martial Arts”, in
<http://www.sino.uni-heidelberg.de/FULLTEXT/JR-ADM/holcom.htm> (c. 25.08.2003).
9
DRAGER, D., & SMITH, R., “Asian Fighting Arts” (1ª ed., Tóquio: Kodansha International Ltd., 1973, 201
p.), p. 15.
10
Ver <http://www-chaos.umd.edu/history/ancient1.html#shang>, c. 29.08.2003) e PEERS & MCBRIDE,
“Ancient Chinese Armies 1500 – 200 b.C.”, 1ª ed., Oxford: Osprey Publishing, Men-at-Arms Series, 1998, 48
p.
11
Imagens extraídas de: PEERS, C., & MCBRIDE, A., "Ancient Chinese...", p. 7 (punhal) e 11 (machado).
12
Ibid., p. 5 a 8.
13
MING, Y., “Ancient Chinese Weapons – A Martial Artist´s Guide”, 1ª ed., Boston: YMAA Publications,
1999, 140 p.
24
Fu.14 Na “Era dos Reinos Combatentes”, as guerras entre os reinos de Chin, Chi, Wei,
Wu, Chu e Yueh aceleraram o desenvolvimento de tecnologias e do pensamento militar.
Foi o tempo de “A Arte da Guerra” (ou “Os Treze Momentos”), obra atribuída ao expert
militar Sun Tzu. “Livro de cabeceira” de executivos no século XXI, ficou conhecido no
Ocidente a partir 1772, quando foi traduzido para o francês pelo jesuíta Jean-Joseph
Marie Amiot.15
Ainda que a atividade marcial fosse exclusiva da nobreza até a Dinastia Han (206 a.C. a
220 d.C.), há referências à prática de pugilismo por outros grupos sociais. Essa
“democratização marcial” se configurou, aparentemente, como reflexo do aumento da
violência na sociedade chinesa durante a Era dos Reinos Combatentes, que implicou, em
um primeiro momento, na separação entre as figuras do “rei” e do “general”. A segunda
conseqüência – diretamente relacionada à evolução técnica da guerra – se refere ao
aumento da conscrição de civis. Henning cita o termo bo ou shoubo (palavras que,
durante a Dinastia Song - séc. XII – seriam substituídas por Quan ou Ch’uan)16 para
identificar um método conhecido na Dinastia Han Anterior (206 a.C. a 9 d.C.). Esse
método estaria descrito no manual Han Shu I Wen Chih (“Seis Capítulos a Respeito do
Combate de Mãos”, mencionado no “Livro das Artes de Han”).17 Praticado por militares e
civis, era diferente do pugilismo esportivo dos militares (jueli).18
Na Dinastia Han Posterior (25 a 220 d.C.) houve uma aproximação entre Taoísmo,
Confucionismo e Budismo (que avançara para a Ásia Central a partir dos esforços de
Ashok, imperador indiano da Dinastia Maurya); ela teria sido favorecida pela crise
institucional na Dinastia Han e pelo descrédito com que os intelectuais de então viam o
Confucionismo. Ainda que não seja possível determinar o momento exato do contato, os
pesquisadores aceitam o ano de 64 d.C. como o da entrada “institucional” das primeiras
14
HOLCOMBE, C., "Theater of Combat...", op. cit., doc. eletr.
15
Cf. CARDOSO, A., “Os Treze Momentos – Análise da Obra de Sun Tzu” (1ª ed., Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército Editora, 1987, 158 p.), p. 4.
16
Cf. HENNING, S., “Academy Encounters the Chinese Martial Arts”, in Havaí: China Review International,
Vol. 6, n. 2, 1999, p. 319 a 332, p. 320.
17
Cf. DRAEGER & SMITH, "Asian Fighting...", p. 16.
18
Cf. HENNING, "Academy Encounters...", p. 320.
25
obras budistas na China.19 Nesse ano foi fundado em Luoyang (na atual província de
Henan)20 o Baima (“[Mosteiro do] Cavalo Branco”).21 Em termos marciais, o momento é
significativo: ele teria gerado práticas corporais decorrentes da fusão entre preceitos
budistas, hinduístas (através do Budismo) e taoístas. Essas práticas estariam na origem
das artes marciais chinesas. Segundo Holcombe, na Dinastia Han Posterior houve um
cruzamento entre as antigas práticas respiratórias taoístas (chinesas) e hindus (indianas):
19
Cf. <http://www.cohums.ohio-state.edu/deall/jin.3/c231/handouts/h10.htm> (c. 15.09.03).
20
Província do centro-leste da China. Inf. em <http://www.ibiblio.org/chinesehistory/geo.html#henan>, mapa
em <http://www.ibiblio.org/chinesehistory/images/atlas/provincial/henan.html> (c. 18.11.2003).
21
Ver <http://www.chinaembassy.org.in/eng/52100.html> e
<http://www.qigong.ru/Gallery/comments.e/White_Horse.html> (c. 15.09.2003).
22
HOLCOMBE, op. cit., "Theater of combat...", doc. eletrônico. Trad. livre do inglês.
23
HUARD & LING, "Técnicas e Cuidados do Corpo na China, no Japão e na Índia" (1ª ed., São Paulo:
Summus Editorial, 1990, 317 p.)., p. 60 e 61. Kumarajiva (344 – 413) foi um dos principais tradutores de
obras budistas para o chinês. Foi o responsável pela primeira tradução, para o chinês, do “Sutra do
Diamante”.
24
Ibid., p. 64.
26
De acordo com Needhan, Huard & Ling e Holcombe, esses exercícios são a base da arte
marcial chinesa (fig. 3).25 Segundo Holcombe, a inflexão saúde x arte marcial
provavelmente decorreu da popularização de obras como a de Hua To. A passagem teria
ocorrido a partir de seitas como Pai-lien She ("Sociedade do Lótus Branco", fundada em
402 pelo monge budista Hui-yuan), que fundiram a religião das elites com práticas
xamanísticas.26 Tais seitas seriam as grandes responsáveis pela manutenção da nota
religiosa na arte marcial chinesa:
Nos séculos XVIII e XIX, o repertório de técnicas ensinadas aos conversos ao Lótus Branco
incluía encantamentos, controle respiratório, massagem terapêutica e exercícios de luta. Os
seguidores do Lótus Branco se referiam a essas técnicas como kung-fu, mas a
transcendência permanecia sendo seu principal fator de atração. Mesmo entre os boxers,
mais recentes, (...) a função do kung-fu consistia, ainda, na obtenção religiosa de poderes
27
sobrenaturais.
Joseph Needham, autor da série “Science and Civilization in China” (obra em sete
volumes publicada em 1954 pela Cambridge University Press), afirmava que “o pugilismo
chinês provavelmente nasceu como um departamento dos exercícios corporais taoístas”.
Os métodos chineses de combate são tratados no volume II e V da obra.30 Draeger &
Smith são mais diretos em relação à proximidade entre Taoísmo e arte marcial: eles
afirmam que “esses métodos foram trazidos para dentro do moderno pugilismo e se
tornaram o núcleo do chamado Sistema Interno”.31
25
Ibid, p. 66 (imagem).
26
HOLCOMBE, "Theater of Combat...", op.cit.
27
Ibid, trad. livre do inglês.
28
Cf. SHAHAR, “Ming-Period Evidence of Shaolin Martial Practice”, art. publ. in Harvard: Harvard Journal
of Asiatic Studies, v. 61, n. 2, dez. 2001, p. 359 a 413, p. 388; Tradução de "Tai-Chi-Chuan" cf.
DERRICKSON, "Chinese for Martial Arts", 1ª ed., Rutland: Charles E. Tuttle, 1996, 40 p., p. 20.
29
HOLCOMBE, "Theater of combat...", op. cit.
30
Cf. HENNING, “Academy Encounters the Chinese Martial Arts”, p. 320 e nota 6. Biografia de Needham
em <http://www.nri.org.uk/index.htm> (c. 09.09.2003).
31
DRAEGER & SMITH, “Asian Fighting...”, p. 16. Ver tb. SHAHAR, “Ming-Period…”, op. cit.,apêndice.
27
Henning se opõe a uma “ascendência religiosa” das artes marciais e atribui essa conexão
exclusivamente às sociedades secretas dos séculos XVII e XVIII. Segundo ele, o relativo
segredo em que esteve mergulhada a transmissão marcial contribuiu para cercar o tema
de “uma névoa de mito e mistério”.32 Para o pesquisador, muitos scholars erraram ao
supervalorizar “lendas populares, práticas japonesas e modernas, novelas chinesas de
cavalaria, mitos de criação das sociedades secretas do período Qing tardio ou dos Boxers
de 1900”.33 O pesquisador observa que a filosofia taoísta e a “Teoria dos Opostos” (Yin e
Yang) permearam a mente chinesa como um todo. “Ainda assim, as artes de combate
não eram necessariamente associadas com as técnicas de cultivo taoístas, alquimia ou
Taoísmo religioso em geral”.34 Em sua avaliação, os “Jogos dos Cinco Animais” não
guardam relação com o Tai-Chi-Chuan ou com qualquer outra forma de luta.35 Um dos
principais responsáveis por essa visão equivocada, para Henning, foi Joseph Needham:
Parece que Needham tentou conformar à força o boxe chinês em uma noção pré-concebida
do papel do Taoísmo na cultura chinesa; conseqüentemente, o boxe chinês é discutido na
narrativa sob [os temas] “Taoísmo” e “Alquimia Fisiológica” no volume dois e na terceira e
quinta partes do volume cinco, mas apenas como curiosidade nas notas de rodapé da sexta
parte do volume cinco, sobre pensamento e tecnologia militares – como uma atividade
36
taoísta em um meio ambiente militar.
Uma leitura do clássico taoísta Tao Te Ching pode fornecer argumentos religiosos para a
defesa do “desligamento” entre a prática taoísta e a marcial proposta por Henning. Para o
filósofo Lao Tzu, as armas não encontram lugar na vida de quem busca a transcendência:
"Armas afiadas são instrumentos do homem mau, e não instrumentos do homem superior;
ele os utiliza apenas na compulsão da necessidade."37
32
HENNING, "Academy Encounters...", p. 319.
33
Ibid.
34
Ibid., p. 321.
35
Idem, “Ignorance, Legend and Tai-Chi-Chuan”, disp. em <http//www.nardis.com/~twchan/henning.html>
(c. 24.07.2003)
36
HENNING, "Academy Encounters...", p. 319.
37
LAO TZU, "Tao Te Ching", verso 31 (trad. para o inglês por James Legge, disp. em
<http://classics.mit.edu/Lao/taote.html>, c. 10.09.2003). Trad. livre p/o português.
28
2.2.3 – O Mosteiro de Shaolin – considerações preliminares38
Shahar produziu dois artigos a respeito do tema: “Ming-Period Evidence of Shaolin Martial
Practice”, sobre a relação entre o mosteiro e as artes marciais no final da dinastia Ming, e
“Epigraphy, Buddhist Historiography, and Fighting Monks: The Case of The Shaolin
Monastery”,40 que focaliza os registros sobre a participação de monges de Shaolin em
combate na passagem das dinastias Sui para Tang (séc. VII d. C.). Henning também
38
As fontes fundamentais de informação utilizadas para a investigação do tema “marcialidade em Shaolin”
foram SHAHAR, M. (“Ming-Period Evidence of Shaolin Martial Practice”) e HENNING, S. (“Reflections on
a Visit to the Shaolin Monastery", art. publ. em Journal of Asian Martial Arts, Vol. 7, n. 1, 1998, p. 90 a 101).
A obra de SHAHAR foi traduzida por APOLLONI, R., com autorização do autor, e publicada em
<http://www.pucsp.br/rever/i_shahar.html>. Para evitar a citação reiterada (e exaustiva) dessas obras,
optamos por referir em notas apenas informações decorrentes de outras fontes. O leitor deve considerar todos
os demais dados como extraídos dos autores supracitados.
39
Imagens extraídas de <http://www.shaolincuritiba.com.br> (c.17.06.2004)
40
SHAHAR, M., “Epigraphy, Buddhist Historiography, and Fighting Monks: The Case of The Shaolin
Monastery” (inédito, 21 p.), texto recebido do autor por e-mail em 21.07.2003.
29
voltou a atenção para Shaolin: no artigo “Reflections on a Visit to the Shaolin
Monastery”,41 ele aborda o passado e, principalmente, o presente do mosteiro. Outros
estudos recentes foram feitos por Barend Ter Haar42 e Dian Murray.43 Ainda que não
tenham como elemento o mosteiro, estes trabalhos prospectaram as tradições dos grupos
sectários e revelaram seu papel na consolidação do “mito de Shaolin”. Em nosso estudo
vamos nos basear, fundamentalmente, nos textos acima relacionados. Buscaremos
observar as relações dos monges com a política e seus efeitos sobre a marcialidade; o
desenvolvimento de sistemas marciais em Shaolin; e a marcialidade e a tradição religiosa.
O mosteiro de Shaolin foi fundado em 495 no sopé do pico Shaoshi, no monte Song
(Henan). O local já era reverenciado pelos imperadores como uma das “cinco montanhas
sagradas da China” antes da chegada do Budismo.44 Localizado próximo da cidade de
Luoyang (capital do império chinês a partir de 493, quando a Dinastia budista Wei do
Norte transferiu sua capital de Datong para lá),45 ocupava um lugar privilegiado em
relação à “geografia sagrada” e ao poder político.
Ainda que algumas vezes tenha sido patrocinado por imperadores devotos (caso de
Wendi - 581 a 604 d.C. -, representante da Dinastia Sui que doou ao mosteiro uma área
de 1.400 acres até hoje conhecida como “Gleba do Vale do Cipreste”), a instituição não
escapou da desconfiança de outros governantes. Essa desconfiança dizia respeito ao fato
de o Budismo ser uma religião “estrangeira” (em oposição ao Taoísmo) e à sua forma de
organização em mosteiros, vistos como potenciais focos de rebelião.46 Um acontecimento
histórico verificado no século VII, porém, permitiu que Shaolin sobrevivesse às
campanhas antibudistas imperiais que nos séculos seguintes destruíram mosteiros,
restringiram direitos de culto e assassinaram religiosos.
41
Publ. in "Journal of Asian Martial Arts", v. 7, n.1, 1998, p. 90 a 101.
42
TER HAAR, B., “Ritual & Mythology of the Chinese Triads”, 1ª ed., Leiden: Brill´s Scholars List, 1997,
577 p.
43
MURRAY, D., “The Origins of the Tiandihui – The Chinese Triads in Legend and History”, 1ª ed.,
Stanford: Stanford University Press, 1994, 350 p.
44
Sobre as montanhas sagradas da China, ver <http://www.gotheborg.com/glossary/data/mountains.shtml> (c.
29.09.2003).
45
Cf. <http://www.wikipedia.org/wiki/Luoyang> (c. 29.09.03) e <http://concise.britannica.com> (c.
29.09.03).
30
2.2.3.2 – Dinastia Tang: o “primeiro sangue” de Shaolin
46
Cf. <http://www.cohums.ohio-state.edu/deall/jin.3/c231/handouts/h10.htm> (c. 29.09.03).
47
Imagem (em negativo) extraída de SHAHAR, M., “Epigraphy...”, op. cit., p. 23. Estela é uma prancha de
pedra com inscrições, fixada verticalmente no solo. Normalmente, funciona como marco funerário.
48
Ou entre 605 e 618. A primeira data é de SHAHAR; a segunda, de HENNING.
31
O segundo filho de Li Yuan, Li Shimin (o futuro imperador Taizong) foi encarregado de
combater Wang. A guerra durou quase um ano. A ordem de Li Shimin aos seus generais
foi atacar o inimigo em Luoyang e cortar as rotas fluviais de abastecimento da cidade. Na
primavera de 621, por conta disso, as tropas de Wang Shichong passavam fome. Mesmo
cercado, Wang conseguiu firmar uma aliança com outro rebelde, Dou Jiande. Dou, que
havia mobilizado tropas entre Shandong e Hebei, resolveu lançá-las contra Li Shimin em
Luoyang. Numa atitude digna de Sun Tzu, Li Shimin antecipou-se ao ataque. Em maio de
621, em Hulao, a cem quilômetros de Luoyang, Dou Jiande foi derrotado e morto. Com
isso, Wang Shichong se rendeu - ele seria assassinado logo depois, quando seguia para
o exílio. No dia quatro de junho de 621, as tropas de Li Shimin entraram em Luoyang.
De acordo com Pei Cui, os monges participaram dos combates pouco antes da vitória de
Li Shimin em Hulao. Eles derrotaram soldados de Wang Shichong que ocupavam o monte
Huanyuan, em Baigu Zhuang (“Gleba do Vale do Cipreste”). Vizinho da sede do mosteiro,
o monte estava situado na passagem para Luoyang e formava um passo – cenário em
que poucos soldados poderiam vencer muitos inimigos. No local, a tropa de Wang
construíra uma torre que possibilitava o envio de informações para os sitiados em
Luoyang. Pouco depois de derrotar as tropas em Huanyuan, os monges capturaram o
sobrinho de Wang Shichong, Wang Renze. Em agradecimento, Li Shimin enviou aos
monges uma carta e doou ao mosteiro uma área de 560 acres e um moinho.
O texto de Pei Cui, observa Shahar, não deixa claro se os monges foram convidados ou
coagidos a lutar. Ele acredita que a iniciativa pode ter nascido do desejo de vingança ou
da observação, pelos monges, das chances dos contendores. O fato é que a vitória
implicou em uma mudança no status do mosteiro junto à casa imperial: Shaolin não sofreu
grandes perseguições durante a Dinastia Tang.
32
O favor imperial pode ser observado na “Carta de Pei Cui” e em outros textos da “Estela
de Shaolin”, como a carta de Li Shimin aos monges (datada de 26 de maio de 621), a
“Doação do Príncipe”, de 625 – que devolveu aos clérigos o domínio sobre o Vale do
Cipreste – e os “Presentes do Imperador”, de 724, que reforçaram o patrocínio ao
mosteiro. Sharar observa, porém, os limites dessa aliança: em um trecho da “Carta de Li
Shimin”, o futuro imperador Taizong exorta os monges a retomarem suas atividades
religiosas. O incômodo de Li Shimin diante da possibilidade de lidar com monges
lutadores é perceptível; além disso, avalia Shahar, a inscrição de documentos oficiais em
pedra é reveladora, mostrando que os monges se protegiam contra possíveis
“esquecimentos” do imperador.
A busca pela presença marcial em Shaolin no período entre 717 e 932 anos49 que vai
da fundação de Tang até a fase final da Dinastia Ming (1368 - 1644) pode levar um
estudioso a crer que a exortação de Li Shimin aos monges foi tomada ao pé da letra: é
que não há registro de prática marcial dentro do mosteiro ou de envolvimento dos
monges de Shaolin com atividades guerreiras nesse período. Ainda que não se possa
descartar a possibilidade de que os monges tenham atendido à recomendação,50 é
preciso observar que uma leitura crítica recomenda prudência na avaliação desse
“silêncio marcial”. O período abrange momentos políticos distintos (a Dinastia Tang, o
período das chamadas “Cinco Dinastias e Dez Reinos”, a Dinastia Song, a Dinastia
mongol Yuan e parte da Dinastia Ming),51 que, provavelmente, implicaram em
orientações diversas na condução do diálogo imperial com o clero budista.
49
SHAHAR indica 717 anos; HENNING, 932 anos. A diferença pode ser explicada pela utilização de datas
de referência diversas: enquanto o primeiro toma como referência um indício de 798 e o ano de publicação
dos ensaios sobre a “Estela do Mosteiro de Shaolin” (1515), o segundo parece comparar os episódios de 621 à
campanha de 1553 dos monges de Shaolin contra a pirataria.
50
Segundo HENNING, não há registros da participação de Shaolin nos episódios marciais da Dinastia Song,
quando monges do monte Wutai (Shanxi) e de outros mosteiros lutaram contra os invasores Jin. Shaolin foi
arrasado em 1350, na “Revolta dos Turbantes Vermelhos”; os monges foram expulsos e só voltaram em 1359.
"Turbantes Vermelhos" em <http://www.britannica.com/ebc/article?eu=401935> (c. 05.11.03).
51
Ver tabela 1.
33
afirmar que aí se deu a fixação do “mito de Shaolin” e da figura do “monge boxeador”.
As fontes incluem manuais militares e de arte marcial, relatos de viagem, relatórios de
governo, poesias, estelas e inscrições tumulares na “Floresta de Stupas” de Shaolin. A
"Floresta" - que reúne um dos maiores grupos de stupas de toda a China - é um
cemitério de monges localizado em Shaolin.52 Tais registros são a prova da existência
dos monges guerreiros budistas: eles apontam sua participação em ações militares,
atestam que o mosteiro de Shaolin se transformou em um centro de difusão marcial e
indicam que os monges foram levados a adaptar sua prática religiosa às exigências da
prática marcial.
Shahar observa que, em Shaolin, a demanda pelo engajamento militar foi grave o
suficiente para fazer com que os monges incluíssem em seu dia-a-dia funções
"incomuns". Segundo ele, o papel militar de monges no século XVI53 tem como
explicações a deterioração da atividade militar, o esvaziamento institucional da Casa
de Ming, a depressão econômica e um aumento brutal da violência, especialmente em
Henan.54 Nesse contexto, observa, está incluído o próprio desenvolvimento das artes
marciais.
Scholars observaram o papel da violência endêmica para a História das artes marciais nas
planícies do Norte da China. A economia predatória transformou as artes marciais em um
elemento integral da sociedade rural em boa parte de Henan e nas províncias vizinhas. A
prática marcial no nível dos vilarejos serviu como pano de fundo para rebeliões como a de
55
Wang Lun (1774), dos Oito Trigramas (1813) e a dos Boxers (1898 - 1900) (...)
52
A stupa é uma estrutura arquitetônica típica do Budismo. Ver <http://www.stupa.org> (c. 29.07.03).
53
Não só de Shaolin, mas de Emei (Sichuan), Wutai (Shanxi) e Funiu. As fontes de SHAHAR para as
indicações são o Jiangnan jing lüe, de Zheng Ruoceng (1568), e o Mingshi (doc. oficial de 1739), que cita as
tropas monásticas como “milícias locais”.
54
A província de Henan é uma das áreas mais povoadas do mundo. A tensão decorrente da superpopulação é
visível atualmente, quando a província conta com 110 milhões de habitantes e problemas graves como o de
disseminação do vírus HIV entre a população rural.
55
SHAHAR, “Ming-Period Evidence...”, p. 389, trad. livre do inglês.
56
Wobian shilüe, de Cai Jiude (1558), Zhejiang Tongzhi (1561) e Jiangnan jing lüe (1568, de Zheng
Ruoceng), Wusong jia yi wo bian zhi (1604, de Zhang Nai), Shaolin Seng Bing (1670, de Gu Yanwu) e
Mingshi (1739, por Zhang Tingyu e outros). Cf. SHAHAR, “Ming-Period Evidence...”, p. 408 a 413.
34
províncias vizinhas do Mar da China foram assaltadas por piratas conhecidos como
wukou. Eles agiam na costa, em rios e canais,58 e chegaram a capturar áreas como
Songjiang (Xangai); além disso, minavam o poder Ming pela corrupção de governantes
locais. Na tentativa de solucionar o problema, o governo resolveu mobilizar os clérigos de
Shaolin e de outros mosteiros budistas.59 O responsável pelo engajamento teria sido Wan
Biao, vice-comissário em chefe na Comissão Militar em Nanjing (capital da província de
Jianxi).
57
Província vizinha de Fujian, Jiangxi, Anhui, Jiangsu e Xangai. Ver
<http://www.ibiblio.org/chinesehistory/geo.html#henan> e
<http://www.ibiblio.org/chinesehistory/images/atlas/provincial/zhejiang.html> (c. 18.11.2003).
58
Uma das “portas de entrada” era o rio Yangtze, que nasce no Tibete e deságua em Xangai. O rio tem 5.500
km de extensão. Mapa em <http://www.ibiblio.org/chinesehistory/images/atlas/country/country009.html> (c.
19.11.2003).
35
Wang Tang.60 Inscrições na “Floresta de Stupas” também se referem ao engajamento
militar individual: o epitáfio do monge Sanqi Yougong (1548) informa que ele teria
ocupado postos militares na fronteira de Shanxi e Shaanxi, e que teria participado de uma
expedição militar em Yunnan. Os epitáfios dos monges Wanan Shungong (1619) e Benda
(1625) informam que ambos se distinguiram em combate (as inscrições não informam as
batalhas de que teriam participado). Em 1630, monges de Shaolin teriam sido
contratados por um magistrado de Shanzhou (Henan) para treinar uma milícia e tentar
conter a crescente anarquia. A tropa teria obtido muitas vitórias contra grupos rebeldes,
até que acabou derrotada pelo líder rebelde Ma Shouying, conhecido como Lao Huihui
(“Companheiro Muçulmano”).61
Nas artes marciais não há, nesta terra, quem não se renda a Shaolin. [O mosteiro de] Funiu
[em Henan] pode ser colocado em segundo lugar. (...) Em terceiro lugar vem Wutai [em
Shanxi]. (...) Juntos, esses três [centros budistas] compreendem centenas de mosteiros e
incontáveis monges. Nossa terra é sitiada internamente por bandidos e externamente por
bárbaros. Se o governo lançar uma ordem para o recrutamento [desses monges], irá ganhar
62
todas as batalhas de que participar.
Opinião contrária teve o burocrata Wang Shixing, de Henan. Na obra Yu Zhi (“Notícia de
Henan”, de 1595), ele acusa os monges de falsidade, propensão ao banditismo e à
revolta:
59
O registro mais completo dessa mobilização está em “A Primeira Vitória dos Exércitos Monásticos” (“Seng
bing shou jie je”), de Zheng Ruoceng (1568).
60
Inf. na estela “Dengfeng xian tie”, de Shaolin.
61
As informações sobre a contratação de monges em Shanzhou estão em “Mingshi” (1739).
62
Zheng Ruoceng, in “Seng bing shou jie je”. Cf. SHAHAR, p. 384. Trad. livre do inglês.
36
Os monges de Henan nunca obtêm certificados de ordenação (dudie). Hoje eles cortam
seus cabelos e se tornam monges; amanhã, deixam [o cabelo] crescer e voltam à laicidade.
Eles fazem o que lhes apraz. Bandidos (dao) também freqüentemente raspam suas
cabeças, mudam de aparência e se unem à ordem monástica. Assim que os problemas
acabam, eles voltam à laicidade. Não importa que sejam sedentários ou itinerantes, você
não encontra um monge em cem que não beba vinho ou coma carne.63
Como se pode observar, de acordo com Wang, os clérigos de Shaolin eram meros
“escroques” que sequer se davam ao trabalho de ocultar suas intenções (um bom
exemplo disso está na inobservância dos preceitos dietéticos budistas). Segundo ele, a
condição monacal servia muito mais como "fachada" em tempos de perseguição do que
como caminho religioso. Outra prova apresentada por Wang seria o desconhecimento,
por esses "monges", dos gritos e golpes de bastão utilizados como facilitadores dos
insights místicos (a “Iluminação”) no Budismo Chan.
Eram mais como uma diversão para um percentual relativamente pequeno de monges, que
haviam trazido esse conhecimento para dentro do mosteiro. Além destes monges, uns
poucos clérigos – que encontravam tempo, dentre as muitas tarefas do dia – se tornavam
seus alunos e acabavam por auxiliar na defesa do complexo religioso. A realidade era muito
distante da apresentada pelas novelas populares, que descreviam a existência, em Shaolin,
de um programa altamente desenvolvido de treinamento marcial, coroado por uma “prova
65
final” que consistia em superar os golpes de bonecos inteligentemente construídos.
63
Wang Shixing, in “Notícia de Henan”, cit. por SHAHAR, “Ming-Period Evidence...”, p. 386 e 387. Trad.
livre do inglês.
64
Para o significado de “Wusia”, ver nota 5.
65
HENNING, “Reflections on a Visit...”, p. 95. Trad. livre do inglês.
37
ser vista com o devido cuidado. Em sua análise das fontes primárias, Meir Shahar mostra
que, em determinado período, a prática marcial em Shaolin foi algo mais do que uma
“diversão” ou atividade marginal.
O próprio Stanley Henning parece admitir isso, ao tratar da evolução marcial em Shaolin.
Ele observa que, no século XVI, os monges praticavam, de fato, arte marcial. Mesmo
assim, em sua avaliação, grande parte da fama do mosteiro decorre do apelo patriótico
feito pelo historiador Huang Zongxi (1610 – 1695), autor do “Epitáfio para Wang
Zhengnan” (1669). O “Epitáfio” é uma obra de resistência à dinastia Qing que, segundo o
pesquisador, moldou o imaginário marcial chinês. Henning conclui seu raciocínio citando
autores de obras militares. Ele defende a tese de que os monges praticavam sistemas
marciais comuns a outros grupos chineses e que, por conta disso, nada tinham de
extraordinário:
Escritos Ming sobre o assunto, produzidos por Tang Shunzi (1507 – 1560), Qi Jiguang
(1528 – 1587), He Liangchen (cerca de 1591) e Zheng Ruozeng (1505 – 1580) não
mencionam o pugilismo de Shaolin em suas listas de estilos de Kung-Fu conhecidos nas
respectivas épocas. Cheng Zongyou (1561 - ?), que afirma ter vivido 10 anos no mosteiro
estudando técnicas de luta com bastão, informa que, durante sua estada, os monges
enfatizavam as técnicas de “mãos livres” para tentar chegar ao nível alcançado pela do
afamado “bastão de Shaolin”; ainda assim, Cheng não oferece nenhuma descrição do
conteúdo de tais técnicas. O manual de luta de Zhang Kongzhao, “Luta Clássica: A
Essência do Pugilismo” (cerca de 1784), que pretendeu registrar as técnicas ensinadas por
um monge de Shaolin, Xuanji, é, primeiramente, um discurso sobre os princípios básicos
66
que poderiam ser facilmente aplicados às técnicas de luta em geral.
Shahar faz outra leitura: para ele, técnicas marciais originárias do mosteiro apareceram
regularmente em enciclopédias militares do período Ming Tardio, mesmo nas obras de
Tang Shunzi e Qi Jiguang. A razão para esse “descompasso de leituras” pode estar nos
limites adotados para “arte marcial”: aparentemente Henning se limita ao pugilismo,
enquanto Shahar inclui as técnicas de bastão. Em nosso estudo adotamos a segunda
postura, uma vez que tal generalização reflete um aspecto do Kung-Fu atual, quando os
estilos possuem tanto rotinas de mãos livres quanto com armas.
Boa parte das obras do século XVI, segundo Shahar, louva as técnicas de Shaolin; pelo
menos uma - o “Tratado de Preparações Militares”, do scholar Mao Yuanyi (1549 – cerca
de 1641) - afirma que elas teriam servido como “fonte de todos os demais estilos de
bastão”. No Zhenji ("Registro de Técnicas Militares", de 1565), o comandante militar He
38
Liangchen afirma que os monges de Shaolin teriam ensinado sua técnica de bastão para
outros monges, do “monte Niu” (o autor se refere, provavelmente, ao mosteiro budista do
monte Funiu, em Henan).
O levantamento de Shahar não inclui apenas obras elogiosas às artes do mosteiro, mas
também as de “opositores” das técnicas de Shaolin e, mesmo, as que colocavam em
dúvida a fama dos monges. O principal trabalho dessa última tendência é o Jianjing
("Clássico da Espada"), de Yu Dayou (1503 – 1579). Especialista em um método de
bastão (sua obra, apesar do título, reúne técnicas de luta com esta arma), Yu teria
visitado o mosteiro em 1560, onde encontrou monges praticando técnicas que considerou
medíocres. Teria, então, convidado dois monges a aprenderem com ele sua técnica.
Segundo Shahar, a fonte essencial para a confirmação dos sistemas marciais "nativos"
do mosteiro é Shaolin gunfa chan zong (“Exposição sobre o método original de bastão de
Shaolin”), de Cheng Zongyou (1610). A obra é tida como o primeiro “manual de técnicas”
de Shaolin. Seu autor foi um scholar de Xiuning (Anhui) que dedicou a vida a estudar as
artes marciais. O próprio Cheng resume sua relação com a arte marcial:
Desde minha juventude eu estive determinado a aprender as artes marciais. Sempre que
ouvia falar de um professor famoso, não hesitava em viajar para longe para ganhar sua
instrução. Portanto, arrecadei o valor necessário às despesas de viagem e segui para o
67
Mosteiro de Shaolin, onde despendi, no total, mais de dez anos.
De acordo com Cheng, o complexo do monte Song seria o lugar onde, ao lado das
técnicas do Budismo Chan, cavalheiros podiam aprender as técnicas de bastão dos
monges. A idéia de escrever um livro, justifica, teria nascido de uma cobrança de seus
pares:
66
HENNING, p. 97 e 98, trad. livre do inglês.
67
Cheng Zongyou, “Shaolin Gunfa”, cit. por SHAHAR, p. 367. Trad. Livre do inglês.
39
(...) ilustres cavalheiros de toda a região começaram a elogiar os supostos méritos do meu
trabalho. Então me censuraram por mantê-lo em segredo, privando-os [de tais
conhecimentos]. Então finalmente eu encontrei algum tempo livre, reuni as doutrinas a mim
transmitidas por professores e amigos, e combinei esse conhecimento com o que eu havia
68
aprendido em minha própria experiência.
68
Ibid., trad. livre do inglês.
40
do que ocorre hoje nas academias de Kung-Fu – formavam os métodos ou sistemas (fig.
7).69
Ainda que Shahar destaque o bastão como "arma padrão" dos monges, há registro de
uso de outras armas e métodos de combate. Henning relacionou os monges a práticas
como a do “boxe do macaco”. Wu Shu afirmou que eles usavam lanças (Qian). Já Zheng
Ruoceng observou que, além do bastão, eles também combatiam com tridentes
(Gangcha) e lanças com ganchos (Gouqian).
A prova definitiva da marcialidade em Shaolin não está nos relatos de guerra, mas,
paradoxalmente, em suas tradições religiosas. De acordo com Shahar, o elemento
marcial se tornou tão relevante para o cotidiano dos monges que os levou a incluir uma
vigorosa “nota marcial” em seus mitos e rituais. Até onde as fontes permitem identificar,
essa inclusão teria ocorrido antes do século XVI. Ela se caracterizou pelo
estabelecimento do culto ao qielan shen (“espírito guardião”) Jinnaluo (em sânscrito,
Kimnara) e pela criação de uma lenda referente à origem divina das técnicas de bastão.
Segundo Shahar, as transformações religiosas em Shaolin tiveram por fim conciliar os
69
Imagem 7 em SHAHAR, p. 397
70
Ver DUKES, T., “The Bodhisattva Warriors – The Origin, Inner Philosophy, History and Symbolism of the
Buddhist Martial Art within India and China” (1ª ed., York Beach: Samuel Weisner Inc., 1994, 527 p.), p. 65
e 66.
41
preceitos budistas referentes à não-violência e à prática marcial dos monges e, com isso,
reduzir um foco de tensão religiosa.
Pelo menos cinco fontes - o “Método de Bastão de Shaolin”, de Cheng Zongyou, o Song
Shu (“Livro sobre o Monte Song”, com prefácio de 1612), uma listagem do condado de
Dengfeng (1652), uma lista oficial da área administrativa de Henan (1661) e uma
inscrição na estela Naluoyan shen hufa shiji (“O Espírito Naluoyan protege a Lei e mostra
sua Divindade”, de 1517), de Shaolin - se referem à lenda da transmissão divina das
técnicas de bastão. De acordo com a lenda, no século XIV uma divindade (identificada
em Naluoyan shen hufa shiji como Naluoyan/Narayana e, nas demais fontes, como
Jinnaluo/Kimnara) teria impedido a destruição do mosteiro por bandidos usando um
bastão ou um atiçador de fogueira. Esse ser sobrenatural ingressara no monastério como
um humilde monge e revelou sua real identidade apenas quando do ataque dos fora-da-
lei: ele então se transformou em um gigante que, zurzindo um bastão, os afugentou. Em
agradecimento, os monges o teriam eleito como sua divindade tutelar (qielan shen) e
começado, a partir de então, a praticar técnicas de bastão.
Como observa Shahar, a lenda não é desprovida de uma base histórica: o mosteiro de
Shaolin foi atacado no ano de 1351, durante a chamada “Rebelião dos Turbantes
Vermelhos”.71 Os monges teriam sido obrigados, inclusive, a abandoná-lo, voltando
71
Ver nota 50.
42
apenas nove anos depois, quando os rebeldes já haviam sido derrotados por tropas da
Dinastia Yuan.
A aproximação entre os monges e Naluoyan (fig. 8 e 9),72 segundo Shahar, pode ter
como base o aspecto marcial da divindade. Originária dos panteões hindu/budista e
reverenciada em Shaolin pelo menos desde o século XII, Naluoyan tem como principais
características o semblante aterrador e o fato de portar o Vajra.
72
Imagens 8 e 9 em SHAHAR, p. 397 e p. 402.
73
Na “Exposição sobre o Método Original de Bastão de Shaolin”.
74
"Os conceitos de bodhisattva nas seitas budistas do Theravada e do Mahayana são distintos; ainda assim, o
papel último do bodhisattva, em ambas, é guiar a humanidade para a iluminação." Inf. de KING, M., in
<http://web.presby.edu/~gramsey/bodhisattva.html> (c. 04.12.2003). Trad. livre do inglês.
75
Cf. STEVENS, "Chinese Gods – The Unseen World of Spirits and Demons", 1ª ed., Londres: Collins &
Brown, 1997, 192 p., p. 89 e 90.
43
sido decapitado; sua cabeça foi enterrada em Luoyang, num local onde, atualmente, há
um templo em sua homenagem. Em Shaolin há uma réplica da "Serpente Verde",
alabarda associada ao personagem.76
Além de Jinnaluo, outros seres sobrenaturais também parecem ter sido colocados a
serviço da causa marcial em Shaolin. São eles os Luohan (ou Lohan, em sânscrito
Arhat), na tradição budista indiana "veneráveis" ou "iluminados". O termo é aplicado aos
seres que se salvaram para a eternidade. Normalmente, eles são representados como
monges dotados de poderes extraordinários.77 Em Shaolin, aparecem em uma pintura
mural no Qianfo dian ("Salão dos Mil Budas"). O Wubai Luohan ("Painel dos 500 Arhats")
foi produzido por volta de 1630 – no período áureo da marcialidade no mosteiro - e
mostra alguns de seus personagens portando bastões em atitudes explicitamente
marciais.
76
Ibid, p. 147 (Fig. 10 extraída da mesma p.). O modelo de alabarda de Kuan Kung é conhecido, no meio
marcial, como Kuan Tao, expressão que pode ser traduzida como “Espada de Kuan” (Dao = espada pesada ou
facão).
77
Cf. STEVENS, "Chinese Gods...", p. 95.
44
como apoio caminhar e nem têm rostos amigáveis. A bem da verdade, se parecem com
“santos guerreiros” tentados a rachar os crânios de “inimigos da fé”.
Shaolin não foi a única “linha mestra” da marcialidade chinesa entre os séculos VII e XIX.
Nesse período surgiram outras expressões marciais. Como explicar, então, a menor
participação de tais expressões na memória marcial recente, dominada por Shaolin? A
resposta está na identificação da matriz temporal dos atuais estilos: eles não nasceram
há “milhares de anos”, como quer a tradição oral marcial, mas entre os séculos XVI e
XX.78 Os fundamentos técnicos e as conexões religiosas já existiam há muito, mas só
então é que os estilos se configuraram para formar o atual “Kung-Fu”. A ausência de
referências a estilos “modernos” antes do século XVI pode estar ligada ao domínio
institucional até então exercido pelos militares profissionais sobre as artes de guerra ou,
então, ao fato de que técnicas foram desenvolvidas por milícias interioranas,
normalmente formadas por camponeses iletrados e, portanto, incapazes de registrar as
informações por escrito.
Shahar observa que estilos “não-Shaolin” do atual cenário de Kung-Fu, como Tai-Chi-
Chuan, Hsing I Chuan e Pa Kua Chuan (respectivamente, “Boxe do Grau Supremo”,
“Boxe dos Punhos e do Pensamento” e “Boxe dos Oito Trigramas”),80 nasceram na
mesma época em que a técnica monástica ganhava relevo. O Tai-Chi teria surgido no
78
O mesmo vale para os estilos desenvolvidos na matriz Shaolin.
79
Ver PEERS, C. & SQUE, D., “Medieval Chinese Armies 1260 – 1520” (1ª ed., Londres: Osprey
Publishing, 1992, 48 p.), p. 23 a 34, e DRAEGER & SMITH, “Asian Fighting...”, p. 14 e 15.
80
Trad. dos termos cf. DERRICKSON, "Chinese for...", p. 20.
45
século XVII em Chenjiagou, Henan; o Hsing I e o Pa Kua teriam surgido em Shanxi no
século XVIII.81
Nossa conclusão é de que a tradição de Shaolin foi fixada em mitos de origem de grupos
e não, aparentemente, na transmissão em grande escala de técnicas marciais. Esses
mitos estavam relacionados ao movimento sectário chinês, nascido há séculos e
reforçado, durante a Dinastia Qing, por grupos que mesclavam auxílio econômico mútuo,
arte marcial, religiosidade e intenções sediciosas. Essa tradição pode ter origem, por
exemplo, em obras nacionalistas relacionadas aos monges, como o “Epitáfio para Wang
Zhengnan”, de Huang Zongxi.
81
SMITH & DRAEGER (“Asian Fighting…”, p. 18) se referem a Shantung como berço de estilos marciais.
82
DRAEGER & SMITH, “Asian Fighting…”, p. 13.
83
Inf. sobre Fujian em <http://www.ibiblio.org/chinesehistory/geo.html#henan> e
<http://www.ibiblio.org/chinesehistory/images/atlas/provincial/fujian.html> (c. 15.12.2003).
84
Ver DRAEGER & SMITH, “Asian Fighting…”, p. 45 e 46.
46
Draeger & Smith notam a presença de um mito de origem ligado a Shaolin na chamada
“Tríade” ou Tiandihui, a "Sociedade do Céu e da Terra":85 criada em 1761 ou 1762 no
Guanyinting (“Pavilhão de Guanyin”)86 de Gaoxi, Fujian (província apontada como berço
do “Shaolin do Sul”), foi a mais importante das "sociedades de ajuda mútua" chinesas
(fig. 11). No período anterior ao da “Guerra do Ópio” (1839 – 1842), seus integrantes
teriam atuado em pelo menos 74 localidades. Características: fraternidade, segredo e
participação em crimes e rebeliões.87 De acordo com o mito da Tríade (do qual existem
várias versões, dentre elas sete produzidas nos séculos XIX e XX e compiladas por
Murray),88 monges do mosteiro de Shaolin - localizado em Henan ou Fujian - teriam sido
traídos e, depois, massacrados por um imperador Qing, provavelmente Kangxi (1662 -
1723);89 jurando vingança e apoiados pelo Céu – que se manifestou materializando um
miraculoso queimador de incenso - os sobreviventes teriam se unido para criar a primeira
Sociedade do Céu e da Terra.
85
Trad. do termo por MURRAY, “The Origins...”, op. cit.; ver, tb., TER HAAR, “Ritual & Mythology...”.
86
Imagem extraída de MURRAY, “The Origins...”, p. 2.
87
Cf. MURRAY, “The Origins...”, p. 5.
88
Ibid., Apêndice B, p. 197-228.
89
Cf. DRAEGER & SMITH, “Asian Fighting...”, p. 45. Kangxi foi o principal imperador Qing, conhecido
por sua inteligência e por seu interesse em demover os chineses de seu preconceito contra os manchus.
90
“Kung-Fu – Versão curta de uma história muito longa” (publ. da academia: São Paulo, 1998, 26 p.), p. 13.
91
Cf. inf. repassada através de e-mail em 10.10.2003.
92
TER HAAR, “Ritual & Mythology...”, p. 44.
47
respeito surgiram com a publicação da obra “Segredos do Boxe Shaolin” (1915), escrita
por um patriota chinês sob o pseudônimo de “Mestre do Gabinete do Amor Próprio”.
Shaolin só viria a ser reconstruído no início dos anos 80 do século XX, quando o governo
de Beijing se apercebeu do potencial turístico do lugar. O primeiro passo foi a instalação
de um “Comitê de Gerenciamento do Templo Shaolin” por Beijing, que em 1985 nomeou
um novo abade, Yongxin, para o mosteiro.94 Em 1995, o departamento postal chinês
emitiu uma série de quatro selos comemorativa dos 1.500 anos de fundação do templo.
Atualmente, como observa Henning, Shaolin se tornou uma espécie de “parque temático”
para praticantes de Kung-Fu, configurado para alimentar a fantasia dos turistas: em 1999,
por exemplo, visitantes chineses e ocidentais gastaram o equivalente a US$ 66 milhões
em visitas ao mosteiro! Em 2000, o mosteiro empregava nada menos que dois mil guias
turísticos.95
93
O relato está presente em “The sacred mountains of China: Song Shan, the deserted”, de HERS, J., The
China Journal, 24 (2), 76-82.
94
<http://stonelionkungfu.0catch.com/external/beishaolin3.html> (c. 16.12.2003).
95
Inf. extraídas de “Ancient Buddhist Temple Untouched by Modern Tourism”, publ. pelo “Diário do Povo”
(Beijing) em 28.12.2000 e disp. em <www.china.org.cn/english/DO-e/5836.htm> (c. 17.12.2003).
48
As artes marciais praticadas atualmente na encosta do monte Song fogem às de
qualquer “velha tradição”, seguindo as orientações da “nova arte marcial chinesa” ditada
por Beijing. Atualmente, o mosteiro dispõe de 180 “monges guerreiros” que fazem
demonstrações do moderno Wushu na China, Europa e América do Norte.96 O Budismo,
controlado pelo Estado, parece não encontrar guarida para qualquer relação séria com
“espíritos guardiões guerreiros”, apesar da observação de Shahar sobre o renascimento
do culto popular a Jinnaluo. Os monges administradores, por sua vez, travam novas
batalhas, como, por exemplo, a referente à exploração comercial da marca “Shaolin” por
estrangeiros97 ou à inscrição do complexo religioso na lista de patrimônios da
humanidade da ONU.98
Assim como Shaolin, também o conjunto da arte marcial chinesa foi batido pelos “ventos
da contemporaneidade”. Essa mudança se deu em duas ondas, na instalação da
República (1911) e na chegada dos comunistas ao poder na China continental (1949). A
primeira etapa se caracterizou por uma tentativa de institucionalização e resgate dos
estilos; teve como âncoras entidades como o “Instituto Central de Boxe Nacional e
Cultura Física de Nanking” (de Sichuan), a “A Associação de Boxe Chinês” (de
Chungking), a “Associação Provincial de Boxe de Kiangsu” e a “Associação Central de
Kuo-Shu” (Guandong). Nos anos 20 foram organizadas várias competições nacionais e,
em 1929, o governo republicano emitiu um documento determinando a criação, em todo o
território chinês, de institutos para o ensino das artes marciais. Esse desenvolvimento foi
barrado pela invasão japonesa à China, que colocou tais práticas na clandestinidade.99
96
Ver “Pilgrimage to Mecca of Kung-Fu”, em “China Daily” (10.08.2003), disp. em
<http://www.china.org.cn/english/TR-e/39125.htm> (c. 17.12.2003)
97
O artigo "Monks Battle Use of ‘Shaolin’ as Trademark” (publ. em 25.09.2002 pela agência Xinhua e disp.
em <http://www.china.org.cn/english/Life/43987.htm>, c. 17.12.2003), conta a batalha legal travada pelo
governo chinês para manter o controle sobre as marcas “Shaolin” e “Shaolin Temple”. Em todo o mundo
existiriam 117 produtos registrados com esses nomes.
98
O pedido de inclusão foi formalizado em 2002. A justificativa é de que o complexo abriga o maior conjunto
de stupas funerárias do mundo (600), na “Floresta de Stupas” de Shaolin. Cf. “Shaolin Temple Pagodas to
Apply for World Heritage Listing”, publ. pelo “Diário do Povo” (Beijing) em 22.07.2002 e disp. em
<http://www.china.org.cn/english/TR-e/37325.htm> (c. 17.12.2003).
99
A institucionalização do Kung-Fu no início do século XX é explicada por RAVIGNAT, M., em “External
System – Modern Development”, disp. em <http://stonelionkungfu.0catch.com/external/beishaolin3.html> (c.
17.12.2003)
49
A segunda etapa de transformação das artes marciais chinesas se deu a partir do final da
Segunda Guerra Mundial e, principalmente, com a chegada de Mao Tsé-Tung ao poder,
em 1949. Como observam Draeger & Smith, o “Grande Timoneiro” tinha plena
consciência do valor “revolucionário” dessas artes,100 e tratou de moldá-las de acordo
com sua visão de mundo: no primeiro artigo que publicou, “Um Estudo sobre Cultura
Física” (1917), Mao criticou duramente a atitude da nação em relação às atividades
físicas e ao corpo. Segundo Mao, “o principal ponto da educação física é o heroísmo
militar”. Em 1951, a Federação Chinesa para Todos os Esportes começou a discutir o
futuro das artes marciais e, em 1954, deu início à “estandardização” das rotinas, que
implicou numa aproximação em relação a esportes ocidentais como a ginástica rítmica
desportiva e, também, na supressão de muitos dos velhos elementos “subversivos” –
entre eles os de caráter religioso.101
As primeiras competições dentro do novo formato – dividido nas categorias Chuan Chu
(“formas de mãos livres”), Wu Shu (“formas com armas”) e Chang Chuan (“formas do
punho longo”) – foram realizadas em 1957 e 1958. As lutas (San Shou) passaram a ser
realizadas com equipamentos de proteção semelhantes aos usados no boxe e em
“esportes marciais” como o Tae-Kwon-Do; também ganharam ainda uma
“ocidentalíssima” divisão em categorias, de acordo com o peso dos competidores.102 Em
1990 o Wu-Shu foi incluído, pela primeira vez, entre os esportes oficiais dos Jogos
Asiáticos e, atualmente, os campeonatos mundiais da modalidade reúnem atletas de 56
países.103 No início do século XXI, um dos principais pleitos do Comitê Olímpico Chinês é
transformar o Wu-Shu em esporte olímpico.
100
Cf. SMITH & DRAEGER, “Asian Fighting...”, p. 20 e 21.
101
Cf. RAVIGNAT, M., in “External System...”, op. cit.
102
FRÜHSTÜCK, S, & MANZENREITER, W., in “Neverland lost - Judo cultures in Austria, Japan, and
elsewhere struggling for cultural hegemony” (art. publ. em In Befu, Harumi [Editor]. Globalizing Japan:
Ethnography of the Japanese Presence in America, Asia, & Europe. Florence, KY, USA: Routledge, 2001, p.
69 to 93.), observam a transplantação da divisão em categorias de peso no Judô.
103
Cf. inf. disp. em <http://beijingwushuteam.com> (c. 17.12.2003).
50
Europa,104 locais onde, atualmente, se concentra o maior volume de praticantes de estilos
tradicionais. A adoção e a interpretação dos conteúdos religiosos presentes nesses
estilos por praticantes ocidentais – em especial, pelos brasileiros - é um tema que ainda
não recebeu atenção por parte dos pesquisadores.
Conforme já foi observado, a maior parte dos estilos "modernos" de Kung-Fu nasceu na
China entre os séculos XVI e XIX, em um dos períodos mais complexos da História
daquela civilização.105 Nesse contexto - que produziu rebeliões de grandes proporções,
como as do Taiping (1840 - 1864),106 dos Nian (1851 - 1868)107 e dos Boxers (1900)108 -
as artes marciais floresceram principalmente junto às milícias locais e aos chamados
grupos sectários. Eles reuniam toda sorte de descontentes com o governo Qing: líderes
políticos e religiosos, imigrantes, minorias étnicas, agricultores, militares e bandidos.
À exceção dos tempos de guerra declarada, porém, esses grupos - cujos exemplos mais
conhecidos são a "Sociedade do Lótus Branco" e a "Sociedade do Céu e da Terra" -
quase sempre se mantiveram ocultos ou à margem da lei. Seu poder, porém, pode ser
medido em termos de longevidade: Barent Ter Haar cita a perseguição policial a
remanescentes da "Tríade" em Hong Kong nos anos 70!109 É possível, inclusive, que tais
grupos sigam existindo sob outra roupagem – tudo leva a crer que os componentes da
chamada "máfia chinesa" sejam seus herdeiros.110 Nesse contexto, a proximidade recente
entre tradição marcial e um banditismo calcado na predação aos próprios sino-
104
Chan Kowk Wai partiu de Cantão para Hong Kong em 1949; em 1960 chegou ao Brasil, onde iniciou a
difusão do Kung-Fu Shaolin do Norte. Ver <http://www.memorialdoimigrante.sp.gov.br/Horal/25_9.html> (c.
05.09.2002).
105
Sobre a violência na China no período, ver SPENCE, J., "Em Busca da China Moderna - quatro séculos de
História", 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1996, 817 p.
106
Sobre o Taiping, ver SPENCE, J., "O Filho Chinês de Deus", 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras,
1998, 412 p., e <http://www.lcsc.edu/modernchina/u3s1p3.htm> (c. 26.04.2004).
107
Sobre a Revolta dos Nian, ver <http://concise.britannica.com/ebc/article?eu=398744> e
<http://www.bartleby.com/65/ni/NianRebe.html > (c. 27.04.2004)
108
Sobre a Rebelião dos Boxers, ver HARRINGTON, P., "Peking 1900 - The Boxer Rebellion", 1ª ed.,
Oxford: Osprey Publishing, 2001, 96 p. e <http://en.wikipedia.org/wiki/Boxer_Rebellion> (c. 26.04.2004).
109
TER HAAR, "Ritual & Mythology...", p. 26 e 27.
110
Sobre a presença de mafiosos chineses nos EUA, ver o artigo de FINCKENAUER, J., "Chinese
Transnational Organized Crime: The Fuk Ching", disp. em
<http://www.ojp.usdoj.gov/nij/international/ctoc.html> (c. 22.04.2004)
51
descendentes pode ter sido determinante para o afastamento entre o "homem chinês
comum" e a arte marcial.
Não se pode esquecer, contudo, a forte presença marcial na cultura popular chinesa:
muitas das histórias presentes no folclore, na literatura e, mais tarde, nos filmes, trazem
personagens envolvidos com atividades guerreiras. É reveladora, por exemplo, a
presença, nas histórias populares, de mulheres guerreiras, algo incomum em uma cultura
111
Fig 12 (A e B), in HARRINGTON, P., "Peking 1900…", p. 12 e 23. Fig. 13 in GÖTZ, H., “German
Military Rifles and Machine Pistols”, 1ª ed., Pensilvania: Schiffer Publishing, Ltd., 1990, 245 p., p. 63.
52
fortemente marcada pelo patriarcado.112 Muitas das divindades das religiões populares
também são portadoras de armas, usadas para afugentar fantasmas e demônios.113
Um dado de observação empírica feita pelo autor desta dissertação contribui para
reforçar essa afirmação: nos anos de 2001 e 2002 participamos, na condição de
organizador, dos festejos do Ano Novo Chinês em Curitiba. Nesses dois anos, as
apresentações folclóricas de corte marcial (a “Dança do Dragão” e a “Dança do Leão”) e
as demonstrações de Kung-Fu foram realizadas por professores e alunos brasileiros
vindos de várias regiões do país, sem a participação de nenhum sino-brasileiro. Estes,
que se ocuparam principalmente das vendas de produtos típicos da cozinha chinesa, de
uma barraca de caligrafia e de um campeonato de mah-jong (um tipo de jogo chinês),
não participaram porque nunca haviam tido qualquer contato com a arte marcial chinesa!
112
A esse respeito ver APOLLONI, R., "Eu sou a Invencível Deusa da Espada! A representação da mulher na
'cultura marcial chinesa' e seus possíveis reflexos sobre as relações de gênero", texto disp. em
<http://www.pucsp.br/rever/rv1_2004/i_apolloni.htm> (c. 29.03.2004).
113
Uma galeria de divindades chinesas pode ser encontrada em STEVENS, K., "Chinese Gods...”, op. cit.
114
Caligrafia: acervo do autor.
53
como uma habilidade intuitiva obtida pela repetição de uma ação.115 Ao associar maestria
à superação do “Falso Ego”, o termo se aproxima da visão oriental de transcendência.116
Os chineses, porém, jamais utilizaram Kung-Fu para identificar sua arte marcial.117 Eles
adotam os termos Wushu ( ) e Guoshu ( ),118 que significam, respectivamente,
“Arte Guerreira” e “Arte Nacional”.119 Um terceiro termo identificador é Chung-kuo Ch’uan
- "Boxe do País do Centro".120 Outros termos são Ch’uan Fa, Ch’uan shu121 e Wuyi.122. A
quantidade de termos é um indício da importância da arte marcial na cultura chinesa.
De acordo com Draeger & Smith, a forma Kuo-Shu (Guoshu) teria sido adotada
institucionalmente na China em 1928, em substituição a Wushu, que, segundo os
autores, teve seu uso resgatado anos mais tarde. Esse “resgate” estaria relacionado à
chegada dos comunistas ao poder na China continental: além de reafirmar o termo,
Beijing impôs uma passagem das formas tradicionais para desportivas que implicou em
sua releitura. Isso se deu pela criação de rotinas e modalidades de luta – hoje praticadas
como parte das atividades físicas nas escolas de toda a China.123 Apesar de os autores
não informarem como se deu a mudança de nomenclatura - eles afirmam, apenas, que
foi "em um momento de promoção de grandes competições nacionais" -,124 vale observar
que, também em 1928, o governo republicano chinês fundou a primeira grande instituição
representativa das artes marciais nacionais, o Central Wushu Institute, em Nanjing. Esse
nome parece desmentir um desejo das instituições chinesas de mudar a forma
identificadora da arte marcial nacional.125
115
Trad. de "Kung-Fu" em DERRICKSON, "Chinese for...", p. 19.
116
Para uma aproximação de corte psicológico da "habilidade intuitiva", ver JUNG, C., “Psicologia e
Religião Oriental”, 1ª ed., Petrópolis: Vozes, 1980, 138 p., e WATTS, A., “O Budismo Zen”, 4ª ed., Lisboa:
Editorial Presença: 1990, 249 p.
117
A não ser recentemente. Ver <http://www.gio.gov.tw/info/culture/cultur20.html> (c. 09.01.1997).
118
Variantes: Wu Shu, Wu-shu, Kuoshu, Kuo Shu e Kuo-shu.
119
Cf. DERRICKSON, "Chinese for...", p. 9, os elementos formadores desses termos são wu - relacionado a
guerra, shu – a arte, e guo (ou kuo), a país.
120
Chung-kuo (lê-se “tzunkuo”) significa algo como “País do Centro” - denominação chinesa para seu próprio
país - e ch’uang (chuan ou quan, lê-se “tchuen”) “pugilismo”. Cf. DRAEGER, D., & SMITH, R., "Asian
Fighting...", p. 12.
121
Citados por DRAEGER & SMITH, "Asian Fighting…", p. 12.
122
Cf. TER HAAR, B., “Ritual & Mythology...”, p. 516.
123
Cf. DRAEGER & SMITH, "Asian Fighting...", p. 12 e 19.
124
Ibid., p. 19. Pode-se imaginar que a mudança tenha tido um caráter político: enquanto o apelo de Wushu
seria belicista, o de Kuoshu seria nacionalista.
125
Sobre o Central Wushu Institute, ver <http://www.cesh.info/resumenes/BBallardini.html> (c 31.08.2003).
54
Atualmente, a instituição representativa das artes marciais chinesas junto ao Comitê
Olímpico Internacional (COI) é a International Wushu Federation, criada em 1990 na
República Popular da China. Uma de suas metas é transformar o Wushu em esporte
olímpico, numa estratégia semelhante à de Japão e da Coréia do Sul em relação ao Judô
e ao Tae-Kwon-Do.126 Sobre esse projeto vale citar o filósofo Bruno Ballardini, da
Universidade de Salerno:
Depois de pelo menos 2000 anos de história, as mais tradicionais disciplinas chinesas
parecem estar renascendo para uma nova vida. Mas sua moderna recodificação sob os
auspícios da Revolução Cultural transformaram-nas dramaticamente tanto em forma quanto
em substância, fazendo-as perder seu conteúdo “marcial” e tradicional. (...) Como
documentos Maoístas confirmam, desde o estabelecimento da República Popular da China
o Wushu se tornou um componente fundamental da cultura socialista e da educação física e
desportiva, tendo se desenvolvido espetacularmente. Wushu oferece um extraordinário caso
de uso ideológico de disciplinas físicas tradicionais para propaganda. Devido à falta de
fontes recentes, algumas comparações podem ser feitas com a modernização de outras
artes marciais “nacionais”, que já conseguiram adentrar ao sistema Olímpico: o japonês
Judô e o coreano Tae Kwon Do. Pode-se concluir algumas coisas sobre a definição
equivocada de “arte marcial”. Apesar de o governo Chinês insistir na manutenção deste
termo, as disciplinas que seguem sob a definição de “Wushu” – que, literalmente, significa
“Arte Marcial” – há muito não são artes marciais. Elas são, sob todos os aspectos, esportes
127
modernos.
A “ideologização” dos termos Wushu e Kuoshu também pode ser constatada em Taiwan:
lá, o órgão representativo das artes marciais é a International Chinese Kuoshu Federation
- o nome reafirma uma expressão tradicional e, por certo, um posicionamento ideológico.
Não há, nos termos que identificam genericamente a arte marcial chinesa, uma
conotação religiosa. Assim, pode-se dizer que, nesse nível, a arte marcial chinesa não
possui corte religioso. Já Kung-Fu possui uma ligação com a religiosidade: o termo
chegou ao Ocidente no séc. XVIII, através dos relatos enviados por jesuítas que atuavam
na China. Esses documentos descrevem exercícios respiratórios taoístas e práticas
corporais de grupos que também praticavam formas de pugilismo e luta com armas.
Apesar da proximidade entre marcialidade e religião nesses grupos, porém, ela parece
126
International Wushu Federation: <http://www.olympic.org/uk/organisation/if/fi_uk.asp?id_federation=65>
(c. 31.08.2003). Sobre o Judô como produto cultural globalizado, ver FRÜHSTÜCK, S, E
MANZENREITER, W., "Neverland Lost...", op. cit.
127
Original em <http://www.cesh.info/resumenes/BBallardini.html> (c. 31.08.2003). Trad. livre do inglês
55
não ter implicado em mudanças na visão geral da arte marcial ou no significado básico do
termo "Kung-Fu" para os chineses.
Já a nomenclatura dos estilos que compõem o gênero “arte marcial chinesa” aponta, em
muitos casos, para o elemento religioso. É o caso do Shaolin do Norte, que tomou seu
nome de um mosteiro budista. Esse empréstimo128 indica a natureza da relação entre
marcialidade e religião na China, caracterizada pelo cruzamento de dois valores
dominantes na cultura: religiosidade129 e violência.
O crescimento da religiosidade na arte marcial, porém, não parece ter implicado em uma
“sacralização” do conjunto da marcialidade, mesmo porque, na China, o poder das armas
não foi privilégio de uma única casta, como ocorreu no Japão. Essa relação é
fundamental para se chegar aos limites do corte religioso de nossa análise: ao contrário
do que ocorreu no arquipélago nipônico, onde o Zen exerceu profunda influência sobre os
controladores da prática marcial (a partir do séc. XVI), na China a relação marcialidade x
religião se deu em bases aparentemente mais "pragmáticas" do que "transcendentais".
128
A lista de nomes relacionados à religião é imensa. Temos, p. ex., Tai-Chi-Chuan, Pa Kua, Lohan e Hsing
I, que tomam seus nomes de elementos do universo budista ou taoísta.
129
“Uma afinidade pelo Taoísmo filosófico e pela Teoria dos Opostos parece permear a psique chinesa”.
HENNING, “Academia Encounters...”, p. 320, trad. livre do inglês.
56
sua vontade (exemplos dessa tendência aparecem em rebeliões como a do T’ai Ping
Tao130 e a do Taiping). O estabelecimento de culto a uma divindade marcializada em
Shaolin durante a Dinastia Ming – em outras palavras, a adaptação da tradição religiosa à
prática marcial, com vistas a legitimar essa última – se mostra a prova mais veemente
dessa particular relação entre religião e marcialidade.
A análise do desenvolvimento histórico das artes marciais chinesas e de sua relação com
a religiosidade traz dados interessantes para os pesquisadores das Ciências de Religião
e da área específica da marcialidade. Inicialmente o de que, na China, a marcialidade
instrumental – ou seja, despojada de considerações outras que não as derrotar e não ser
derrotado - é muito antiga. Esse fim-em-si, que se revela nos nomes genéricos utilizados
para a identificação das artes marciais, já contava com pelo menos doze séculos quando
se deu o primeiro contato entre o campo militar e práticas corporais taoístas e budistas
voltadas à longevidade e à transcendência.
130
“Rebelião dos Turbantes Amarelos”, ocorrida entre os anos de 175 e 205 sob o comando de Chang Chueh,
defensor de uma doutrina de caráter escatológico. Ver
<http://philtar.ucsm.ac.uk/encyclopedia/taoism/taiping.html> (c. 13.08.2004).
131
Takuan foi autor de ensaios voltados à “Não-Mente”. Sua biografia e um de seus textos mais populares, “A
Mente Livre: Escritos do Mestre Zen para o Mestre da Espada” podem ser encontrados, em inglês, em
<http://www.american-buddha.com/unfettered.mind.htm> (c. 19.12.2003).
57
O ponto de contato – o corpo do fiel ou guerreiro – parece reforçar o caráter instrumental
da relação: ao incorporar elementos religiosos, os praticantes buscavam finalidades mais
“terrenas” do que “transcendentais”, como proteção mágica contra as armas e aquisição
de força física extraordinária pelo cultivo do Chi (“Energia”, na tradição taoísta).133 O fato
de que a “religiosidade marcial” chinesa só viria a ganhar força durante o apogeu do
movimento sectário parece comprovar isso: aparentemente, esses praticantes não
buscavam uma sofisticada “Iluminação Zen” ou um sutil “Paraíso Taoísta”, mas a
transformação da realidade com apoio de forças sobrenaturais. As fontes primárias
revelam, ainda, uma escassez de informações sobre os rituais mágicos ou religiosos
específicos dos grupos marciais na China. Tal dificuldade pode ser superada, no caso do
presente trabalho, a partir das entrevistas com os mestres originários, que fornecerão os
elementos necessários à comparação com os dados obtidos junto aos praticantes
brasileiros.
Por fim, a aproximação entre o Shaolin “histórico” e o “das academias brasileiras” será
feito a partir de uma comparação entre elementos como os apontados por Shahar (o culto
de Jinnaluo) e os encontrados entre os grupos de praticantes pesquisados. Essa
aproximação permitirá estabelecer uma hipótese que nos autorize a afirmar que a
tradição das academias brasileiras decorre mesmo do mosteiro ou, então, que é fruto do
movimento sectário chinês dos séculos XVI-XIX.
132
D. T. Suzuki (1870 – 1966) produziu obras como “Zen e a Cultura Japonesa”; Eugen Herrigel (1884 –
1955), “A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen”.
133
Uma lista interessante de “receitas mágico-marciais” pode ser encontrada em DRAEGER & SMITH
(“Asian Fighting...”, p. 50 e 51).
58
3. UMA ESPADA NA BAGAGEM - IMIGRAÇÃO CHINESA E TRANSPLANTAÇÃO DO
KUNG-FU DE SHAOLIN PARA O BRASIL
Este capítulo, que trata da relação entre imigração chinesa e transplantação do Kung-Fu
para o Brasil, tem como ponto de partida dados empíricos: Chan Kowk Wai,134 introdutor
do estilo "Shaolin do Norte"135 em nosso país, trocou Hong Kong (para onde havia
seguido em 1949, vindo de Cantão) pela cidade de São Paulo em 1960.136 Como a
maioria dos imigrantes, constituiu família e construiu patrimônio; além disso, trouxe na
bagagem uma prática específica de sua cultura: o Kung-Fu de Shaolin. O segundo mestre
chinês incluído em nosso estudo, Lee Chung Deh,137 também emigrou para o Brasil. Veio
de Taiwan em 1966, aos 14 anos, e fez sua formação em Kung-Fu em terras brasileiras,
como discípulo de Chan Kowk Wai (fig. 15 e 16).138
Diante de tais evidências, não há como negar a relação entre imigração e transplantação
da arte marcial chinesa para o nosso país. Resta saber, porém, em que medida o domínio
do universo semântico da arte marcial foi e é uma característica típica do imigrante chinês
"médio". A partir da resposta a esse questionamento – que buscaremos encontrar no
presente capítulo - é possível determinar dois pontos que consideramos essenciais em
134
Entrevistado, em nossa pesquisa, como "mestre chinês de primeira geração".
135
Estilo de Kung-Fu que é objeto de nossa pesquisa.
136
Inf. in FREITAS, S., "Falam os Imigrantes... Memória e Diversidade Cultural em São Paulo", São Paulo,
2001. 374 p. mais anexos. Tese de doutorado. Dep. de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo.
137
Entrevistado, em nossa pesquisa, como "mestre chinês de segunda geração". Lee Chung Deh foi o
responsável pela difusão do Shaolin do Norte na região Sul do Brasil na década de 70.
59
nosso estudo. Primeiramente, a importância do conjunto da imigração chinesa na
transplantação do Kung-Fu para o nosso país; em segundo lugar, o valor da arte marcial
como elemento de construção da identidade étnica chinesa no Brasil.
A presença chinesa no Brasil e seus reflexos sobre a sociedade e a economia locais são
objeto de interesse por parte de pesquisadores e analistas da realidade brasileira desde o
século XIX. No universo acadêmico estão trabalhos clássicos (mas de caráter pontual),
como os de Gilberto Freyre139 e Câmara Cascudo,140 e recentes, como os de José
Roberto Teixeira Leite,141 Sônia Maria de Freitas,142 Alexandre Chun Yuang Yan,143 Sally
Borthwick,144 Sachio Negawa,145 Zhou Shixiu,146 Rafael Shoji147 e Giralda Seyferth.148
138
Imagem 13 - fotos A e B: década de 60; foto C: década de 90, séc. XX. Imagem 14 - foto A: década de 70;
foto B: década de 90; foto C: década de 80, em Shaolin (acervo do autor).
139
FREYRE, G. "Louça da China no Brasil Antigo", artigo disp. em
<http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/artigos/imprensa/lou%C3%A7a_china.html> (cons. em
19.03.2004)
140
CASCUDO, C., "Dicionário do Folclore Brasileiro", Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint (Ediouro), n.d.,
930 p., especialmente os verbetes "Cheiro" (p. 271) e "Papagaio" (p. 669). Câmara Cascudo nunca produziu
um trabalho específico sobre as influências chinesas no folclore e nos hábitos brasileiros. Ainda assim, em
algumas de suas obras aparecem referências ao contato entre as duas culturas.
141
LEITE, J., "A China no Brasil", 1ª ed., Campinas: Editora da Unicamp, 1999, 288 p. mais anexos, e
"Imigração Chinesa para o Brasil", in China em Estudo, São Paulo: FFLCH-USP, v.2 , n.2 , p. 49-57, jul./dez.
1995.
142
FREITAS, S. "Falam os Imigrantes...", op. cit.
143
YANG, A., "A Cultura do Chá no Brasil", in China em Estudo, São Paulo: FFLCH-USP, v.2 , n.2 , p. 41-
47, jul./dez. 1995. Idem, "O Budismo entre os Chineses no Brasil", in China em Estudo, op. cit, p. 49 a 57.
144
BORTHWICK, S., "Chinese at the University of Brasília", in China em Estudo, São Paulo: FFLCH-
USP, v.2 , n.2 , p. 59-61, jul./dez. 1995.
145
NEGAWA, S., "Formação e transformação do bairro oriental: um aspecto da história da imigração asiática
da cidade de São Paulo, 1915 - 2000", São Paulo, 2000, 137 p. mais anexos. Dissertação de mestrado.
Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo.
146
Zhou Shixiu é coordenador adjunto do Programa China-Ásia-Brasil da Universidade Cândido Mendes
(RJ). Seu estudo, sobre a presença de elementos chineses no Brasil colonial, é apresentado no artigo
"Intercâmbio Brasil-China verificado antes do século XVIII" (sem autoria definida, disp. em
<http://www.earthlink.hpg.ig.com.br/2002/05/index8.htm>, cons. 29.08.2002)
60
Revistas brasileiras de grande circulação, como "Veja", também deram atenção ao
tema.149 Esses trabalhos lançaram luzes sobre elementos da cultura do "Celeste Império"
e, principalmente, sobre as interações decorrentes de sua transplantação ao Brasil. Eles
incluem, por exemplo, aspectos econômicos e filosóficos da imigração chinesa no século
XIX, a cultura do chá em nosso país, a presença chinesa nas artes, arquitetura e
costumes do Brasil colonial, a entrada recente de imigrantes, sua inserção na sociedade
brasileira atual e a presença de cultos religiosos chineses em nosso país.
147
SHOJI, R., "Estratégias de adaptação do Budismo chinês: brasileiros e chineses na Fa Kuang Shan", artigo
publicado em USARSKI, F. [org.], "O Budismo no Brasil", 1ª ed., São Paulo: Editora Lorosae, 2002, 317 p.,
p. 125 a 149.
148
SEYFERTH, G., "Colonização, Imigração e a questão racial no Brasil", artigo publ. na Revista da
Universidade de São Paulo, seção "Textos", n. 53, pp. 117-49, mar.-mai./02. Disp. em
<http://www.usp.br/revistausp/n53/fgiraldatexto.html> (cons. 25.03.2004). O artigo de Giralda Seyferth não
trata especificamente da imigração chinesa, mas se refere ao tema dentro do contexto da relação entre racismo
e política de imigração no Brasil do séc. XIX.
149
"O Vasto Mundo da China em São Paulo", Vejinha On Line, "Especial 450 anos de São Paulo". Matéria
disp. em <http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/vejasp/450_anos/textos/imigrantes/chineses.html> (cons.
25.03.2004).
150
FREITAS, S., "Falam os imigrantes...", op. cit. Ementas dos depoimentos dos chineses entrevistados por
Sônia Maria de Freitas estão disponíveis em <http://www.memorialdoimigrante.sp.gov.br/Horal/China.html>
(cons. 25.03.2004).
61
moderna sociedade ocidental como uma prática mais sofisticada, assumindo um prisma
terapêutico e "estético".151
José Roberto Teixeira Leite, que se dedicou a pesquisar os usos e costumes chineses
incorporados pela sociedade brasileira no período colonial -152 dentre eles, os de caráter
corporal - não se refere a qualquer assimilação de conteúdos de natureza marcial. Vale
observar que esse autor não tratou apenas de efeitos diretos da imigração chinesa ao
Brasil no período colonial, mas principalmente das influências que aqui chegaram por
conta do contato entre a metrópole portuguesa e a China (através de Macau). Essas
influências foram marcantes principalmente na arte e na arquitetura. Há que se observar,
porém, que, no período colonial – em função da política portuguesa para suas colônias -,
não se estabeleceu um contato direto entre Brasil e Macau.
Estudos como o de Rafael Shoji153 e Alexandre Chun Yuang Yan,154 que abordam
especificamente a religiosidade chinesa em terras brasileiras, também não trazem
informações sobre eventuais relações com a arte marcial. Pesquisas sobre arte marcial
chinesa relacionadas a outras áreas do conhecimento acadêmico, como Educação Física,
Fisioterapia e Medicina Desportiva, também são raras no Brasil. Uma consulta feita aos
sistemas de bibliotecas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da
Universidade de São Paulo e da Universidade de Brasília apontou apenas um trabalho
acadêmico específico sobre o tema "Kung-Fu", em nível de graduação.155
151
Para informações sobre a História do Tai-Chi-Chuan, ver WILE, D., "Lost Tai-Chi Classics from the Late
Ch'ing Dinasty" (1ª ed., Nova Iorque: State University of New York Press, 1996, 252 p.).
152
LEITE, J., “A China no Brasil”, op. cit.
153
SHOJI, R., "Estratégias de adaptação do Budismo chinês: brasileiros e chineses na Fa Kuang Shan", op.
cit.
154
YANG, A., "O Budismo entre os Chineses no Brasil", op. cit.
155
CÂMARA, R., "Uma crítica ao mecanismo da educação física a partir da filosofia do kung fu", São Paulo,
2003. 86 p., trabalho de conclusão do curso de graduação em Educação Física e Esporte da Universidade de
São Paulo. Registro completo in
<http://dedalus.usp.br:4500/ALEPH/POR/USP/USP/DEDALUS/FULL/1353037?> (c. 19.03.2004).
62
desvalorização da marcialidade na cultura imigrante, seu caráter menos aparente no
universo cultural transplantado ou, mesmo, sua condição de “elemento subuniversal”.
Possuindo a marcialidade uma presença tão poderosa na cultura chinesa, porém, como
explicar essa "valoração a menor" de uma prática tradicionalmente associada ao espírito
chinês e, mesmo, a uma espécie de élan nacional? Pensamos que é possível explicar
esse aparente "esquecimento", marginalização ou ocultação do Kung-Fu pela sociedade
chinesa da primeira metade do séc. XX - base do principal grupo de imigrantes que
chegou ao Brasil - a partir de elementos históricos: ela se baseia, sobretudo, na visão das
artes marciais tradicionais como “obsoletas” ou cabíveis apenas na literatura e no
cinema.156 Modernamente, porém, com a revalorização do Kung-Fu, é possível que tal
visão seja radicalmente alterada, não em termos étnicos, mas transculturais.
156
Os dados que sustentam tais afirmações estão no item 2.4.1.
157
In <http://www.memorialdoimigrante.sp.gov.br/realizad/Aviagem.html> (c. 27.03.2004).
158
CARRANCA, A., “Colônias de SP reúnem mais de 100 mil pessoas”, in Folha de S. Paulo, p. C3, ed. de
02.06.2001.
63
chineses apenas em São Paulo.159 Utilizando dados de 1987 do "Anuário da Economia
dos Chineses no Exterior" (do Comitê Mundial de Comércio e Negócios dos Chineses de
Ultramar, de Taiwan), Rafael Shoji informa que há cerca de 100 mil chineses no Brasil.160
A discrepância entre os números indica a ausência de uma contagem populacional
específica para a comunidade sino-brasileira ou, pelo menos, a falta de atualização dos
dados.
Essa divisão, por nós proposta para a imigração chinesa ao Brasil, guarda certa
semelhança em relação à divisão estabelecida por Wang Gungwu e citada pela
159
CHU, C., "Chinese in Brazil", in <http://huaren.org/diaspora/l_america/brazil/0194-01.html> (c.
29.03.2004).
160
SHOJI, R., "Estratégias de Adaptação...", p. 130
161
CLEMENTE, I., em “Anistia da PF regularizou 9.229 pessoas”, in Folha de S. Paulo, caderno "Cotidiano",
ed. de 23.07.2000, se refere à imigração chinesa durante os anos 90 (séc. XX). Segundo a autora, esses
imigrantes, originários da República Popular da China, se instalaram principalmente em São Paulo, Foz do
Iguaçu e Curitiba.
162
Na capital paranaense, a maior concentração de lanchonetes e restaurantes administrados por famílias
chinesas está no eixo formado pelas praças Tiradentes, Generoso Marques, Rui Barbosa e Osório, e pelas ruas
Quinze de Novembro, Tobias de Macedo, Barão do Cerro Azul, Marechal Floriano Peixoto, Marechal
Deodoro, Riachuelo e Desembargador Westphalen. Informação obtida pelo autor a partir de observação de
campo no período de dezembro de 2003 a fevereiro de 2004.
64
pesquisadora Marie-Paule Ha para a diáspora chinesa.163 Analisando a migração de
chineses, ela identificou quatro padrões, relacionados fundamentalmente à motivação de
saída da China e ao perfil dos emigrados:
163
HA, M., "Cultural Identities in The Chinese Diaspora", art. disp. em
<http://huaren.org/diaspora/background/doc/010500-01.html> (c. 16.04.2004).
65
1812 D. João VI autoriza a entrada de dois mil chineses no país. Desembarcam
400.
1855 Nova entrada de chineses no Brasil. São 303, chegados ao Rio de Janeiro.
1900 Primeira entrada oficial de chineses em São Paulo: 107 pessoas, vindas de
Lisboa no vapor "Malange". Foram abrigados na Hospedaria dos Imigrantes,
na cidade de São Paulo, e depois seguiram para Matão (SP).
1960 Chan Kowk Wai, patriarca do estilo Shaolin do Norte no Brasil, desembarca
Fase 2 em São Paulo vindo de Hong Kong.
Séc. XX
1962 Fundado na cidade de São Paulo o 1º templo budista chinês brasileiro, o Mi
To.
1966 Lee Chung Deh, discípulo de Chan Kowk Wai e difusor do Shaolin do Norte
fora de São Paulo, desembarca no Brasil vindo de Taiwan.
66
1980 Criação, em São Paulo, da Associação Cultural Chinesa do Brasil.
2003 A Escola de Samba Águia de Ouro, de São Paulo, apresenta o enredo "A
milenar cultura de um povo, quem tem olho grande já entra na China”.
Participam do desfile passistas chinesas e praticantes de Kung-Fu.
2004 O presidente da República do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, leva à China
uma comitiva de políticos e empresários à China. O Brasil se esforça por
ampliar os contatos com a China nas áreas comercial, científico-tecnológica e
de infraestrutura.
3.3.1 – Expansão colonial e séc. XIX – Portugal como ponte entre Brasil e China
164
Ver LEITE, "Imigração Chinesa...", p. 25 e 26.
67
Leite,165 Seyferth166 e Lesser167 observam que a questão da importação de trabalhadores
chineses (conhecidos genericamente como coolies) para o Brasil suscitou acalorados
debates entre autoridades e intelectuais brasileiros no período entre 1855 a 1890. Esses
debates, centrados na questão racial - no receio da "mongolização do Brasil" e da
mestiçagem -, parecem ter tido relação direta com o número de chineses trazidos ao país
no período.
165
Idem, "Os Imigrantes...", p. 29 a 39.
166
SEYFERTH, G., "Colonização, Imigração...", op. cit.
167
LESSER, J., "Neither Slave nor Free, Neither Black nor White: The Chinese in Early Nineteenth Century
Brazil", art. disp. em <http://www.tau.ac.il/eial/V_2/lesser.htm> (c. 26.03.2004).
168
HA, M., "Cultural Identities...", op. cit.
169
LEITE, J., "Os Imigrantes...”, p. 39. O número toma por base cálculo de CONRAD, J., in "The Planter
Class and the Debate over chinese Imigration to Brazil. 1850 - 1893", art. publ. em "International Migration
Review", Nova Iorque: The Center for Migration Studies of New York, Inc., n. 1, p. 41 a 55, março/junho de
1975.
170
LEITE, J., "Os Imigrantes...”, p. 26.
171
Inf. in "A Chinese man's odyssey to Cuba", art. sem autoria definida publ. in San Francisco Examiner e
disp. em <http://www.huaren.org/diaspora/l_america/cuba/id/101898-01.html> (c. 29.03.2004).
68
número de indivíduos. Em países como os Estados Unidos, que recebeu um número
muito grande de imigrantes chineses,172 a imigração teve como uma de suas
conseqüências o estabelecimento de Chinatowns - bairros étnicos que abrigaram boa
parte dos emigrados. Esses bairros, que tiveram um papel fundamental para a
preservação de características culturais do país de origem, foram formados por conta de
pressões da comunidade branca, que não admitia conviver com indivíduos considerados
racialmente e culturalmente "inferiores".173 Jonathan Spence se refere a algumas das
diferenças culturais que reforçaram a segregação:
No caso brasileiro, qual o destino desses poucos imigrantes chineses da primeira fase?
Segundo José Roberto Teixeira Leite,175 eles se concentraram principalmente no Rio de
Janeiro, onde trabalharam como peixeiros, cozinheiros, fogueteiros e tintureiros, na maior
parte das vezes em péssimas condições de vida. Dispersos em uma sociedade
institucionalmente menos organizada e com menor grau de restrições à miscigenação -
pelo menos, no nível popular - acabaram absorvidos, inclusive em seus traços raciais.
3.3.2 - Segunda metade do séc. XX - "Fase 2" da Imigração Chinesa para o Brasil
A segunda fase da imigração vai de 1949 – ano da “Diáspora Chinesa” provocada pela
tomada do poder pelos comunistas na China continental – até meados dos anos 70,
172
Uma lista de artigos acadêmicos e jornalísticos sobre a presença chinesa nos EUA podem ser encontrados
em <http://huaren.org/diaspora/n_america/usa/> (c. 16.04.04).
173
Ver HA, M., "Cultural Identities...", op. cit.
174
SPENCE, J., "Em Busca da China...", p. 219.
175
Tomando por base obras como "O Rio de Janeiro do meu tempo" (1938), de Luiz Edmundo. In LEITE, J.,
"Os Imigrantes...", p. 39.
69
quando chegaram ao Brasil famílias chinesas expulsas das antigas colônias portuguesas
na África (Angola e Moçambique) por conta de guerras civis.176
Antes de seguir com a descrição dessa fase, julgamos importante tecer algumas
considerações a respeito do termo "diáspora", utilizado em muitos ensaios acadêmicos
sobre o movimento migratório chinês na segunda metade do século XX. O termo vem do
grego diasporá ( ), que significa "dispersão". De acordo com a definição
dicionarizada, "diáspora" pode ser definida como "a dispersão dos povos por motivos
políticos ou religiosos, em virtude de perseguição por grupos dominadores intolerantes".177
O caso da imigração chinesa recente pode ser incluído nessa definição. Aos motivos
elencados pelo dicionarista como motivadores da dispersão, podemos acrescer o de
caráter econômico: por força da má distribuição de renda - determinada, entre outros
fatores, pelo esforço dos grupos dominantes em manter o controle sobre a riqueza -
populações são levadas a deixar seus locais de nascimento para "tentar a vida" em outros
lugares.
Nos parece que a diáspora chinesa não se encaixa nessa definição, uma vez que o
território de origem e a cultura "de berço" dos imigrantes - apesar da dinâmica natural das
sociedades - seguem existindo. Além disso, há que se considerar, no caso chinês, o
poder econômico e de comunicação dos emigrados, que facilitou o estabelecimento de
pontes – ainda que restritas - em relação a seu território de origem. Wong, no abstract do
artigo "Belonging and Diaspora: The Chinese and Internet", observa que "no caso da
176
Não encontramos referências sobre a entrada de chineses das colônias portuguesas na África para o Brasil.
Nos anos 70, famílias vindas de Moçambique desembarcaram em Curitiba.
177
HOLANDA, A., "Novo Dicionário Aurélio", 1ª ed., Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1975, 1517 p.,
p. 474.
178
BAUMANN, M., "Becoming a Colour of the Rainbow: Indian Hindus in Trinidad Analysed along a Phase
Model of Diaspora", paper apresentado ao 18th Congress of the International Association for the History of
Religions, Durban, África do Sul, agosto de 2000, 11 p.
70
comunidade chinesa ficou claro que, embora a internet tenha sido útil para a criação de
uma presença chinesa, ela jamais privilegiou o essencialismo e a hegemonia comunal."179
Feitas as considerações acerca dos limites do termo "diáspora", podemos voltar à análise
da segunda fase da imigração chinesa no Brasil. A partir da segunda metade do séc. XX,
o movimento migratório não partiu de uma demanda brasileira, mas de situações
decorrentes do contexto internacional - avanço do comunismo na China e as revoluções
que, na esteira da Guerra Fria, levaram à independência das ex-colônias européias na
África - que implicaram no deslocamento de milhões de chineses para vários países:
atualmente há cerca de 44 milhões de chineses ultramarinos vivendo apenas em países
da Ásia.180
179
WONG, L., "Belonging and Diaspora: The Chinese and Internet", paper publicado in First Monday - Peer-
viewed Journal on Internet, abstract disp. em <http://www.firstmonday.dk/issues/issue8_4/wong/> (c.
29.03.2004). Trad. livre do inglês.
180
Inf. in O’BRIEN, T., “A Nova Zelândia e a ASEAN”, art. disp. em
<http://www.mct.gov.br/CEE/revista/Parcerias3/novazela.htm> (c. 28.03.2004).
181
O site <http://planeta.terra.com.br/saude/icc.bh/brasil.htm> (c. 29.08.2002), do Instituto Cultural Chinês
(Belo Horizonte), lista 41entidades culturais sino-brasileiras, entre associações culturais (6), escolas (11),
centros religiosos cristãos e budistas (21) e academias de artes marciais (3).
71
As notícias abrangem temas diversos, tais como a presença de colônias chinesas em
cidades brasileiras (São Paulo, Rio de Janeiro e Londrina),182 apresentações culturais
(como as mostras "Guerreiros de Chian"183 e "A Viagem do Dragão: Arte e Imigração
Chinesa"184), a medicina tradicional,185 o Kung-Fu186 e até uma interação radical entre as
culturas chinesa e brasileira verificada no carnaval de 2003 em São Paulo, quando escola
de samba Águia de Ouro levou para o Sambódromo o enredo “A milenar cultura de um
povo, quem tem olho grande já entra na China”.187 Há, evidentemente, dezenas de outras
notícias e artigos enfocando aspectos diversos da cultura chinesa, tais como a
religiosidade, a arte marcial, a medicina, a arquitetura, os locais de visitação turística, a
economia e as relações internacionais; elas refletem um aparente aumento do interesse
dos brasileiros pelo "Celeste Império" e, sem dúvida, o crescimento da China como objeto
de atenção do mundo do século XXI. Como, porém, não estão diretamente relacionadas
aos imigrantes chineses que se instalaram no Brasil a partir da segunda metade do século
XX, não as incluímos em nosso universo de consulta.
Uma análise das matérias referentes à imigração chinesa recente para o Brasil mostra
que, de modo geral, os veículos brasileiros mostram sensibilidade para o tema,
observando-o a partir de campos temáticos bem definidos, como o da arte, da culinária,
da medicina e da arte marcial. No que respeita a esse último campo temático, observa-se
um embasamento em “informações consolidadas” -188 decorrentes da representação
182
São Paulo: “O Vasto Mundo...”, Vejinha On Line, op cit.; Rio de Janeiro: CLEMENTE, I., “Chineses
invadem ‘área nobre’ da Rocinha”, in Folha de S. Paulo, ed. de 23.07.2000; Londrina (PR): MASCHIO, J.,
“‘Chinatown’ pode virar bairro fantasma no PR”, in Folha de S. Paulo, p. C8, ed. de 01.08.1993.
183
A exposição “Guerreiros de Chian”, realizada na Oca (cidade de São Paulo) entre 20 de fevereiro e 8 de
junho de 2003, foi objeto de diversas matérias de jornais de todo o país, como a Folha de S. Paulo, O Estado
de S. Paulo e a Gazeta do Povo (de Curitiba).
184
GUARIGLIA, A., “Mostra traz arte e imigração na China”, in Folha de S. Paulo, p. E2, ed. de 26.11.1997.
185
“Chinês faz remédio com ervas brasileiras”, matéria sem autoria definida, publicada in O Estado de S.
Paulo, caderno “Seu Bairro”, ed. de 08.12.1995.
186
SEBBA, J., “De olhos bem puxados, a revanche”, in VIP Exame, São Paulo: Editora Abril, n. 188, dez.
2001, p. 144.
187
In O Estado de S. Paulo, a matéria “Vai-vai e Gaviões se destacam” (sem autoria def., p. C1, ed. de
02.03.2003), informa que “numa das alas, um grupo de lutadores fazia exibição sincronizada de kung-fu” e
que “em outra, ainda, mulheres com ascendência chinesa faziam evoluções com leques”. Outra matéria –
“Águia de Ouro trouxe passistas chinesas para o Anhembi” -, publ. no site Globonews.com. (sem autoria def.,
in <http://www.globonews.globo.com/Globonews/article/0,6993,A496035-1332,00.html>, c. 02.03.2003),
informa que a escola de samba trouxe “passistas chinesas enviadas pelo consulado da China no Brasil para
representar o país”, e que “outro destaque foi uma ala com centenas de lutadores de kung-fu”. A letra do
samba enredo da Águia de Ouro pode ser encontrada em
<http://www.estadao.com.br/ext/divirtase/carnaval/programacao/sp_04.htm> (c. 02.03.2003).
188
O tema da representação e da auto-representação no Kung-Fu brasileiro é tratado em detalhes no cap. 4
desta dissertação.
72
brasileira da arte marcial chinesa, construída a partir, principalmente, dos produtos da
indústria norte-americana de entretenimento que chegaram ao nosso país nos anos 70
(séc. XX) - que fogem de dados mais precisos sobre o tema.
Na matéria “De olhos bem puxados, a revanche”,189 o jornalista Jardel Sebba relata sua
vivência de um mês na Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu, como discípulo de Chan
Kowk Wai. A matéria revela coisas importantes, como o respeito que os alunos devotam
ao mestre e a extensão do universo marcial, que inclui métodos terapêuticos. Ainda
assim, se fixa em informações genéricas ou pouco precisas do tipo “o clima é totalmente
Zen” e “geralmente a figura é um velhinho temido e respeitado por todos”. Em várias
visitas a academias - inclusive à Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu, base da matéria
de Jardel Sebba - não encontramos elementos suficientes para informar que o clima, lá, é
“Zen”. Trata-se de locais de prática onde, efetivamente, os alunos desenvolvem trabalho
marcial, sem grandes considerações pelo aspecto religioso. Ainda que as percepções – a
do repórter e a nossa – possam variam em função do olhar pessoal sobre o tema, vale
destacar que o trabalho na academia Sino-brasileira de Kung-Fu não inclui a meditação,
que é um dos pilares do Zen. No que se refere à figura do mestre como um "velhinho
chinês", vale observar que, atualmente, o número de mestres chineses em atividade no
Brasil é infinitamente menor que o de professores brasileiros.
189
SEBBA, J., “De olhos...”, p. 144.
73
3.4 - Interpretação dos conteúdos do capítulo
A constatação de que dois dos mestres incluídos em nossa pesquisa de campo são
emigrados da segunda fase nos permite concluir que existe relação direta entre a
imigração chinesa recente e a transplantação do Kung-Fu para o Brasil. A ausência de
uma quantidade significativa de informações a esse respeito em fontes acadêmicas e
jornalísticas brasileiras - que abordam temas como a imigração chinesa no período
colonial e recente, os hábitos e costumes chineses incorporados pela sociedade
brasileira, a religiosidade e a influência chinesa nas artes e arquitetura - nos leva a crer,
porém, que essa transplantação se deu de forma "pontual", ou seja, foi levada a termo por
uns poucos indivíduos que, a partir de um certo momento, passaram a disseminar sua
arte entre brasileiros e, com isso, se afastaram de um público "étnico". Em sua entrevista
para esta pesquisa, Chan Kowk Wai informou que, em um determinado período dos anos
60, deu aulas apenas para chineses no Centro Social Chinês de São Paulo. Ainda nos
anos 60 e também na década seguinte, graças, entre outros motivos, ao sucesso dos
filmes de Bruce Lee e da série de TV "Kung Fu" no Brasil, ele fundou uma academia
freqüentada por descendentes e não-descendentes de chineses. Essa passagem parece
ter implicado em um "distanciamento do fator étnico" provocado, sem dúvida, pela
visibilidade adquirida pela arte marcial chinesa e, certamente, pelas perspectivas
econômicas relacionadas ao ensino do Kung-Fu.
190
O site <http://planeta.terra.com.br/saude/icc.bh/brasil.htm> (c. 29.08.2002) relaciona 21 centros religiosos
cristãos e budistas estabelecidos pela colônia chinesa brasileira.
191
Vale, aqui, o “Princípio da Navalha de Okham”. Para informações históricas sobre o desenvolvimento da
Capoeira, ver CASCUDO, "Dicionário do Folclore Brasileiro", op. cit., p. 241 a 243.
74
A percepção de que o conhecimento marcial não é uma característica necessária ao
universo semântico do "imigrante médio", e de que muitos dos imigrantes guardam maior
distância em relação à arte marcial do que os brasileiros praticantes, permite concluir que
a importância do conjunto da imigração chinesa na transplantação do Kung-Fu para o
Brasil é relativa. Permite concluir, também, que a arte marcial não é um elemento de
construção da identidade étnica chinesa no Brasil; ela pode ser incluída, talvez, na
representação brasileira dos chineses. Um exemplo da representação brasileira de que
"todo chinês é um Bruce Lee" pode ser visto na matéria de Jardel Sebba.192
192
SEBBA, J., “De olhos...”, p. 144.
193
Entrevista realizada em dezembro de 2003, em Curitiba.
75
A segunda implicação, decorrente da primeira, se refere a mudanças mais rápidas no
universo semântico do Kung-Fu, com efeitos, por exemplo, sobre os elementos religiosos
nele presentes. Ainda que os mestres originários ensinem conteúdos tradicionais e
deixem subentendida a determinação de que seus alunos brasileiros aceitem e respeitem
os elementos semânticos replicados, há que se considerar que essa cobrança se dá num
nível diferente da que existiria se a arte marcial fosse ensinada, por exemplo, em um meio
étnico, onde a presença de "muitos olhos chineses" poderia implicar em uma necessidade
de mergulho na ortodoxia. Há que se considerar ainda que, em um meio étnico, o acesso
a informações "de raiz" é maior: ao ter dúvidas sobre um termo ou conceito transmitido
pelo mestre, o aluno poderia tentar esclarecê-las junto a sino-brasileiros que estivessem
em uma situação de maior proximidade.
76
CAPÍTULO 4 - DE BRUCE LEE À INTERNET - REPRESENTAÇÃO E AUTO-
REPRESENTAÇÃO NO KUNG-FU BRASILEIRO
194
A afirmação de um universo semântico diverso do da realidade-padrão implica na geração de um
subuniverso (caracterizado pela diferença) ou de uma subcultura (caracterizada pela condição marginal). Ela
gera representação e auto-representação. Cf. BERGER, P. & LUCKMANN, T, "A Construção Social da
Realidade", 21ª edição, Petrópolis: Editora Vozes, 2002, 247 p., p. 35 a 46 e 117 a 126.
195
Ver MEYERS, et. al., "From Bruce Lee to the Ninjas – Martial Arts Movies", 1ª ed., Nova Iorque: Carol
Publishing Group, 1991, 256 p., p. 45 a 58 e p. 61 a 162.
77
4.2 – Anos 70 do século XX - O "primeiro sangue" do Kung-Fu no Brasil
As "sessões Faixa Preta" nos cinemas dos anos 70198 influenciaram muitos professores
brasileiros de Kung-Fu. Um exemplo é Ariovaldo Veiga, co-autor do livro "Kung Fu Shaolin
do Norte – Técnicas Básicas - 1º e 2º Kati".199 Em um artigo disponível na internet, ele dá
o seguinte testemunho: “(...) atraí-me pelo Kung Fu primeiro pelos seus aspectos marciais
e somente depois pelos seus aspectos filosóficos: Os aspectos marciais começaram a me
atrair nos filmes que eram exibidos em Piracicaba na década de 70, onde encontrei meus
primeiros ídolos na arte (...)”.200
196
Ver HUNT, L., "Kung Fu Cult Masters - From Bruce Lee to Crouching Tiger", 1ª ed., Londres:
Wallflower, 2003, 229 p.
197
Um exemplo é "Fu Manchu", de Sax Rohmer. Ele é "o perigo amarelo encarnado em um só homem", seg.
MAC DONAN, K., "Le Maitres de L´Etrange", 1ª ed., Paris: Éditions Atlas, 1985, 244 p., p. 137. Outro vilão,
Ming de Mongo (de 1934, por Alex Raymond), possui nome chinês e traços orientais. Para Ming de Mongo,
ver <http://www.kingfeatures.com/features/comics/fgordon/about.htm> (c. 04.01.2004).
198
Entre 1970 e 1973, trezentos filmes de Kung-Fu foram lançados no mercado internacional. Cf. HUNT,
"Kung Fu Cult...", p. 3.
199
CHAN, W., e VEIGA, A., "Kung Fu Shaolin do Norte – Técnicas Básicas - 1º e 2º Kati." 1ª ed., São
Paulo: Biopress, 1995, 118 p.
200
Art. disp. em <http://ariovaldoveiga.sites.uol.com.br/minha_historia/minhahistoria.htm> (c. 10.08.2003).
78
Michael Minick ("A Sabedoria do Kung-Fu") e Lin Yutang ("A Sabedoria da Índia e da
China"). Refere-se, ainda, à série de TV "Kung-Fu", identificando-a como o "golpe de
misericórdia" para sua opção marcial.
A morte de Lee em julho de 1973, três semanas antes da estréia, nos EUA, de “Enter the
Dragon” (no Brasil, “Operação Dragão”), não impediu o ingresso de suas antigas
201
“To most of the world, the martial arts movie can be summed by one name: Bruce Lee. It was he, more
than anyone else, who established the power of the genre internationally.” (MEYERS, et al., "From Bruce Lee
... ", p. 13).
202
Art. disp. em http://www.graciemag.com/edicao/73_brucelee.shtml > (c. 10.10.2003).
203
Fig 17, acervo do autor. Fig. 18 extraída de INSIDE KUNG-FU, Burbank (Califórnia), C.F.W. Enterprises,
vol. 24, n. 4, abr. 1997, 142 p., p. 42.
79
produções no Ocidente205 e nem a produção, a partir de fotogramas inéditos, de novos
filmes estrelados por ele.206 Em 1993, Hollywood lançou “Dragon: The Bruce Lee
History”.207 Ainda nos anos 70, o ator também foi lembrado na música: indiretamente, em
“Kung-Fu Fighting”, de Carl Douglas, (“Everybody was Kung Fu fighting, those jerks were
fast as lightning …”)208 e diretamente em “Um Índio”, de Caetano Veloso (“... tranqüilo, e
infalível, como Bruce Lee ...”). Nos anos 80, os movimentos do ator e os cenários de seus
filmes inspiraram jogos eletrônicos criados especialmente para casas de fliperama.209
A importância de Bruce Lee para o Kung-Fu brasileiro pode ser vista, ainda, em revistas
lançadas nos anos 70 e 80.210 Nelas é reforçada a dimensão "mítica" do artista. Não há,
aí, referências diretas à religiosidade chinesa.211 As histórias e os filmes de Bruce Lee
parecem remeter, sim, às sagas heróicas de caráter universal.212
204
JANOT, M., "Trinta Anos...", op. cit.
205
“O Dragão Chinês” (“The Big Boss”, 1971), “A Fúria do Dragão (“Fist of Fury”/“The Chinese
Connection”, 1972) e “O Vôo do Dragão” (“The Way of the Dragon”, 1972).
206
“Game of Death” ("Jogo da Morte", 1978), “Game of Death 2” ("Jogo da Morte 2", 1982). Entre 1979 e
2002 foram produzidos 12 filmes documentários sobre Lee (cf. <http://www.allbrucelee.com> c. 08.01.2004).
207
No Brasil, “Dragão: A História de Bruce Lee”.
208
Letra em <http://www.thesonglyrics.com/d_song_lyrics/carldouglas_lyric1.html>
(c. 02.02.2003).
209
Como "Kung-Fu Master" (Japão, Irem Corp., 1984), "Yie Ar Kung-Fu" (Japão, Konami, 1985) e "Tiger
Road" (Japão, Capcom, 1987). Ver HUNT, L., "Kung-Fu Cult Masters...", p. 184 a 200.
210
Tivemos acessos às revistas “Bruce Lee” (NSD/Impacto), “Bruce Lee – A vida do maior lutador de todos
os tempos” (Editora Três), “Bruce Lee Kung-Fu” (Editora Três), “A História de Bruce Lee” (Zolar Editora
Gráfica), “A Escola de Bruce Lee” e “Bruce Lee Especial nº 1” (Nova Sampa).
211
Essas obras se limitam à iconografia e a aforismos de autoria incerta. A exceção é "O Tao do Jeet Kune
Do", do próprio Lee (LEE, B. "O Tao do Jeet Kune Do", 1ª ed., São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2003,
239 p.), que faz referências ao Budismo.
212
Lee é o típico herói "campbelliano". Mito do herói cf. CAMPBELL, J., "O Herói de Mil Faces", 4ª ed., São
Paulo: Pensamento, 1995, 416 p.
213
Exibido nos EUA entre 1972 e 1975 e, no Brasil, em 1975. Cf. <RetroTV@yahoogrupos.com.br> (c.
05.01.2004). Em 1975 a editora Livraria José Olímpio Editor produziu livros sobre o herói. Ver fig. 19.
214
Imagem extraída do site < http://www.retrotv.com.br/kungfu> (c. 06.01.2004)
80
Mestres não queriam dar aulas para os brasileiros, mas com o sucesso do seriado na TV,
eles acabaram abrindo os olhos.’”215
215
Cf. <http://www.shaolinvalinhos.com.br/paginas/historia.html> (c. 05.01.2004).
216
Isso, apesar de produzidos por norte-americanos (Estúdio: ABC; roteirista: Ed Spielman). Ver
<http://www.retrotv.com.br/kungfu> (c. 06.01.2004). Ver, tb., PILATO, H. "The Kung-Fu Book of Caine:
The Complete Guide to TV's First Mystical Eastern Western" (1ª ed., EUA: Charles E. Tuttle Company,
1993, 200 p.)
217
Interpretado pelo ator não-chinês David Carradine.
218
Em flashbacks, Kwai Chang Caine era transportado para o mosteiro de Shaolin, onde ouvia sábias lições
dos mestres Pô e Kan, interpretados pelos atores sino-americanos Keye Luke e Philip Ahn. Diálogos da série
em <http://www.retrotv.com.br/kungfu/index2.html> (c. 05.01.2004).
81
É difícil estabelecer a origem dos conteúdos religiosos de "Kung-Fu", mesmo porque os
roteiros eram produzidos por americanos não sino-descendentes. Ainda assim, o fato de
David Carradine ter se tornado um adepto do Kung-Fu é um belo exemplo de seu poder
de persuasão.
Em 1981, a República Popular da China produziu "The Shaolin Temple", produção que
transformou em astro o campeão chinês de Wushu Jet Li (Li Lian Jie, nascido em 1963
em Beijing).219 O enredo do filme difere das lendas tradicionais sobre o mosteiro:220 conta
a história de um garoto que, no séc. VIII (ou seja, durante a Dinastia Tang), foge da
escravidão e é recebido em Shaolin. Lá, aprende a lutar e, com ajuda dos monges, vinga
a morte do pai.221 Como era de se esperar de uma produção da China continental, os
aspectos religiosos foram reduzidos à iconografia; os monges foram mostrados como
homens que não abriam mão de lutar e de consumir vinho e carne.222
219
Cf. <http://www.netasia.net/users/sgc_wdi/biography.htm>, (c. 19.01.2004).
220
Sobre as lendas, ver cap. 2 da presente dissertação.
221
Sinopse em <http://www.netasia.net/users/sgc_wdi/movies/shaolin.htm> (c. 19.01.2004).
222
Esses hábitos aparecem em obras históricas como "A Notícia de Henan", de Wang Shixing (1595).
223
Seg. MEYERS et. al ("From Bruce Lee...", p. 140), o filme forçou Beijing a publicar um decreto proibindo
estudantes de abandonar as escolas para viajar ao mosteiro de Shaolin!
82
4.2.4 – Shang-Chi, Yin, Yang e o “Kung-Fu Mental”
224
“Shang-Chi, Master of Kung Fu”, publ. no Brasil pela Bloch e pela Abril Cultural.
225
Descrição do personagem em <http://www.toonopedia.com/shangchi.htm> (c. 08.01.2004).
226
Descrição de Fu Manchu em <http://www.geocities.com/marvel_megalomaniac/manchu/manchu.html> (c.
19.01.2004).
227
Imagens: esq., acervo do pesquisador; dir., "Kung Fu", , Rio de Janeiro, Editora Brasil-América, n.5, 1974,
50 p., p. 4.
228
"Kung Fu", op. cit. Escrita por Joe Gill e desenhada por Warren Satiler, a série foi publicada no Brasil
entre 1974 e 1975.
83
O autor explica como “anular psicologicamente o oponente”. O padrão "esotérico" do texto
pode ser observado no trecho: "Uma mente como água é calma e imperturbável qual a
superfície de um lago tranqüilo. As águas claras refletem imagens nítidas do oponente (...)
A desatenção de origem nervosa é como a nuvem que encobre a luz da lua." 229
229
Ibid., p. 27 e 28.
230
Ibid., p. 3.
231
Pouco antes de morrer, seu pai lhe diz - “Seja Yang para todos os homens! A fonte de calor, de luz e
retidão!” ("Kung Fu", p. 4.) A filha do vilão chama-se Yin e é “o oposto de Yang... isto é, escuridão... Mal!”
(p. 20). O Tao não é maniqueísta. Conceito de Tao em
<http://www.wsu.edu:8080/~dee/CHPHIL/YINYANG.HTM>, (c. 09.01.2004).
232
MINICK, M., "A Sabedoria Kung Fu", 1ª ed., São Cristóvão (RJ): Artenova, 1975, 170 p.
233
NATALI, M., "Kung Fu - Curso Básico de Bastão", 1ª ed., São Paulo: Ediouro, 1978, 185 p.
234
Acervo do autor.
235
Essas linhas, como veremos à frente, viriam a caracterizar o universo temático das revistas especializadas
dos anos 90 no Brasil.
84
4.2.5.1 - "A Sabedoria Kung Fu"
"A Sabedoria Kung Fu" é um livro devotado à "espiritualidade" da arte marcial chinesa. A
obra foi escrita em 1974 e traduzida para o português no ano seguinte, no mesmo período
de veiculação da série "Kung-Fu" nos EUA e no Brasil. Um levantamento feito junto a
professores brasileiros de primeira geração mostrou que é tido como referência: três
professores - Ariovaldo Arruda Veiga (SP), Rogério Leal Soares (SC) e Jorge Jefremovas
(PR) citam trechos da obra e até distribuem cópias para seus alunos.
O livro é dividido em duas partes: a primeira traz o conceito de Kung-Fu ("O que é Kung
Fu", p. 9), desenvolvimento histórico ("A História do Kung Fu", p. 20), ética e
comportamento ("Costumes e Treinamentos Kung Fu", p. 37), estilos ("Técnicas
Populares de Kung Fu", p. 47), relação com a medicina ("Práticas Saudáveis de Kung Fu
e Medicina Chinesa", p. 71) e armas tradicionais ("As Armas Kung Fu", p. 79); a segunda
parte é reservada a uma vasta coleção de aforismos, atribuída a filósofos e à sabedoria
popular chinesa. Segundo o autor, seu conhecimento é essencial para o verdadeiro
praticante. "Os capítulos seguintes são um resultado de uma cuidadosa e detalhada
pesquisa nos pensamentos e provérbios chineses. (...) as citações que seguem são o
coração e a alma dos ensinamentos que motivaram os mestres de kung fu por milhares
85
de anos."236 Boa parte dos aforismos é atribuída a mestres chineses como Mêncio,
Confúcio, Lao Tzu, Hui Hai e Shoo King. O autor não cita as obras de onde extraiu as
frases, o que dificulta a confirmação dos dados.
Contrariando a hipótese mais aceita pelas fontes acadêmicas, de que a arte marcial
chinesa é mais "instrumental" do que "ética", a obra procura incutir uma "nobreza Kung-
Fu" que só é encontrada nas obras da literatura Wusia e nos manuais populares chineses
de arte marcial.237 Isso pode ser visto na definição de Kung-Fu,238
O verdadeiro kung fu, não a idéia que normalmente fazemos, é uma coisa especial, e assim
sendo não é definida nem rotulada. O kung fu real é um Estado de espírito (...) Se
quiséssemos reduzir o kung-fu (...) ele se pareceria com o que o povo pensa que é - um
método de defesa pessoal. (...) o kung fu se expandiu desses limites há milhares de anos.
e no subtítulo "O Herói Kung Fu", que compara esse personagem Robin Hood ("...ele
tomava dos ricos para dar aos pobres. Grosseiramente um misto de cavaleiro de
armadura, um bandoleiro do Oeste, e um filósofo taoísta, ele captou a atenção do mundo
inteiro...”) e o conecta ao mundo das artes, letras e religião ("Geralmente um budista ou
taoísta... tinha como principal objetivo alcançar uma natureza tranqüila interior pelo
completo controle da mente e do corpo"). O embasamento dessa descrição no herói
Wusia nos parece clara.
Por fim, outro aspecto interessante da obra em relação "modelo espiritual" de Kung-Fu é o
da crença em práticas esotéricas - exercícios corporais-respiratórios-espirituais que
236
MINICK, "A Sabedoria...",p. 89 e 90.
237
Sobre a literatura Wusia, ver nota 3.
238
MINICK, "A Sabedoria..., p. 9.
239
MINICK, "A Sabedoria...", p. 37 a 44.
86
dariam ao praticante um poder sobrenatural. Ele cita as técnicas da "Pata do Dragão"
(que transforma os dedos em “pontas de lança”), "Testículos Contráteis" (recolhimento
dos testículos à cavidade abdominal através de técnicas respiratórias, visando sua
proteção) e o "Punho do Poço" (que permitiria matar oponentes à distância pelo
movimento das mãos).240 As informações parecem se basear em crenças populares do
Kung-Fu. Crenças semelhantes chegaram ao Brasil na forma, por exemplo, do "Chi Kung
da Palma de Ferro", prática que soma técnicas respiratórias, exercícios de fortalecimento
das mãos e uso de “remédios de ervas” aplicados na pele.
Minick também reserva espaço para a História do Kung-Fu. Mais uma vez, parece se
basear em obras populares chinesas ou em informações da tradição genérica da arte
marcial chinesa. Muitas delas não possuem respaldo nas fontes acadêmicas; outras
encontram comprovação. Em "A História do Kung Fu",241 ele reconhece a dificuldade em
estabelecer um histórico, mas, ainda assim, não deixa de apresentá-lo. Dentre os dados,
se destacam a origem das primeiras formas, "há aproximadamente 5.000 anos", o papel
do “Imperador Amarelo”242 na criação da arte marcial e o surgimento de uma arte marcial,
denominada "Go Ti" por volta de 2600 a.C. Sobre a relação arte marcial x religião, cita
monges eruditos que, no século V d.C., teriam descrito o "Cong Fu"; cita, também,
Bodhidharma, que teria ensinado as primeiras técnicas marciais aos monges de Shaolin.
Ainda sobre o mosteiro, relata a participação dos monges "no combate a uma invasão"
durante a Dinastia Tang, no séc. VIII (p. 27), dá nomes de monges heróis e informa que
seu desempenho em batalha lhes teria rendido fama em toda a China.
A informação de que a arte marcial teria nascido há "5000 anos" não se confirma.243 As
referências ao “Imperador Amarelo” e a uma arte marcial chamada "Go Ti" também não
encontram suporte nas fontes acadêmicas (o Imperador Amarelo pertence à História
mítica da China; ainda assim, não é associado à marcialidade). A informação de que
exercícios de "Cong Fu" teriam sido descritos no século V parece correta, uma vez que o
240
Ibid., p. 65 a 69.
241
Ibid., p. 20 a 35.
242
Figura histórico-lendária que teria governado a China antes do apogeu da casa de Shang. Sua Dinastia,
conhecida como Xia ( ), teria sido responsável pela transmissão de dados essenciais ao desenvolvimento da
civilização chinesa.
243
Ver PEERS. & MCBRIDE, "Ancient Chinese Armies...”, p. 4 a 13. Ver, tb., a "linha do tempo"
apresentada no cap. 2 desta dissertação.
87
período indicado é o mesmo aceito pelos pesquisadores como sendo de fusão entre
técnicas medicinais e corporais budistas e taoístas.
A citação de Bodhidharma como precursor das artes marciais em Shaolin não encontra
respaldo nas fontes acadêmicas, mas apenas nas tradicionais.244 Sobre a participação
dos monges em combate nos sécs. VII e VIII, a informação possui um fundo de verdade.
Como abordado no cap. 2 desta dissertação, datam desse período os primeiros registros
de combates envolvendo monges de Shaolin. Ao contrário do que informa Minick, porém,
esses clérigos não teriam "combatido uma invasão", mas sim bandidos e um candidato a
sucessor da Dinastia Sui; o texto afirma, ainda, que a vitória teria conferido "fama
nacional" aos monges; de acordo com as fontes acadêmicas, essa fama só viria a surgir,
de fato, durante o período Ming Tardio.
Minick também se refere à destruição do mosteiro de Shaolin por tropas Qing no século
XVII e reproduz a informação da tradição do Shaolin do Norte, de que monges fugitivos
teriam disseminado suas artes de guerra pelo sul da China. Essa história não encontra
respaldo nas fontes acadêmicas; aparentemente, está associada aos mitos de criação
das tríades.245
O livro de Marco Natali é mais simples em relação aos aspectos apontados por Michael
Minick. Mais devotado às técnicas corporais, reserva quatro páginas a aspectos
históricos. É obra importante para o nosso estudo por ter sido escrita por Marco Natali,
"mestre" que afirma praticar Kung-Fu desde 1962 e que, sem dúvida, é o mais prolífico
autor de livros sobre o tema no Brasil.246 Além disso, foi o criador da "Fraternidade Kung-
Fu",247 responsável pela popularização da arte marcial chinesa através de cursos por
correspondência.
244
Ver HENNING, S., "Reflections on a Visit... ", p. 90 a 101.
245
Ver cap. 2 desta dissertação.
246
Natali publicou 18 livros. Ver <http://www.angelfire.com/biz/chineseboxing/> (c. 03.02.2004).
88
diferentes? Principalmente porque seus movimentos são clássicos e, portanto, básicos
248
para o aprendizado de outras armas." É interessante a referência a "trinta e quatro
armas" clássicas: segundo outros autores devotados à tradição, ela seriam 18.249 Sobre a
História do bastão, Natali deduz que ele surgiu na pré-história250 e informa que "no império
chinês já era utilizado desde tempos imemoriais e estava incluído nas armas da infantaria
a [sic] mais de 2.000 anos antes de Cristo." É difícil provar uma informação como essa
com base em registros históricos. Natali ainda faz referências a Shaolin, informando que,
como no mosteiro era vedada a entrada de armas, o bordão dos monges se converteu em
instrumento de defesa. Ele afirma ainda que as demais armas do Kung-Fu ingressaram
no mosteiro na Dinastia Qing, quando oficiais Ming lá se refugiaram: "Tendo achado
refúgio no templo, os oficiais aprenderam o método Shaolin e ensinaram o que sabiam
das armas utilizadas no exército chinês." Fontes históricas indicam que os monges
usavam tridentes, lanças e bastões dotados de ganchos desde a Dinastia Ming; sobre o
intercâmbio entre monges e militares, as fontes acadêmicas observam que ele pode ter
existido, mas não há elementos que mostrem que isso teria acontecido durante um
período de clandestinidade dos oficiais Ming. O livro traz ainda instruções para que o leitor
construa seu próprio bastão. Não há referências sobre filosofia e religiosidade associadas
à arte marcial.
Nos anos 80 e 90, com o fim do boom Bruce Lee e a abertura de academias por
professores não-chineses, houve uma consolidação do universo brasileiro de Kung-Fu.
Parte da produção cultural sobre arte marcial chinesa foi nacionalizada, com revistas,
apostilas, livros e sites desenvolvidos em português por e para brasileiros. Esses produtos
se inserem tanto no campo da representação - o Kung-Fu visto "de fora" - quanto no da
auto-representação - como eu, como praticante, me insiro nesse universo. Como nosso
objeto de pesquisa se refere ao estilo Shaolin do Norte, buscamos centrar o foco, na
medida do possível, em produtos a ele relacionados.
247
A "Fraternidade" teria mudado de nome para "Chinese Boxing Society" em anos recentes. Cf.
<http://www.angelfire.com/biz/chineseboxing/> (c. 03.02.2004).
248
NATALI, M., "Kung Fu... ", p. 13 e 14.
249
MING, Y., "Ancient Chinese Weapons ...", p. 2.
250
NATALI, M., "Kung Fu - Curso Básico...", p. 17.
89
4.3.1 – Revistas Especializadas
A leitura das revistas permite estabelecer uma divisão temática: de um lado estão as
matérias “pragmáticas” (técnicas/corporais) e, do outro, as "tradicionais"
(filosóficas/religiosas). As do primeiro grupo ligam a marcialidade à modernidade e
abrangem elementos como aplicação das técnicas, relação arte marcial x saúde e o
calendário de competições. As do segundo grupo, que interessam mais diretamente ao
nosso estudo, ligam a marcialidade à História, Ética, Filosofia e às religiões orientais. Tais
matérias podem ser subdivididas em duas linhas: de um lado estão as relacionadas à
História dos estilos e, do outro, as relacionados aos temas filosóficos, éticos ou religiosos.
4.3.1.2 – “Oriente”
Iniciamos o estudo com “Oriente – Artes Marciais, Filosofia e Cultura Oriental”,252 editada
pelo entusiasta de artes marciais Gilberto Antonio Silva e vendida em academias e
251
Site da revista: <http://www.graciemag.com/> (c. 10.01.2004).
252
"Oriente – Artes Marciais, Filosofia e Cultura Oriental", São Paulo, Núcleo de Estudos Orientais, 1996,
edições de 1 a 10; 1996 (uma edição), 1997 (duas), 1998 (duas), 2000 (três), 2001 (uma) e 2002 (uma).
90
pela.253 Ao todo, a publicação trouxe 115 reportagens, das quais 25 relacionadas ao
Kung-Fu e 20 ligadas a temas do segundo grupo da nossa divisão temática.
Você pode praticar artes marciais e estudar filosofia oriental independente da sua religião,
qualquer que ela seja. (...) Para isso devemos saber o que é RELIGIÃO e o que é
FILOSOFIA. (...) Pelo que acabei de mostrar, nem toda filosofia é necessariamente uma
religião, mas toda religião tem uma filosofia predominante, um conjunto de regras e leis que
determinam o funcionamento do Universo. (...) Na verdade, todas as artes marciais orientais
253
No site <http://www.budo-online.com/inicial.htm> (c. 12.01.2004), que possui a mesma proposta da
revista.
254
“Oriente”, n.10, 2002.
255
"Oriente", n. 1, p. 12 e 13.
91
estão profundamente embebidas nessas filosofias. (...) Você vai encontrar diversos
256
paralelos entre estes ensinamentos e os da sua religião, não importa qual seja. (...).
Outro exemplo é “Demolindo Mitos nas Artes Marciais”, em que aborda a questão do
“espírito crítico” dos praticantes. Silva questiona informações comuns ao universo das
artes marciais, como a tradução de "Kung-Fu" ou a antigüidade do Jiu-Jitsu. Para isso,
parece se basear no próprio conhecimento. Em nenhum momento há referências diretas
a fontes bibliográficas, o que, de certa forma, faz com que a obra recaia no objeto que
critica – a falta de critério em relação às informações:
Não sou nem pretendo ser o dono da verdade. O que você vai ler a seguir é o resultado de
toda uma vida dedicada ao estudo da História e Filosofia das Artes Marciais. Qualquer
pessoa que tenha alguma informação que contradiga o que está aqui, que escreva para
esta revista. Se forem argumentos sólidos e bem baseados, com referências bibliográficas
ou de outro tipo, e principalmente que possam ser checadas, eles serão publicados. Não
adianta nada aparecerem com aquela velha história de que 'aprendeu assim de um mestre
257
oriental desconhecido mas muito sábio e velhinho que, infelizmente, já morreu.'
A partir da divisão temática estabelecida no item 4.3.1.1, pode-se afirmar que, na revista
“Oriente”, as matérias são abordadas da seguinte maneira: em relação às do “primeiro
grupo” (arte marcial e modernidade), há um equilíbrio em relação às fontes (mestres,
professores e o próprio editor); em relação às matérias da primeira linha do segundo
grupo (origem e História dos estilos), são feitas com base na tradição oral (ensaios de
mestres e professores, entrevistas, artigos baseados em entrevistas); por fim, em relação
às matérias da segunda linha do segundo grupo (temas filosóficos, éticos e religiosos que
256
Ibid., n. 2, jul./97, p. 49 e 50.
257
Ibid., n. 4, maio/jun. 1998, p. 12.
92
compõem o universo da arte marcial), elas são produzidas com base nos conhecimentos
pessoais, leituras e visão de mundo do editor Gilberto Antonio Silva.
Existem muitos livros que contam a história e as técnicas de vários estilos de Kung Fu,
porém, divergem entre si (...) existe uma maneira mais precisa e correta de se obter
informações sobre a história e as técnicas dos estilos de Kung Fu e que dirime as dúvidas
porventura existentes: é a tradição oral, aquela que é transmitida pelos mestres aos
261
discípulos durante sucessivas gerações.
A tradição oral também aparece com força em “Kung Fu – Defesa Pessoal”,262 que
apresentou os sete estilos mais populares no Brasil. Deles, cinco – “Shaolin do Norte”,
“Fei Hok Phai”, “Garra de Águia”, “Hung Gar” e “Serpente Divina” (Shen She Chuen) -
foram apresentados mestres originários e um – “Wing Tsun” - por um discípulo de
primeira geração.263
258
"Kiai – Revista Oficial das Artes Marciais", São Paulo, Biopress, n.d.
259
"Kung Fu Defesa Pessoal", São Paulo, Grupo de Comunicação Três S/A, n.1, n.d., 66 p.
260
"Trump! A Sua Revista de Luta – Esportes de Impacto", Especial Kung-Fu, São Paulo, Editora Escala
Ltda., n.d., 62 p.
261
"Kiai", n. 17, 1994, p. 40
262
"Kung Fu Defesa Pessoal”, op. cit.
263
O "sétimo estilo" abordado na revista é o Wushu olímpico.
93
Nos textos, o elemento religioso apareceu relacionado à condição clerical dos fundadores
dos estilos. No texto sobre o Shaolin do Norte, na frase: "Com o passar dos anos, devido
ao estado físico debilitado dos monges, foi necessária a implantação de exercícios que
formaram a base do Shaolin Kung Fu". No texto sobre o Fei Hok Phai, associado ao
mosteiro do "Shaolin do Sul"; no texto sobre o Garra de Águia, na ascendência de seu
fundador, que teria sido aluno de um mestre que, por sua vez, teria aprendido técnicas
marciais em Shaolin; sobre o Hung Gar, na reprodução de mitos de criação relacionados
às tríades: o estilo teria sido criado pelo discípulo de um monge sobrevivente do incêndio
de Shaolin, em 1734;264 no texto sobre o Wing Tsun, na atribuição da criação do estilo a
uma decorrência de um incêndio que teria atingido Shaolin durante a Dinastia Qing. O
único texto que foge à "fórmula Shaolin" é o do estilo Shen She Chuen, que teria sido
criado pelo discípulo de um monge do "Templo do Bambu". Presume-se que esse templo
seja o localizado a doze quilômetros de Kunming (Yunan), construído no séc. XIII.265
A revista também fez uma concessão ao que chamamos de “dados gerais de Kung-Fu”.
Esses "dados" - que constituem um importante elemento teórico resultante de nossa
pesquisa - nascem da fusão de informações obtidas pelos praticantes em revistas, livros
populares e em conversas com mestres/praticantes. Na replicação oral, essa "mistura"
ganha legitimidade e passa a representar, mesmo, uma "nova-velha tradição" (ou seja,
uma tradição tida como ancestral, mas constituída de elementos recentes, ou da fusão
recente de outras tradições). No caso de "Kung Fu Defesa Pessoal", esses dados surgem
nas matérias sobre a História das artes marciais chinesas e sobre origem do Kung-Fu de
Shaolin.266 Nelas pode-se conhecer, "em detalhes", as artes marciais chinesas desde a
pré-história até o desenvolvimento do Kung-Fu pelos monges budistas. Entre os
elementos de destaque na "apresentação" do Kung-Fu de Shaolin está o seguinte "código
de conduta":
264
Ver cap. 2.
265
"Kung-Fu, Defesa Pessoal", p. 8 (Shaolin do Norte), p. 17 (Fei Hok Phai), p. 22 (Garra de Águia), p. 30
(Hung Gar); p. 37 (Wing Tsun) e p. 45 (Shen She Chuen). Templo do Bambu in
<http://www.sinohost.com/yunnan_travel/kunming/bamboo.html> (c. 19.01.2004).
266
"Kung-Fu Defesa Pessoal", p. 5 a 7. As matérias não são assinadas.
94
4. Seja rápido. O oponente pode ver sua mão, mas não seu soco.
5. Seja impetuoso. Golpeie os pontos vitais.
267
6. Seja prático. Todos os movimentos possuem um fim estratégico.
O autor não diz de onde extraiu esse "código" e, em suas considerações, não relaciona
as religiões orientais e o Kung-Fu. Também não se refere às tradições religiosas
observadas no conjunto de práticas das academias brasileiras. No que se refere aos
elementos históricos, pode-se dizer que funde dados comprováveis historicamente e
dados provavelmente extraídos da tradição oral do Kung-Fu.
Das publicações pesquisadas, a que mais chamou a atenção em razão do conteúdo foi
“Trump!”.268 Na revista, o tema Shaolin foi abordado em uma insólita riqueza de detalhes:
em 15 páginas, foi apresentada desde a história da “rede de mosteiros Shaolin” até as
divisões de hierarquia marcial dentro do clero “budo-marcial”.
Algumas entidades históricas geram muitos debates e confusões sobre Shaolin e alguns
professores universitários negam sua existência e acreditam que os templos eram fictícios,
baseadas em histórias e romances. Acreditamos que muitas pessoas foram enganadas
pelas histórias da Guerra Civil que ocorreu naquele lugar. As descrições seguintes foram
obtidas por pessoas que 1) praticaram os estilos dos supostos templos, 2) aprenderam as
267
Ibid., p. 7.
268
"Trump! A Sua Revista de Luta – Esportes de Impacto", op. cit.
269
Ver cap. 2.
270
Do “Shaolin Gung Fu Institute”, <http://www.shaolin.com> (c. 10.09.2003).
95
artes dos templos antes que eles fossem destruídos, ou 3) aprenderam dos praticantes dos
271
templos.
271
Trump...", p. 6.
272
“Trump...”, p. 7.
273
Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu, "Kung Fu – versão curta de uma história muito longa", São Paulo,
1998, 26 p.
274
SOARES, R. (Associação Sino-Brasileira de Kung Fu Wushu), doc. sem título, Florianópolis, n.d. (década
de 90), 10 p.
275
A primeira academia de Shaolin do Norte do Brasil, fundada na cidade de São Paulo em 1973.
96
normatividade e constrói seu conteúdo a partir da reprodução de dados da tradição oral.
O segundo, de uma filial do sistema localizada a cerca de 750 km da matriz, pertence a
um tipo misto, que, na visão do autor deste trabalho de pesquisa, é típico da visão dos
atuais professores brasileiros.
276
Em formato meio A-4, com 26 páginas a cores.
277
O sistema foi criado pelo grão-mestre Chan Kowk Wai no início dos anos 70 para difundir o estilo Shaolin
do Norte no Brasil.
278
Mantivemos os termos na forma original, sem alterações em relação às letras maiúsculas e minúsculas.
279
“Kung-Fu – versão curta...”, p. 5.
280
Ibid., p. 3.
97
servem para identificar as artes marciais chinesas, indicando, ainda, que "wu shu" guarda
maior identificação com a prática desportiva - essas considerações não contrariam o que
é aceito pelos pesquisadores. O autor ainda alerta para a existência de várias "Histórias"
da arte marcial, uma para cada estilo (essa informação é confirmada por pesquisadores
da arte marcial chinesa).
Sobre a relação entre Kung-Fu e religião oriental, o autor observa que na dinastia Jing “O
kung fu recebeu influências do Budismo e Taoísmo”, cita o médico taoísta Ge Hong como
“integrador” do Chi Kung ao Kung-Fu e se refere aos monges budistas Ba Tuo e
Bodhidharma. Eles são citados como o fundador e o introdutor da marcialidade em
Shaolin.282 A data de integração entre Budismo e Taoísmo nas práticas de saúde
apontada na apostila está dentro dos limites temporais admitidos pelos pesquisadores.
Em “o mosteiro” aparecem informações sobre a fundação e a localização de Shaolin que
não fogem do que é aceito pela historiografia.
281
Ibid., p. 4 a 13.
282
“Kung-Fu – versão curta...”, p. 5 e 6. Ver cap. 2 desta dissertação.
98
genealógica que afirma a proficiência de Chan Kowk Wai em 13 estilos de arte marcial
chinesa. É difícil comprovar, com base na historiografia disponível no Ocidente, a
existência dos integrantes dessa "árvore genealógica", pelo menos no caso dos
personagens mais antigos. As fontes acadêmicas sobre Shaolin utilizadas em nossa
pesquisa não se referem à existência de um "abade Chiu Jin" (ou "Zhao Yuan Heshang")
em Shaolin no séc. XVII. Fotos encontradas na internet, porém, mostram o encadeamento
de três dos mestres mais recentes da linhagem: Ku Yu Cheung (fig. 26), 283 Yang Sheung
Mo (fig. 27) e Chan Kowk Wai (fig. 28).284
O fato de essas
informações virem de
fontes de países
diferentes (Brasil,
EUA e Canadá)
indica que a diáspora
de mestres chineses
na segunda metade
do século XX atingiu
o Shaolin do Norte: tanto Chan Kowk Wai quanto Wing Lam (fonte do ensaio de "Inside
Kung-Fu") foram alunos de Yang Sheung Mo; no caso de Mathieu Ravignat, a genealogia
indicada aponta para Chan Kowk Wai como responsável pela transmissão dos conteúdos.
A constatação é de que a
genealogia é originária da
China e tem uma tradição de
pelo menos 50 anos.
283
Sobre Ku Yu Cheung, ver "Ku Yu Cheung, …A True Iron Palm Master" (CHING, G., Inside Kung-Fu,
Burbank: C.F.W. Enterprises, vol. 24, n. 4, abr. 1997, 142 p., p. 84 a 89) e "Ku Yu Cheung and His Northern
Shaolin System", de RAVIGNAT, M., <http://members.rogers.com/stonelion/external/kyc_bio.html> (c.
14.01.2004).
284
Fig. 26, 27 e 28: fotos extraídas de <http://www.shaolincuritiba.com.br/fotos.html> (c. 14.01.2004).
99
mestre nas artes marciais aos quatro anos de idade em Cantão, a mudança para Hong
Kong em 1949, o contato com o mestre Yang Sheung Mo (que, segundo o documento, lhe
ensinou o Shaolin do Norte e abriu as portas para o aprendizado com outros mestres), a
vinda para o Brasil em 1960, o trabalho no Centro Social Chinês (SP) e a abertura, em
1973, da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu, onde se deu o contato com praticantes
brasileiros. O capítulo também se refere às capacidades curativas do mestre (que “é
muito procurado por seus conhecimentos de Medicina Tradicional Chinesa, que aprendeu
de seus mestres”).285
O capítulo seguinte, “chi kun”, se refere aos exercícios respiratórios chineses, associados
pela tradição marcial a poderes extraordinários. O autor explica que os exercícios de chi
kun286 “são técnicas respiratórias que desenvolvem o corpo e a mente do praticante,
mantendo seu equilíbrio psíquico e aguçando sua percepção e controle emocional”.287
Apesar do discurso "técnico", ele reafirma a crença na aquisição de capacidades físicas
extraordinárias através da prática do chamado “chi kun marcial” (“O Chi Kun marcial
refere-se à aplicação das técnicas do Chi Kun ao kung fu, resultando na capacidade de
receber golpes ou suportar pesos muito acima do comum, sem sofrer danos. As técnicas
de quebramento são fortemente desenvolvidas a partir do controle da respiração.”). Na
mesma página estão duas fotos dos antepassados marciais mais próximos do grão-
mestre Chan Kowk Wai (Ku Yu Cheung e Yang Sheung Mo) em demonstrações de
285
“Kung-Fu – versão curta...”, p. 19.
286
Essa forma de grafia é incomum. Na maioria dos documentos pesquisados, o termo aparece como "Chi
Kung" ou "Qi Gong".
287
“Kung-Fu – versão curta...”, p. 23.
100
resistência física e força. As crenças apontadas parecem ligadas às tradições mágicas
praticadas no contexto das tríades e mostram que elas chegaram ao Brasil.288
A segunda apostila foi cedida por um dos entrevistados, o professor Rogério Leal Soares,
de Florianópolis.290 Discípulo de Lee Chung Deh, Soares é o principal difusor do Shaolin
do Norte em Santa Catarina. De acordo com ele, o documento nasceu de uma
apresentação feita para universitários. Por acreditar que representasse uma síntese,
288
Ver cap. 2 desta dissertação.
289
“Kung-Fu – versão curta...”, p. 25.
290
SOARES, op. cit.
101
passou a distribuí-lo a seus alunos na segunda metade dos anos 90. Dos documentos
deste capítulo é o que melhor representa a soma entre tradição oral, leituras e conclusões
do professor, consistindo em um legítimo documento do "Kung-Fu de Shaolin à
Brasileira". Enquanto a apostila da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de São Paulo se
prende mais à tradição oral, no documento de Florianópolis há inclusão de conteúdos.
Sua apresentação é feita em doze itens e quatro anexos. Os itens são “Kung-Fu – Wu
Shu”; “O Que é o Kung Fu?”; “A História do Kung Fu”; “Técnicas Populares de Kung-Fu”;
“O Kung Fu na Medicina Preventiva”; “Chi Kun nas Artes Marciais, na Medicina Preventiva
e de Cura”; “O Kung Fu Competitivo (Wu Shu moderno): um Esporte tipicamente Chinês”;
“As Rotinas”; “Combate”; “O Kung Fu no Brasil”; “O Kung Fu para Crianças, Jovens e
Adultos”; e “Sistemas de Graduação”. Os anexos são a genealogia do professor Rogério
Leal Soares, o regulamento para o julgamento de rotinas em competições, a reprodução
de um artigo do próprio Leal sobre Tai-Chi-Chuan (publicado na revista “Combat Sport”
em nov. de 1993) e uma tabela com as graduações existentes no Sistema Sino-Brasileiro
de Kung-Fu.291
Essa inclusão explicita a relação do autor com seu estilo e, ao mesmo tempo, dá conta de
que a transmissão dos conteúdos tradicionais do Shaolin do Norte já não depende apenas
de mestres originários chineses. Vale observar que, na genealogia apresentada em "Kung
Fu - versão curta de uma história muito longa", a linha de mestres se encerra na figura de
Chan Kowk Wai. Se, por um lado, isso pode ser explicado porque Chan é a maior
291
Sobre "Combat Sport", ver <http://www.combatsport.com.br> (cons. em 19.01.2004).
292
SOARES, p. 6.
102
autoridade dentro de sua própria academia - essa parece ser a explicação mais lógica -
por outro poderia indicar a existência de uma dificuldade, na casa de um mestre originário
chinês, em relação à inclusão de nomes de professores brasileiros.
A apostila mostra uma tendência à "modernidade" ao incluir uma síntese das regras de
competição294 e as etapas que compõem a graduação através do Sistema Sino-Brasileiro
de Kung-Fu.295 Essa tendência também está em "O Kung Fu para Crianças, Jovens e
Adultos",296 no qual o autor apresenta o Kung-Fu como uma atividade saudável para todas
as idades. Para tanto, se refere ao trabalho desenvolvido atualmente pelas escolas da
República Popular da China. O autor elenca elementos como a melhor condição de
saúde, coordenação, postura, equilíbrio e a possibilidade de, através da arte marcial,
"manter viva a natureza filosófica que os direciona na busca do 'caminho', cultivar a arte
como folclore e desenvolver o aspecto medicinal que envolve o estudo dos exercícios e
métodos respiratórios."297 Vale lembrar que as atividades desenvolvidas atualmente na
China comunista em relação à arte marcial se baseiam, sobretudo, no Wu-Shu - prática
que procura se aproximar do esporte e se afastar das "superstições" das tradicionais
práticas marciais.
293
SOARES, p. 7.
294
In “As Rotinas” e “Combate” (p. 4) e no anexo “Regulamento para Katys” (p. 8).
295
A apresentação do sistema de graduação aparece no item “Sistemas de Graduação” (p. 6) e no anexo
“Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu”. Esse sistema foi implantado no Brasil pelo grão-mestre Chan Kowk
Wai e, curiosamente, não consta no libreto “Kung Fu – versão curta de uma história muito longa” (op. cit.).
296
SOARES, p. 6.
297
Ibid.
103
4.3.3 - Livros recentes sobre Kung-Fu publicados no Brasil
298
Pesquisa em <http://www.livrariacultura.com.br>, <http:www.leonardodavinci.com.br> e
<http://www.submarino.com.br> (c. 30.01.2004).
299
CHAN, W., & VEIGA, A., "Kung Fu Shaolin...”, op. cit..
300
PARULSKI, G., "Os Segredos do Kung-Fu - Um guia completo para princípios do Kung-Fu Shaolin e da
Energia Intrínseca (Ch'i)", 1ª ed., Rio de Janeiro: Editora Record, 1996, 173 p. Trad. de Rosane Pinho.
301
A obra pode ser adquira pela internet, através de <http://members.lycos.co.uk/sinobrasileira/index.html>
(c. 04.02.2004), na própria academia ou via editora.
302
KWON, W. & MANCUSO, T., "Moi Fah - The Plum Flower Fist", 1ª ed., Burbank: Unique Publications,
1984, 98 p.; e HUNG, L. & KLINGBORG, B., "Northern Shaolin Kung-Fu - The History, Form and Function
of Pek Sil Lum", 1ª ed., Boston: Tutle Publishing, 1999, 128 p.
104
4.3.3.1 - "Kung-Fu Shaolin do Norte - Técnicas Básicas 1º e 2º Kati"
303
Com grande alcance de mercado.
304
São elas o chamado "Lien Bu Chan" e o "Tun Dah" (ou "Tuin Tah"), expressões que podem ser traduzidas,
respectivamente e de forma aproximada, por "Passos de Treinamento" e "Luta Curta". O termo chinês para
"rotina" (conjunto de técnicas que formam um encadeamento) é "kati", para o qual não encontramos
tradução. A tradução dos termos é do mestre Lee Chung Deh (cons. verbal em 30.01.2004).
305
"Kung-Fu Shaolin do Norte", p. 17.
306
"Kung-Fu. Shaolin... ", p. 20.
307
Ibid., p. 25 a 29.
105
O diferencial da obra está no capítulo “Parte Prática - Cumprimento Shaolin”.308 Foi a
primeira referência a um elemento de caráter ritual (de viés religioso) do Shaolin do Norte
encontrada em um documento escrito. O cumprimento é realizado pelo praticante antes
da entrada e da saída do salão de treinamento, no começo e no final das aulas, no início
e final de lutas e em apresentações. Erguendo os braços até a altura dos ombros, ele une
a mão direita fechada à esquerda, espalmada, inclinando ligeiramente o corpo (fig 31). 309
Na entrada e saída do salão, o cumprimento é direcionado ao altar onde ficam as fotos
dos mestres falecidos; no início e final das aulas, aos mestres e ao professor.310
Em nossa avaliação, a
importância principal do
gesto não está no
elemento corporal simples,
mecânico, mas no fato de
que ele é dirigido tanto a
pessoas (professores e
companheiros de prática)
quanto ao altar, que representa, entre outros valores, o da ancestralidade – que, por sua
vez, é de corte religioso. O pesquisador Herbert Plutschow, da Universidade da Califórnia,
aponta o aspecto universal do culto aos antepassados; em relação à China, ele informa
da existência de indícios ligados a esse tipo de culto já na Dinastia Shang, quando
sacrifícios eram feitos para aplacar a ira dos ancestrais da família real:
308
Ibid., p. 43.
309
Alunos da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de Florianópolis. Foto do autor. A perspectiva, no
detalhe, é a do observador saudado. Assim, o punho fechado está no lado esquerdo. Foto do autor.
310
Um estudo mais amplo sobre o tema, de nossa autoria, pode ser encontrado em
<http://dissertakungfu.vila.bol.com.br/saúda.htm>
106
Além disso, pode-se intuir que, ao saudar os mestres ancestrais em momentos críticos
(entrada e saída do espaço de treinamento, início e fim das práticas), o praticante está
prestando homenagem, “pedindo licença” e mesmo proteção para si no período em que
troca a identidade comum por uma centrada na marcialidade.
Afora esse capítulo - que pode ser considerado “extraordinário” diante da carência de
referências diretas à prática ritual ou religiosa nas academias de Kung-Fu em outras
fontes de representação e, principalmente, de auto-representação pesquisadas no
presente capítulo de nossa pesquisa - não há, em “Kung-Fu Shaolin do Norte”, outras
referências diretas a práticas religiosas ou rituais tradicionais do Shaolin do Norte no
Brasil. As referências aos monges e a Shaolin seguem a tradição genérica do Kung-Fu,
apresentando os clérigos como guerreiros e o mosteiro como uma grande academia de
artes marciais.
Escrito em 1984 e publicado no Brasil em 1996, “Os Segredos do Kung-Fu” é uma “obra
de apresentação” do Kung-Fu. Nela, seu autor, que se define como praticante de Kung-Fu
Shaolin, repassa informações centradas, principalmente, em técnicas que, segundo ele,
pertencem à arte marcial chinesa. Os capítulos possuem títulos como “Condicionamento e
Treinamento da Postura”, “Modalidades Agressivas”, “Os Movimentos de Animais” e
“Técnicas de Chutes”.
Dada a riqueza de estilos dentro da arte marcial chinesa, é preciso considerar essas
informações como genéricas. De 173 páginas, 133 são dedicadas a aspectos
“pragmáticos” e 13 a aspectos “tradicionais” do Kung-Fu (as demais são reservadas a
elementos documentais como índice, apresentação e agradecimentos). Ainda que reserve
um número menor de páginas aos aspectos históricos, filosóficos e religiosos, o livro
fornece informações. Notável é o alerta sobre a confiabilidade dos dados presente no
capítulo “História do Kung-Fu”:
“A história do kung-fu é cheia de muitas lendas e ciladas que tornam qualquer tentativa séria
de transmitir uma história compreensiva e puramente factual quase impossível. (...) Há
muito poucas provas documentadas para sustentar qualquer história de kung-fu, já que a
311
PLUTSCHOW, H., “Archaic Chinese Sacrificial Practices in the Light of the Generative Anthropology”,
art. disp. em <http://www.anthropoetics.ucla.edu/ap0102/china.htm> (c. 16.07.2004). Trad. Livre do inglês.
107
maioria das histórias passam de pai para filho, oralmente, sem qualquer documentação
312
escrita para comprovar.”
“A melhor maneira para o aluno de kung-fu desenvolver seu eu interior é, em essência, não
tentar. (...) Este não-cultivo (wu-wei em chinês) é alcançado pelo aluno de kung-fu, quando
ele pratica sua arte como um meio de autocultivo sem esforço ou propósito deliberado. (...)
Quando o aluno de kung-fu assimila este conceito, ganha uma espécie de sexto sentido em
combate.”
312
PARULSKI, "Os Segredos do Kung-Fu... ", p. 19.
313
Ibid., p. 26 a 32.
314
WATTS, A., “O Budismo Zen” (quarta edição, Lisboa: Editorial Presença, 1990, 248 p.), p. 39.
315
Inclusive por parte dos monges de Shaolin. Ver cap. 2 desta dissertação.
108
wu-hsin e, em seguida, a mushin, sua tradução japonesa. A partir daí, centra sua
explicação no termo nipônico e até usa um exemplo da marcialidade japonesa para
explicar o que, segundo ele, seria o ideal espiritual do Kung-Fu. Outro detalhe deve ser
aqui considerado: além de professor de Kung-Fu, Parulski também é faixa preta de Karatê
e Judô, artes marciais originárias do Japão.317
As páginas selecionadas para a pesquisa dão uma idéia do universo temático do nosso
Kung-Fu: entre os assuntos comuns estão a História do Kung-Fu (ênfase para os estilos),
a “filosofia” (universo ético e religioso), o Chi Kung e os filmes do gênero. Há, também,
fotos de competições e atletas. A leitura mostra que, assim como nas outras classes de
documentos analisadas, também aqui há valorização da tradição oral; quando o tema é
religião, filosofia ou ética marcial, as fontes parecem ser outros sites, livros ou revistas
que raramente recebem crédito.
Há que se observar, como elemento diferencial em relação às outras fontes, que o livre
compartilhamento de dados no contexto da internet contribui para o estabelecimento de
uma classe especial de “dados gerais”, formada por textos e imagens tidos como
condizentes com o “ideário do Kung-Fu”. Esses dados geram "cadeias de
316
Ver cap. 2.
317
PARULSKI,, "Os Segredos do Kung-Fu... ", p. 173.
109
compartilhamento" cuja origem é difícil estabelecer. Para descobrir tais "cadeias" basta
aplicar frases dos textos em análise a mecanismos de procura como Google e Altavista.
O site da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de São Paulo318 não foi incluído porque
não apresenta grandes diferenças, em termos de linhas gerais, em relação ao libreto da
mesma instituição analisado no item 4.3.2.1. Vale, porém, apresentar alguns dados sobre
o site da Academia Sino-Brasileira: ainda que ensaie um aprofundamento de dados no
link "Histórico", peca por manter em branco outros links relacionados ao tema ("O
desenvolvimento", "O Mosteiro de Shaolin", "A Virada do século XIX", "A Nova República",
"A República Popular" e "O Panorama Hoje"). O site se aprofunda em relação às
biografias do grão-mestre Chan Kowk Wai e dos mestres Ku Yu Cheung e Yang Sheung
Mo (não conseguimos determinar a origem das informações sobre esses dois mestres),
mas não faz qualquer relação direta às religiões chinesas. O site também traz uma lista
com os nomes de professores e instrutores autorizados do Sistema Sino-Brasileiro em
todo o país.319
Para chegar a uma relação de sites pessoais brasileiros, usamos a ferramenta de busca
Google,320 na opção “sites em português”. Foram usadas as palavras-chave “Kung-Fu”,321
“Shaolin” e “Shaolin do Norte”, com retorno, respectivamente, de 11 mil, 2.730 e 310 sites.
A seleção do "site pessoal" em nossa pesquisa foi feita aleatoriamente, a partir dos
resultados obtidos. Em função do já referido fenômeno de compartilhamento de
conteúdos na rede, essa análise implicou em uma ampliação da pesquisa para várias
outras páginas de conteúdo similar.
318
<http://members.lycos.co.uk/sinobrasileira/index.html> (c. em 26.01.2004).
319
Acessos ao site entre nov. 2003 e jan. 2004.
320
<http://www.google.com> (c. 17 a 23.05.2003).
321
Bem como as variantes "Kung Fu", "kung-fu" e "kungfu".
110
4.3.4.1 – Sites institucionais
De modo geral, os sites institucionais são mais complexos do que os pessoais. É o caso
do site da "Academia Shaolin de Kung-Fu", de Valinhos (SP). A academia pertence ao
professor Valdir Cremasco, aluno do mestre Nereu Graballos, um antigo aluno do grão-
mestre Chan Kowk Wai.322 O site é organizado em doze links, a saber: "Academia",
"História", "Estilo", "Mestre/Professor", "Dança do Leão", "Instrutores", "Filosofia", "Fotos",
"Kung-Fu Kids", "Filmes & Livros", "Cadastre-se" e "Horários de Treinamento". Como a
apostila de Florianópolis, agrega elementos "modernizantes" à tradição. Isso é visível nos
links "Filmes & Livros"323 e em "Kung-Fu Kids", que traz as seguintes informações:
Nossas crianças hoje em dia, carecem de atividades físicas que complementem o seu
desenvolvimento integral. O objetivo das aulas de Kung Fu Kids é ensinar não só técnicas
de defesa pessoal, como também desenvolver as capacidades físicas e mentais da criança
de forma harmônica e recreativa, dentro da filosofia das Artes Marciais. A forma de pensar
de algumas pessoas leigas no assunto de que a Arte Marcial é um esporte que incita a
violência está totalmente errada. (...)324
A “modernidade” também pode ser encontrada na página índex,325 que traz notícias sobre
premiações da academia. Os links relacionados ao nosso objeto de estudo são "História",
"Estilo" e "Filosofia". É interessante notar o distanciamento em relação à tradição oral
consolidada no libreto da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de São Paulo. "História"
mescla tradição oral e "informações gerais" de Kung-Fu:
Os primeiros estilos foram criados pelos clãs (por isso atribui-se a expressão 'Família Kung
Fu' a um professor e seus alunos) e mantidos em segredo através de gerações. O Kung Fu,
traduzido literalmente, significa maestria, eficiência, treinamento, disciplina, esplendor ou
tempo de habilidade. Para designar-se Arte Marcial dá-se preferência por WuShu
(Wu=Guerra e Shu=Arte), ou segundo adoção do governo chinês a partir de 1928, Kuo Shu
(Kuo=Nacional e Shu=Arte). (...) As diferentes escolas de Kung Fu recebem na China uma
divisão (pedagógica) que as denomina como sendo escolas do norte e escolas do sul. (...)
Daí surgiu o conceito: 'Na Kuen Pat Tui', ou seja, 'Punhos do sul e Pernas do norte'. (...) Um
monge guerreiro graduado em Shaolin tinha que ser especialista em cinco áreas do
conhecimento. Ele deveria expressar-se num chinês correto, ou possuir caligrafia de rara
beleza, ou escrever poesia, ou conhecer textos clássicos, ou ter conhecimento de técnica
de lutas, etc. Deveria ainda dominar procedimentos práticos da Acupuntura e massagem
chinesa. (...) O Kung Fu no Brasil - O Kung Fu no Brasil iniciou-se e meados dos anos 60
com a vinda do Mestre Chan Kowk Wai o qual é o Mestre do estilo Shaolin do Norte (...) As
322
<http://www.shaolinvalinhos.com.br> (c. 28.01.2004).
323
<http://www.shaolinvalinhos.com.br/paginas/index.html> (c. 28.01.2004).
324
<http://www.shaolinvalinhos.com.br/paginas/index.html> (c. 28.01.2004). A intenção do autor, de afastar
o Kung-Fu de uma imagem de violência, pode ser considerada moderna.
325
<http://www.shaolinvalinhos.com.br/paginas/index.html> (c. 28.01.2004).
111
séries de televisão como as do ator David Carradine (Kung Fu - A Lenda) abriu as portas
326
para esta Arte no território brasileiro.
Ainda que se possa atribuir invenções importantes aos clãs em qualquer cultura, não há
dados acadêmicos que comprovem a relação no caso marcial chinês. A informação
seguinte, de ser esse o motivo pelo qual o professor e seus alunos são chamados de
"Família Kung-Fu", também soa estranha: como praticante de arte marcial chinesa
tradicional de longa data, o autor desta dissertação jamais havia ouvido essa expressão!
As traduções dos termos Wu-Shu e Kuo-Shu se aproximam do que é aceito pelos
pesquisadores. O único fator de estranhamento é a tradução de "Kung-Fu" como
"esplendor" ou "tempo de habilidade". Não conhecemos a relação do termo com
"esplendor". "Tempo de habilidade" parece ser uma tradução literal de expert timing,
termo pelo qual o Kung-Fu é, muitas vezes, traduzido para o inglês.
Em relação à divisão dos estilos em "Punhos do Sul e Pernas do Norte", o autor usa um
dado comum à tradição genérica do Kung-Fu. Segundo ela, o rio Yang-Tzé representaria
uma fronteira: ao norte, nas áreas elevadas, predominariam estilos baseados na força das
pernas; ao sul, nas áreas alagadas, prevaleceriam as técnicas de braços e mãos. Stanley
Henning dedicou um artigo ao tema. Segundo ele, as primeiras referências a essa
diferença são do séc. XVI. Henning acredita que a atribuição "geográfico-corporal" das
técnicas é mais teórica do que real.327
326
A parte do texto referente à origem do Kung-Fu também foi encontrada em outro site institucional, o da
"Associação Phoenix de Kung-Fu Tradicional", de Campinas, <http://orbita.starmedia.com/kungfuphoenix/>
(c. 29.01.2004). Essa academia não oferece aulas de Shaolin do Norte.
327
HENNING, S., "Southern Fists & Northern Legs - The Geography of Chinese Boxing", in Journal of
Asian Martial Arts, vol. 7, n. 3, 1998, p. 25 a 31, p. 30.
112
Por fim, o autor faz uma conexão entre a sua pessoa e a tradição do Shaolin do Norte a
partir de um breve histórico do grão-mestre Chan Kowk Wai. Esse histórico não apresenta
discrepâncias em relação aos dados de outras biografias do mestre encontradas na
tradição oral. Ao final do parágrafo, o autor (provavelmente o próprio Valdir Cremasco) se
refere ao papel do seriado "Kung-Fu" para a atração de alunos nos anos 70. Vale
observar, aqui, a omissão do autor em relação à "genealogia clássica" do estilo, que liga o
grão-mestre Chan Kowk Wai ao mosteiro de Shaolin e que é um elemento marcante na
tradição do Shaolin do Norte.
Em "Estilo", o autor reconhece a máxima da tradição oral do Shaolin do Norte, que afirma
que o estilo advém dos monges de Shaolin. A essa informação acrescenta dados técnicos
aparentemente extraídos do trabalho na academia ou de uma fonte não referenciada: “O
Shaolin do Norte tem ênfase nos chutes e técnicas que utilizam as mãos, utilizando a
completa extensão de um membro a fim de que os socos e chutes permitam alcances
maiores sem a perda do poder de impacto, sem o comprometimento do equilíbrio e
força.”329
Por fim, em "Filosofia", o autor apresenta uma série de aforismos não referenciados,
divididos nos itens "Seis Princípios Básicos para o Shaolin Kung-Fu", "Dificuldades a
Serem Vencidas", "Virtudes a Serem Adquiridas" e "Frases Filosóficas". O primeiro item,
"Seis Princípios...", reproduz o texto apresentado na abertura da revista "Kung Fu Defesa
Pessoal", analisada neste capítulo. Os itens "Dificuldades a Serem Vencidas" e "Virtudes
a Serem Adquiridas" indicam uma ética marcial não expressa na tradição oral do Shaolin
do Norte e, aparentemente, mostram uma preocupação pessoal do professor em relação
à formação de seus alunos.
328
Ver cap. 2 desta dissertação.
329
<http://www.shaolinvalinhos.com.br/paginas/index.html> (c. 29.01.2004) O mesmo texto, com
modificações, foi encontrado no site da "Associação Pequeno Dragão de Kung-Fu"
<http://www.ramiltonkungfu.ubbi.com.br/#> c. 29.01.2004), de Salvador (BA), que oferece aulas de Shaolin
do Norte.
113
É interessante questionar a lente usada para essa leitura da arte marcial. Como
observado no cap. 2 desta dissertação, na China as artes marciais não foram
relacionadas a um "Caminho"; sua função seria instrumental, ou, quando eivada de um
caráter ideológico, ligada à rebelião.
Por fim, em "Frases Filosóficas" o que se observa é uma reunião de 71 frases de fundo
moral sem autoria definida. Ao rastreá-las, verificamos que todas são compartilhadas por
sites relacionados ou não às artes marciais. A título de exemplo, apresentamos algumas
das frases, seguidas do número de compartilhamentos encontrados na internet: frase 1 -
"Não lute contra as forças, use-as.” (5); frase 2 - "A vida só pode ser compreendida
olhando-se para traz, mas só pode ser vivida olhando-se para frente." (6); frase 6 - "Só
uma coisa torna um sonho impossível, o medo de fracassar." (86); frase 7 - "Existem
derrotas, mas não existe o sofrimento. Um verdadeiro guerreiro que ao perder uma
batalha está melhorando sua arte de manejar a espada, e saberá lutar com mais
habilidade no próximo combate." (22); frase 20 - "Quando mais você entender de si
mesmo, mais entenderá do mundo." (5); frase 35 - "Só a experiência própria é capaz de
tornar sábio o ser humano." (19); frase 52 - "O que somos hoje e o que seremos amanhã
depende de nossos pensamentos." (7); e frase 67 - "O segredo da felicidade está em
olhar todas as maravilhas do mundo e nunca se esquecer da sua missão ou do seu
objetivo." (68). Afora as referências à relação entre os monges de Shaolin e a
marcialidade, não há, no site, referências diretas às religiões chinesas ou a
práticas/elementos religiosos na academia.
Nem todos os praticantes podem abrir academias, editar livros, dar entrevistas ou
comprar espaço em revistas. Com acesso a um computador e um pouco de competência,
porém, é possível publicar um site gratuitamente. Nesses sites, os praticantes expressam
a forma como vivenciam o Kung-Fu - o ciberespaço é um cenário de reprodução,
interpretação e criação de conteúdos. Um exemplo típico de site pessoal é “Kung-Fu
Shaolin do Norte” (fig. 32),331 de um praticante identificado apenas como “Rhuan SK8”.332
330
<http://www.shaolinvalinhos.com.br/paginas/index.html> (c. 29.01.2004).
331
Disponível em <http://www.kfsdonorte.hpg.ig.com.br/index.htm> (consulta em 19.05.2003).
332
Que foi contatado pelo autor desta pesquisa através de e-mail entre 20 e 26.05 2003, mas não respondeu.
114
A análise do site pode ser feita a partir dos links: “Filosofia” (texto), “Estilos” (texto), “Chi
Kung” (imagens), “Grão-Mestre” (informações e imagens do grão-mestre Chan Kowk Wai,
patriarca do Shaolin do Norte no Brasil), “Shaolin do Norte” (texto), “Armas” (texto e
imagens), “Bases” (imagens com legendas), “Ditados Chineses” (texto), “Kung-Fu” (texto),
“Wall Papers” (imagens), “Fotos do Templo” (imagens), “Midi & MP3” (arquivos de som),
“Fotos Variadas” (imagens), “Contando em Chinês” (imagens com legendas) e “Dicas de
Filmes” (texto).
333
<http://www.kfsdonorte.hpg.ig.com.br/shaolin%20do%20norte/shaolin%20do%20norte.htm> (c.
19.05.2003).
115
Os dados não fogem muito dos que compõem a "tradição oral média” do Shaolin do Norte
(a referência é a apostila da matriz do Sistema Sino-Brasileiro). No do link “Kung-Fu”, o
autor aborda o ingresso dos monges em Shaolin:
A aceitação e a escolha para se tornar um membro dentro de um Templo Shaolin era difícil.
Como jovens meninos, a aplicação para se tornar um membro do selecionado grupo de
alunos, era composta de tarefas fáceis e difíceis do trabalho relacionado a manutenção do
Templo. Sua sinceridade e habilidade em manter segredos da ordem Shaolin era
severamente testadas por anos a fio antes de se divulgar os mais importantes e preciosos
segredos. Uma vez aceitos pela ordem superior do Templo, sua entrada no Kung Fu era
considerada como uma porta de entrada para um novo mundo.334
Não há referências históricas nesse sentido. No mesmo link, o autor faz referências à
controversa "rede de mosteiros" de Shaolin: Honan, Fukien, Kwantung, Wu Tang e O Mei
Shan. A história de Bodhidharma, personagem considerado pela tradição religiosa como
patriarca do Zen-Budismo e por muitos praticantes de Kung-Fu como o patriarca da arte
marcial chinesa, é descrita em um texto sofisticado:
A existência de Bodhi Dharma (Ta Mo, em chinês) é, ainda hoje, posta em dúvida por
muitos historiadores. Dos que o aceitam como personagem real, alguns o tomam por um
monge persa, outros o tomam por um indiano da casta dos Kshatriya. As datas de sua
chegada em Kouang (Cantão - China), vindo de Kanchipuran (região próxima a Madeas
[sic], Índia), variam do ano 479 a.C. ou até antes, ao ano 526 a.C. Chega a haver quem
defenda, entre os estudiosos, a idéia de "Bodhi Dharma" referir-se a um grupo de monges e
não a uma só pessoa. Bodhi Dharma teria sido o 3º filho do rei Sungandha - discípulo
monástico de Prajnatara e 28º patriarca do Budismo indiano. O nome que lhe fora dado,
"Bodhi Dharma", indica que era visto como a encarnação humana do "Despertar (Bodhi) e
335
da "Lei" (Dharma).
"O Tao... palavra intraduzível. Um modo de ser. O Caminho do Meio, por ser à [sic] busca
do equilíbrio. O Sol e a Lua. O claro e o escuro. (...) Tao... que tudo engloba, nada separa.
Linguagem da natureza, tão esquecida pelo homem. Harmonia do desequilíbrio. Yin e Yang.
334
<http://www.kfsdonorte.hpg.ig.com.br/kung%20fu/templos%20shaolin.htm> (c. 19.05.2003).
335
Ibid.
116
Céu, Terra. Tao... vivência do aqui e agora sem reações, pleno de observações. (...) Tudo
336
isso é o Tao e muito mais. Onde o sentir é mais importante que o saber."
Em “Ditados Chineses”, o autor elenca uma série de 17 aforismos, alguns dos quais por
ele atribuídos a Confúcio e aos taoístas Lao Tzu e Chuang Tzu. A título de exemplo,
citamos três: "Se a tranqüilidade da água permite refletir as coisas, o que não poderá a
tranqüilidade do espírito." (Chuang Tzu); "Aquele que acumula muitos tesouros tem muito
a perder." (Lao Tzu); "Milhares de rios deságuam no mar, mas o mar nunca está cheio.
Mesmo que o homem pudesse transformar pedra em ouro, ainda assim seu coração
jamais seria satisfeito."337
A ligação entre o autor da página e a tradição do estilo Shaolin do Norte está expressa no
link “Shaolin do Norte”, e é feita a partir da genealogia "clássica".338 Por fim, vale destacar,
ainda, a referência feita pelo autor ao grão-mestre Chan Kowk Wai, expressa no link
“Grão-Mestre”. O link traz a transcrição de uma entrevista publicada pela revista Kiai e
uma galeria de fotos antigas e recentes do grão-mestre.
336
<http://www.kfsdonorte.hpg.ig.com.br/filosofia/filosofia.htm> (c. 21.05.2003).
337
<http://www.kfsdonorte.hpg.ig.com.br/home/ditados_chineses.htm> (c. 21.05.2003).
338
<http://www.kfsdonorte.hpg.ig.com.br/shaolin%20do%20norte/shaolin%20do%20norte.htm> (c.
20.05.2003).
339
A não ser na entrevista com o grão-mestre Chan Kowk Wai.
340
<http://www.google.com> (pesq. 23.05.2003).
341
<http://planeta.terra.com.br/saude/aGauchaKF/agkf/ShaoNorte.htm> e
<http://olympia.fortunecity.com/undertaker/95/shaolin.html> (c. 23.05.2003)
342
“Kung-Fu Defesa Pessoal”, p. 8.
117
foi extraído. O texto que descreve a entrada dos monges no mosteiro de Shaolin, em
“Kung-Fu”, foi encontrado, com pequenas variações, em cinco sites.343
O único texto aparentemente “próprio” – ou, pelo menos, não compartilhado por outros
sites – é o relativo ao Taoísmo. Como o autor não cita uma fonte e nem assume a obra
como sua, porém, é difícil estabelecer sua origem. No caso dos aforismos de “Ditados
Chineses”, alguns foram encontrados em outros sites,346 o que parece indicar uma fonte
comum, provavelmente oriunda de fora da internet. Com relação às imagens, elas
também estão presentes em outros sites.347
343
<http://www.sabedoria.hpg.ig.com.br/kung_fu.htm>,
<http://geocities.yahoo.com.br/ronaldopinheiro/Untitled-2.htm>,
<http://www.oldfist.hpg.ig.com.br/kungfu.html>,
<http://members.fortunecity.com/fongsaiyuk/historia.htm> e
<http://planeta.terra.com.br/educacao/interligados/Esportes/artesmarciais/body_artesmarciais.html> (c.
03.05.2003).
344
<http://www.astrosdasartesmarciais.hpg.ig.com.br/templos.htm> e
<http://www2.longteh.com.br/site/historia/templo.html> (c. 23.05.2003).
345
“Trump!...”, p. 8 e 9. A revista não é citada como fonte em nenhum dos sites.
346
<http://kfmasters.tripod.com/ditados.htm> e <http://www.taichichuan.com.br/estorias.htm> (c.
23.05.2003).
347
<http://www.qigong.ru/Gallery/comments.e/Shaolin.Monastery.html>,
<http://www.paulnoll.com/China/Tourism/tourist-Shaolin-scenes.html> e
<http://129.79.22.9/china/ShaoLin/thumbs/thumbs1.html> (c. 23.05.2003).
118
norte-americano. Ao se desnudar de elementos transculturais e se voltar à tradição
chinesa, "Crouching Tiger, Hidden Dragon", filme dirigido por Ang Lee em 2000,
sacramentou essa influência).349 Ainda assim, é preciso considerar que foi através de uma
"lente norte-americana" que as primeiras referências significativas ao Kung-Fu chegaram
à sociedade brasileira. Isso seguramente influenciou os elementos históricos, éticos e
religiosos da arte, transformando-os. Há que se considerar, por exemplo, a influência
prévia do "olhar nipônico" na marcialidade norte-americana: esse olhar, relacionado ao
Zen e ao estabelecimento, a partir dele, de um "caminho de transcendência pela
marcialidade", foi incorporado pelo Ocidente como base para a interpretação de todas as
artes marciais orientais.350
348
Ver cap. 3 desta dissertação.
349
HUNT, L., "Kung-Fu...", p. 184 a 200. Para "Crouching Tiger, Hidden Dragon", ver
<http://www.sonypictures.com/cthv/crouchingtiger/sony_us_release.htm> (c. 06.02.2004).
350
Ver o cap. 2 desta dissertação.
351
Apesar do interesse de scholars chineses pela marcialidade desde, pelo menos, o séc. XVI. Ver cap. 2
desta dissertação.
119
Um elemento religioso muito presente, oriundo da tradição oral e, sem dúvida, da indústria
do entretenimento,352 se refere à condição de "guerreiros invencíveis" dos monges
budistas de Shaolin. Essa condição, como visto no capítulo 2 desta dissertação, vai muito
além do enfoque apriorístico das academias. Fundindo elementos históricos e religiosos
está a genealogia dos estilos, calcada na tradição oral e que, por conta da dificuldade de
acesso a fontes primárias chinesas, não foi analisada em maior profundidade.
352
A partir do seriado de TV "Kung-Fu".
120
5. OS BUDAS DA ACADEMIA: INTERPRETAÇÃO ACADÊMICA DA ICONOGRAFIA
NO UNIVERSO SEMÂNTICO DO SHAOLIN DO NORTE
Este capítulo tem por objetivo relacionar e "traduzir", com base em informações
acadêmicas, a iconografia de caráter religioso encontrada nos ambientes de treinamento
dos entrevistados - academias pertencentes ao chamado Sistema Sino-Brasileiro de
Kung-Fu (Shaolin do Norte). Vale observar que, ao colocar este capítulo à frente do
referente à análise dos dados das entrevistas de campo, buscamos estabelecer uma
estruturação prévia para a percepção do valor dado pelos praticantes à religiosidade
oriental na arte marcial chinesa. Ao apresentar uma relação de elementos iconográficos
de caráter religioso, delimitamos um referencial para a pesquisa de campo.
Uma análise dos ambientes de prática de Kung-Fu nos permite afirmar que eles são
característicos de um subuniverso de significação. Nas palavras de Berger e Luckmann,
subuniversos de significação como o representado pelo Kung-Fu brasileiro decorrem de
353
FERREIRA, A., "Novo Dicionário Aurélio", p. 472.
121
(...) Os subuniversos de significação podem ser socialmente estruturados de acordo com
354
vários critérios, sexo, idade, ocupação, tendência religiosa, gosto estético etc.
354
BERGER, P. & LUCKMANN, T., "A Construção Social da Realidade", 21ª edição, Petrópolis: Editora
Vozes, 2002, 247 p., p. 117.
355
A maior parte dos imigrantes chineses que chegou ao Brasil não possui conhecimentos profundos a
respeito do Kung-Fu. Sobre o papel da imigração chinesa ao Brasil para a difusão da arte marcial, ver o cap. 3
desta dissertação.
356
Como os nomes de rotinas, posturas e técnicas específicas.
122
1 - A proximidade entre o praticante e uma fonte étnica de conhecimento: pode-se afirmar
que, ao ter aulas com um mestre chinês (ou seja, um informante étnico), as chances de o
praticante ter acesso a elementos originais da cultura chinesa - da música à alimentação -
é maior. Esses elementos podem ser caracterizados, por esse praticante brasileiro, como
fundamentais para a legitimidade da arte marcial.
357
"(...) kitsch é um objeto ou estilo que, simulando uma obra de arte, é apenas imitação de mau gosto para
desfrute de um público que alimenta a cultura de massa (...) São exemplos de típicos de kitsch estatuetas de
plástico que imitam obras clássicas, flores artificiais, certos móveis de fórmica (...)"; definição in FASCIONI,
L. & VIEIRA, M., "O Kitsch na comunicação visual das indústria de base tecnológica", art. deps. em
<http://www.ligiafascioni.com.br/artigos/kitsch_graphica.pdf> (c. 19.05.2004).
358
Esferas de metal decoradas, dotadas de guisos em seu interior, utilizadas para exercícios com as mãos.
359
Fig. 33: “estante chinesa” em casa de Curitiba. Fig. 34: armas de Kung-Fu. Fotos do autor (jun. 2004).
360
Em nossa pesquisa de campo (março de 2004) localizamos duas lojas de artigos de Kung-Fu, ambas
situadas no bairro da Liberdade. Os dois estabelecimentos pertencem a chineses.
123
"universo marcial": esse interesse assume traços relacionados à representação ("o que é
o Kung-Fu"; "como eu vejo o Kung-Fu") e à auto-representação ("como eu assumo e vivo
esse universo"). Assim, se o professor não se interessar por nada além das técnicas -
nem mesmo por seus nomes chineses, o que implica na criação de denominações à
brasileira como "técnica da banana", "chute sem pulo" ou "peão" -,361 é possível que ele
mantenha apenas equipamentos para treinamento, uma barra para alongamento de
pernas, um saco de pancadas e um espelho para auto-observação pelos alunos. No caso
das academias mantidas por imigrantes chineses - em nossa pesquisa, as de Chan Kowk
Wai e Lee Chung Deh - essa aproximação tende a ser, por razões étnicas, mais "natural".
361
Denominações encontradas no Shaolin do Norte.
124
5.2.1 - Um salão para o dragão
A idade dos imóveis normalmente utilizados para abrigar academias está ligada tanto a
fatores econômicos quanto de natureza funcional: normalmente, apenas edifícios antigos
são capazes de cumprir as exigências de aluguel baixo, espaço amplo e pé-direito alto. A
necessidade do aluguel baixo se justifica pela pequena capacidade de investimento por
parte dos professores iniciantes, que precisam se instalar e "mostrar serviço"; a grandeza
do salão é exigida tanto pelo fator econômico - a capacidade de abrigar turmas grandes -
362
quanto pelo funcional -, um espaço suficientemente amplo para permitir a execução
dos "katis", as séries de movimentos que caracterizam os estilos tradicionais. O pé-direito
alto também está ligado à prática dos "katis", uma vez que as técnicas com armas longas
como bastões, lanças e alabardas (Kuan Tao) exigem tetos altos para evitar acidentes.363
362
Ao tempo da pesquisa, a mensalidade em academias de Shaolin do Norte contatadas variava entre R$
65,00 e R$ 200,00. Para obter uma renda mensal de R$ 2.000,00, portanto, um professor que cobre R$ 65,00
deve ter, pelo menos, 30 alunos. Há que se observar que os ganhos mensais devem cobrir despesas como
aluguel, condomínio, luz, água, telefone, internet e materiais de limpeza.
363
Para uma lista de armas longas de Kung-Fu, ver MING, Y., "Ancient Chinese Weapons... ", p. 17 a 48.
364
Foto Florianópolis (jul. 2003). Foto São Paulo (jun. 2004). Fotos do autor.
125
qualquer tipo de restrição à iconografia marcial (religiosa ou não) por parte dos praticantes
de dança. Equipamentos como espelhos e barras de alongamento são compartilhados.
Um terceiro espaço, de uma academia de Shaolin do Norte não incluída em nossa
pesquisa - a Senda, de Curitiba -365 também corresponde à descrição feita no primeiro
parágrafo deste sub-item do capítulo: há mais de dez anos funciona em um antigo edifício
no “Centro Velho” de Curitiba, junto à praça Tiradentes, área considerada “decadente”
pelo mercado imobiliário local.
A poeira e os cheiros de suor, chulé e incenso estão ligados ao tipo de atividade realizada
nas academias. A quantidade de poeira depende, sem dúvida, do cuidado do professor
em relação a seu ambiente de trabalho. Em academias como a de Chan Kowk Wai, certos
dias da semana são reservados para que os alunos lavem o piso de concreto –
repentinamente o mestre surge com uma mangueira de pressão e os alunos correm para
apanhar vassouras, rodos e panos.
365
Também afiliada ao Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu (Shaolin do Norte), a Academia Senda pertence
ao professor de Educação Física e psicólogo Jorge Jefremovas, discípulo de Lee Chung Deh e praticante da
mesma geração de um dos entrevistados de nossa pesquisa (o professor Rogério Leal Soares, de
Florianópolis).
126
5.2.3 - A arca de Shaolin
Na razão em que uma cultura não se limita ao religioso, pode-se deduzir que nem todos
os "itens cenográficos" de uma academia de Kung-Fu possuem caráter religioso - mesmo
porque a arte marcial chinesa não tem, em si, uma finalidade religiosa (seu caráter
central, em nossa opinião, é de prática corporal voltada fundamentalmente à capacitação
técnica para combate ou à saúde).367
1. Elementos referenciais genéricos para a arte marcial: nessa categoria estão elementos
que, de uma forma "mais simples" - ou mais próxima da representação inicial do Kung-Fu
no Brasil -, identificam a arte marcial. As peças de maior presença aí, sem dúvida, são os
pôsteres de artistas marciais como Bruce Lee - como observado anteriormente,368 o ator
sino-americano é uma figura de referência para a arte marcial, um personagem lembrado
com estima e visto como exemplo de praticante. Também podem ser incluídos, entre os
elementos referenciais genéricos, pôsteres representando os modernos "monges de
Shaolin", fotos dos professores quando eram alunos ou, então, de alunos em poses
marciais ou em ocasiões festivas (como premiações em competições).
366
A respeito do papel da indústria do entretenimento para a formação do universo semântico dos praticantes
brasileiros de Kung-Fu, ver cap. 4 desta dissertação.
367
A respeito da instrumentalidade da arte marcial chinesa, ver o cap. 2 desta dissertação.
368
No cap. 4 desta dissertação.
127
2. Elementos referenciais genéricos para a cultura chinesa: nessa categoria estão objetos
como lanternas típicas, reproduções de quadros chineses (geralmente extraídas de
calendários chineses) e móveis em bambu. Tal universo de objetos - que pode incluir até
elementos de outras culturas orientais, como a do Japão - tem por finalidade relacionar o
espaço de prática com uma cultura de raiz e, assim, reforçar uma "identidade étnica"
(que, no caso de academias mantidas por brasileiros, acaba se caracterizando como
"pseudo-étnica"). Essa "identidade" está ligada, sem dúvida, a um desejo de legitimação.
369
Na imagem da esquerda são visíveis as chamadas “armas médias” (facões, espadas etc.). Na imagem da
direita estão detalhes das “cabeças” de armas longas (São Paulo, junho de 2004). Fotos do autor.
370
Para uma relação de armas chinesas, ver MING, Y., "Ancient Chinese Weapons...", op. cit.
128
4. Elementos da "cultura brasileira" presentes nos espaços de prática de Kung-Fu: nessa
categoria estão elementos desconhecidos ao universo cultural chinês - coisas como
brasões de clubes de futebol, imagens de santos católicos e até fotos de políticos. Apenas
a título de exemplo, vale citar o caso da Academia Senda, de Curitiba, onde, junto à porta
de entrada, é possível avistar um quadro de São Jorge, evidentemente a cavalo, matando
o dragão com uma lança; esse quadro está praticamente ao lado de um segundo quadro,
que retrata Kuan Kung (Kuankun), divindade tutelar chinesa associada aos mosteiros
budistas e às academias de Kung-Fu, igualmente a cavalo e portando uma alabarda (fig.
39).371
371
Academia Senda, Curitiba (março/2004). Foto do autor. Sobre Kuan Kung, ver nota 164 do cap. 2 desta
dissertação. Ver, também, fig. 10.
372
STEVENS, K., "Chinese Gods... ", foto à p. 93.
129
pagamento de mensalidades), ao computador (quando há um), aos livros e troféus (fig. 40
e 41).373
373
Imagens: junho de 2004. Fotos do autor.
130
Em nossa pesquisa de significados fizemos uso, principalmente, do livro de Keith
Stevens, "Chinese Gods - The Unseen World of Spirits and Demons",374 que traz
informações a respeito de vários ícones ligados à religiosidade chinesa; para o
entendimento de conteúdos do Taoísmo e do Budismo, apelamos para trabalhos de
Marcel Granet,375 Allan Watts,376 John Blofeld,377 Juan-Eduardo Cirlot;378 no caso
específico do Pa Kua, usamos as apresentações/traduções do I Ching feitas por James
Legge e Richard Wilhem.379 A questão da "divindade tutelar" de Shaolin e das academias
de Shaolin do Norte foi abordada a partir do cruzamento de dados de Stevens com os de
Meir Shahar.380 Na análise dos altares incluímos elementos do trabalho de Dian Murray
sobre os rituais das tríades chinesas.381
374
STEVENS, K., "Chinese Gods...", op. cit.
375
GRANET, M., “O Pensamento Chinês”, 1ª ed., Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, 415 p.
376
WATTS, A., "O Budismo Zen", 4ª edição, Lisboa: Editorial Presença, 1990, 249 p.; "O Zen e a
Experiência Mística", 1ª ed., São Paulo: Cultrix, 1980, 148 p.; "Em Meu Próprio Caminho", 1ª ed., São
Paulo: Editora Siciliano, 1992, 314 p.
377
BLOFELD, J., “Taoism – The Road to Immortality”, 6ª ed., Boston: Shambala, 2000, 195 p.
378
CIRLOT, J., “Dicionário de Símbolos”, 1ª ed., São Paulo: Editora Moraes, 1984, 616 p.
379
LEGGE, J., "I Ching", 1ª ed., São Paulo: Hemus, 1972, 520 p.; e WILHELM, R., & PERROT, É., "Yi
King - Le Livre des Transformations", 8ª ed., Paris: Librairie de Médicis, 1973, 804 p.
380
SHAHAR, M., "Ming-Period Evidence... ", p. 359 a 413.
381
MURRAY, D., "The Origins...”, op.cit
131
- Camiseta do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu;
- “Placa da Ética e da Ancestralidade”;
- Altar com queimador de incenso e fotos de "mestres patriarcas" do estilo.
Vale observar, previamente, que há uma clara divisão em “conjuntos semânticos” dos
elementos iconográficos enumerados. Enquanto a camiseta forma o primeiro desses
conjuntos, a placa e o altar formam o segundo.
A camiseta-padrão adotada por boa parte das academias de Kung-Fu do Sistema Sino-
Brasileiro (Shaolin do Norte) foi criada pelo grão-mestre Chan Kowk Wai. Ela representa
um conjunto semântico de caráter religioso centrado, fundamentalmente, no Taoísmo. Ela
é composta por dois conjuntos de símbolos gráficos, um localizado na parte da frente e o
outro na parte de trás da vestimenta (fig. 42 e 43).382
O primeiro conjunto (na frente) é composto por um brasão; e o segundo (nas costas) por
um “dragão abraçando o Pa Kua”, símbolo reconhecido como tradicional do Shaolin do
Norte no Brasil. Esses conjuntos constituem, em nossa avaliação, a mais complexa
presença iconográfica de viés religioso encontrada no universo pesquisado. Tal
complexidade decorre, fundamentalmente, de um mix de elementos budistas e taoístas
que remete à fusão de partes das duas religiões verificada na China do séc. V d.C. e até
hoje presente no universo religioso daquele país.383 Antes de seguir em frente, vale
observar um elemento extra, ligado à base sobre a qual se assentam os símbolos: as
cores das camisetas. Normalmente elas são brancas, com os elementos gráficos
382
Camisetas de Florianópolis e Campo Grande doadas ao autor. Fotos do autor.
383
A respeito da fusão “budo-taoísta”, ver o cap. 2 desta dissertação.
132
serigrafados em preto ou, então, em azul e vermelho. Há, porém, registro de camisetas de
cores diferentes, como o preto, vermelho e amarelo, com os elementos serigrafados em
branco.384 Pelo que pudemos constatar em nossa pesquisa de campo, essa variação é
aceita por seu caráter estético e não por determinações religiosas ou tradicionais.385
O brasão circular que ilustra a parte da frente da camiseta reúne uma série de símbolos e
ideogramas relacionados ao Taoísmo e ao Budismo.386 A predominância, apesar de o
estilo Shaolin do Norte ser tradicionalmente associado a esta última religião - através de
sua fonte histórico-mítica, o mosteiro de Shaolin em Henan, e de seu fundador mítico, o
asceta indiano Bodhidharma -, é de elementos taoístas.
A esse conjunto é somado o nome da cidade e/ou da academia - por exemplo: “Academia
Sino-Brasileira de Kung-Fu - Curitiba” -, apresentado em um dístico ao redor do círculo.387
Para facilitar a leitura iconográfica, faremos a seguir uma descrição esquemática dos
símbolos de natureza religiosa que compõem o brasão das camisetas do Sistema Sino-
Brasileiro de Kung-Fu (a ordem numérica segue a determinação da fig. 44).
384
Nos anos 80, como praticante de Shaolin do Norte, o autor dessa pesquisa usou camisetas nas quatro cores
referidas.
385
Vale observar, porém, que o vermelho e o preto são as cores que, nos combates desportivos de Kung-Fu
(Sanshou), identificam os lutadores.
386
Em nossa análise, tomaremos como referência o trabalho de APOLLONI, R., & LEE, C., “O Significado
dos Símbolos em sua Camiseta”, presente in <http://www.shaolincuritiba.com.br/escudo.html> (c. 27.05.04).
387
Por não se tratar de um elemento de caráter religioso, mas sim de identidade de cada academia, optamos
por omitir o dístico da ilustração 29. Não há prejuízo para a análise a que nos propomos.
133
ELEMENTOS:
Nos termos da religião tradicional o Tai-Chi está ligado, essencialmente, a uma dinâmica
universal formada por opostos que se complementam e que trocam constantemente de
polaridade. Granet reforça o caráter criativo representado pelo Tai-Chi: “a figura pretende
mostrar a união do Yin e do Yang no momento em que eles produzem os 10.000
Seres”.390 Guardada a advertência de Lao-Tzu – que observou a impossibilidade de
388
O termo determinante é Tai, que pode ser traduzido como “maior do que o maior”.
389
GRANET, M., “O Pensamento Chinês”, p. 83 a 100.
390
Ibid, nota 403. Por “10.000 Seres” deve-se entender todas as coisas que compõem a realidade.
134
tradução, em termos racionais, dos conceitos taoístas –391 pode-se afirmar que Tai-Chi é,
de fato, a melhor representação gráfica do Tao,392 expressão traduzida, no Ocidente,
como “Caminho”. Em nossa avaliação, essa equivalência não reflete a verdade. Adotando
uma definição mais acadêmica, do pensador espanhol Juan Eduardo Cirlot, temos a
informação de que o Tai-Chi é o:
No Ocidente o Tai-Chi é conhecido desde, pelo menos, os anos 50 do séc. XX, quando foi
incorporado ao universo intelectual;394 nos anos 60, foi abraçado pela “cultura pop”. Nessa
época foi “ressignificado” e até associado ao mercado: uma das mais conhecidas
empresas de artigos para surfistas, a “Town & Country”, tem nesse círculo cortado por um
sigmóide sua marca registrada.395 Nas camisetas dos mestres e professores pesquisados
é possível encontrar o Tai-Chi em duas posições: com a linha sigmóide alinhada à vertical
e com a mesma linha alinhada à horizontal. Na camiseta da academia matriz do sistema
(São Paulo), a posição é horizontal. Em outras, como a de Florianópolis, é vertical.
Aparentemente, as duas orientações são entendidas como tradicionais.
391
“The name that can be named is not the enduring and unchanging name.” (Tao Te King, cap. 1, verso 1).
Trad. de LEGGE, J., in <http://classics.mit.edu/Lao/taote.mb.txt> (c. 27.05.2004).
392
Um estudo amplo a respeito do Tao pode ser encontrado em GRANET, “O Pensamento Chinês”, op. cit.,
p. 189 a 210.
393
CIRLOT, J., “Dicionário...”, p. 607.
394
O elemento certamente era conhecido dos primeiros sinólogos, que desde o séc. XVIII examinavam os
aspectos filosóficos e religiosos da cultura chinesa.
395
A “Town & Country Surf Designs”, foi fundada em 1971, no Havaí, por Craig Sugihara. Site oficial da
empresa: <http://www.tcsurf.com/> (c. 27.05.2004)
135
protegido, um fantasma ou demônio assaltante veria a própria face refletida e, assustado,
fugiria (fig. 45).396
O I Ching distingue três qualidades de mutação: falta de mutação, mutação cíclica, mutação
em série. A mutação cíclica é a permuta periódica que observamos no mundo orgânico. A
mutação em série indica a progressiva mutação no fenômeno que é produzida pela
causalidade. Em outras palavras, mutação em série seria descrita em termos Ocidentais
como mutação que se opera num mundo de causa e efeito, mecanicamente estruturado. A
diferença primária entre o ponto de vista do Ocidente e do Oriente de mutação em série é
que o I Ching usa a mutação em série para delinear a seqüência das gerações e por isso
400
considera-a alguma coisa “orgânica” e não “mecânica”.
De acordo com a tradição, os oito trigramas que formam o Pa Kua - cada um deles é
composto por três linhas que seguem uma ordem binária, podendo ser contínuas ou
segmentadas - encerram “as imagens do que se passa no Céu e sobre a Terra”.401
São as bases sobre as quais se assentam os 64 hexagramas do I Ching, que, na
concepção chinesa, refletem as configurações possíveis da realidade.402 O trigramas que
396
Fotos feitas pelo autor em julho de 2004.
397
Exemplos dessa vulgarização podem ser observados nos sites
<http://www1.uol.com.br/diversao/fengshui/> e <http://www.mistico.com/p/fengshui/ > (c. 27.05.2004).
398
Amuleto metálico adquirido em junho de 2004 em loja de artigos populares chineses em Curitiba. Frente:
Pa Kua com leão no centro; verso: signos da astrologia chinesa com espelho no centro (foto do autor).
399
“Enfermant le passé et l’avenir tout entiers dans ler schema numerique, elles ont conféré au Yi King la
reputation d’un livre d’une profondeur totalement incompréhensible.” WILHELM, R., & PERRAULT, É.,
“Yi King...”, p. 4.
400
LEGGE, J., “I Ching...”, p. 29 e 30.
401
WILHELM, R., & PERRAULT, É., “Yi King...”, op. cit., p. 5.
136
formam o Pa Kua têm os seguintes nomes:403 (1) – K’ien (Kian), “O Criador”; (2) – Souen
(Xuan), “O Dócil”; (3) - Kan, “O Insondável”, “O Abismo”; (4) - Ken (Ken), “A Imobilização”;
(5) – K’ouen (Kuan), “O Receptivo”; (6) – Tchen (Chen), “O Progresso Interrompido”; (7) –
Li (Li), “O Aderente”; e (8) – Touei (Touei), “O Alegre”, “O Sereno”.404
402
GRANET, M., “O Pensamento Chinês”, p. 121.
403
Para identificá-los na ilustração 26, atribuir o número 1 ao trigrama colocado mais ao alto e seguir em
sentido horário – assim, o trigrama situado imediatamente à direita de 1 será o 2, e o situado imediatamente à
esquerda, o 8.
404
As transliterações dos nomes chineses seguem, respectivamente, as presentes na obra de WILHELM, R., &
PERRAULT, É., “Yi King ...”, p. 6, e as encontradas na obra de GRANET, M., “O Pensamento Chinês”, p.
121 (nomes entre parênteses).
405
GRANET, M., “O Pensamento Chinês”, p. 121 e 122.
406
Aquela também é conhecida como “disposição anterior” e, esta, como “posterior”.
407
Imagens extraídas e modificadas de GRANET, “O Pensamento Chinês”, p. 122 (E) e 121 (D).
408
A esse respeito, ver GONGBAO, Y., “La Melodie Interne de La Vie – La pratique chinoise du qigong”, 1ª
ed., Beijing: Editions du Nouveau Monde, 1995, 156 p., p. 21 e 22.
409
A respeito do mix tradição oral x leituras populares, ver o cap. 4 desta dissertação.
137
(3) – Bei, Sao, Lin: Juntos, os ideogramas Bei, Sao e Lin (leitura da
direita para a esquerda) formam o termo Bei Saolin, lido, no Brasil,
como Shaolin do Norte. O termo Saolin (ou Shaolin) pode ser
traduzido como “Floresta Nova”, e é identificador do lugar de Henan onde, em 495 d.C.,
foi erigido o mosteiro de mesmo nome. Sao indica juventude e Lin, uma floresta (o
ideograma mostra duas figuras semelhantes a árvores). Bei, o primeiro ideograma,
significa “Norte”, em oposição a Nan, “Sul”, indicativo dos estilos associados à tradição de
Shaolin em Fujian (Nan Saolin – Shaolin do Sul).410 A associação do termo com a
religiosidade chinesa é direta, uma vez que Shaolin é um dos mais famosos mosteiros
budistas chineses.
(4) – Yin, Yang: O termo formado pelos ideogramas Yin Yang (leitura de cima
para baixo) parece servir como reforço ao Tai-Chi. O conceito foi gerado
provavelmente antes da institucionalização do Taoísmo. Os ideogramas
expressam o “binário universal” formado por opostos que se complementam.
Uma análise mais ampla do significado das polaridades Yin e Yang pode ser
encontrada nos parágrafos deste capítulo referentes ao Tai-Chi.
(5) – Jin, Chi, Sen: O termo, formado pelos ideogramas Jin (ou
Jing), Chi (ou Qi) e Sen (ou Chen), diz respeito aos chamados
“Três Princípios” taoístas (a leitura é feita da direita para a
esquerda). De acordo com Yu Gongbao, esses princípios podem ser traduzidos,
respectivamente, como “Essência”, “Energia Vital” e “Espírito”.411 Ainda segundo esse
autor, eles estão associados aos chamados “Três Elementos”, que correspondem ao
corpo, coração e pensamento. Seu encontro se dá a partir do Chi Kung (Qigong), conjunto
de práticas respiratórias, alimentares, sexuais e mentais voltadas à transcendência:
410
Acerca do desenvolvimento marcial em Shaolin, bem como sobre a tradição que associa o mosteiro aos
estilos do sul da China, ver o cap. 2 desta dissertação.
411
GONGBAO, Y., “La Melodie...”, p. 3 (sobre o conceito de Chi) e p. 30 (sobre os conceitos de Jing e Sen).
412
Ibid., p. 30. Trad. livre do francês.
138
O cinábrio (HgS, Sulfeto de Mercúrio), forma mais comum pela qual o mercúrio é
encontrado na natureza, foi relacionado pelos chineses à transcendência. Essa relação
nasceu, provavelmente, da observação do método de obtenção do mercúrio, a chamada
ustulação (aquecimento em uma corrente de ar). Nesse processo, o sulfeto, vermelho ou
negro, é convertido em um metal prateado, líquido, de aparência impressionante.413 Há,
aí, uma relação com o conceito de “alquimia do ser”: assim como os alquimistas
ocidentais, também os chineses buscavam – simbolicamente - transformar o nigredo
(matéria ou condição inferior) em rubedo (matéria ou condição superior). Para isso,
usavam o Chi Kung, base das práticas físicas existentes dentro do Sistema Sino-
Brasileiro de Kung-Fu.414 Ainda sobre o Chi Kung e sua relação com a religiosidade
chinesa, vale citar Marcel Granet, que, a partir de vetustos tratados taoístas, aborda o
papel dos exercícios chineses para a obtenção da transcendência:
Para nutrir a própria vida e “conseguir o Tao” à maneira de Peng-tsu, que logrou durar mais
de setecentos anos, é preciso entregar-se a exercícios de flexibilidade (tao yin), ou, melhor
ainda, dançar e movimentar-se à maneira dos animais. Recomenda-se imitar a dança dos
pássaros quando eles estendem as asas, ou a dos ursos quando se balançam, esticando o
pescoço para o Céu. É com a ajuda dessa ginástica que os pássaros se exercitam em voar
e os ursos se tornam trepadores perfeitos. Também há muito que aprender com os mochos
e os tigres, hábeis em virar o pescoço para olhar para trás, e com os macacos, que sabem
pendurar-se de cabeça para baixo. O primeiro benefício desses jogos é que eles
proporcionam a leveza indispensável a quem quer praticar a levitação extática Eles servem
também para purificar a substância (lian tsing). Na verdade, constituem uma disciplina da
415
respiração. Permitem ventilar o corpo inteiro, inclusive as extremidades.
(6) – Lho Hã - O termo é formado pelos ideogramas Lho e Hã, que podem ser
traduzidos, respectivamente, por “seis” e “união” ou “harmonia”.416 De acordo
com o médico acupunturista Pan Yi Bo,417 a idéia de “União dos Seis” – ou de
“Seis Harmonias” - está vinculada a conceitos chineses que envolvem energia
(Chi) e, por conseqüência, uma dinâmica universal. Segundo o médico, esse conceito,
que foi absorvido pelo Taoísmo ainda durante a Dinastia Chou (1027 a 221 a.C.),
pertenceria a um corpo de conhecimentos mais antigo. O scholar Marcel Granet reforça
413
O mercúrio era conhecido pelos gregos como ágyros khytós, “prata derretida”.
414
Para uma descrição detalhada dos exercícios de aquecimento e alongamento no Sistema Sino-Brasileiro de
Kung-Fu, ver <http://www.shaolincuritiba.com.br/aula.html> (c. 04.06.2004).
415
GRANET, “O Pensamento Chinês”, p. 310. Nos parece clara a relação entre os elementos enunciados por
Granet e os chamados “Jogos dos Cinco Animais”. Sobre os Jogos dos Cinco Animais, ver cap. 2 desta
dissertação.
416
Em chinês, o sentido de Hã se refere à união como harmonia entre opostos.
417
Em consulta verbal feita em Curitiba no dia 07.06.2004.
139
essa informação, observando que muito cedo os chineses associaram suas teorias
cosmogônica, cosmológica, fisiológica e musical a certos números.418
A tradição indica seis pontos de referência espacial: Norte, Sul, Leste, Oeste e Centro
(dividido em “Alto” e “Baixo”, equivalentes a “Céu” e “Terra”). Em termos de representação
cartesiana, esses limites estariam dispostos, respectivamente, sobre os eixos x, y e z. O
ponto localizado na interseção desses eixos – o zero do gráfico - estaria numa condição
de Lho Hã.
418
GRANET, “O Pensamento Chinês”, p. 101 a 187 e 223 a 238.
419
Para um aprofundamento a respeito da atribuição de valores numéricos na construção dos hexagramas do I
Ching, ver LEGGE, “I Ching...”, p. 37 a 47.
140
Uma referência mais intrincada pode ser encontrada na divisão das estações do ano.
Inicialmente, há que se considerar uma equivalência Yang-Yin feita pelos chineses para
as estações: ao verão (Yang),420 equivale o inverno (Yin) e, à primavera (Yang), equivale
o outono (Yin). Há, portanto, dois grandes pares de opostos – duas estações Yang e duas
Yin -, que, a título de visualização, poderiam ser representados por dois Tai-Chi. Cada
uma das estações, porém, é dividida em três fases, que equivalem à evolução de suas
características típicas (início, meio e fim) e aos meses que a compõem (cada estação
dura três meses). Desse modo, a cada terço de uma estação corresponde um terço de
sua estação oposta. Assim, não há apenas dois Tai-Chi, mas doze; ou, para chegar ao
“número áureo” de nosso estudo, seis Tai-Chi em cada um dos grandes pares de opostos.
Nesse contexto, Lho Hã equivale à harmonia eterna que governa a relação entre o Céu, a
Terra e o Tempo: se em determinada época do ano a superfície de um lago congela
(inverno), em outra será batida pelo vento (verão); se em determinada época os peixes
desse lago se reproduzem (primavera), em outra estarão devotados a preparar o próprio
corpo para enfrentar os meses de frio (outono).
O dragão – em chinês, lung ( ) - é uma figura simbólica universal (ver fig. 46).421
Presente em praticamente todas as culturas,422 ganhou especial deferência na China. De
acordo com Juan-Eduardo Cirlot, o poder do dragão no imaginário se deve,
420
Originalmente, segundo Pan Yi Bo, o termo “Yang” se referia ao sol.
421
Imagem da esquerda extraída de camiseta. Imagem da direita: placa no salão da Academia Sino-Brasileira
de Kung-Fu em São Paulo. Os ideogramas significam “Shaolin do Norte” (imagem do autor: junho de 2004).
422
CIRLOT, J., “Dicionário de Símbolos”, p. 213.
141
principalmente, ao fato dele representar o animal por excelência423 e, por conta disso, o
inimigo.424 Essa relação animal x inimigo pode se referir a um medo atávico nascido em
dias em que os seres humanos eram mais caça do que caçadores.
423
Normalmente, é construído a partir de partes de animais ferozes como o tigre, a serpente, o crocodilo e até
dinossauros (lidos a partir de fósseis).
424
CIRLOT, J., “Dicionário de Símbolos”, p. 213.
425
“...e eis que era um dragão vermelho, que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre suas cabeças sete
diademas.” BÍBLIA SAGRADA, Apocalypse de São João, 12, 3. Lisboa: Sociedade Bíblica Britannica e
Estrangeira, 1955, 923 p., p. 231 (Novo Testamento).
426
CIRLOT, J., “Dicionário de Símbolos”, p. 215.
142
manhoso, benfazejo, cruel, generoso, sábio e irritável. É possível que, por essas
características – principalmente as relativas à sabedoria e ao poder - tenha sido
associado muito cedo à casa imperial chinesa.
De acordo com a tradição, o imperador mítico Fu Hsi era dotado de uma cauda de
dragão; seu sucessor, Shen Nung, era filho de um dragão. Elementos “draconianos” eram
associados à vida do imperador (fig. 47 e 48):427 seu trono era o “Trono do Dragão”, seu
caminhar era a “Marcha do Dragão”, sua expressão, a “Face do Dragão” e suas palavras
– é claro -, as “Palavras do Dragão”.428
427
Imagem disp. In <http://www.chinapage.com/images/qianlong.jpg> (c. 06.07.2004). Para inf. sobre
Qianlong (1736 – 1795), ver SPENCE, J., “Em busca da China Moderna”, 1ª ed., São Paulo: Companhia das
Letras, 1996, 817 p., p. 104 a 128.
428
Inf. presente in <http://sorrel.humboldt.edu/~geog309i/ideas/dragons/chin.html> (c. 05.06.2004)
429
Idem.
430
BORGES, J.L. & GUERRERO, M., “O Livro dos Seres Imaginários”, 6ª edição, São Paulo: Editora
Globo, 1989, 214 p., p. 63.
143
dragão) envolver um uma representação do equilíbrio Yang-Yin (o conjunto Tai-Chi/Pa
Kua).
Há ainda que observar, nessa “conexão imperial”, a relação entre a presença do elemento
iconográfico e a nobreza da vestimenta. De modo geral, dragões eram associados às
vestes do próprio imperador ou, então, de seus representantes legais – burocratas,
oficiais militares e administrativos. A ilustração 48, por exemplo, mostra o dragão bordado
em uma túnica de seda pertencente a um mandarim da Dinastia Qing (do período Chia-
Ching, entre 1796 e 1820).431 A ilustração 47 é ainda mais incisiva: mostra o imperador
Qing Qianlong portando uma túnica com o motivo do dragão bordado na altura do peito.
Este é, sem dúvida, o menos compreendido dos ícones do Shaolin do Norte. O motivo é
simples: ele não apresenta figuras, mas exclusivamente ideogramas. Sua tradução, como
pudemos constatar, não é das mais simples, mesmo para conhecedores da escrita e da
431
Imagem in <http://www.chinapage.com/dragon1.html>. Outra túnica (séc. XIX) com o mesmo motivo in
<http://dept.kent.edu/museum/costume/bonc/2geographicsearch/China/china.html> (c.05.06.2004)
144
filosofia chinesa (o nome que adotamos para denominá-lo, um tanto quanto “gongórico”,
dá um indício dessa dificuldade). De acordo com o mestre acupunturista Pan Yi Bo,
responsável pela tradução,432 os ideogramas são arcaicos e estão dispostos de acordo
com uma configuração “clássica”, que implica em um sentido mais simbólico que o da
escrita comum. Apesar do hermetismo, as placas estão presentes em várias academias
do Sistema Sino-Brasileiro de Kung-Fu (fig. 49, 50 e 51).433 Em nossa pesquisa,
encontramos o elemento em três academias - de Chan Kowk Wai, Lee Chung Deh e
Rogério Leal Soares -, com diferenças mínimas entre si (de cor e tamanho).
Normalmente, porém, essas placas são pintadas em vermelho, cor presente em muitos
elementos chineses de natureza religiosa, como altares e ícones. Em seu estudo a
respeito da iconografia religiosa chinesa, Keith Stevens examinou atentamente as placas
e levantou uma série de informações importantes para a nossa pesquisa:
432
Tradução feita em fevereiro de 2004 e acompanhada pelo autor.
433
Foto 1 feita em junho de 2004. Fotos 2 e 3 feitas em junho de 2003. Acervo do autor. As placas 1 e 3 têm
fundo vermelho. A placa 2 tem fundo amarelo “envelhecido”. Em todas, os caracteres foram escritos em
preto.
145
Florianópolis e Curitiba), elas estavam relacionadas ao altar padrão, de forma direta (a
placa no centro do altar) ou indireta (ao lado).
A partir de uma leitura das partes que compõem a placa é possível verificar se há outros
pontos de contato entre esse elemento iconográfico e as informações de Keith
Stevens.Uma leitura geral da placa indica uma forte presença confucionista, com
destaque para a recordação de ancestrais importantes e de caráter divino.
O Confucionismo, doutrina filosófica (e, mais tarde, religiosa) fundada no século IV a.C.
por K´ung Tzu ou Confúcio (551 – 479 a.C.), prega a retidão moral e o respeito à
hierarquia e aos ritos. Suas premissas, de acordo com segundo Keith Stevens, são a
Piedade Filial (Hsiao), Reverência Fraternal (Ti), Lealdade (Hsin), Polidez, Propriedade
(Li), Honradez (I), Integridade (Lien) e Modéstia, Continência (Chieh).435 São valores que
permeiam o código de ética chinês, sendo aplicáveis, de modo especialmente apropriado,
às atividades de caráter marcial. A seguir, vamos interpretar cada um dos elementos da
placa, de acordo com a numeração determinada na fig. 52:
434
STEVENS, “Chinese Gods…”, p. 23. Trad. livre do inglês.
435
STENVENS, K., “Chinese Gods…”, p. 82.
146
Entendimento dos Termos:
(2) – Código Ético 1 - Nessa coluna (leitura de cima para baixo), segundo o
tradutor, está delineado o papel do verdadeiro mestre de uma arte marcial.
Literalmente, os ideogramas poderiam ser traduzidos por algo como “Ensinamento
de Cultura, Filosofia e Artes Marciais – para Servir o Mundo”. Novamente, a
147
presença é confucionista, ligada, aparentemente, aos valores fundamentais de
Reverência Fraternal (Ti), Propriedade (Li), Honradez (I) e Integridade.
(3) – Código Ético 2 – Nessa coluna (leitura de cima para baixo), segundo o
tradutor, está uma afirmação da qualidade da arte ensinada. Literalmente, os
ideogramas podem ser traduzidos por algo como “Conhecimento correto, forma,
maneira, técnica, princípios – arte marcial ministrada é original e correta.” Aqui, os
elementos se ligam, em um primeiro momento, à afirmação da qualidade do
mestre; a “tradução confucionista” se dá pela associação com os princípios de
Lealdade (Hsin) – para com os alunos, Propriedade (Li) – dos conhecimentos,
Honradez (I) – na afirmação chancelada, por escrito, dos conteúdos que o mestre domina,
e Integridade (Lien) – na correção e originalidade dos ensinamentos.
(4) – “Oferecer” - Aqui, mais uma vez, está presente um elemento confucionista.
“Oferecer”, sem dúvida, remete ao mandamento confucionista de “Servir o Mundo”.
(7) – “Zu Lai Tzu” – De todos os componentes da placa, este foi o de tradução
mais incerta. Em princípio, Zu Lai é um termo budista chinês oriundo da
transliteração do termo indiano Vairocana, “aquele que vem com o sol”. No
436
Inf. disp. no site chinês <http://www.chinavoc.com/kungfu/schools/cata_chj.asp> (c. 21.06.2004)
437
Para um estudo acadêmico da obra, ver
<http://clausius.engr.utk.edu/planetc/books/outlaws/text/history.html> (c. 21.06.2004)
148
Budismo Mahayana, Zu Lai (Vairocana) seria a contraparte cósmica de Sakyamuni.438 O
mais intrigante, em relação ao termo, é a terminação Tzu, que, em princípio, poderia ser
traduzida como “Venerável” ou “Sábio”. Não acreditamos que essa terminação possa ser
aplicada à divindade, uma vez que, normalmente, designa seres humanos. Além disso, há
que se considerar o contexto da placa: em um elemento iconográfico quase que
exclusivamente confucionista (à exceção dos elementos Ta Mo e Sao Lin, relacionados a
uma existência temporal), a presença de uma figura budista altamente esotérica parece
incongruente.
(8) – “Zhang Xian” – Genro de Yue Fei (14), se manteve leal a ele. Acabou preso,
executado e sepultado junto com o sogro e com o cunhado, Yue Yun.439
438
Ver <http://concise.britannica.com/ebc/article?eu=406998> (c. 21.06.2004)
439
Inf. disp. em <http://www.chinatravelclub.com/topsight/19.asp> (c. 21.06.2004)
440
Sobre a Dinastia Tang, ver cap. 2 desta dissertação.
441
Informações em <http://www.allempires.com/empires/song/song1.htm> (c. 21.06.2004)
442
À esquerda, tumbas; à direita, ícones em pedra representando os personagens. Imagens extraída de
<http://www1.china.org.cn/features/photos/zhejiang/zjcity.htm#>
149
(10) – “Genealogia Shaolin”443 – A finalidade do texto central da placa do
Shaolin do Norte é indicar a origem do estilo praticado. Tanto, que os dois
primeiros ideogramas (leitura de cima para baixo) são Sao e Lin – Shaolin. A
coluna ainda relaciona os nomes de Ta Mo (Bodhidharma)444 como fundador
da arte marcial e, também, o de Yue Fei/Yue Wei (14).
(11) – “Sao Lin” (Shaolin) – “Floresta Jovem”, nome do mosteiro construído por
volta de 495 na encosta do Monte Song (Songshan), em Henan.445
(12) – “Fundador” – Os dois ideogramas identificam Ta Mo (13) como fundador da
marcialidade em Shaolin.
(14) – “Yue Fei/Yue Wan” – Como observado no item 9, Yue Fei foi um general da
Dinastia Song. Ainda sobre este personagem, vale observar que ele foi alçado à
443
Por razão de editoração, dividimos a coluna em dois blocos. A leitura deve ser feita de cima para baixo,
começando pelo bloco da esquerda.
444
Sobre Ta Mo, ver cap. 2 desta dissertação.
445
Sobre Shaolin, ver cap. 2 desta dissertação.
446
Sobre a historicidade do “mito de Ta Mo”, ver o cap. 2.
150
condição de divindade pela religiosidade popular. Herói nacional, passou a ser
reverenciado como padroeiro dos exércitos e, no norte da China durante a primeira
metade do século XX, como “Deus da Guerra”. Em tempos recentes passou, também, a
ser a divindade tutelar de mercadores e lojistas (em Beijing, ainda hoje os lojistas
chacoalham seus ábacos pela manhã para homenagear Yue Fei).447
5.4.3 – O Altar
De acordo com Keith Stevens, os altares chineses podem ser divididos em dois tipos, de
acordo com sua finalidade religiosa: um possui caráter institucional (para divindades) e o
outro, doméstico (culto aos antepassados).448 Diante da configuração dos altares
encontrados em academias visitadas durante a pesquisa de campo,449 tendemos a
acreditar que eles cumpram, ao mesmo tempo, as duas finalidades, uma vez que tanto as
fotos dos antepassados marciais quanto a placa com ideogramas são posicionadas sobre
a mesma “mesa de oferendas”.
É para os altares das academias que professores e alunos se dirigem com a saudação
tradicional quando entram e saem das áreas de treinamento e, também, quando iniciam
447
STEVENS, K., “Chinese Gods…”, p. 128.
448
Ibid., p. 37 a 39.
449
São Paulo, Florianópolis e Curitiba (nesta cidade foram duas academias: a Sino-Brasileira de Kung-Fu e a
Senda, cujo professor não pertence ao universo de entrevistados). Ver fig. 49, 50 e 51.
450
Fig. 54 em STEVENS, K., “Chinese Gods...”, p. 37. Fig. 55, imagem do autor (jul. 2004). STEVENS
denomina “platform” (“plataforma”) o que chamamos de “mesa de oferendas”. A respeito da localização
geográfica dos altares, ver STEVENS, K., “Chinese Gods”, p. 34 e 35.
151
ou terminam as aulas.451 É neles, ainda, que os integrantes das academias (via de regra,
os mais antigos) colocam oferendas de incenso.
451
Sobre a saudação específica do Kung-Fu, ver item 4.3.3.1.
452
O melhor exemplo desse universo de oferendas está na Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de São
Paulo, onde, além do queimador de incenso, há arranjos florais e estatuetas de Buda. Ver. fig. 55.
152
fotos dos antepassados marciais. Em três academias visitadas,453 a imagem do mestre Ku
Yu Sheung estava colocada à direita do observador, enquanto a do mestre Yang Sheung
Mo aparecia à esquerda. Ainda que a uniformidade da disposição das fotos pareça indicar
uma tradição, não há uma explicação teórica para ela e nem para a sua origem, uma vez
que não se verifica no altar da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de São Paulo (nela,
a foto de Ku Yu Sheung aparece à direita da de Yang Sheung Mo). O altar de São Paulo é
marcado, também, por uma importante diferença em relação aos demais: ele traz fotos de
outros dois mestres (Fig. 57 e 58).454 Além dos relacionados diretamente ao Shaolin do
Norte, aparecem os mestres Yan You Chin (do estilo Hung Sing Choy Li Fut) e Yin Yan
Chui (estilo não identificado).
Em nossa avaliação, a
ausência dessas fotos nos
altares das outras
academias pesquisadas se
justifica por uma questão de
opção do mestre Chan Kowk
Wai: ainda que ele domine
vários estilos – 13, segundo
o libreto “Kung-Fu, versão
curta de uma história muito longa” –455 e ensine suas rotinas (normalmente, para alunos
avançados), optou pelo Shaolin do Norte como “estilo fundamental” (a melhor prova disso
é a presença dos caracteres - Shaolin do Norte - nas camisetas). Por conta disso,
as rotinas ligadas aos outros estilos – e, certamente, seus elementos tradicionais, como a
genealogia – acabaram situados em um segundo plano, principalmente para os alunos de
regiões distantes de São Paulo. A dificuldade de obtenção das fotos dos mestres faltantes
nos altares não serve como justificativa para a “ausência iconográfica”, uma vez que
várias fotos históricas relativas aos mestres Yang Sheung Mo e Ku Yu Sheung – obtidas
provavelmente de Chan Kowk Wai - estão disponíveis em academias e na internet.456
453
Sino-Brasileira de Kung-Fu de Florianópolis, Sino-Brasileira de Kung-Fu de Curitiba e Senda (Curitiba).
454
Fig. 57: foto do autor; fig 58 extraída de “Kung-Fu, versão curta...”, p. 17.
455
“Kung-Fu, versão curta...”, p. 20 e 21.
456
Como em http://www.shaolincuritiba.com.br/fotos.html (c. 15.07.2004).
153
5.4.3.1 – Um conjunto semântico de prevalência confucionista
Como observado na abertura deste capítulo, acreditamos que a junção fotos dos mestres
x “placa da ética e da ancestralidade” x “mesa de oferendas” x “parafernália”, vista nos
altares das academias pesquisadas, configura um conjunto semântico “fechado”, cujo
significado sintetiza uma parte importante do elemento religioso no Sistema Sino-
Brasileiro de Kung-Fu (a outra parte está no conjunto semântico representado pela
camiseta). A grande diferença entre esses dois conjuntos se refere ao que denominamos
de “elemento ancestral”: enquanto nas camisetas prevalecem elementos taoístas (e pré-
taoístas), nos altares a prevalência é de elementos confucionistas, que se referem à ética
e à devoção de antepassados marciais históricos e míticos. Nos dois casos, o Budismo
aparece ligado, fundamentalmente, ao nome do mosteiro de Shaolin (em alguns altares
aparecem, ainda, imagens budistas).
457
A respeito das tríades, ver cap. 2 desta dissertação.
154
e para a fusão religiosa verificada na China no século V. A observação dos elementos
iconográficos nos leva a crer que eles sejam produto da religiosidade popular chinesa,
transmitida pelo introdutor do Shaolin do Norte em terras brasileiras – Chan Kowk Wai -
para seus discípulos ocidentais. O uso das camisetas e a queima de incenso nos altares
apontam para três possibilidades:
155
6. “PARA CONHECER O FILHOTE DO TIGRE...” – APRESENTAÇÃO E LEITURA DOS
RESULTADOS DA PESQUISA DE CAMPO
De acordo com um velho ditado chinês, alguém só é capaz de chegar a um filhote de tigre
se adentrar à Montanha do Tigre.458 Em seu sentido tradicional, esse ditado é, ao mesmo
tempo, uma fonte de inspiração e um aviso para o buscador. No pain, no gain: se há
esforço, há resultado; se se deseja o resultado, deve-se encarar o esforço. Em nosso
contexto geral de pesquisa, o “filhote de tigre” é a resposta aos questionamentos
propostos com base nas hipóteses de trabalho e no quadro teórico. O “Tigre”, por sua
vez, é o conjunto de desafios enfrentados para alcançar essa resposta.
No contexto deste capítulo, porém, o ditado ganha contornos um pouco diferentes: ainda
estamos marchando pela montanha e, por conta disso, não podemos descuidar do tigre,
que é quem vai nos levar à preciosa cria. Até o momento, porém, através da análise de
fontes documentais, apenas o cercamos: encontramos os ossos de seus pais, recolhemos
as pistas deixadas na floresta, ouvimos histórias do povo e até captamos os urros da fera
na distância. A partir de agora vamos encontrá-lo de fato, olho no olho, e com ele
interagir. E quem é esse “pequeno-grande” Tigre? Neste caso - com a devida licença
poética –, são os entrevistados.
458
Citado pelo mestre Lee Chung Deh ao autor desta dissertação em uma conversa durante os anos 80 do séc.
XX.
156
e, também, para a produção de um diagnóstico do futuro do Kung-Fu do Shaolin do Norte
em relação a seus conteúdos não-corporais.
A maioria dos cientistas da religião (...) não dispõe de uma base técnica e dos recursos
financeiros necessários para realizar entrevistas representativas de fiéis. Eles são obrigados a
optar por um outro procedimento; isso não implica necessariamente, porém, em perda de
460
qualidade, uma vez que a profundidade compensa o reduzido universo de pesquisa.
459
Onde está instalada a academia de Chan Kowk Wai.
157
A questão da dispersão geográfica dos entrevistados foi levada em conta a fim de que
pudéssemos observar, mais claramente, a existência de um núcleo semântico comum. O
mestre introdutor dos conteúdos no Brasil vive e dá aulas na cidade de São Paulo (SP); o
mestre de segunda geração vive e dá aulas em Curitiba (PR); os professores (terceira
geração) vivem e dão aulas em Florianópolis (SC) e em Campo Grande (MS); seus
alunos (quarta geração) vivem e praticam Kung-Fu nessas cidades. As entrevistas foram
feitas, em sua maioria, nas próprias academias (São Paulo, Curitiba e Florianópolis); as
entrevistas com o professor e os alunos de Campo Grande foram realizadas na academia
Senda, em Curitiba, durante a realização de uma competição interestadual de arte marcial
chinesa.461 Foram entrevistados os seguintes integrantes do subuniverso cultural do
Kung-Fu do estilo Shaolin do Norte no Brasil:
Quadro 3 - Entrevistados
1ª Geração Chan Kowk Wai, 70, Cantão. Mestre de arte marcial chinesa.
Proprietário da Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu (SP).
Tempo de prática marcial: 66 anos.
Mestre
Entrevista: junho de 2004
Chinês 1
2ª Geração Lee Chung Deh, 52, Taiwan. Mestre de arte marcial chinesa.
462
Ministra aulas em clube de Curitiba (PR).
Tempo de prática marcial: 30 anos.
Mestre Detentor da denominação “Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de
Chinês 2 Curitiba”.
Entrevista: 16.08.2004.
460
GRESCHAT, H., “Was Ist Religionswissenschaft?”, Stuttgart, Berlin, Köln, Mainz: Kohlhammer, 1988, p.
66
461
A VII Copa Interestadual Senda de Kung-Fu, realizada nos dias 21 e 22 de junho de 2003.
158
4ª Geração Antônio Otolívio Henrique, 53, Florianópolis.
Grau de instrução: superior completo. Cirurgião dentista.
Aluno Tempo de prática marcial: 21 anos
Professor Entrevista: julho de 2003.
Brasileiro 1
462
À época da pesquisa, era proprietário de academia na mesma cidade. Atualmente, ministra aulas na
Sociedade Juventus, na mesma cidade
159
4ª Geração Robson Bambill, 38, Campo Grande (MS).
Grau de instrução: ensino médio completo. Comerciante, prof. de
Aluno Kung-Fu.
Professor Tempo de prática marcial: 18 anos.
Brasileiro 2 Entrevista: 21 de junho de 2003.
A fim de garantir a profundidade exigida por uma pesquisa com um número reduzido de
participantes, adotamos como ferramenta para obtenção de dados a entrevista, realizada
a partir de questionários previamente estabelecidos, construídos a partir de núcleos
temáticos.463 A preocupação com a adoção de modelos específicos de questionário foi
especialmente importante em relação a professores e alunos (terceira e quarta gerações),
que tiveram suas respostas analisadas a partir da observação das semelhanças e
diferenças. Ainda assim, nos casos em que julgamos necessário especificar mais as
perguntas ou aprofundar respostas, realizamos desvios nos questionários (voltando, em
seguida, ao modelo pré-estabelecido).
No caso dos mestres originários - pelo fato de serem os únicos entrevistados em suas
categorias - esse princípio foi afrouxado, com vistas, principalmente, à obtenção de
respostas que esclarecessem tanto o significado da iconografia quanto o valor dado à
transmissão dos conteúdos não-corporais do Kung-Fu. Partimos, fundamentalmente, de
uma relação prévia de temas não informados aos mestres (eles sabiam, porém, que
estavam sendo entrevistados para uma pesquisa de mestrado), que foram explorados sob
a forma de perguntas gravadas. Há que se observar nesse caso, ainda, o fator domínio do
idioma: especialmente na entrevista com Chan Kowk Wai – que chegou ao Brasil com a
160
idade de 26 anos – foi necessário colocar muitas das questões em um formato mais
“compreensível” visando o entendimento, pelo mestre, do que desejávamos saber. No
caso dos mestres originários buscamos, ainda, apresentar os elementos iconográficos de
nosso interesse sob a forma de pranchas que eles deveriam observar e explicar.
Como observado no item 6.3, a entrevista com Chan Kowk Wai não seguiu um
questionário formal. Isso se deveu, num primeiro momento, à inexistência de outros
mestres de primeira geração e, portanto, à não-necessidade de cotejamento dos dados.
Outro elemento que influiu para a adoção dessa tática foi o relativo à barreira de idioma. A
fim de obter as respostas, algumas vezes houve a necessidade de se refazer as
perguntas em termos mais simples. Não deixamos, porém, de pré-estabelecer grupos
temáticos. A seguir, apresentaremos esses grupos temáticos, seguidos das questões
propostas. Na seqüência faremos a apresentação do quadro de conclusões:
6.4.1.1 - Identificação:
1.1 - Nome:
1.2 - Idade:
1.3 - Nacionalidade:
1.4 - Escolaridade:
463
As perguntas foram apresentadas pelo pesquisador verbalmente e respondidas da mesma forma pelos
entrevistados. Todo o processo foi registrado em fitas cassete que, depois, foram integralmente transcritas.
464
A íntegra da entrevista com cada um dos participantes da pesquisa, assim como as análises das respostas,
estão disponíveis em <http://dissertakungfu.vila.bol.com.br> (site no ar desde 31.07.2004). A entrevista com
Chan Kowk Wai e a análise dos dados de pesquisa estão, respectivamente, em
<http://dissertakungfu.vilabol.uol.com.br/Chankowkwai.doc > e em
<http://dissertakungfu.vilabol.uol.com.br/conclui1.doc>.
161
1.5 - Profissão:
465
6.4.1.2 - Questões de aproximação:
2.1 - Mestre, o senhor acaba de retornar do Canadá. O senhor foi receber uma homenagem?
2.2 - Pelo que eu estou vendo, o diploma é da World Organization of Wushu and Kung-Fu Masters
Evaluation, em décimo grau. É o último grau?
162
5.5 - Então a gente pode dizer que o Kung-Fu do Shaolin do Norte tem elementos do Taoísmo, Budismo...
5.6 - A segunda figura que eu tenho aqui [em prancha] é o dragão das costas da camiseta. Esse dragão é um
dragão imperial?
5.7 - Aqui [apontando para o dragão da camiseta], o senhor colocou um Pa Kua. Em outras ilustrações, ao
invés do Pa Kua, aparece uma pérola. O que essa mudança significa?
466
5.8 - Eu estudei a placa que está nas academias [mostra prancha]. Eu fiz uma tradução e descobri que
existem alguns nomes de pessoas que estão aqui, aqui... Este, por exemplo, é Yue-Yuan...
5.9 - Esse, mestre, é Bodidharma?
5.10 - O monge Ta Mo teve alguma influência na criação do Kung-Fu de Shaolin?
5.11 - Esse aqui [indica ideogramas de “Shaolin do Norte”] é mais antigo do que esse [indica ideogramas de
“Yuan Fei”]. Esse [“Yuan Fei”] é da Dinastia Song?
5.11 - A gente tem, na sua academia, na do Rogério [Leal Soares] e do mestre Lee [Chung Deh], essa placa a
que eu me referi antes. Qual o significado dela? (complemento: “Mas qual é o sentido da placa? A gente tem
elementos confucionistas... qual é a finalidade da placa? É pra lembrar o aluno, pra lembrar o professor, como
é? Então a finalidade principal é de respeito, mesmo...”)
5.12 – E ela [a placa] fica sempre junto do altar?
5.13 - É uma placa muito antiga? O senhor a trouxe da China?
5.14 – Seu mestre já possuía uma placa como essa?
5.15 - Eu tive fazendo uma pesquisa sobre o mosteiro de Shaolin e eu achei essa figura [aponta para placa do
Jinnaluo]. O senhor lembra de ter visto essa figura na China?
467
5.16 - Todas as academias de Kung-Fu tem um “santo”, qielan shen, como Kuankung ... esse [Jinnaluo]
seria o espírito protetor de Shaolin, mestre?
5.17 - Mestre, a gente tem, junto das fotos dos mestres e das placas, um altar. A gente sempre queima o
incenso, né. Esse incenso, é aceso para homenagear os antepassados, isso?
5.18 - Essa é a finalidade do altar, também?
5.19 - Isso seria uma coisa do Budismo, das religiões da China mesmo?
465
Ao iniciar a entrevista, percebemos que o mestre tinha muito interesse em falar sobre uma homenagem
que, dias antes, havia recebido no Canadá. Assim, para facilitar a aproximação com o entrevistado, seguimos
inicialmente essa linha.
466
“Placa da Ética e da Ancestralidade”. Ver item 5.4.2.
467
A respeito de Jinnaluo e Kuan Kung na tradição de Shaolin, ver item 2.2.3.6.
163
Núcleo Temático Conclusão
6.4.1.1 – Identificação - Chan Kowk Wai (ver quadro 3). Denominação: CKW.
6.4.1.2 - Questões de aproximação a) – o mestre deu início à entrevista falando a respeito de uma
homenagem recém-recebida no Canadá, de onde havia chegado
há alguns dias;
b) – o início da conversa a partir de um tema definido por CKW
teve como resultados uma aproximação “mais positiva” em relação
ao entrevistado e maior descontração para a entrevista
6.4.1.3 - Chegada ao Brasil e início da c) – O mestre confirmou sua chegada ao Brasil em 1960.
transmissão de conteúdos marciais d) – Aparentemente, a ligação entre a prática marcial de CKW e o
elemento étnico se deu pela questão do domínio do idioma. Ele
não ensinava para brasileiros porque não sabia falar português.
No período de 10 anos em que só ensinou para chineses, as aulas
foram ministradas em sua casa e no Centro Social Chinês (no
bairro da Liberdade, em São Paulo);
164
h) – O mestre reconheceu Lee Chung Deh, nosso entrevistado de
segunda geração, como um de seus primeiros alunos e como um
de seus primeiros professores graduados.
6.4.1.5 - Iconografia e elementos i) – CKW se mostrou crente de que a origem de seu estilo de
histórico-religiosos do Kung-Fu de Kung-Fu é o mosteiro de Shaolin. Essa é a principal informação de
Shaolin caráter tradicional transmitida por professores e alunos no país (o
mosteiro dá nome ao estilo);
j) – O mestre informou ter construído dois dos principais
elementos iconográficos do Shaolin do Norte – o emblema da
frente da camiseta e o dragão nas costas da mesma – a partir de
dados de sua religiosidade pessoal. Essa construção desperta
para um fato normalmente negado pelos ocidentais: que as
“milenares” tradições orientais também estão sujeitas a uma
dinâmica de transformações/recombinações que lhes dá um
caráter modernizante;
165
6.4.1.7 - Presença das religiões p) – Apesar de reconhecer uma ligação entre Jinnaluo e o
orientais no Kung-Fu do Shaolin do mosteiro de Shaolin, o entrevistado disse desconhecer detalhes a
Norte respeito de tal divindade. Se tomarmos a relação entre o estilo
Shaolin e o mosteiro, isso parece indicar um esvaziamento do
culto a Jinnaluo dentro da tradição marcial no século XX;
q) – Sobre o papel das religiões na arte marcial por ele ensinada,
CKW observou que elas aparecem principalmente no respeito que
os alunos devem ter aos professores e, principalmente, aos
mestres falecidos. O entrevistado também observou a prevalência
do Budismo nos chamados “estilos externos” (como Shaolin) e do
Taoísmo nos “estilos internos” (como o Tai-Chi-Chuan);
Assim como na entrevista anterior, a realizada com o mestre Lee Chung Deh não seguiu
um questionário formal. Foi a última entrevista a ser realizada, e isso se justifica por
alguns elementos: inicialmente, pelo fato de o mestre representar a “verdadeira ponte”
entre gerações muito distintas: a do mestre chinês de primeira geração e a dos
professores e alunos brasileiros. Foi, de fato, um entrevistado fundamental, posto que nos
permitiu vislumbrar uma série de elementos que vão auxiliar imensamente na confirmação
ou refutação das nossas hipóteses de trabalho. A seguir, apresentaremos as perguntas,
seguidas das questões propostas. Na seqüência faremos a apresentação do quadro de
conclusões:
6.4.2.1 – Identificação:
1.1 - Nome:
1.2 - Idade:
1.3 - Nacionalidade:
1.4 - Escolaridade:
1.5 - Profissão:
6.4.2.2 – Histórico pessoal na arte marcial
166
2.1 - Mestre, em Taiwan o senhor já treinava Kung-Fu?
2.2 - O senhor conheceu o mestre Chan [Kowk Wai] com que idade?
2.3 - Mestre, o senhor se formou depois de quanto tempo de prática?
2.4 - E o senhor deixou São Paulo nesse mesmo ano, o senhor foi para Porto Alegre... como foi?
2.5 - O senhor foi para Porto Alegre por determinação do mestre Chan, o senhor achou que deveria ir... como
foi isso?
167
5.2 - Mestre, essa foi a tradução que eu obtive conversando com o mestre Chan e com um tradutor, né. Essa
placa, me parece, tem uma característica fundamentalmente confucionista. Esse título aqui [no alto], me
parece que ele era atribuído a Confúcio. É isso mesmo?
5.3 - Quer dizer, dentro dessa fusão religiosa, que é aquela que a gente vê que começa no século V, mais ou
menos, né...
5.4 - Mestre, e dentro do Kung-Fu, como é que o senhor vê? A gente observa que as artes marciais japoneses
vêem a prática como caminho para a transcendência. Existe uma coisa muito forte nesse sentido. Pela minha
pesquisa, eu pude perceber que a arte marcial chinesa é mais instrumental, inclusive ela inclui práticas
mágicas, pro indivíduo se fortalecer, pra ele socar mais forte, pra ele sofrer menos o impacto. Qual o papel da
religiosidade dentro do Kung-Fu? É meramente ético, ou o Kung-Fu pode ser um caminho de vida. Porque a
gente não vê, nas academias, meditação? No mestre Chan não tem meditação. Como é que é isso? Qual o
papel da religião dentro do Kung-Fu?
5.5 - Mestre, eu tenho aqui essas ilustrações referentes à camiseta. Que informação o senhor recebeu do
mestre Chan sobre esse simbolismo?
5.6 - Mestre, então a gente pode dizer... eu notei nos entrevistados, inclusive, que os alunos não tem
consciência do significado, eles não sabem o que quer dizer o Lho-Hã, coisas dessa natureza. Os alunos,
então, estão nesse estágio de que o conhecimento é informado, mas que eles não vêem porque são muito
jovens, muito inocentes ainda?
5.7 - Então tem esse contexto de o aluno não estar preparado para entender, ou para acompanhar, posto que
ele veio de uma religião católica, cristã, de um mundo muito diferente, é isso?
5.8 - Passando um pouquinho para outro elemento da iconografia. Eu tive pesquisando e descobri essa figura
aqui [Jinnaluo] como divindade tutelar de Shaolin. Uma coisa como Qielan Shen, divindade tutelar. O senhor
tem alguma informação sobre isso?
5.9 - O senhor saberia traduzir pra mim?
5.10 - Mestre, conversando com o mestre Chan, quando eu mostrei essa figura [Jinnaluo], ele até deu risada,
porque ele disse que conhecia de Shaolin, né, mas que ele nunca deu continuidade. Ele disse “conheço, mas
‘não pegou’”. A gente tem na sua academia a figura do Kuankun. Por que o Jinnaluo não foi transmitido dentro
do Shaolin do Norte, já que é uma divindade tutelar que existe só em Shaolin?
5.11 - Mudando um pouco de assunto, mas dentro ainda da iconografia. Qual é a finalidade do altar?
5.12 - Então esse altar seria um altar de culto aos antepassados, é isso?
5.13 - A dificuldade de leitura dos ideogramas, na sua opinião, dificulta o acesso dos alunos às informações?
168
Núcleo Temático Conclusões
6.4.2.1 – Identificação - Lee Chung Deh (vide Quadro 3). Denominação: LCD.
6.4.2.2 – Histórico pessoal na arte a) – O mestre possui uma profunda relação com a arte marcial
marcial chinesa. Pratica desde adolescente, tendo sido um dos primeiros
alunos do mestre Chan Kowk Wai.
169
i) – O entrevistado observou que um dos fatores que “frearam” a
transmissão de conteúdos tradicionais religiosos foi a dificuldade
de expressão em português, pelo mestre CKW, de certos
conceitos religiosos.
j) – Para LCD, um dos ensinamentos essenciais de seu mestre foi
o de facultar aos alunos a opção por aprender mais sobre a
religiosidade envolvida com o estilo Shaolin do Norte.
k) – O entrevistado desvalorizou uma “compreensão formal” da
religiosidade chinesa, observando que o mais importante é
“vivenciar a religião”, mesmo porque é difícil, na cultura chinesa,
separar Budismo, Confucionismo e Taoísmo. Segundo ele, na
China os “velhos mestres” dominavam várias artes, e isso era
decorrente de uma visão ético-religiosa avançada.
l) – Segundo LCD, não se pode afirmar que os alunos brasileiros
sejam “imaturos” em relação aos conteúdos de caráter religioso. O
que define seu interesse é a preferência natural por aspectos mais
“agressivos” ou “filosóficos” da arte marcial.
m) – Sobre a oferta de conteúdos religiosos pelos mestres, LCD
observou que, por critérios até econômicos, ela depende da
demanda (“vende o peixe de acordo com o gosto do comprador”).
Ele criticou um movimento por ele verificado em outras artes
marciais, que investem na violência gratuita e se esquecem dos
elementos mentais que “temperam” a existência.
n) – LCD se diz satisfeito com o grau de compreensão a respeito
do “espírito do Kung-Fu” por cinco de seus alunos graduados,
entre os quais está RLS.
6.4.2.5 – Análise da iconografia o) – Confrontado com a placa “da ética e da ancestralidade”, LCD
encontrada nas academias de Shaolin revelou um dado histórico inédito, de que ela seria uma “placa
do Norte amenizada”, menos agressiva em relação a uma anterior. Esse
dado, expresso com muita certeza, não havia sido relacionado por
CKW e é interessante para se compreender a evolução da
iconografia no ambiente marcial chinês mais antigo.
p) – LCD confirmou praticamente todos os dados da placa e da
camiseta obtidos na pesquisa de caráter teórico-bibliográfico.
Voltou a lembrar, porém, que ela não deve ser lida em
compartimentos estanques, mas segundo o aspecto da fusão
religiosa verificada na China.
170
q) – A respeito da inexistência de uma definição mais precisa da
religiosidade dentro das academias, LCD voltou a observar que
ela depende do interesse do aluno. Assim, a visão da arte como
“caminho da transcendência” dependeria não do mestre, mas do
praticante. LCD acredita que o aluno não deve esquecer de sua
própria religiosidade, sob pensa, inclusive, de se converte em
mero “puxa saco”, em um macaqueador das atitudes do mestre.
r) – Confrontado com a figura de Jinnaluo, LCD deu uma resposta
interessante, observando que, como outras figuras do panteão
budista, podem ter sido, de fato, encontradas em Shaolin.
Segundo ele, não só Jinnaluo, mas outras figuras (como Lohan)
fizeram parte da tradição de Shaolin e, mesmo, da tradição
marcial. Confessou, porém, não possuir outras informações a
respeito – segundo ele, essa é uma busca pessoal iniciada
recentemente.
s) – LCD confirmou o papel do altar como referente ao culto aos
antepassados. Esse altar serviria tanto para reverenciar os
espíritos divinizados dos mortos quanto para lembrar de sua
existência. No caso do Shaolin do Norte, seria ainda uma
lembrança voltada à valorização da arte pelos atuais praticantes –
a arte, segundo LCD, só chegou até o presente graças ao esforço
muitas vezes sobre-humano dos antigos mestres.
t) – O entrevistado não acredita que a “barreira de ideogramas”
seja o principal elemento de impedimento para que os praticantes
cheguem a um conhecimento mais profundo de sua arte. A
dificuldade está, sim, em encontrar fontes confiáveis de
interpretação.
5.4.2.6 – O fator étnico nas academias u) – Sobre a ausência de praticantes chineses, LCD disse ter
e o perfil do praticante brasileiro “uma certa vergonha” de tal situação, já que o Kung-Fu é uma arte
chinesa. Apesar disso, diz compreender, principalmente porque a
maioria dos chineses se dedicou a atividades mais “pragmáticas”,
como o comércio, que não abrem possibilidade de vislumbrar
práticas menos importantes para a sobrevivência. Ele lamentou,
porém, o fato de os chineses não enxergarem que a prática
marcial pode representar um acréscimo de qualidade de vida,
principalmente em relação à velhice.
171
v) – Questionado sobre a diferença entre os praticantes chineses
e os brasileiros, LCD se afastou de uma “preferência étnica”. São,
segundo ele, todos iguais. De acordo com LCD não existe
diferença, e que atletas brasileiros podem compreender o espírito
marcial do Kung-Fu de modo mais prefeito do que muitos
praticantes chineses. Tudo vai depender da atitude mental do
praticante, esteja em que porção do mundo estiver,
6.4.3.1 - Identificação
1.1 - Nome:
1.2 - Idade:
1.3 - Nacionalidade:
1.4 - Escolaridade:
1.5 - Profissão:
468
Entrevistas disp. em <http://dissertakungfu.vilabol.uol.com.br/Rogerio_Leal.doc> e em
<http://dissertakungfu.vilabol.uol.com.br/Dirceu_Coelho.doc>.
172
3.5 - Especificamente sobre as religiões relacionadas ao Kung-Fu, você recebeu alguma informação
específica de seu mestre? O que ele ensinou?
6.4.3.5 - A visão do professor acerca da importância dos elementos religiosos dentro do subuniverso
do Kung-Fu
5.1 - Você percebe, entre os seus alunos, interesse pela cultura chinesa? Quais são os assuntos que mais
interessam? Por quê?
5.2 - Segundo a tradição, o Kung-Fu possui uma relação bastante próxima com as religiões chinesas,
principalmente o Budismo chinês e o Taoísmo. Você saberia localizar, na sua academia e nas aulas de que
você participa, elementos da religiosidade chinesa? (nome do estilo ou de técnicas, queima de incenso,
imagens, cumprimentos, conceitos relacionados a energia, oração e meditação)? (pedir ao entrevistado que
descreva e/ou aponte os elementos por ele indicados)
5.3 - O que mais chama a sua atenção dentre esses elementos que você me apontou? O que, na sua
opinião, é o mais importante dentro da religiosidade ligada ao Kung-Fu?
5.4 - Quando você tem dúvida sobre algum destes elementos – meditação ou queima de incenso, por
exemplo – a que fontes você procura recorrer?
5.5 - Na sua prática de academia, o senhor investe no ensinamento de práticas religiosas relacionadas ao
Kung-Fu? O senhor poderia localizar estas práticas?
5.6 - Na sua avaliação, qual a importância dos elementos religiosos para a formação de um praticante de
Kung-Fu?
5.7 - Como o senhor avalia o interesse, por parte dos alunos, em relação aos aspectos religiosos envolvidos
na prática do Kung-Fu?
173
6.6 - Existe algum tipo de conflito entre a sua prática religiosa e os elementos religiosos presentes no Kung-
Fu? Fale a respeito:
6. 7 - Na sua opinião, o Kung-Fu poderia ter alguma importância na sua escolha religiosa? Você se
converteria ao Budismo, por exemplo, em função do que você aprendeu com o Kung-Fu?
6.4.3.3 - O papel do mestre originário na c) – Os entrevistados identificam Lee Chung Deh como seu
transmissão dos conteúdos tradicionais verdadeiro mestre, não manifestando o mesmo grau de
do Kung-Fu e da cultura chinesa deferência para com Chan Kowk Wai, visto mais como uma
“pessoa importante”. Nesse contexto, a definição de “mestre”
proposta pela CBKF possui pouca importância. Isso,
provavelmente, se deve à maior proximidade de Lee Chung Deh,
tanto em termos geográficos quanto pessoais (o mestre chegou
ao Brasil muito jovem, o que parece ter influenciado para o
estabelecimento de um contato mais fácil com os brasileiros não-
descendentes de chineses).
174
e) – Os entrevistados afirmaram que Lee Chung Deh procurou
aproximá-los de outros aspectos da cultura chinesa, como
culinária e técnicas de massagem. A aproximação, porém,
parece ter sido de caráter pessoal, desprovida de sistematização
ou de contato com a arte marcial praticada.
6.4.3.4 - O papel das fontes secundárias g) – As fontes secundárias ocupam um papel importante dentro
na formação do entrevistado da formação do universo semântico dos entrevistados, tanto
complementarmente quanto em caráter de revisão/confirmação
dos conhecimentos pessoais.
469
Vale observar, aqui, um diferencial em relação a Rogério Leal Soares, que produziu uma apostila para seus
alunos. Este documento mescla conteúdos da tradição oral com informações “de fora”. Há restrições, porém,
em relação ao grau de comprovação científica das informações.
175
6.4.3.5 - A visão do professor acerca da k) – A enumeração dos elementos de natureza religiosa na
importância dos elementos religiosos prática marcial pelos professores foi variável. O total de
dentro do subuniverso do Kung-Fu elementos apontados não chegou aos limites propostos no cap.
5. Um dos entrevistados não indicou nenhum elemento, mas se
referiu a um aluno praticante do Budismo. As explicações, por
sua vez, indicaram superficialidade em relação ao tema, o que
revela a importância relativa dada a esses aspectos pelos
professores e o baixo grau de institucionalização das
manifestações de natureza religiosa. Ainda assim, eles
manifestaram respeito pela iconografia e pelos rituais de queima
de incenso e de atenção aos mestres falecidos. Aparentemente,
o que se constata é uma ressignificação dos elementos, que se
esvaziaram do sentido religioso e ganharam uma dimensão
“subuniversal”, relacionada à passagem da realidade-padrão
para o subuniverso da prática marcial.
470
Para a explicação do nome atribuído à placa, ver capítulo 5.
176
6.4.3.6 - A relação entre os aspectos p) – Elementos da religiosidade oriental (ou assim entendidos
religiosos presentes no subuniverso do pelos entrevistados) aparecem de forma difusa na vivência
Kung-Fu e a religiosidade do professor religiosa dos professores. A resposta ao questionamento básico
deste núcleo teve respostas de caráter profundamente subjetivo.
Foram identificados com valores orientais: a vivência de um
“ritmo da natureza”, a tranqüilidade e a temperança.
177
6.4.4 – Entrevistados de quarta geração – alunos brasileiros
Antes de apresentar o questionário aplicado aos alunos brasileiros, cabe informar que a
seleção dos entrevistados ficou a critério dos professores. Solicitamos apenas que estes
indicassem os alunos que julgassem os mais adequados para responder às questões. Ao
seguir por esse caminho, buscamos estabelecer uma cadeia mais significativa de relação
entre os entrevistados de terceira e quarta gerações. Os alunos escolhidos, sem dúvida,
são vistos pelos professores como prováveis continuadores da tradição e da transmissão
de conteúdos do Shaolin do Norte. A seguir, apresentamos o questionário aplicado aos
alunos (observar a divisão em blocos temáticos):471
6.4.4.1. Identificação
1.1 - Nome:
1.2 - Idade:
1.3 - Nacionalidade:
1.4 - Escolaridade:
1.5 - Profissão:
1.6 - Tempo de prática de Kung-Fu com o atual professor:
178
3.3 - Durante a sua formação, que informações históricas você recebeu a respeito do Kung-Fu e do seu
estilo? Conte a história do seu estilo de acordo com o que você aprendeu com o seu mestre:
3.4 - Seu mestre costuma ensinar outras coisas para os alunos além do Kung-Fu? Pergunto em relação a
outros aspectos da cultura chinesa além da parte técnica...
3.5 - Especificamente sobre as religiões relacionadas ao Kung-Fu, você recebeu alguma informação
específica de seu mestre? O que ele ensinou?
6.4.4.5 - A visão do praticante sobre a importância dos elementos religiosos dentro do subuniverso do
Kung-Fu brasileiro
5.1 - Segundo a tradição, o Kung-Fu possui uma relação bastante próxima com as religiões chinesas,
principalmente o Budismo chinês e o Taoísmo. Você saberia localizar, na sua academia e nas aulas de que
você participa, elementos da religiosidade chinesa? (nome do estilo ou de técnicas, queima de incenso,
imagens, cumprimentos, conceitos relacionados a energia, oração e meditação)? (pedir ao entrevistado que
descreva e/ou aponte os elementos por ele indicados)
5.2 - O que mais chama a sua atenção dentre esses elementos que você me apontou? O que, na sua opinião,
é o mais importante dentro da religiosidade ligada ao Kung-Fu?
5.3 - Quando você tem dúvida sobre algum destes elementos – meditação ou queima de incenso, por
exemplo – você costuma perguntar para o seu mestre ou professor? Como ele responde?
5.4 - Você levou alguma das práticas religiosas da academia para a sua vida cotidiana?
471
Entrevistas disp. em <http://dissertakungfu.vilabol.uol.com.br >
179
6.3 - Você já falou sobre Kung-Fu no ambiente religioso que você freqüenta? Que tipo de resposta você
obteve das pessoas ou do seu líder religioso? O que eles pensam sobre o Kung-Fu? E o que você pensa
disso?
6.4 - Existe algum tipo de conflito entre a sua prática religiosa e os elementos religiosos presentes no Kung-
Fu? Fale a respeito:
6.5 - Na sua opinião, o Kung-Fu poderia ter alguma importância na sua escolha religiosa? Você se converteria
ao Budismo, por exemplo, em função do que você aprendeu com o Kung-Fu?
6.4.4.1. Identificação a) - As idades dos entrevistados variaram entre 21 e 52 anos. Metade dos
entrevistados está na faixa entre 35 e 40 anos, o que condiz com a hipótese
da influência da indústria cultural para a escolha da arte marcial (os três
eram crianças ou adolescentes quando do boom marcial chinês na mídia
brasileira, no início dos anos 70).
472
b) - Os seis entrevistados são alunos “antigos”: o tempo de prática varia
entre três e 20 anos. Esse dado revela o grau de envolvimento com o
subuniverso do Kung-Fu do Shaolin do Norte.
c) - Quatro entrevistados apresentam nível de escolaridade superior ao de
seus professores (terceiro grau); dois possuem o mesmo nível de
escolaridade. (*) – o critério de escolha dos professores pode ter pesado no
perfil dos entrevistados. Além de indicar alunos antigos, certamente eles
levaram em conta características positivas dos escolhidos
6.4.4.2 - Grau de inserção do d) - Dos seis entrevistados, dois disseram ter praticado outras artes
praticante no subuniverso do marciais, que foram abandonadas pela dedicação exclusiva ao Kung-Fu. Os
Kung-Fu brasileiro outros quatro informaram ter se iniciado na arte marcial no Shaolin do Norte.
Essa opção é reveladora, de per se, do grau de inserção do subuniverso do
Kung-Fu.
472
Tomamos por referência o tempo mínimo de prática de dois anos, por nós estabelecido com base em observações de
caráter empírico: o aluno que ultrapassa esse tempo costuma se ligar mais intensamente à prática marcial.
180
f) - Os entrevistados dedicam um tempo significativo à prática do Kung-Fu: o
tempo-mínimo semanal relatado foi de quatro horas, e o máximo, de 18
horas. O grau de inserção também pode ser medido pela participação em
competições: dos seis entrevistados, cinco participam ou participaram de
competições, e um é arbitro formado pela Confederação Brasileira de Kung-
Fu (com participações em várias competições).
6.4.4.3 - O papel do mestre na h) - Os seis entrevistados identificaram como “mestre” seus professores
transmissão dos conteúdos mais próximos (RLS e DC). Lee Chung Deh (LCD) também aparece, nesse
“tradicionais” do Kung-Fu e contexto, como “mestre” - uma pessoa extremamente respeitada, apesar de
da cultura chinesa muitas vezes distante do ponto de vista geográfico (ele vive em Curitiba,
longe dos centros onde realizamos as entrevistas). LCD encarna o
“arquétipo do mestre chinês” e, por estar no Brasil desde muito cedo
(chegou aos 14 anos), estabeleceu uma importante ponte de ligação entre
as culturas chinesa e brasileira.
i) - O “mestre” (RLS e DC) é admirado por possuir características tais como
dedicação, calma, paciência e conhecimento marcial. Observa-se, nas
respostas, uma percepção do mestre brasileiro, também, como pessoa, e
não apenas como um “ícone marcial infalível” (o que não acontece em
relação a LCD, encarado com uma “deferência extra”).
181
l) - O papel do “mestre” na transmissão de conteúdos chineses extra-
marciais foi relativizado. O professor não repassa informações de maneira
institucional (tais conteúdos não são programáticos); as demandas surgem
dos alunos.
m) - A respeito da transmissão de conteúdos referentes às religiões
chinesas, as respostas dos entrevistados denotaram uma profunda ausência
de dados. As informações transmitidas são muito raras, essencialmente
empíricas e de caráter fragmentário (ver item 5).
6.4.4.4 - O papel das fontes n) - As principais fontes de consulta dos entrevistados são a internet, livros e
secundárias na formação do revistas. Elas ocupam um caráter complementar em relação à tradição oral.,
imaginário no subuniverso do prestando-se a cobrir as suas lacunas Os entrevistados expressaram
Kung-Fu no Brasil dificuldade em apontar com clareza como fazem para separar as
informações das fontes de acordo com o critério da confiabilidade. Isso não
os impede, porém de ira às fontes e de, certamente, incorporar (em maior ou
menor grau) seus conteúdos.
o) - Os entrevistados admitiram ter dificuldade em reconhecer fontes
confiáveis, o que não os impede de fazer consultas e aceitar os dados,
principalmente em função de seus gostos pessoais e da repetição de
informações em várias fontes.
182
s) - No caso da academia onde os elementos iconográficos se fazem
presentes, foram apontados como religiosos a queima de incenso, o altar e
as fotos dos mestres (referências fragmentárias ao culto aos antepassados).
Não houve referências aos elementos da camiseta e, nem, à placa “da ética
e da ancestralidade”.
t) - Na academia onde os elementos não estão presentes foi dado grande
valor ao cumprimento tradicional, visto, porém, como de natureza ética e não
religiosa. Os alunos dessa academia também não se referiram aos símbolos
da camiseta.
u) - Não houve referências à prática do Chi Kung como de caráter mágico ou
religioso; no entanto, a prática da meditação – não sistematizada na
Academia Sino-Brasileira de Kung-Fu de São Paulo – foi citada por alguns
dos entrevistados.
6.4.4.6 - A relação entre os w) - Dois seis entrevistados, quatro se disseram católicos não-praticantes,
aspectos religiosos presentes um informou ser budista praticante (seguidor do Budismo Nitiren-neichonin,
na academia, a religiosidade e do Movimento Sokka Gakai) e um disse não seguir religião alguma, apesar
a vida do praticante de Kung- de possuir uma forte ligação com as premissas filosóficas e práticas de
Fu; a interação do praticante caráter empírico do Movimento da Projeciologia Consienciologia.
com a realidade-padrão
x) - Dos seis entrevistados, quatro disseram que não se converteriam a uma
religião por conta do Kung-Fu. Um deles admitiu a possibilidade, desde que
não precisasse abrir mão do Catolicismo. Outro informou que até poderia,
mas que, por já ser budista, tal hipótese não teria como se configurar.
Acreditamos que, aqui, se mostre um elemento decorrente da relação arte
marcial x componente étnico. Se ela se desenvolvesse em um ambiente
fortemente étnico – o que ocorre artes marciais japonesas ultra-ortodoxas,
como o Kendo (esgrima japonesa) -, certamente levaria os praticantes a
uma atitude mais “aguda” em relação à religiosidade do subuniverso marcial.
y) - Os entrevistados foram unânimes, porém, em afirmar que incorporam,
ao seu universo religioso, elementos da religiosidade do Kung-Fu. Não há,
porém, uma imagem muito nítida desse constructo, que é relacionado,
principalmente, a elementos não necessariamente religiosos, como a
tranqüilização mental, a ética e fraternidade.
183
6.5 - Interpretação das informações do capítulo
184
7. SÍNTESE DOS RESULTADOS DA PESQUISA
Como foi possível observar, ao final de cada capítulo da pesquisa incluímos um subitem
denominado Interpretação das Informações do Capítulo. Mais do que funcionar como
uma “conclusão pontual”, esse subitem teve por finalidade construir a base de dados
depurada, objetiva, que será aplicada nosso construto teórico. A partir da leitura de cada
um dos subitens finais dos capítulos é possível estabelecer as sínteses necessárias à
produção dos dados que serão tomados em conta quando da produção, à luz do
constructo teórico, das respostas às indagações feitas na introdução desta dissertação.
Para facilitar o processo de produção das sínteses teórica e empírica, optamos por dividir
as conclusões pontuais (referentes a cada capítulo) em tabelas. Ao todo, os capítulos de
caráter teórico-bibliográfico redundaram em um total de 25 conclusões; o de caráter
empírico, em 20 conclusões. A fim de dinamizar o trabalho e evitar o desestímulo dos
leitores – afinal, a “frieza” das tabelas pode afugentar, dentre eles, até mesmo os mais
estóicos -, achamos mais apropriado apresentar as sínteses teórica e empírica na forma
de textos descritivos.473
473
As tabelas com as conclusões pontuais – capítulo a capítulo – podem ser encontradas em
<http://dissertakungfu.vila.bol.com.br>
474
Não se pode esquecer, porém, que a lida com a guerra envolve um componente religioso fundamental: a
morte. De modo que, ao nos referirmos ao ingresso mais recente de elementos religiosos, estamos nos
referindo a um ingresso institucionalizado.
475
Sobre a relação entre comportamento humano e guerra, ver COSTA, G. (org), “Guerra e Morte”, 1ª ed.,
Rio de Janeiro: Imago, 1998, 217 p.
185
do século XVI, na China as artes marciais jamais tiveram o perfil de “caminho para a
transcendência”. Essa constatação é chave para se entender a relação entre os mestres
chineses e os elementos religiosos na arte marcial, assim como a forma como tais
conteúdos foram transmitidos aos praticantes brasileiros.
476
Não se pode esquecer, porém, da possibilidade de ligação do estilo com o mosteiro por conta dos mitos de
criação das tríades.
477
A partir dessa parte do texto, será possível observar o uso generalizado tanto de “Kung-Fu” quanto de
“Shaolin do Norte”. Entendemos que as conclusões válidas para o estilo analisado valem, também, para o
conjunto da marcialidade. Assim, não há conflito entre os termos.
478
A não ser na recentemente, depois da “onda Kung-Fu” no Ocidente.
186
marcial. Esse desinteresse pode ter sido motivado por uma necessidade premente de se
estabelecer economicamente ou pela visão da arte marcial como algo desnecessário para
a identidade cultural. A constatação do afastamento étnico permite entender porque a
arte marcial chinesa foi tão bem assimilada pelos brasileiros: ela não exigia mais do
que a vontade de praticar e o respeito a regras institucionais facilmente
assimiláveis.479
479
Outras artes marciais também foram bem assimiladas. O caso do Kung-Fu, porém, é sui generis, posto que
chegou há pouco tempo e foi assumido por professores sem qualquer vínculo direto com a colônia chinesa.
480
Um mestre chinês transmite conteúdos não-corporais a um aluno brasileiro; este apela para outras fontes,
de onde extrai dados que vão suprir as lacunas deixadas pelos “ruídos de comunicação”; formado professor,
funde as informações e as repassa como “tradicionais”. Seus alunos repetem o processo: em poucas gerações,
o conjunto de informações terá mudado substancialmente.
481
Conceitos de Berger e Luckmann.
187
tomar como principal referência o Budismo, pode-se constatar a presença de elementos
do Taoísmo e do Confucionismo. O predomínio é de caracteres pré-taoístas e taoístas,
seguidos por caracteres confucionistas e, então, por caracteres budistas. Todos
possuem grande significado religioso, calcado, principalmente, na religiosidade
popular chinesa (em especial no culto aos antepassados). Esse significado não se
desvela de per se, permanecendo oculto por barreiras de compreensão simbólica e
de domínio da escrita chinesa. Esse ocultamento produz especulações,
ressignificações e, principalmente, a desvalorização de tais conteúdos.
- O desinteresse dos praticantes brasileiros não guarda relação com qualquer tipo
de conflito envolvendo seus valores religiosos pessoais e os valores presentes na
arte marcial. Diz respeito, sim, à relação que eles estabelecem com a religiosidade em
geral: dos oito brasileiros entrevistados, cinco se disseram católicos não-praticantes, um
se disse avesso a qualquer “religião dogmática”, um se disse crente em uma espécie de
“supra-religião” de caráter pessoal (e características universalistas) e um informou ser
482
No caso do mestre chinês de segunda geração, esse repasse foi facilitado por seu melhor domínio da expressão em
língua portuguesa e, também, por uma compreensão “mais tranqüila” da mente brasileira (ele chegou ao país no início da
adolescência).
188
budista praticante. Dos oito, apenas um afirmou que poderia considerar a possibilidade de
se converter a uma das religiões relacionadas ao Kung-Fu – desde que não precisasse
abandonar o catolicismo. Podemos deduzir, pois, que a relação dos entrevistados
com os elementos religiosos do Kung-Fu é semelhante à que estabelecem com a
religiosidade em geral – de respeito, mas sem grande envolvimento. Por terem
pouco acesso às informações dos valores religiosos do Kung-Fu, porém, acabam
por se afastar desse segmento do universo semântico não-corporal.
483
Elementos centrais no ambiente de prática e, sem dúvida, mais próximos da “representação religiosa
média” dos ambientes marciais orientais. Afinal, que filme de artes marciais – em especiais os recentes,
estrelados por atores não-orientais – não possui uma cena em que o protagonista aparece queimando incenso e
meditando em uma ermida, diante de uma katana (espada samurai) ou próximo de um altar? Essa lente tem
por fulcro o olhar nipônico da marcialidade.
189
- Os entrevistados brasileiros relacionaram a prática marcial a fatores como
“tranqüilidade” e “equilíbrio”. Essa relação mostra, de certa forma, uma “percepção do
sagrado” na arte marcial. Esse “sagrado”, porém, parece estar ligado ao chamado “foco
nipônico” que permeia a visão ocidental acerca de todas as expressões marciais do
Extremo Oriente. Parece estar ligado, também, a um poderoso fator de caráter simbólico-
psicológico: o da “reserva voluntária de tempo” para uma prática física que, além de
combater o estresse, também conecta o indivíduo a elementos de grande valor simbólico,
como o combate individual e armas antigas (como a espada),484 bem como a outros
indivíduos que possuem interesses semelhantes.
484
Sobre o simbolismo da luta, ver CIRLOT, J., “Dicionário de Símbolos”, op. cit., p. 355-356; sobre o da
espada, ver, na mesma obra, p. 236 a 239.
190
8. CONCLUSÃO
Pois, em apenas 40 anos, o Brasil assimilou cinco séculos de arte marcial organizada em
estilos e pelo menos 35 séculos de movimentações guerreiras chinesas, dos bronzes de
Shang à genial doutrina militar de Sun Tzu, da fusão médico-mágica budo-taoísta de Hua
To à efervescência das tríades e dos boxers. Isso, sem ter recebido um número
significativo de imigrantes chineses ou de mestres de Kung-Fu originários daquele país.
Diante de tais observações, estabelecemos as nossas hipóteses de trabalho. Neste
capítulo final, depois de uma “jornada de mil li”,485 pretendemos respondê-las e – para
usar a linguagem figurada do capítulo 6 - “chegar ao filhote do tigre”.486
Antes de chegar à análise teórica pura – que tomará por base a teoria de Martin Baumann
acerca da transplantação religiosa, bem como conceitos de Peter Berger e Thomas
Luckmann sobre a “realidade não-padrão” e a formação de subuniversos -, faz-se
necessário explicar o caminho que adotamos para conferir objetividade à etapa final do
trabalho. A partir das conclusões de corte teórico-bibliográfico e empírico é possível emitir
pareceres às seis hipóteses “particulares” estabelecidas na introdução desta dissertação:
485
Referência ao ditado chinês “Uma jornada de mil li começa pelo primeiro passo”. Um li ( ) equivale a
500 metros. Inf. cf. <http://www.nationmaster.com/encyclopedia/Chinese-unit> (c. 26.07.2004).
191
1. “A prevalência de uma tradição oral centrada no valor atribuído à informação do
‘mestre’ (chinês ou brasileiro), a ausência de obras acadêmicas sobre arte marcial
chinesa, a obtenção empírica de conhecimentos e, principalmente, a forte presença de
conteúdos não-corporais sobre Kung-Fu em produtos da indústria cultural (a partir dos
anos 70), implicaram na formação de um universo semântico não-corporal sui generis,
moderno e de fulcro transcultural.”
486
Ver abertura do cap. 6.
192
As “informações extra-academia” se referem, fundamentalmente, a aspectos gerais da
arte marcial, tendo por fim, muitas vezes, o compartilhamento de impressões a seu
respeito. Dessa forma, não se pode afirmar que a segunda hipótese esteja totalmente
confirmada: em relação à busca extra-academia por informações, sim; em relação à
finalidade “legitimadora” da busca, não.
3. “As diferenças culturais existentes entre os mestres chineses que chegaram ao Brasil e
os praticantes brasileiros (a começar pelo idioma) teriam criado uma ‘barreira semântica’
que dificultou a transmissão de valores religiosos e ético-filosóficos que, originalmente,
formavam o ‘substrato espiritual’ do Kung-Fu.”
Essa hipótese é confirmada pelas entrevistas com os mestres chineses. Como vimos nas
entrevistas, eles têm dificuldade de expressar valores religiosos e ético-filosóficos; não
apenas por conta de um problema de domínio do idioma, mas, também, pelo fato de que
muitas das suas percepções foram calcadas em uma “visão chinesa de mundo” e em uma
religiosidade de corte popular que é de difícil expressão em termos racionais (trata-se de
uma religiosidade do sentir). Vale observar que a transmissão de conteúdos corporais –
técnicas e rotinas – não constitui problema, se colocando, mesmo, como fulcro da prática
marcial chinesa tradicional no Brasil.
193
praticantes chineses de Kung-Fu – mas há academias. A inexistência de tensão étnica,
que forçaria os praticantes brasileiros a lutar pela própria legitimação dentro do
subuniverso do Kung-Fu, facilitou o processo de valoração/ressignificação dos conteúdos
não-corporais presentes na arte marcial chinesa. Nesse contexto, a presença de mestres
chineses não parece ter grande peso – eles são, sem dúvida, “guardiães da ortodoxia
corporal”, ou seja, prestam muita atenção à forma como seus alunos apreendem e
replicam as técnicas e rotinas ensinadas. Em relação aos conteúdos não-corporais,
esbarram nos elementos relacionados na hipótese anterior.
194
6. “A visão do Kung-Fu como atividade desligada de conteúdos que não os de caráter
puramente marcial ou de condicionamento físico fez com que os praticantes não
investigassem e nem se interessassem pelos elementos religiosos, promovendo uma
desvalorização dos mesmos no universo da arte marcial.”
Com base nas respostas às hipóteses particulares, afirmamos que a hipótese “geral” ou
“fundamental” é plenamente confirmada. O Kung-Fu brasileiro, de fato, teve seu universo
semântico não-corporal condicionado por fatores muito específicos.
487
O Kung-Fu, como afirmamos anteriormente, não é uma religião, mas uma prática que relaciona uma série
de dados da cultura chinesa – entre eles, alguns de natureza religiosa. Ainda assim, cremos na validade da
aplicação do constructo à nossa pesquisa.
195
resumo sistemático”,488 Frank Usarski aponta três linhas principais nas quais estão
incluídas as formas de Budismo encontradas no Brasil: são as do “Budismo de
Imigração”, do “Budismo de Conversão de ‘primeira geração’” e do “Budismo de
Conversão de ‘segunda geração’”.
Este é o primeiro fator de constituição do “Kung-Fu à Brasileira”: por não ter sido
tomado pelos imigrantes chineses como fator de identidade étnica, chegou aos
brasileiros como uma espécie de “res derelicta”, ou seja, como um produto cultural
488
USARSKI, “O Budismo no Brasil – um resumo sistemático”, in “O Budismo no Brasil”, op. cit., p. 9 a 33.
489
O autor aponta três características, a saber: a) – fusão do Budismo com o culto dos ancestrais; b) – ênfase
na devoção e na recitação segundo a tradição nos moldes do Amida-Budismo; e c) – a prática de abrangência
familiar.
490
Mesmo porque, na China, há uma forte tradição folclórica, literária e mesmo política ligada à prática
marcial.
196
abandonado pelo conjunto de seus possuidores originais, que, por conta disso, foi
livremente apropriado pela população não-chinesa.491
491
A expressão latina “res derelicta”, empregada no campo jurídico, se refere à coisa (res) abandonada
(derelicta). Nosso uso, apesar de figurado, não foge ao significado original da expressão.
492
Vale observar que os dois professores brasileiros entrevistados, que começaram a treinar em pleno “boom
Kung-Fu”, não cursaram o terceiro grau. Ao invés disso, preferiram se dedicar ao aprofundamento nos
conhecimentos marciais.
197
afastamento dos elementos não-corporais. A formação de novas gerações de
professores brasileiros (quarta, quinta e até sexta gerações em relação ao mestre
originário), porém, tende a fazer com que até os mesmo conteúdos corporais sejam
reinterpretados e reformulados.
Em outra obra relacionada ao mesmo tema,495 Baumann enumera as cinco fases que, de
acordo com sua interpretação, contemplam a transplantação do Budismo para o Ocidente.
Vamos fazer uso desse construto para analisar a chegada do Kung-Fu ao Brasil e, desta
forma, reforçar nossa conclusão acerca da hipótese geral de trabalho. Segundo ele, o
Budismo (para nós, o Kung-Fu) se estabeleceu a partir dos seguintes momentos:
493
BAUMANN, M., “A Difusão Global do Budismo”, in “O Budismo no Brasil”, op. cit., p.35 a 71.
494
Ibid., p. 36.
495
BAUMANN, M., “The Transplantation of Buddhism to Germany: Processive modes and strategies of
adaptation”, art. publ. in Method & Theory in the Study of Religion”, 6/1, 1994, p. 35-61.
198
de forma impessoal, por meio de textos e escrituras. No caso do Kung-Fu brasileiro, essa
primeira fase se deu de forma sui generis: tratou-se, sem dúvida, de um contato “de dupla
origem” ou, para usar um termo que estabelecemos ao longo do trabalho, de uma
“transplantação cruzada”.
Ao mesmo tempo em que, nos anos 60, chegavam os mestres originários (o equivalente
aos “indivíduos religiosos” ou “missionários”), a indústria cultural configurava um
movimento de aproximação em relação à arte marcial chinesa (o equivalente moderno
aos “textos e escrituras”) que viria a desembocar no movimento que denominamos boom
Kung-Fu. Enquanto os poucos mestres traziam informações de caráter corporal aos
brasileiros (como já vimos, algumas barreiras impediram a transmissão de conteúdos não-
corporais, dentre os quais os relativos às religiões chinesas), a indústria cultural, por meio
da configuração de um “herói de Kung-Fu”, estabelecia um modelo que viria a influenciar
profundamente a primeira geração de praticantes. Vale observar que essa configuração
se deu a partir de uma lente “ocidentalizante”, baseada em valores melhor compreendidos
pelas massas e, também, no “olhar nipônico” para as artes marciais (como “caminho para
a transcendência”).
A bem da verdade, a sociedade brasileira, há muito invadida por produtos culturais norte-
americanos (filmes, músicas e seriados de TV) não teria como rechaçar “enlatados”
199
importados dos Estados Unidos e vendidos como “grandes atrações” pelos grupos locais
de difusão da cultura de massa (o seriado “Kung-Fu”, por exemplo, era apresentado pela
Rede Globo em horário nobre). A ausência de uma variável étnica também favoreceu o
processo: como os chineses não atribuíam muita importância à sua arte marcial, não
havia a quem confrontar.
496
BAUMANN, M., “The Transplantation…”, op. cit., p. 41.
200
Recuperação – A quarta fase diz respeito a um movimento caracterizado pela análise da
prática religiosa no ambiente de transplantação a partir de um olhar para o ponto de
partida da tradição transplantada, sua cultura de origem. Como vimos, o Kung-Fu é um
produto de “dupla paternidade” no Brasil: se, por um lado, esse movimento de
recuperação pode ser visto nos alunos de outros Estados que vão a São Paulo a fim de
“repassar e corrigir rotinas”, por outro ele é um produto transcultural (em seus aspectos
não-corporais), que, por ter deixado a China há muito tempo, não demanda de qualquer
comparação. Acreditamos que a fase de recuperação dos conteúdos não-corporais
estaria caracterizada se houvesse um número mais expressivo de obras acadêmicas
(críticas) sobre Kung-Fu. Elas, porém, praticamente inexistem em nosso país.
201
e, de modo mais sério, quando da competição por alunos em uma mesma base
geográfica.
497
BERGER, P, & LUCKMANN, T., “A Construção Social…”, op. cit.
202
dá nos vestiários, na passagem da roupa “civil” para a marcial e, no final da aula, desta
para aquela. Poderia haver conflito se, por exemplo, os praticantes saíssem das
academias vestindo “fardões de Kung-Fu”; ele seria quase certo se, além da roupa, eles
saíssem à rua portando facões, espadas ou lanças; seria certo se, para resolver seus
problemas, apelassem para o uso das mortais técnicas da arte marcial chinesa. Essas
situações, porém, não costumam acontecer e, portanto, não geram controvérsia.498
Os autores entendem por realidade-padrão (ou realidade da vida cotidiana) aquela que se
caracteriza por ser predominante, que é tomada pelos membros ordinários da sociedade
como uma realidade certa, à qual não cabem reproches. Essa realidade se origina nos
próprios indivíduos, na vasta teia de relacionamentos que implica na instituição de regras
de conduta social que, ao longo do tempo, se consolidam e acabam por se tornar
“invisíveis” por conta de sua tamanha “normalidade”. O que dizer da realidade-padrão
face ao subuniverso do Kung-Fu? Mais uma vez, aqui, podemos usar um exemplo
prosaico: o das mães de praticantes adolescentes de Kung-Fu. Muitas delas, apesar de
pouco conhecerem a respeito do vestuário chinês, produzem os “coletes e túnicas típicas”
usados por seus filhos nas aulas e, principalmente, nas competições. De modo geral, os
donos de academias não protestam contra esses uniformes – desde que, por baixo deles,
os alunos estejam usando a camiseta “institucional” da academia (que não é apenas um
símbolo subuniversal, mas também uma fonte de renda das academias).
Diante do que foi observado nos dois últimos parágrafos, o que dizer da relação entre
realidade-padrão e subuniverso de Kung-Fu? Inicialmente, que há um subuniverso
formado pelos amantes das velhas práticas guerreiras chinesas; por outro, que ele se
relaciona absolutamente bem com a realidade-padrão, mesmo porque seus integrantes
normalmente sabem diferenciar os espaços de adoção de papéis (eu não treino de terno
e não trabalho com uma espada chinesa na cintura). Essa convivência também se dá sob
a forma de troca de conteúdos: é possível levar algumas práticas da academia para o
cotidiano (é o que ocorre, por exemplo, com a popularização do Tai-Chi-Chuan) e
algumas prática do cotidiano (ou de outros subuniversos) para as academias (como o uso
de relógios para marcar o tempo das aulas ou de tênis para a prática marcial). Nos termos
498
Um exemplo de conflito entre subuniverso marcial e realidade-padrão foi visto na década de 90, a partir da
afirmação dos chamados Bad Boys do Jiu-Jitsu brasileiro. Alguns dos praticantes cariocas se envolveram em
brigas e agressões em bares e boates, o que mobilizou a polícia e produziu uma imagem negativa de sua
prática marcial junto à sociedade.
203
da nossa hipótese geral, podemos afirmar que essa relação “de alta permeabilidade”
fortalece a afirmação de que o Kung-Fu praticado no Brasil teve seu universo semântico
não corporal condicionado por fatores externos. Um bom exemplo disso é a relação que
os praticantes entrevistados mantém com os elementos religiosos tradicionais
encontrados no Shaolin do Norte. A postura de “respeito e afastamento” apenas reflete
uma relação estabelecida entre o indivíduo e sua religião no contexto da realidade-
padrão.
E qual o futuro do Kung-Fu praticado no Brasil? Diante dos dados de pesquisa, podemos
afirmar que ele tende, cada vez mais, a se abrasileirar. Esse processo vai se dar pela
difusão cada vez maior de “conteúdos tradicionais produzidos ontem”, pelo afastamento
entre as novas gerações de praticantes e os mestres originários e pelo desaparecimento
das informações originais a respeito dos conteúdos religiosos chineses presentes nas
academias. Assim, os ideogramas que antes representavam, por exemplo, as “Seis
Harmonias” (Lho Hã), perderão seu significado esotérico e vão adquirir um caráter de
mero identificador de um cenário subuniversal. Esse processo já é visível e há de se
consolidar quando os mestres originários desaparecerem. Por fim, pensamos que é
possível afirmar que a “tropicalização do Kung-Fu” vai alcançar até mesmo as técnicas
corporais. Esse processo, mais lento, tende a ocorrer por conta da grande dispersão
geográfica da prática marcial e, também, pela replicação de entendimentos pessoais
acerca das técnicas que compõem a arte marcial chinesa.
204
REFERÊNCIAS499
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GRANET, M., “O Pensamento Chinês”, 1ª ed., Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, 415
p.
499
Em nossa relação de referências buscamos estabelecer uma divisão que permitisse ao leitor vilsumbrar
com clareza a origem das fontes de consulta. Assim, elas foram divididas em “acadêmicas”, “de
representação” (produzidas - por exemplo, por praticantes de Kung-Fu - sem fundamentação acadêmica) e
“ferramentas e softwares de apoio”. A ordem de colocação do tipo de fonte (livros, artigos, etc.) buscou seguir
um critério de importância para a produção da dissertação.
205
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mais anexos.
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