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ANTONIO = CANDIAO, RE CORTES 5?: Cia.das Letras, 1996 40 LITERATURA COMPARADA Ha mais de quarenta anos eu disse que “estudar literatura brasilei- ra € estudar literatura comparada”, porque a nossa produgio foi sem- -pre io vinculada aos exemplos externos, que insensivelmente 0s estu- diosos efetuavam as suas andlises ou elaboravam os seus juizos toman- ‘do-os como critérios de validade. Daf ter havido uma espécie de com- paratismo difuso ¢ espontaneo na filigrana do trabalho critico desde 0 tempo do romantismo, quando os brasileiros afirmaram que a sua lite- ratura era diferente da de Portugal : ‘O primeiro sinal disso se encontra na mania de referéncia po te dos eriticos. Eles pareciam sentir melhor a natureza ¢ a qualidade dos textos locais quando podiam referi-los a textos estrangeiros, como se a capacidade do brasileiro ficasse justificada pela afinidade tranqiiiliza- dora com os autores europeus, participantes de literaturas antigas e ilus- tres, que, além de influfrem na nossa, vinham deste modo dar-Ihe um sentimento confortante de parentesco. De fato, praticamente desde as origens da nossa critica até quase, 0s nosios dias, um dos critérios para caracterizar valiar os escrtores ‘jem sido a alusio paralela a autores estrangeiros, Assim, Joaquim Nor- berto evoca Walter Scott a fim de justificar a transforma¢io do indio ‘em nobre cavaleiro; Fernandes Pinheiro qualifica os Canticos fiinebres de Goncalves de Magalhes comparando-os as Contemplagoes de Vic- tor Hugo; Franklin Tavora puxa Gustave Aymard ¢ Fenimore Cooper para desmerecer José de Alencar. Nem faltou certo comparatismo dis- ciplinar, expresso na voliipia tZo brasileira de denunciar plagios, 86 igua- “Tada pela de reivindicar primazias; ¢ foi o caso de Silvio Romero apon- tando sete adaptacoes de Victor Hugo, sem mengio dos originais, na obra de Jodo Salomé Queiroga. Mesmo em anilises mais recentes, fei- tas em momentos de maior autoconfianga nacional, a referéncia surge como técnica de caracterizagao critica. £ 0 caso de Ronald de Carvalho 21 aproximando da irreveréncia e da boemia desbragada de Frangois Vil- Jon o universo de Gregério de Matos. E vejam que tudo isso no ocor- ria em contextos formalmente comparatistas, mesmo porque na mai ria dos momentos a que aludo nio se falava ainda de literatura compa- rada. Tudo flui espontaneamente, ao correr da reflex4o, como se.0 dis- curso ¢ritico sé conistituisse por meio dessas aproximacdes reconfor- “antes. Uma espe “omparatismo.n40 tencional, element et. “BEnito. Essa tendéncia dos criticos correspondia a0 comportamento aos escritores, sempre inclinados 2 apoiar-se nos textos das literaturas ma- ttizes. Sem falar! icadugOes, capitulo privilegiado nos estudos com- pparatistas,-lembro, ainda no tempo do romantismo, o jogo abundante epigrafes)de autores estrangeiros contemporaneos. & dos petiodos clissicos geralmente incorporava diretamente 20 texto as evocagdes ou citagdes de autores nos quais desejava se am- pparar, fundindo-as com o seu préprio discurso, porque naquele tempo 4 imitagio era timbre de gloria, no havia o sentimento exacerbado de originalidade ¢ as pessoas cultas tinham sempre em mente um certo es- toque de alusdes eruditas, que se podiam ajeitar como engastes. Assirn, ‘Tomis Antonio Gonzaga incorporava diretamente os tragos de Ana- ccreonte que the interessavam; Basflio da Gama transpunha para 0 Ura- guai, quase ipsis litteris, versos de Virgilio, Petrarca ou Torquato Tas- ‘$0 — 0 mesmo Tasso cujos versos sobre a Musa réligiosa frei Francisco de Sto Carlos costurou no Assune2o, Tudo, € claro, sem alusio 208 or ginais. ‘Yao poeta romantico, filho de uma era que proclamava a singulari- dade de cada um € 0 Valor da novidade, dsliga do texto a referencia ‘ea empurra para o destaque da epigrafe, onde ela aparece com o nome do seu autor e a forma exata, assumindo plenamente o cardter de refe- réncia, E, sem descartar de todo os autores antigos, o romantico prefe- re os contemporaneos estrangeiros, revelando a impregnagio direta das fontes externas € 0 novo universo do intercAmbio intelectual mais di- namico. Em Gongalves Dias e Alvares de Azevedo, homens de muita leitura, mas também nos outros, de equipamento modesto, o texto poé- tico € posto sob a tutcla da epigrafe. Por vezes, de varias epigrafes. A moda veio de fora, e Victor Hugo foi useiro dela. Mas no Brasil ela se transformou, repito, na referéncia sistemdtica aos autores europeus do 1p, escalhidos como apoio. Schiller, ¢ , Novalis, Jean-Paul, Hoffmann; Byron, Moore, Cowper; Lamartine, Vigny, Musset, George Sand, Victor Hugo — patrocinam textos nacionais. Estes sto exemplos de uma difusa tendéncia que favorecia 0 que se pode chamar de 4nimo comparatista, mesmo antes da instauragio divulgacio da literatura comparada. Ou, em seguida, manifestado por quem nio tinha informagdo sobre ela. Mas h4 outra modalidade que 212 coincide com a sua difusdo e € algo mais sistematico, embora desligado do ensino e de atividades institucionais. Refico-me 20 interesse pelo ¢s- tudo monogréfico de autor estrangeiro, marcando ainda aqui as obses- 36es da referéncia inevitdvel. O engaio de Silvio Romero sobre Emile Zola, por exemplo; o de Araripe Junior sobre Ibsen; 0 de Tasso da Sil- veir: sobre Romain Rolland; os de Tristao de Athayde ¢ Jorge de Lima sobre Proust — este tiltiino, alias, tese de concurso. Esses exemplos procuram mostrar_a ex de u coniparatista espontinea ¢ informal, como algo coextensivo 4 propria Suviide critica no Brasil. Literatura comparada propriamente dita, 86 -quiido 0 século KX A estava chegando a metade, apesar de ter havido manifestacdes anteriores, inclusive 0 uso um pouco novidadeiro da de- signagdo, por parte de quem pensava sem fundamento estar pratican- do a matéria, como foi 0 aso do agitado Almaquio Diniz. Nao conhe- go bem a marcha desses estudos, para falar a verdade. Tanto quanto sei, foram aparecendo por af como Deus quis, com ou sem 0 rotulo ‘especifico, € todos dentro dos critérios tradicionais. Lembro que um poligrafo inteligente e curioso, Afranio Peixoto, se interessou por estas Coisas, € nos anos de 1920 escreveu a respeito de eventuais influéncias d'Ofidalgo aprendiz, de d. Francisco Manoel de Mello, sobre Le bour- ‘geois gentilbomme, de Molitre, © mesmo Afrdnio Peixoto, nos anos de 1940, quase aplicou corretamente a categoria do pré-romantismo (que conhecia pelo livro de Van Tieghem, de 1924), 20 estudar José Bonifacio ¢ Borges de Barros nas suas relagdes com textos romanticos ¢ pré-romanticos europeus. ‘Mas nessa altura jé tinha entrado em cena outro baiano, que talvez possa ser considerado 0 primeiro comparatista propriamente dito na ‘titca brasileira: Eugenio. Gomes. Comparatista, entendasse, sem vin- Culo universitério nem etiqueta profissional, que comegou publicando rnos anos de 1930 um livro sobre escritores ingleses. E que a partir do mesmo decénio elaborou os notiveis estudos sobre influéncias ingle- sas em Machado de Assis. "Assim, viemos vindo desde as alusOes espontaneas anteriores 3 dis- ciplina até a sua prética regular, podendo-se concluir que a referencia 420 texto estrangeiro parece um modo constitucional da critica brasileira ‘Quero agora mencionar o primeiro curso de Literatura Compara- dade que tenho noticia no Brasil, ¢ que, alifs, nem sei se passou de projeto. Denominava-se Historia Comparada das Literaturas Novo-La- tinas ¢ compunha 0 curriculo da Faculdade Paulista de Letras ¢ Filoso- fia, fandada em 1931 sob a orientagdo de Ant6nio Piccarolo. Ele pro- pro se encarregou da matéria, além de lingua ¢ literatura latina, ¢ em 1932 deu uma aula inaugural (reproduzida em boletim) que serviaaam- bas, denominada “O parnasianismo na literatura romana”. £ possfvel 213 que a idéia de estabelecer a disciplina tenha decorrido do impacto cau- sado pela presenga de Arturo Farinelli no ano de 1927 em Sao Paulo, conde fez conferéncias que foram reunidas num volume em 1930. ‘A Faculdade Paulista encerrou as atividades em 1934, quando se fundou a Faculdade de Filosofia da Universidade de Sa Paulo, que nao incluiu no seu curriculo literatura comparada, cujo ensino, segundo as pouquissimas informacdes que tenho, deve ter comecado no Rio de Janeiro, embora, a0 que parece, sem grande continuidade. Sei que em 1936 Sérgio Buarque de Holanda foi assistente do professor frances ‘Tronchon, que ensinava literatura comparada na efémera Universida- de do Distrito Federal; ¢ que Tasso da Silveira a ministrou desde aquela altura até ndo sei quando na Universidade do Estado da Guanabara. Quanto a Faculdade de Filosofia da Universidade de Sio Paulo, hou- ve o que se pode chamar de pratica apendicular, isto é, a de fazer traba- Ihos de literatura comparada para atender a requisitos de outras dis. plinas. O comego disso foi uma tese de concurso a cadeira de Literatu- 1a Brasileira em 1945, de autoria de Antonio de Salles Campos, meu excelente professor de literatura no Colégio Universitario. Como ma- téria de teses de doutorado ela apareceu na de Keera Stevens sobre via- jantes ingleses em Portugal, orientada nos anos de 1950 pelo professor Fidelino de Figueiredo, que publicou naquela época estudos compara- tistas, inclusive um sobre Shakespeare ¢ Garrett. Para ficar nos dece- nios de 1950 e 1960, seguiram-se a de Carla de Queiroz sobre Metasta- sio € 0s arcades brasileiros, em literatura italiana; a de Marion Fleischer em literatura alema, sobre obras publicadas em alemao no Rio Grande do Sul; a de Onédia de Carvalho Barboza, em literatura inglesa, sobre tradugdes de Byron no Brasil; a de Maria Alice Faria, em literatura fran- cesa, sobre Musset ¢ Alvares de Azevedo — ¢ diversas outras. Como disciplina autOnoma, a literatura comparada apareceu na Universidade de So Paulo em 1961, por iniciativa minha, casada & teoria literéria; = -mas s6 em 1969 foram dados os primeiros cursos regulares, em nivel de graduagio; alias, sem prosseguimento imediato. Eles se consolida- ram a partir de 1971 em nivel de p6s-graduacao, aos cuidados de Oné- ia de Carvalho Barboza, que, além de assegurat a continuidade do en- sino, orientou valiosas dissertacdes ¢ teses. ‘A pattir de entio o interesse ¢ as atividades em literatura compara- da comecaram a se manifestar regularmente nas universidades brasilei- ras, das quais sO mencionei o caso paulista, por conhecer mal a situa- ‘io em outros estados. Mas faltava algo importante, ¢ eu ditia decisivo: a.consciéncia profissional especifica, que se fortalece pelo intercambio, (08 periédicos especializados ¢ a vida associativa, marcada por encon- tos, simpésios ¢ congressos. Foi o que come¢ou com a Associacao Bra- sileira de Literatura Comparada, que equivale a uma certidao de maio- 214 ridade da disciplina no Brasil. De fato, ela encerra a era que comecou ppelas manifestagbes ocasionais, passou a pritica regular, mas individual, antes de obter reconhecimento institucional, que ainda assim nao a ti rou da situacdo marginalizada, em que existia sobretudo como subpro- ‘duto do ensino das literaturas estrangeiras modernas. A partir de agora cela poder4 afinal assumir o papel que Ihe cabe num pais caracterizado pelo cruzamento intenso das culturas, como € 0 Brasil. 215

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